Artigos
Recepção: 19 Novembro 2020
Aprovação: 19 Janeiro 2021
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v21i1.2165
Resumo: O texto procura esclarecer o sentido do fascismo contemporâneo, em particular a partir do exemplo do bolsonarismo, definindo-o como uma perspectiva antissistêmica, anti-institucional, antijurídica e infralegal com caráter personalista, vocacionado, voluntarista, espontaneísta e militante que começa dentro do judiciário e sob a forma de subversão da relação direito, política e moral e que, por meio da politização e da partidarização do direito, se ramifica ao sistema político, servindo de instrumento para a guerra político-partidária fratricida, dali se vinculando à sociedade civil em termos de produção de uma massa-milícia digital-social de aclamação com caráter e orientação antissistêmicos. Nesse diapasão, o fascismo possui dois núcleos constitutivos e dinamizadores: por um lado, subverte a correlação entre direitos humanos e direito, deslegitimando e, na verdade, destruindo a primazia ontogenética, a separação, a diferenciação, a autorreferencialidade e a sobreposição do direito em relação à política e à moral, bem como a subsidiariedade destas em relação àquele; por outro, consiste na desconstrução desde dentro do judiciário e do sistema político da perspectiva altamente institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada que é própria a eles, eliminando a centralidade do judiciário e, com isso, deslegitimando seu papel regulador do sistema político e da dialética social, normalizando a regressão totalizante ocasionada pela colonização político-moral do direito democrático. Ao reconstruirmos a base metanormativa e geracional da democracia pluralista e universalista como um sistema público de direito, isto é, a co-originariedade de universalidade dos direitos humanos, pluralismo e direito, a condição ontogenética primigênia, independente, autossubsistente e sobreposta do direito em relação à política e à moral, bem como a subsidiariedade destas em relação àqueles, apontaremos para a retomada dessa perspectiva sistêmica, sistemática, processual, mediada, instancial, progressiva e publicizada do sistema público de direito, no caso na interrelação, na separação e na sobreposição de judiciário e sistema político, demarcada por um forte ideal de institucionalidade, legalidade, tecnicalidade, formalismo e despersonalização metodológico-procedimental-axiológicos, o qual erradica a politização e a partidarização do direito e, ao devolver a integridade plena ao direito/judiciário, confina o sistema político e a sociedade civil democráticos aos seus verdadeiros limites, que também são suas bases estruturantes: os direitos humanos, o devido processo legal e o sistema público de direito, com a necessidade de tradução plena da política e da moral ao direito, delimitando a democracia pluralista e universalista como um sistema público de direito orientado à produção da universalidade na/como/pela legalidade.
Palavras-chave: Democracia Pluralista e Universalista: Sistema Público de Direito, Direito, Política, Moral, Fascismo.
Abstract: The paper aims to clarify the sense of contemporary fascism, particularly from the example of the Brazilian Bonsolarism, defining it as an anti-systemic, anti-institucional, anti-juridical and infralegal perspective with a personalist, devoted, voluntarist, spontaneous and militant character which starts from inside judiciary and in terms of subversion of the relation among law, politics and moral, and that, by means of politicization and partisanship of law, branches to the political system, serving as instrument to the fratricide political war among parties, from there linking to civil society in the form of constitution of a digital-social mass-militia of acclamation oriented to an anti-systemic posture. In this dynamic, the fascism has two constitutive and streamlining cores: on one side, it subverts the correlation of human rights and law, delegitimizing and truly destroying the ontogenetic primacy, the separation, the differentiation, the self-referentiality and the overposition of law in relation to politics and moral, as the subsidiarity of them regarding law; on other, it leads to the deconstruction from inside to judiciary and political system of the highly institutionalist, legalist, technical, formal and depersonalized perspective which is proper to them, eliminating the centrality of the judiciary and, them, delegitimizing its regulator role regarding to political system and to the social dialectics, normalizing the totalizing regression caused by political-moral colonization of the democratic law. By reconstructing the pluralist and universalist democracy’s meta-normative and generative basis as a public system of law, that is, the co-originality of universality of human rights, pluralism and law, the condition of ontogenetic primacy, independence, self-subsistence and overposition of law in relation to politics and moral, as the subsidiarity of these regarding to law, we will point to the renewal of this systemic, systematic, procedural, mediated, instancial, progressive and publicized perspective of the public system of law, in the interrelation, separation and overposition of judiciary and political system, demarcated by a strong ideal of methodological-procedural-axiological institutionality, legality, technicality, formality and depersonalization, which eradicates the politicization and partisanship of law and, by devolving the complete integrality to law-judiciary, confines the democracy’s political system and civil society to their true limits which are its structural basis: the human rights, the legal process and the public system of law, with the necessity of full translation of politics and moral to law, delimitating the pluralist and universalist democracy as a public system of law oriented to the production of universality in/as/by legality.
