Resumo: A definição de técnica como a mediação entre o homem e a natureza levanta alguns problemas de ordem filosófica. Tal mediação se estabeleceu a partir de imperativos, dentre os quais podemos destacar a eficiência e a dominação, ambas exercidas sobre a natureza. A fim de ampliar as possibilidades de melhoramento da condição humana, a noção de progresso técnico tornou-se uma necessidade emergente para a consolidação das civilizações antigas e modernas. No entanto, é necessário estabelecer os critérios de uma crítica dos limites de um progresso desenfreado para podermos evidenciar a ambiguidade desse processo. O desenvolvimento da realidade passa por uma série de domínios cada vez mais sofisticados sem os quais as concretizações objetivas que estruturam a vida humana não seriam possíveis. Ao oscilar cada vez mais rápido entre a produção e a destruição, a tecnologia – entendida como o discurso aplicado da técnica (techné.logos) – acusa o seu próprio limite quando submetida ao imperativo da eficiência e da dominação. O propósito deste trabalho é mostrar que as consequências ambíguas do progresso técnico funcionam como mecanismo instaurador tanto do estado de bem-estar como do estado de guerra. A metodologia utilizada para o tratamento dessas questões será o embate de ideias presentes nos estudos de pensadores que refletiram o tema da técnica. Nossa conclusão, além de apontar para uma reflexão sobre os limites da técnica na vida humana, pretende repensar os desdobramentos dos imperativos de uma civilização pautada pela noção de progresso técnico e sua inevitável contradição com a noção de progresso humano.
Palavras-chave:EficiênciaEficiência,DominaçãoDominação,FilosofiaFilosofia,TécnicaTécnica.
Abstract: The definition of the technique as the mediation between man and nature raises some philosophical problems. Such mediation was established based on imperatives, among which we can highlight efficiency and domination, both exercised over nature. In order to expand the possibilities for improving the human condition, the notion of technical progress has become an emerging need for the consolidation of ancient and modern civilizations. However, it is necessary to establish the criteria for a critique of the limits of unrestrained progress in order to be able to highlight the ambiguity of this process. The development of reality goes through a series of increasingly sophisticated domains without which the objective achievements that structure human life would not be possible. As it oscillates more and more rapidly between production and destruction, technology - understood as the applied discourse of technique (techné-logos) - accuses its own limit when submitted to the imperative of efficiency and domination. The purpose of this paper is to show that the ambiguous consequences of technical progress work as an instinctive mechanism for both the welfare state and the state of war. The methodology used to address these issues will be the clash of ideas present in the studies of thinkers who reflected the theme of the technique. Our conclusion, in addition to pointing to a reflection on the limits of technique in human life, intends to rethink the unfolding of the imperatives of a civilization guided by the notion of technical progress and its inevitable contradiction with the notion of human progress.
Keywords: Efficiency, Domination, Philosophy, Technique.
Artigos
Eficiência e dominação da técnica
Efficiency and domination of the technique
Recepção: 20 Dezembro 2020
Aprovação: 21 Janeiro 2021
“O monstro, porém, como dotado de poderes mágicos, usara a faculdade de ocultar-me seus reais desígnios”. Frankenstein, Mary Shelley.
O progressivo desencantamento com a visão mítica do mundo fez com que o homem encontrasse formas mais racionais de explicar a realidade. Desde a Grécia Antiga, essa desmitificação pode ser compreendida como o ponto de partida para o domínio efetivo da natureza. Assim, um dos primeiros ímpetos científicos da história da filosofia – o período pré-socrático – surgiu da necessidade de elaborar um conjunto de princípios que fornecessem uma determinada inteligibilidade ao real.
Por um lado, a narrativa mítica é um “pensamento não desprendido das coisas, semi-encarnado” (GUSDORF, 1980, p. 33) e, precisamente por isso, ainda repleto de lacunas, obscuridades e incoerências. Logo, diante dessa constatação, nossa análise converge oportunamente com a concepção de Heidegger (2007, p. 381) acerca da técnica, cuja essência é um “modo de desabrigar [...] e se essencializa no âmbito onde acontece o desabrigar e o desocultamento”.
É bem verdade que Heidegger chega a tal conclusão recorrendo aos gregos, especialmente Platão e Aristóteles, para iniciar o trato conceitual da técnica a partir de bases etimológicas; por isso a techné (arte) condiz estreitamente com a episteme (conhecer) e a poiésis (produzir) grega no sentido de que, quando se busca fornecer as explicações e as causas do mundo, o que se tem em questão é um desabrigar ou desocultar producente.
Mas o fato de iniciarmos nossa discussão sobre a técnica nos reportando à passagem do mito ao logos, revela que a questão está situada antes mesmo de Platão e Aristóteles. Assim, por outro lado, a filosofia, especialmente a pré-socrática, apresenta um dos primeiros empreendimentos estritamente racionais com vistas no domínio da realidade dada. Pode-se dizer que a transição do mito à racionalidade filosófica já detém a ideia de técnica em seu modo embrionário. Malgrado as explicações dos primeiros filósofos partissem da própria physis, essas concepções irromperam como um crescente afastamento do homem em relação à natureza e uma emergente objetificação dos elementos naturais, fazendo-os mero conteúdo de uma inteligibilidade exterior.
Por consequência, segundo Georges Gusdorf (1980, p. 33), “torna-se até mesmo possível crer que nossa civilização padece de uma espécie de delírio técnico, com os desenvolvimentos da ciência a romper cada vez mais com as realidades e possibilidades naturais”. Por esta razão, percebe-se que a marca desse delírio técnico está impressa desde a antiguidade enquanto ruptura primitiva, pois “do ponto de vista da vida orgânica, a técnica corresponde a uma desencarnação, efetuando-se como ruptura no interior dos corpos históricos, na cisão entre carne e o espírito”, isto é, “resulta da irrupção do espírito na natureza e da inserção da razão nos processos cósmicos” (BERDIAEFF, 1933, pp. 17, 18). Não por acaso, poder-se-ia dizer que os filósofos antigos, não obstante “a insuficiência de seus instrumentos de controle e domínio da natureza [...], construíram uma filosofia da natureza” (ROSSI, 1989, p. 78).
Entretanto, como isso se relaciona com a ambiguidade da eficiência e como a técnica estabeleceu e estabelece seu domínio no decorrer das civilizações? Ora, na medida em que o domínio da natureza mostrava-se cada vez mais intenso, a evolução das civilizações e o próprio conceito de técnica dependia da elaboração e manipulação de elementos que garantissem as condições objetivas da existência humana. Nesse sentido, é possível inferir que quanto mais o homem perde as rédeas da evolução técnica, mais excessivo fica o seu intento de dominação. Em razão disso “o querer-dominar se torna tão mais iminente quanto a técnica ameaça escapar do domínio dos homens” (HEIDEGGER, 2007, p. 376).
No debate sobre a filosofia da técnica, a eficiência é um valor que norteia a concretização sistemática de determinados objetivos e pode ser definida como “um desempenho em que esforço e resultado respondam a uma relação satisfatória” (CUPANI, 2016, p. 20). Não por acaso, para Jacques Ellul (1977, p. 34), se quisermos dar uma definição mais ampla ao conceito de técnica, temos que lançar mão da eficiência como seu elemento primordial.
No diálogo Fedro de Platão, Sócrates relata uma história ao amigo Fedro. Trata-se da conversa que Thamus, rei de uma cidade do Egito, teve com o deus Theuth, mentor de várias invenções. De acordo com a interpretação de Neil Postman (1992, p. 14) acerca dessa lenda, a grande preocupação e o principal erro do rei, estava no fato de acreditar que a invenção, nesse caso a escrita, seria um grande fardo, uma vez que seu equívoco era “supor que qualquer inovação [...] tem um efeito unilateral apenas”.
Para além da análise de inovações específicas, aqui temos o primeiro indício do caráter ambíguo da eficiência. Se considerarmos o surgimento da invenção como a fonte de renovação frequente do domínio da técnica, rapidamente estamos compelidos a aceitar que seu efeito interventor sobre a realidade é, ao mesmo tempo, positivo e negativo. Para se conceber a efetivação plena de tais inovações é preciso admitir que na raiz de toda invenção está potencialmente posta a tensão entre os efeitos positivos e negativos que dela poderão surgir. E é aqui onde assentaremos o cerne de nossas discussões.
Aliás, do Timeu de Platão aos arroubos utópicos da Nova Atlântida de Francis Bacon, do Renascimento às consequências da Revolução Industrial até nossos dias, o reflexo da alternância entre a sondagem sobre a origem cósmica e a necessidade de melhorias da condição humana, em geral, tinha e tem como pressuposto básico uma abordagem epistemológica e passa extrínseca e intrinsecamente pela apropriação concreta da realidade (REYDON, 2018).
Friedrich Rapp, em sua obra Filosofia analítica da técnica, estabelece alguns critérios a partir dos quais é possível refletir sobre a técnica. O filósofo aponta a crítica social como uma das principais vias de acesso ao tema e indica a existência de debates no limite entre as análises culturais e filosófico-sociais (RAPP, 1981, p. 19). Adotaremos tal postura a fim de impedir que incorramos unilateralmente numa análise cultural da técnica ou numa análise puramente especulativa. Todavia, o grande propósito do presente artigo, além de indicar as consequências da ambiguidade da técnica, é preservar a crítica como elemento norteador de nossos argumentos.
Assumir o ponto de vista crítico é examinar detalhadamente quais são os meandros de uma dialética que oscila como um jogo de forças entre o uso predominante ora positivo, ora negativo da técnica. Nesse sentido, ainda segundo Rapp (1981, p. 38), o alcance crítico só pode avançar se levar em consideração as variantes do significado do conceito de técnica; com efeito, podemos destacar que, diz o autor, “se se considera a técnica mais detalhadamente do ponto de vista do atuar eficiente, funcional, podemos, então, distinguir outros dois pontos de vista: (1) o conhecimento do procedimento que temos que aplicar, (2) sua realização efetiva”.
Através desses aspectos deflagra-se um conjunto de movimentos presentes no interior do processo de desenvolvimento técnico-científico. Justamente pela ambivalência da eficiência acima apontada, é necessário, ao avaliarmos a imanência desses procedimentos na continuidade civilizatória, assumir uma postura de oposição ao discurso que tenta legitimar a técnica como esfera neutra.