Keywords: Pluralist and Universalist Democracy, Public System of Law, Law, Politics, Moral, Fascism.
Considerações iniciais
Neste artigo, queremos abordar a consolidação e a emergência do fascismo contemporâneo, no caso brasileiro em termos de bolsonarismo hegemônico, a partir da ideia de que ele se caracteriza de modo primigênio pela desestruturação e pela subversão desde dentro do sistema público de direito democrático em termos de politização, de partidarização e de instrumentalização do direito a partir de uma perspectiva personalista, voluntarista, espontaneísta, vocacionada, missionária e messiânica dos operadores públicos do direito e de setores amplos do judiciário que é demarcada por uma postura consentânea com caráter antissistêmico, anti-institucional, antijurídico e infralegal que, desde dentro do judiciário, fragiliza fortemente o sistema jurídico, destruindo ou minimizando, deslegitimando e rompendo com sua especificidade, subsumindo-o à guerra político-partidária fratricida e dali direcionando-se à sociedade civil em termos de formação de uma massa-milícia digital-social de aclamação ela mesma orientada à deturpação e, ao fim e ao cabo, à destruição desse sistema público de direito. Por outras palavras, interpretaremos a versão contemporânea do fascismo brasileiro enquanto sendo dinamizado por uma postura de autoimplosão interna do judiciário por seus operadores públicos que, ao partidarizar, politizar e instrumentalizar o direito, colonizando-o moralmente, solapa, quando não apaga totalmente, (a) a co-originariedade de direitos humanos, pluralismo e direito; (b) a primazia ontogenética, a separação, a diferenciação, a autonomia, a endogenia, a independência, a autorreferencialidade, a autossubsistência, a autossuficiência e a sobreposição do direito em relação à política e à moral; (c) a subsidiariedade da política e da moral ao direito, com sua necessária fundação na universalidade dos direitos humanos, seu fomento e proteção do pluralismo-diversidade e sua completa tradução ao procedimentalismo, à principialidade, à simbologia e à linguagem do direito positivo; (d) o devido processo legal público-publicizado e as mediações jurídicas estruturantes que efetivam os direitos e as garantias fundamentais e a segurança, a isonomia, a simetria e a horizontalidade jurídicas que são a única base estabilizadora e legitimadora do direito e do judiciário (e pelo judiciário) em primeiro lugar, das instituições públicas em segundo lugar, do sistema político e dos partidos e lideranças políticos em terceiro lugar e da sociedade civil e da dialética pluralizadora, diferenciadora, heterogeneizadora e complexificadora entre seus movimentos e grupos sociopolíticos em quarto lugar. Na medida em que o próprio judiciário se fragiliza e se deslegitima, rompendo com essa autonomia, essa diferenciação, essa primariedade e essa sobreposição do direito em relação à política e à moral, na verdade agindo deliberadamente em tal subversão, o bolsonarismo enquanto movimento político-cultural infralegal passa a adquirir força e hegemonia avassaladoras, exatamente por meio de um discurso e de uma prática antissistêmicos direcionados à deslegitimação do sistema público de direito, amplificada, tolerada e também levada a efeito por setores do judiciário. O resultado é claro e assustador: imobilização do judiciário, deslegitimação ampla do direito, colonização político-moral do direito e, finalmente, minimização e obliteração seja das mediações jurídicas estruturantes, seja da diferenciação, da separação e da sobreposição entre poderes (o judiciário sobre o sistema político), a qual ameaça seriamente a estabilidade e a continuidade do Estado democrático de direito e que anula possíveis reações de enfrentamento ao bolsonarismo político e ao partidarismo jurídico por meio do lawfare institucional, da polícia de Estado e do Estado de exceção instaurado primeiro por setores do judiciário e do Ministério Público Federal e assumido e normalizado pelo bolsonarismo (inclusive com o escanteamento seja do judiciário, seja do MPF).