Em suma, a eficiência da técnica, desde a sua mais remota origem, está vinculada diretamente ao domínio sobre a natureza. Porém, a que se deve esse domínio?
Em primeiro lugar, podemos atribuir tal domínio ao paulatino afã por uma vida organizada. O fato de não considerarmos o âmbito orgânico como criação do homem abre um viés interpretativo do qual podemos extrair uma explicação para a manipulação da natureza por parte do homem.
Embora a ruptura cada vez mais radical com a concepção de ordem natural imutável indique desde já a preponderância humana, ainda é possível prever que, para além das empreitadas de adaptação a uma nova realidade, o homem, partindo de um pressuposto metafísico, esteja em condições de participar da criação divina, tal como afirma o filósofo e engenheiro alemão Friedrich Dessauer (cf. MITCHAM, 1989, pp. 42-48). No entanto, independente das implicações que o argumento de ordem transcendente de Dessauer possa acarretar, deve-se considerar que tal justificação deixa implícito um déficit ontológico inerente às condições concretas da realidade e, se vislumbrássemos a possibilidade de repará-lo, não seria na vida orgânica em si mesma que encontraríamos os elementos suficientemente autônomos para tal empreitada. É nesse sentido que o russo Nicolas Berdiaeff (1933, p. 18) mostra que “a dominação da técnica marca, antes de tudo, a passagem da vida orgânica à vida organizada, a passagem da vida vegetal à vida construtiva”. Invariavelmente, nesse momento “a transformação da própria insuficiência técnica em ontologia” (ROSSI, 1989, p. 78) torna-se o parâmetro alcançável e favorável para o surgimento de um terreno propício ao estabelecimento das civilizações.
Em segundo lugar, a tendência ao ordenamento orienta um segundo aspecto legitimador em função do qual o domínio da natureza torna-se emergente. Desse modo, o apelo extensivo da técnica faz com que o homem volte o olhar para as próprias limitações. A maneira mais primitiva de constatar os limites consiste, primeiramente, em romper com o modo de vida contemplativo e fazer daí derivar simultaneamente tanto o reconhecimento das deficiências orgânicas, bem como o impulso ao enfrentamento do real. Pode-se dizer, na expressão de Arnold Gehlen, que a técnica é o resultado das deficiências orgânicas do homem:
A modificação que o homem introduz na natureza como dado imediato, para fins próprios, estava desde sempre ligada à luta contra o seu semelhante e só muito recentemente se tentou resolver este dramático estado de coisas. Pobre de sentidos, indefeso, nu, embrionário no conjunto dos seus hábitos, inseguro nos seus instintos, ele é o ser que existencialmente está voltado para a ação (GEHLEN, 1956, p. 16, grifo do autor).
Para chegar a tais conclusões, Gehlen evidencia a importância do pensamento de José Ortega y Gasset. De fato, encontramos neste autor alguns indícios capazes de corroborar a concepção da técnica pensada como a necessidade de superar as limitações orgânicas. Todavia, o pensador espanhol apresenta um conjunto de características as quais se mostram anteriores à substituição progressiva dos órgãos naturais por procedimentos artificiais. Trata-se da satisfação imediata das necessidades cujo principal fim é a diminuição de esforço. Dessa forma, o bem-estar do qual depende a existência humana é possibilitado, inicialmente, pela não conformação do homem, pois “quando o homem não pode satisfazer as necessidades inerentes a sua vida, porque a natureza em torno não lhe fornece os meios imprescindíveis para tal, ele não se conforma” (ORTEGAY GASSET, 1991, p. 8). Encontramos em Freud (2010, pp. 138, 139) uma boa ilustração desse ponto de vista:
Com todas as suas ferramentas, o homem aperfeiçoa os seus órgãos – tanto os da motilidade quanto os da sensibilidade – ou remove as barreiras para a sua operação. Os motores lhe colocam forças gigantescas à disposição, que ele pode direcionar, como os seus músculos, para onde quiser; o navio e o avião fazem com que nem a água nem o ar possam impedir sua movimentação. Com os óculos, ele corrige as deficiências da lente de seu olho; com o telescópio, enxerga a distâncias remotas; com o microscópio, supera os limites da visibilidade imposta pela estrutura de sua retina. Com a máquina fotográfica, ele criou um instrumento que retém fugazes impressões visuais [...].
A eficiência da relação entre o homem e a natureza é, uma vez mais, marcada por um duplo movimento. Isto é, na medida em que os procedimentos oriundos dessa relação são aperfeiçoados, tanto o homem como a natureza não mais preservam intacto o núcleo primitivo de sua intimidade orgânica. Essa alteração originária modifica substancialmente o curso dos acontecimentos e faz com que os efeitos da técnica possam ir muito mais além da satisfação imediata das necessidades, afetando “toda a sociedade já que a esfera privada, o mundo do trabalho, a estrutura social, a organização institucional e as atitudes valorativas estão assinaladas direta ou indiretamente pelo estilo de vida técnico” (RAPP, 1981, p. 39). É necessário, para confirmar esse ponto de vista, ressaltar o predomínio conflituoso do homem em relação à realidade exterior. Na obra Meditação sobre a técnica Ortega y Gasset (1981, p. 29) diz:
O ser do homem e o ser da natureza não coincidem plenamente. [...] O ser do homem tem a estranha condição de que, por um lado, está vinculado à natureza, por outro, não, já que é, a um tempo, natural e extranatural, uma espécie de centauro ontológico, cuja metade está originalmente imersa na natureza, mas a outra metade transcende-a.
Todavia, a satisfação imediata das necessidades, a diminuição de esforço, tornou a relação do homem com a natureza cada vez mais remota e paradoxalmente fez com que o domínio escapasse do controle. Suprir esse distanciamento e recuperar o elo perdido entre a instância humana e a instância da natureza nunca foi uma tarefa livre de dificuldades. Para tanto, presumivelmente, o surgimento de dispositivos mediadores é cada vez mais frequente. As ferramentas, os utensílios, os instrumentos e as máquinas em geral pululam ao longo da história da humanidade como mediação efetiva entre o mundo e o homem. Porém, mais do que dar uma definição para cada um desses dispositivos, cumpre evidenciar a importância que eles têm na manipulação da realidade dada.
Ora, a composição do aparato técnico é formada pela engenhosidade das invenções advindas de uma materialidade mediadora. Mas as conquistas derivadas do progresso técnico, que fornecem as condições materiais para o desenvolvimento de um estado de bem-estar, são compensadas negativamente pela destruição de igual modo ascendente, ou seja, por forças fomentadoras de um estado iminente de conflito – a guerra. Por exemplo, ao mesmo tempo em que as máquinas agrícolas garantem os meios para se conseguir a subsistência, as máquinas de guerra possibilitam a instauração do conflito. Os dois casos solicitam eficiência. Trata-se, em suma, de uma “autêntica fabulação material, com os mecanismos do poder a se libertarem pouco a pouco de qualquer controle, levando a humanidade para as fantasmagorias da guerra, do Estado totalitário e do sistema concentracionário” (GUSDORF, 1980, p. 34). Segundo o filósofo Félix Guattari:
Isso é particularmente claro com as inovações tecnológicas militares que pontuam frequentemente grandes sequências históricas às quais atribuem uma marca de irreversibilidade, fazendo desaparecer impérios em benefício de novas configurações geopolíticas (GUATTARI, 2006, p. 53).
É importante notar que este cenário resulta do alcance das possibilidades do atuar técnico. Tal estado de coisas passa pelo conhecimento científico-natural orientado à aplicação técnica, pela disponibilidade de recursos naturais, pelas condições sociais e, sobretudo, pela disposição dos recursos intelectuais. Tudo isso deve ser articulado de modo prévio no interior das aspirações presentes em cada época. Em suma, se quisermos delinear melhor o fluxo dessas noções principalmente desde o surgimento da modernidade, pode-se observar que a preservação dos métodos dominantes consistiu em tornar “subjetivamente possível aquilo que, do ponto de vista da natureza do mundo físico, isto é, do ponto vista objetivo, é possível” (RAPP, 1981, p. 50, grifo do autor). Na esteira dessas reflexões, Pierre-Maxime Schuhl (1955, p. 17), na obra Maquinismo e filosofia, serve-se de questionamentos bastante oportunos e afirma, portanto, que “o perigo está em nós”. Acrescenta ainda:
A experiência nos mostrou que o desenvolvimento de instrumentos sociais não resultará automaticamente em um aprimoramento dos homens que vivem na sociedade e, também, que um aumento dos recursos materiais disponíveis para a humanidade pode representar perigos, se não for acompanhado de um esforço espiritual correspondente (SCHUHL, 1955, p. 96, tradução nossa).
Por um lado, é preciso compartilhar de um mórbido otimismo para acreditar que a possível moderação das ações técnicas esteja ligada diretamente ao resultado catastrófico dos acontecimentos. Muito pelo contrário, sabe-se que a eficiência desmedida continua a ser o parâmetro norteador de todos os procedimentos técnicos e somente uma ampla restrição pode impedir que o quadro se torne irreparável. Erigir um número indefinido de restrições também não é suficiente para impossibilitar o êxito desastroso da técnica. A resolução do impasse em torno destas questões ganha força quando a limitação de um projeto técnico-científico acontece em função da falta de recursos materiais para sua execução. Porém, “as possibilidades de ação dadas de antemão e condicionadas por estas limitações se encontram em desproporção básica com os desejos e finalidades que, em princípio, não estão sujeitos a nenhuma limitação” (RAPP, 1981, p. 51).
Por outro lado, o olhar destinado ao cenário civilizacional é relativamente pessimista, porém revelador. Numa perspectiva freudiana, enfatiza-se a dificuldade de prescindir do domínio, pois a existência de um jogo complexo de concessões, repressões, recalcamentos, de descontinuidades e continuidades no âmbito das relações humanas, aliada à primazia das funções psíquicas, faz com que o desnivelamento dos propósitos humanos seja intensificado pela incompatibilidade com as ambições de dominação. Tal ponto de vista é reforçado da seguinte maneira:
Enquanto a humanidade fez progressos contínuos no que diz respeito à dominação da natureza e pode esperar outros ainda maiores, não é possível constatar com segurança um progresso análogo na regulação dos assuntos humanos [...]. Se de início se podia pensar que o essencial nela [na civilização] era a dominação da natureza para a obtenção de bens vitais e que os perigos que a ameaçavam poderiam ser eliminados por meio da adequada divisão desses bens entre os homens, agora o centro de gravidade parece ter se deslocado do material para o psíquico (FREUD, 2010, pp. 30, 31).