Tentaremos reflexivizar essa situação e propor uma forma de correção dessa perspectiva fascista antissistêmica, anti-institucional, antijurídica e infralegal que grassa dentro do judiciário e do sistema político, sob a forma de bolsonarismo, a partir da reconstrução da base fundacional da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito com caráter antifascista, antitotalitário, não-fundamentalista e antirracista. Essa base fundacional se caracteriza por alguns princípios estruturantes nucleares, cuja reafirmação consiste no primeiro passo – e certamente no passo mais fundamental – de desconstrução do fascismo bolsonarista, a saber: (a) a co-originariedade de direitos humanos, pluralismo e direito enquanto o substrato exclusivo, suficiente e necessário desde o qual a democracia e seu sistema público de direito se escoram, se fundam, se dinamizam e ganham seu sentido; (b) a consequente co-originariedade de direitos humanos e direito, que leva seja à condição ontogeneticamente primária, à separação, à diferenciação, à autonomia, à independência, à endogenia, à autorreferencialidade, à autossuficiência, à autossubsistência e à sobreposição do direito em relação à política e à moral, bem como à consentânea subsidiariedade e consequencialidade da política e da moral ao direito e à necessidade de que a política e a moral se fundem de modo incondicional na universalidade dos direitos humanos, promovam direta e pungentemente ao pluralismo e traduzam-se completamente no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo; (c) a ideia de um sistema público de direito com caráter sistemático, processual, mediado, instancial, progressivo e publicizado demarcado pela produção autorreflexiva, autocontrolada e autocorretiva da universalidade na/como/pela legalidade, a qual tem como seu instrumento único e basilar ao devido processo legal público-publicizado, demarcado por recurso penal, gradualidade, revisão, correção e confirmação de sentença em termos da longa tramitação entre câmaras de revisão hierarquicamente justapostas e desde uma dinâmica vertical afunilada (lembrando que esta dinâmica vale tanto ao judiciário quanto ao sistema político e, neste caso, seja à relação entre legislativo e executivo, seja no que se refere ao legislativo bicameral); e (d) uma perspectiva estrutural, própria ao judiciário e ao sistema político, demarcada por um ideal forte de institucionalidade, legalidade, tecnicalidade, formalidade e despersonalização metodológico-procedimental-axiológicas, inume a – e erradicando – perspectivas personalistas, voluntaristas, espontaneístas, heroicas, escatológicas, missionárias e messiânicas, bem como posturas antissistêmicas, anti-institucionais, antijurídicas e infralegais desde dentro do judiciário e, a partir dele e da solidificação de sua integridade, desde dentro do próprio sistema político e relativamente à própria sociedade civil.
No nosso argumento, esse sistema público de direito é o que caracteriza, singulariza e dinamiza a democracia pluralista e universalista enquanto uma perspectiva antifascista, antitotalitária, não-fundamentalista e antirracista. E esse sistema público de direito, como dissemos acima e conforme desenvolveremos ao longo do texto, depende de modo basilar da co-originariedade de direitos humanos e direito, dessa condição ontogeneticamente primária, da diferenciação, da autonomia e da sobreposição do direito em relação à política e à moral, da subsidiariedade e da consequencialidade da política e da moral ao direito, da fundação inultrapassável da política e da moral nos direitos humanos, da assunção, da proteção e do fomento da diversidade por parte da política e da moral e, finalmente, da completa tradução da política e da moral ao direito positivo. Sem essa base normativa estruturante, caem por terra a democracia pluralista e universalista e seu sistema público de direito, perdendo essa orientação antifascista, antitotalitária, não-fundamentalista e antirracista em sua correlação de universalismo pós-tradicional no/como/pelo direito e em termos de sistemas sociais direito e política altamente institucionalistas, legalistas, tecnicistas, formalistas e despersonalizados demarcados por