Para além da centralidade das questões psíquicas, em última instância, torna-se cada vez mais emergente desfazer-se da equivalência outrora existente entre progresso humano e progresso técnico e buscar readequar as exigências de acordo com as demandas de cada época. Para explicar essa consequente discordância, numa conferência quase homônima desse raciocínio, intitulada Les limites du progrès humain, Gilbert Simondon (2014, p. 271), em 1959, nos lembra que “a sucessão – ou mesmo a sobreposição – de etapas subsequentes não significa progresso”, por mais que a interconexão entre esses termos dependa de um desenvolvimento histórico dado. As observações do filósofo francês ainda vislumbram uma solução para os problemas acima colocados: “para que o progresso técnico possa ser considerado como progresso humano, é necessário implicar reciprocidade entre o homem e as concretizações objetivas” (SIMONDON, 2014, p. 277). Para, no mínimo, vislumbrarmos a origem desse fenômeno, devemos assumir que a abissal polarização entre progresso técnico e progresso humano é uma transformação remanescente do distanciamento progressivo e recíproco das ciências naturais e das ciências humanas. Não aprofundaremos essa questão, pois ela merece um tratamento independente e mais detalhado. Porém, para assimilarmos melhor essa dicotomia cultural, entendemos ser crucial a leitura das reflexões contidas em As duas culturas de C. P. Snow.
Sobre o controle da dominação do progresso técnico
Embora nosso enfoque seja examinar a questão da eficiência e seus efeitos nos desdobramentos teóricos e práticos da técnica, não resulta demasiado forçoso fazer menção, ainda que muito brevemente, aos períodos da história da técnica. Isso nos permitirá compreender como a transformação linear do mundo sempre esteve ligada a algum tipo de paradigma técnico capaz de alavancar mudanças drásticas na realidade. Desse modo, a própria história da humanidade esteve diretamente vinculada e dependia dos avanços da técnica. A dimensão histórica da técnica é tão importante para a humanidade que, se nos reportarmos ao modo como as idades eram designadas, perceberemos que cada uma delas (Idade da Pedra, Idade do Bronze, Idade do Ferro) estava de “acordo com os procedimentos técnicos nelas utilizados” (RAPP, 1981, p. 33).
Todos os esforços para formular uma periodização levavam, portanto, em consideração a estrutura do mundo material e os recursos nela disponíveis. Curiosamente, o interesse voltado para a classificação sistemática dos períodos históricos, tendo como base o progresso técnico, era acompanhado, em alguns casos, por tentativas de conter a eficiência de tal avanço.
Ao mesmo tempo em que distinguia a história da humanidade em três estágios – a época natural e orgânica, a época da cultura e a época Techno-mecânica –, Nicolas Berdiaeff (1933, pp. 13, 31) insistia, não obstante esses estágios fossem vistos como uma sucessão essencialmente cronológica, na necessidade de submeter a miríade de eventos técnico-científicos ao crivo da consciência humana. Somente a partir de uma noção refletida da realidade era possível, segundo o filósofo russo, conter a imensa potência técnica. Aliás, em 1947, por ocasião de um encontro internacional em Genebra, na Suíça, ele chega a postular que o esvaziamento moral do homem decorre do uso desmedido do poderio técnico (BERDIAEFF, 1948, p. 15).
Karl Jaspers, por sua vez, encontra na técnica o fundamento sem o qual a história não atingiria sua meta. No entanto, as invenções humanas não são suficientes, pois é necessário que suas aplicações sejam efetivadas através do trabalho e, por consequência, esse movimento acarrete a transformação da realidade. Entretanto, as digressões da técnica indicam o perigo de que aquilo que outrora era colocado como meio possa se converter num fim absoluto (JASPERS, 1980, p. 138). Em outros termos, o filósofo alemão alerta para o desvirtuamento do uso dos dispositivos, pois se antes, por um lado, estes ainda dependiam do manuseio humano, possivelmente, por outro lado, exatamente pela sua máxima eficiência na busca pela diminuição dos esforços do homem, tornar-se-iam cada vez mais independentes ao desempenhar suas funções; isso tornaria, nas palavras de Ortega y Gasset (1991, pp. 16, 24), qualquer esforço humano e a própria existência humana um artigo supérfluo, justamente “porque não fazer nada é esvaziar a vida, é não viver; é incompatível com o homem”. Essa concepção não é conclusiva, dado que o esforço para a diminuição do esforço já expressa o caminho inverso da dominação lançada sobre o homem. De um lado, enquanto o homem impõe expansivamente seu domínio sobre a natureza, por outro, é levado a estar subordinado aos próprios fenômenos técnicos dos quais tirou proveito no exercício da dominação. O ponto máximo dessa dúbia relação tem, segundo Marcuse (2019, p. 318), um duplo caráter: “1) Dominação da Natureza: exploração de recursos naturais, etc.; 2) Dominação do Homem: exploração racional do trabalho produtivo”.