sistematicidade, processualidade, mediações, instancialidade, progressividade e publicidade. Não é mero acaso, aliás, o ataque fascista a essa base normativa, negando-a, deslegitimando-a e violando-a de modo reiterado e cada vez mais intenso, uma vez que todo o sustento da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito reside na co-originariedade de direitos humanos e direito e, assim, na precedência ontogenética do direito em relação à política e à moral e na consequente subsidiariedade destas em relação àquele. Nesse sentido, nossa proposta nesse artigo consiste, primeiramente, na retomada e na reconstrução dessa base normativa que se constitui no pilar estrutural e no aguilhão crítico-reflexivo-organizativo desde o qual todo o sistema público de direito democrático se organiza de modo a assumir, proteger, fomentar e materializar seja a universalidade dos direitos humanos, seja a centralidade do pluralismo e da diversidade. Por meio do desenvolvimento dessa co-originariedade de direitos humanos e direito, apontaremos exatamente para o fato de que a democracia pluralista e universalista é, falando em termos metanormativos, direito, e só depois política e moral, no sentido de que o direito (porque fundado na universalidade dos direitos humanos e ramificado em direitos e garantias fundamentais e em segurança, isonomia, simetria, horizontalidade e mediações jurídicas estruturantes) funda, valida, enquadra, reflexiviza, corrige e orienta a política e a moral, as quais somente são legítimas na medida em que basearem-se na universalidade dos direitos humanos e traduzirem-se completamente no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo. Nesse caso, é a manutenção da integridade tanto dessa relação originária e mutuamente sustentada de direitos humanos e direito quanto dessa diferenciação, dessa separação, dessa autonomia, dessa autorreferencialidade e dessa sobreposição do direito em relação à política e à moral que se constitui no objetivo antifascista, antitotalitário, não-fundamentalista e antirracista por excelência, da, para a e pela democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito. Nossa proposta, ademais, e esse seria seu segundo ponto, se orienta, uma vez delineada essa base constitutiva, geracional e dinamizadora da democracia, a definir elementos centrais de seu sistema público de direito que possam efetivamente fazer jus seja à universalidade dos direitos humanos e à centralidade do pluralismo, seja, por conseguinte, ao caráter primigênio ontogeneticamente falando, à diferenciação, à autonomia, à autorreferencialidade e à sobreposição do direito em relação à política e à moral, bem como no que se refere à consentânea subsidiariedade e consequencialidade destas relativamente aos direitos humanos e ao direito. Conceberemos, nessa parte, o sistema público de direito democrático enquanto sendo constituído e dinamizado por uma perspectiva sistemática, processual, mediada, instancial, progressiva e publicizada que é definida e demarcada por um forte ideal de institucionalidade, legalidade, tecnicalidade, formalidade e despersonalização metodológico-programático-axiológicas. Esse sistema público de direito, fundado exclusiva, suficiente e necessariamente na universalidade dos direitos humanos ramificada em constituição política, direito positivo, devido processo legal e separação e sobreposição do judiciário sobre o sistema político (e do legislativo bicameral sobre o executivo), tem por meta a produção autorreflexiva, autocontrolada e autocorretiva da universalidade na/como/pela legalidade, em termos da materialização dos direitos humanos em direitos e garantias fundamentais e em segurança, isonomia, simetria e horizontalidade jurídicas, desde o compartilhamento de tarefas (e a separação, a diferenciação e a sobreposição de e entre poderes, obviamente) entre judiciário, que deve realizar controle de constitucionalidade e responsabilização jurídico-social, e sistema político, cujo objetivo consiste em produzir políticas públicas, previsão constitucional e principialidade jurídica, ambos atuando, por causa de sua fundação na universalidade dos direitos humanos e de sua tradução completa ao direito, em termos contramajoritários.