Como podemos traçar o itinerário dessa consumação? Ora, se todo engajamento do homem é revestido pelas ideias de um projeto histórico regido pela ação dominadora da técnica, é razoável aceitar que, no início remoto de tal processo, não era possível constatar intervenções inteiramente conscientes. Ao contrário, os povos primitivos valiam-se muitas vezes da casualidade irrefletida e espontânea das invenções, cujo único rigor perceptível ficava a cargo de um sistema de transmissão das habilidades de geração em geração2.. A esse respeito, vale mencionar o estudo de Darcy Ribeiro na identificação das revoluções tecnológicas. Em sua obra O processo civilizatório, o pensador brasileiro avalia as etapas pré-histórica e histórica da humanidade como resultado de processos do desenvolvimento técnico. Ainda apresenta originais contribuições na inserção de subrevoluções (revolução da irrigação, revolução dos pastores e a revolução mercantil), colocando-as como suplemento das grandes revoluções geralmente conhecidas, a saber, a revolução agrária, a revolução urbana e revolução industrial, respectivamente.
Entretanto, essa noção restringe a dinâmica histórica ao surgimento da evolução tecnológica talvez porque seja “muito mais simples descrever os processos introduzidos no mundo material através da ação técnica, que indicar as determinantes psíquicas, sociais [e filosóficas] do processo de tecnificação” (RAPP, 1981, p. 49). Outro brasileiro, desta feita Álvaro Vieira Pinto (2005, p. 158), refuta a ideia de técnica como motor da história ao sustentar que os desdobramentos das atividades humanas compreendidas dentro do processo histórico não podem ser atribuídos à técnica, pois isso significa conferir-lhe um “poder demiúrgico”. Por isso, para ele, é mais coerente imputar à racionalidade humana uma anterioridade lógica em relação à técnica, embora seja ainda possível, como veremos logo adiante, pensá-la, mesmo ilusoriamente, como abertura espontânea, ainda sendo latente a normatividade da razão.
Não obstante ainda recorramos a alguns eventos presentes na ordem histórica da técnica, antes de deixarmos de lado a análise do aspecto estritamente histórico, convém considerar o que Marcuse (2019, p. 316) diz a esse respeito, pois o pensador da Escola de Frankfurt sintetiza bem, e de modo crítico, o que até aqui dissemos:
Com efeito, a tecnicidade enquanto projeto histórico possui um sentido interno, sentido que lhe é próprio: ela tão somente projeta a instrumentalidade como meio de livrar o homem do labor e da angústia, de pacificar a luta pela existência. Essa é a causa final da transformação metódica do mundo que está implicada na tecnicidade. Ora, a técnica, ao se desenvolver como o faz atualmente, isto é, como instrumentalidade “pura”, abstraiu essa causa final: esta deixou de ser o fim do desenvolvimento tecnológico. Como consequência, a instrumentalidade pura, sem finalidade, tornou-se um meio universal de dominação.
Uma das últimas revoluções tecnológicas, a industrial, na qual concentraremos o restante de nossa análise, é submetida à crítica de Marcuse e de outros pensadores contemporâneos. Se entendermos a modernidade como o período de consolidação da ideologia técnico-científica, somos conduzidos também a aceitar que toda racionalidade humana é instrumentalizada. Ou seja, a utilização de métodos sofisticados de domínio requer um controle que vai da observação da natureza (física, química ou biológica) mais ínfima até a operação de dados puramente lógicos a fim de manipular de maneira homogênea a totalidade do real.
Dificilmente escaparíamos de sermos influenciados diretamente por essa concepção, pois “o que acontece em um nível particular-cósmico não deixa de estar relacionado ao que acontece com o socius ou com a alma humana” (GUATTARI, 2006, p. 51, grifo nosso). Nesse sentido, a razão (logos) legitima a postura reativa resultante desses efeitos e, longe de gravitar numa zona de neutralidade, opera, tal como aponta Marcuse (2011, p. 201, grifos do autor), na linha tênue entre a técnica e a tecnologia: “a atitude ‘correta’ perante esta realidade instrumental é o tratamento técnico: o logos correto é a tecno-logia, que projecta uma realidade tecnológica e lhe corresponde”.
Na obra O homem unidimensional, o pensador alemão apresenta um vasto arcabouço crítico capaz de confrontar as dominações impostas pela utilização instrumental da técnica. Mas é com alento que constata a existência de uma natureza isenta das intervenções humanas, uma natureza, em termos aristotélicos, incorruptível: “as estrelas que Galileu observava eram as mesmas que existiam na Antiguidade clássica” (MARCUSE, 2011, p. 203). Não se pode discordar de tal constatação, porém seria leviano de nossa parte se ocultássemos o seu lado pouco consolador. Isto nos obriga a aceitar, por um lado, a continuidade da lógica e leis naturais, mas por outro, leva-nos também a presumir que o esgotamento dos recursos naturais alcançáveis – e, desse modo, corruptíveis (matéria prima, energia, etc.) – está mais próximo do que nunca, isto sem contar com o elevado nível de conhecimento científico atrelado à aplicação do saber técnico.