Se a base normativa da democracia em termos de co-originariedade de direitos humanos, pluralismo-diversidade e direito garante a primazia ontogenética, a separação, a diferenciação, a autonomia, a autorreferencialidade, a autossuficiência e a sobreposição do direito em relação à política e à moral, bem como a consequente subsidiariedade destas em relação àqueles, o sistema público de direito demarcado por produção institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada da universalidade na/como/pela legalidade (isto é, materialização dos direitos humanos por meio do judiciário e do sistema político) permite uma autoconstrução reflexiva, controlada e corretiva – porque sistemática, processual, mediada, publicizada, progressiva e seriada – da objetividade normativo-jurídico-política, evitando e, na verdade, eliminando tendências antissistêmicas, anti-institucionais, antijurídicas e infralegais desde dentro do sistema público de direito de um modo geral e do judiciário e do sistema político em particular – eliminando-se também, por conseguinte, posturas personalistas, vocacionadas, espontaneístas, missionárias, messiânicas e militantes seja dos operadores públicos do direito, seja dos partidos e das lideranças políticos, os quais têm apenas a perspectiva lógico-técnica, apolítico-despolitizada e formalista-despersonalizada do direito positivo, a base fundacional dos direitos humanos e o devido processo legal público-publicizado como seus eixos estruturantes. Gostaríamos, ademais, de esclarecer brevemente o que estamos entendendo por direito, política e moral neste texto. Por direito, entendemos a correlação de direitos humanos, ramificada em direitos e garantias fundamentais e segurança, isonomia, simetria e horizontalidade jurídicas, com constituição política e direito positivo, isto é, de modo mais específico, o conjunto do direito positivo codificado, o qual, como estamos argumentando, possui fundação na universalidade dos direitos humanos e se materializa sob a forma dessa perspectiva institucionalista, legalista, técnica, formalista e despersonalizada calcada no devido processo legal, no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo e na atividade jurisdicional das cortes. Por política entendemos tanto a política formal, isto é, os partidos e as lideranças políticas institucionalizados quanto a política informal, ou seja, os movimentos sociais e os grupos sociopolíticos constituídos no interior da sociedade civil enquanto esfera político-cultural. Note-se, nesse caso, que a política tem um sentido público-institucionalizado, por isso o adjetivo formal, e uma orientação privada, por isso o adjetivo informal, a qual, organizando-se e militando desde espaços próprios à sociedade civil, almeja hegemonia público-institucional ou formal. Por moral entendemos, na expressão de John Rawls, as compreensões abrangentes de mundo que oferecem um sistema fundacional de crenças completo sobre todas as facetas da vida humana, calcado em uma perspectiva pré-jurídica e a-histórica e em termos essencialistas e naturalizados, do nível individual ao social, do físico ao metafísico, incluindo-se o âmbito político – não por acaso, política e moral possuem uma imbricação inextricável na maior parte dos casos, em nossa compreensão (o que exige sua diferenciação e sua subsidiariedade em relação ao direito democrático, bem como sua fundação plena na universalidade dos direitos humanos). No contexto de uma democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito, nós definiremos essas posições morais – e seriam exatamente isso: pluralismo moral – como privadas, isto é, próprias a grupos específicos de crenças, não definindo e nem subsumindo a autocompreensão pública dessa mesma democracia pluralista e universalista, a qual é dada exatamente pelo direito, e sequer sendo capaz de fundar a democracia pluralista e universalista, o que somente pode ser feito pelos direitos humanos ramificados em constituição política e direito positivo – inclusive, sujeitos morais não podem gerir essa mesma democracia, o que somente pode ser feito por sistemas sociais e sujeitos sistêmicos ao judiciário e à política formal desde uma perspectiva institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada, por meio do devido processo legal público-publicizado, com a fundação na universalidade dos direitos humanos, a tradução ao direito e a separação, a diferenciação e a sobreposição entre poderes.
Sobre a emergência correlata de direitos humanos e direito: definindo a base fundacional da democracia
A democracia pluralista e universalista é um sistema público de direito com caráter sistemático, mediado e processual, marcado por algumas condições estruturantes: (a) a universalidade dos direitos humanos como a base exclusiva, suficiente e necessária para esta mesma democracia, ramificada em constituição política enquanto plataforma normativa estruturante e direito positivo como procedimentalismo, principialidade, simbologia e linguagem institucional e social; (b) a condição ontogenética primigênia do direito em relação à política e à moral e, portanto, do judiciário em relação ao sistema político, com a consequente subsidiariedade da política e da moral ao direito, do sistema político frente ao judiciário; (c) a centralidade e o protagonismo dos sistemas sociais direito e política enquanto estruturas, arenas, dinâmicas e sujeitos altamente institucionalistas, legalistas, tecnicistas, formalistas e despersonalizados, sem qualquer possibilidade de politização do direito e de atuação personalista, voluntarista, espontaneísta, vocacionada, missionária e messiânica (ou seja, fora da lei, fora do devido processo legal) em termos de postura antissistêmica, anti-institucional, antijurídica e infralegal; (d) a divisão de tarefas no que tange à materialização dos direitos humanos entre o sistema jurídico, que tem por meta o controle de constitucionalidade e a responsabilização jurídico-social, e o sistema político (na separação e na sobreposição entre legislativo e executivo, na constituição de um legislativo bicameral), o qual tem por objetivo a produção de políticas públicas, de previsão constitucional e de principialidade jurídica, ambos de modo contramajoritário e tendo ao judiciário como fecho de abóboda último validador do que se faz politicamente, institucionalmente; (e) a completa tradução da política e da moral ao procedimentalismo, à principialidade, à simbologia e à linguagem do direito positivo, bem como sua fundação exclusiva, suficiente e necessária na universalidade dos direitos humanos; e (f) a consolidação do devido processo legal público-publicizado como o único instrumento de construção institucional da objetividade normativo-jurídico-política e como a única forma de manifestação pública das instituições e dos sujeitos institucionalizados – inclusive como a única forma e o único instrumento de manifestação institucional dos sujeitos não-institucionalizados. A democracia, nesse sentido, é um trabalho institucional de autoconstrução reflexiva, controlada e corretiva do direito no/como/pelo direito, da política no/como/pelo direito, da cultura no/como/pelo direito, da moral no/como/pelo direito e, portanto, pode ser caracterizada pela produção da universalidade na/como/pela legalidade.