Por mais que as possibilidades do atuar técnico estejam limitadas através de restrições econômicas, políticas e jurídicas (RAPP, 1981, p. 52), ainda assim, os valores concebidos por tais restrições são solapados pelas engrenagens e exigências imprevisíveis do fluxo civilizacional pautado pelo progresso técnico. Num capítulo dedicado à racionalidade tecnológica e sua lógica de dominação, Marcuse (2011, p. 204, grifo do autor) resume bem essa concepção:
O método científico que leva à dominação cada vez mais eficaz da natureza acaba por fornecer assim tanto os conceitos puros como os instrumentos da dominação cada vez mais eficaz do homem pelo homem através da dominação da natureza [...]. A racionalidade tecnológica protege deste modo, mais do que elimina, a legitimidade da dominação, o horizonte instrumental da razão desemboca numa sociedade racionalmente totalitária.
Retomando os pensamentos de Karl Marx, Max Weber e Herbert Marcuse, Habermas sustenta que a saída para o impasse do domínio técnico pode ser vislumbrada através do combate ao quadro institucional vigente da sociedade, já que nele está a origem da “progressiva racionalização” à qual a institucionalização do progresso científico e técnico encontra-se ligada. Isso se torna possível se formos conduzidos tão somente pela reflexão sobre a relação entre progresso técnico e mundo da vida social e ainda submeter esta relação ao “controle de uma discussão racional” (HABERMAS, 2014, pp. 76, 137).
Tendo em vista que a “dinâmica incessante do progresso técnico impregnou-se de conteúdo político” (MARCUSE, 2011, p. 205), justifica-se o uso do poderio maquínico tanto para promoção da guerra, bem como para o de engrenagens institucionais – a terminologia mecânica no âmbito político endossa o predomínio técnico – para contê-la. Sendo assim, o surgimento de associações e comitês de controle de armamentos atômicos e nucleares tornou-se mais comum logo após a Segunda Guerra Mundial: para citar apenas alguns exemplos, em junho de 1945 cientistas argumentam contra o uso de bomba atômica, um mês antes da primeira explosão nuclear no Novo México; no Bulletin of Attomics Scietists, no mesmo ano, discute-se sobre a responsabilidade dos cientistas em relação ao uso de energia nuclear (MICHTAM, 1989, pp. 140, 141). Mais recentemente, em 1997, surge a expansão da Convenção de Armas Químicas, a OPAQ (Organização para a Proibição de Armas Químicas), cuja iniciativa revela, para além dos nocivos interesses econômicos, uma integração entre ciência, técnica e política.
Contudo, não se pode esperar que do homem parta apenas o interesse em combater pacificamente todo esse processo. Ora, a hegemonia do progresso regido pelo aparato técnico-político mantém-se de tal forma ligada a uma instância extremamente distante do alcance da sociedade civil, que nos faz acreditar, sub-repticiamente, que o poder e “a eficácia avassaladora e anónima da sociedade tecnológica” (MARCUSE, 2011, p. 282) não passam de uma ação espontânea. O ex-aluno de Marcuse, o filósofo Andrew Feenberg (2015, p. 91), observa, conservando o teor crítico do pensamento de seu professor, que “a cidadania técnica parece ser incompatível com a eficiência, pois apenas os tecnólogos conhecem a melhor maneira de fazer as coisas no seu domínio”. Na obra A técnica e o desafio do século, Jacques Ellul (1968, p. 96) concebe este fenômeno da seguinte forma:
Nessa evolução decisiva o homem não interfere, mas os elementos técnicos se combinam e tendem-se cada vez mais a combinar-se espontaneamente, de tal modo que a função do homem se limitaria ainda uma vez à de um aparelho registrador, verificando o efeito das técnicas umas sobre as outras e seus resultados. Toda uma nova espontaneidade, cujas leis e fins ignoramos, cria-se nesse domínio. Nesse sentido pode falar-se de “realidade” da técnica, com seu corpo, sua entidade, sua vida independente de nossa decisão.
O poder demiúrgico sobre o qual falava Álvaro Vieira Pinto tem, então, suspeita confirmada na “impessoalidade crescente das interações racionalizadas” (FEENBERG, 2015, p. 50).
Os problemas aqui levantados permanecem virtualmente ligados a uma série difusa de soluções e novos impasses. Toda a tangibilidade desse processo é transferida para uma zona instável onde operam, de modo desordenado, as polaridades mais diversas. Se evocamos o empenho de Freud (2010, p. 29) e sua leitura sobre as questões aqui colocadas, sem muita dificuldade podemos concordar com o fato de que “as criações humanas são fáceis de destruir, e a ciência e a técnica que as construíram também podem ser empregadas na sua aniquilação”. O pensamento do psicanalista austríaco remete-nos invariavelmente à concepção metafísica de Emanuele Severino acerca da civilização técnica. Valendo-se da mesma dialética freudiana (passagem do impulso produtivo ao impulso destrutivo), o filósofo italiano, conduz sua análise por um viés ontológico utilizando-se de categorias metafísicas. Assim, os grandes contrastes da história ocidental (cristianismo/anticristianismo, servo/senhor, absolutismo/democracia, humanismo/tecnicismo, capitalismo/comunismo), segundo ele, são irradiações da passagem negativamente imposta da produção à destruição, do ser ao nada. Desse modo, diz Severino (1982, p. 201), “os princípios de produção estão numa relação de interdependência com as necessidades do homem da civilização técnica, que agora sente, sobretudo, a necessidade de consumir [ou destruir] o que é produzido”. O autor vai mais além e conjectura que o domínio do futuro do homem passa pela recuperação do seu passado (SEVERINO, 1982, p. 264).
Quem melhor ilustra estas constatações, senão as aspirações ao primitivismo selvagem de Theodore Kaczynski? Antes de encaminharmos nossa discussão para o fim, vale mencionar brevemente o caso emblemático deste matemático americano. Com isso, perceberemos que até mesmo o esforço mais radical de contenção e controle do processo técnico, por natureza ambíguo, lança mão de medidas eficientes. Ted Kaczynski, o Unabomber – assim chamado pelo FBI –, buscando desesperadamente identificar e punir quem estava por trás das forças anônimas da dominação tecnológica, de 1978 a 1995, nos Estados Unidos, enviou bombas artesanais através de encomendas postais aos que, segundo ele, eram os responsáveis diretos pela destruição da natureza – engenheiros de informática, cientistas, donos de aeroportos e madeireiras –, o que resultou “na morte de três dos destinatários de seus pacotes e feriu outros 23” (LECOURT, 2005, p. 107).
Mais do que estabelecer um juízo ético acerca de suas ações, nosso propósito aqui é salientar o curioso papel que desempenha seu pensamento. Por sua vez, a resposta teórica à dominação técnica ficou por conta da obra A sociedade industrial e seu futuro. Após um longo processo de negociação com as autoridades americanas, Unabomber conseguiu publicar suas ideias sob a condição de cessar definitivamente seus ataques. Integra a obra um conjunto de 232 parágrafos, alguns dos quais foram veiculados pelos jornais The New York Times e Washington Post. Enfim, cabe utilizar – como arremate das discussões empreendidas até aqui – a sobreposição dos §§ 149 e 164: “é de se supor que a pesquisa continuará aumentando a eficiência das técnicas [...] [e] ninguém deveria ter a ilusão de que o sistema deixará de desenvolver tecnologias para controlar os seres humanos e a Natureza” (KACZYNSKI, 2014, pp. 124, 141).
Com objetivo de recapitular as reflexões postas em nossa introdução, faz-se necessário retomar o sentido de um termo utilizado por Heidegger para designar um dos momentos fundamentais da técnica: desocultamento .Hervorbringen). Como enfatiza Thomas Reydon, o termo em alemão significa tanto “fazer” (fabricação ou produção de coisas, etc.), bem como “trazer à tona”. Em virtude disso, a técnica, entendida como desocultamento, sempre esteve acompanhada da desmitificação do mundo provinda da manifestação de uma infinidade de novas criações e tentativas de explicação do mundo. Todavia, Heidegger entende que este aspecto é fundamental apenas na técnica antiga. Segundo ele, é preciso lançar mão de outro termo para podermos entender melhor a relação entre o homem e natureza na técnica moderna. Trata-se de compreender o núcleo da técnica como desafio .Herausfordern) do homem em relação à natureza e, mais ainda, em relação às forças dominantes (políticas e institucionais). Desse modo, não mais submetido às determinações fixas da natureza (por exemplo, o moinho dependia da força do vento), o homem moderno e contemporâneo define os parâmetros de domínio (por exemplo, a regulação da pressão das águas nas hidrelétricas), desafiando tanto os próprios limites, como os limites da natureza. Enquanto o autor alemão proferia tais ideias em sua conferência A questão da técnica, em 1953, no ano seguinte, Jacques Ellul (1968, p. 145) trouxe contribuições nesse sentido ao escrever que “tudo que ainda não é técnico deve tornar-se técnico; [...] Antes, pois, de ter chegado, a técnica nega o mistério. Este é apenas o que não foi tecnificado”.
Embora o sentido secreto tenha se perdido com o advento marcante da desmitificação do mundo, outras formas de ocultamento são partes constituintes do domínio técnico. Ou seja, são elaboradas na medida em que o homem pretende eximir os verdadeiros responsáveis das consequências da dominação avassaladora. Ao passo que existem essas novas formas de ocultamento, em contrapartida existem também uma série de outros métodos de desocultamento (de ordem revolucionária) que são postos como forças antagônicas por iniciativas individuais, muitas vezes marginalizadas em seu ímpeto inicial. Podemos presumir, partindo da cadeia de desafios postulada por Heidegger, que tais posturas correspondem também ao apelo do descobrimento, mesmo quando se opuserem a ele (HEIDEGGER, 2007, p. 384).
Paralelo a esses desafios, por um lado, alimenta-se uma certa nostalgia de um tempo em que a natureza, ainda livre do domínio técnico, repousava distante da destruidora intervenção humana, longe, portanto, dos imperativos potencializados pelo culto aos totens das civilizações ditas avançadas, a saber, a eficiência e a dominação. Por outro lado, a reconquista de um tal paraíso, estaria condicionada, por conter um apelo coletivista, pela difusão escatológica de ideias reparadoras de todo esse processo. Por fim, se formos tentados a ignorar completamente o domínio avassalador que a técnica exerce sobre a humanidade e sobre a natureza, será preciso fatalmente ceder à afirmação de que tanto as ideologias, bem como as utopias não passam, para usar as palavras do filósofo romeno Emil Cioran (2011, p. 105), de uma “ilusão hipostasiada”.