Comecemos pela condição estrutural da democracia: sociedades democráticas são pluralistas e, por isso mesmo, universalistas. Na teoria política contemporânea, é lugar pacífico a condição pluralizada, diferenciada, heterogênea e complexa de uma democracia, a qual já não consiste mais em uma comunidade étnico-racial-moral de forte identidade interna, que serviria de base seja para a autocompreensão normativo-simbólica dessa coletividade unidimensional, fusionada, fundida em uma grande família com caráter escatológico-moral, com ordem e hierarquia internas em sentido como que absoluto, seja, consequentemente, para a fundação e a dinamização de suas instituições, de seus códigos jurídico-políticos e, de modo mais abrangente, de seus processos de socialização-subjetivação modelares e, nesse caso (das comunidades étnico-racial-morais), a determinação moral e pela moral relativamente ao direito e à política. Como insistem permanentemente John Rawls, Jürgen Habermas, Axel Honneth e Rainer Forst em suas obras, tal noção de comunidade étnico-racial-moral homogênea e completamente integrada e fundida já não existe mais, se é que efetivamente existiu algum dia (cf.: RAWLS, 2000a, 2000b, 2000c, 2003; HABERMAS, 2003a, 2003b, 2002a, 2002b; HONNETH, 2003, 2007a, 2007b; FORST, 2010; RANCIÈRE, 2014). Pelo menos esse é o caso de sociedades demarcadas por um processo de modernização mais ou menos intenso – e, não por acaso, a categoria da modernização como diferenciação social, pluralização cultural e heterogeneidade e complexidade políticas é a base de análise das sociedades contemporâneas e, em muitos casos, da própria globalização econômica, cultural, política e epistêmica em que estamos inseridos –, nas quais efetivamente a democracia emerge e se desenvolve enquanto racionalização das perspectivas metafísico-teológicas de mundo levada a efeito exatamente pelo pluralismo e em termos de diferenciação, heterogeneidade e complexidade sociopolíticas.
Ora, do pluralismo, da diferenciação, da heterogeneidade e da complexidade sociais, políticos, culturais e epistêmicos somos levados de modo pungente a uma perspectiva pós-tradicional, pós-metafísica, descentrada que, mais uma vez na teoria política contemporânea, gera e sustenta a posição universalista (cf.: RAWLS, 2002b, 2003; HABERMAS, 2012a, 2012b, 2002a; HONNETH, 2003; FORST, 2010; HUNT, 2009; CATROGA, 2006; WEBER, 1984). Note-se que essa ideia de um universalismo pós-tradicional (Axel Honneth, Rainer Forst), ou de um universalismo pós-metafísico (Jürgen Habermas), ou de um universalismo descentrado (Jean Piaget, Lawrence Kohlberg, John Rawls), ou até mesmo de um universalismo histórico, historicista (G. W. F. Hegel, Karl Marx e Max Weber) – e todos significam a mesma coisa, como explicaremos logo adiante –, a qual é a grande metáfora dos discursos filosófico-sociológico-antropológicos da modernidade europeia como sistema-mundo globalista (como ápice do gênero humano, presente dele e como seu direcionamento ao futuro), encontra-se em cheio com a crítica anticolonial levada a efeito, por exemplo, pela descolonização africana e pelo pensamento indígena brasileiro em torno à modernização como uma perspectiva que, no caso dessa descolonização africana e desse pensamento indígena brasileiro, intersecciona eurocentrismo, colonialismo e racismo com fascismo, com totalitarismo, levando a uma expansão unidimensional da Europa frente aos não-europeus (primeira manifestação do fascismo, em que brancos instrumentalizam e matam os não-brancos, a partir do eurocentrismo cultural, do racismo biológico, do fundamentalismo religioso e do instrumentalismo econômico) e, depois, a uma regressão totalizante internamente à própria Europa (nesse caso, brancos matam brancos, utilizando-se, como já acontecia nas colônias, exatamente do etnocentrismo cultural, do racismo biológico, do fundamentalismo religioso e do instrumentalismo econômico) (cf.: FANON, 1968, 2008; CÉSAIRE, 1968; MEMMI, 1967; MBEMBE, 2014a, 2014b; KRENAK, 2015; WERÁ, 2017; MUNDURUKU, 2018). Não por acaso, aliás, há uma similitude entre a fundamentação do colonialismo pela modernidade, isto é, o etnocentrismo cultural, o racismo biológico e o fundamentalismo religioso, levando ao instrumentalismo econômico, e a própria perspectiva fascista-totalitária, por exemplo, do nazismo alemão, do fascismo italiano, do comunismo soviético, do salazarismo português e do franquismo espanhol etc. – lembrando, inclusive, que a posse de colônias em África por nações europeias (essas mesmas que encabeçaram seja a luta contra o fascismo no contexto da Segunda Guerra Mundial, seja a Declaração Universal dos Direitos Humanos) estendeu-se até pelo menos a década de 1970 e, se nos lembrarmos do regime do Apartheid na África do Sul e da segregação racial nos Estados Unidos, tiveram uma resolução mínima só muito recentemente, inclusive com vários déficits ainda hoje fortemente pungentes (cf.: NASCIMENTO; 2016; SOUZA, 2012; FERNANDES; 2008).
Repetimos: há uma confluência entre um discurso filosófico-sociológico-antropológico feito por europeus em relação à modernidade e como desenvolvimento linear, reto e direto da Europa ao universalismo pós-tradicional via racionalização, a qual instaura a correlação (a) de desnaturalização, historicização e politização da sociedade-cultura-consciência e (b) de pluralismo, diferenciação, heterogeneidade e complexidade sociopolíticas, com um discurso-práxis anticolonial, decolonial ou pós-colonial (utilizamos os três termos com o mesmo sentido, isto é, enquanto luta por emancipação das sociedades-sujeitos colonizadas/os e, portanto, como enunciação e dinamização da própria voz-práxis desde as periferias e por parte dos sujeitos periferizados – negros e indígenas, por exemplo – por parte da Europa), os quais apontam, ainda que obviamente por caminhos diferentes, para a emergência da diferença como a base estruturante da contemporaneidade, como uma condição fundacional, e não acidental, como o ponto de partida, o meio de campo e o ponto de chegada de toda e qualquer perspectiva paradigmática que possa assumir o nome de universalista (e de democrática, pensando em nosso contexto hodierno, inclusive porque há uma correlação direta e uma co-originariedade de democracia, pluralismo, direitos humanos, Estado democrático de direito e universalismo pós-tradicional). A diferença, aqui, com esse seu sentido fundacional, seria o elemento descolonizador por excelência, assumindo uma perspectiva de desconstrução do etnocentrismo cultural, do racismo biológico, do fundamentalismo religioso e do instrumentalismo econômico, exigindo, como insistiam de modo peremptório teóricos da descolonização africana como Frantz Fanon, Albert Memmi e Aimé Césaire, o reconhecimento das alteridades qua alteridades, na sua irredutibilidade, na sua dignidade, na sua singularidade, situação que o colonialismo, calcado no racismo biológico, no fundamentalismo religioso e no instrumentalismo econômico, simplesmente destruiria, porque, de fato, não há, nele, reciprocidade e reconhecimento entre senhor e escravizado/a, sendo esta ausência de reconhecimento-reciprocidade e, portanto, esta negação dos direitos humanos ou fundamentais a base mais nuclear do colonialismo (e, como consequência, do fascismo, do totalitarismo), sem a qual ele não subsistiria e, na verdade, desde a qual o colonizador pode produzir menoridades político-culturais, animalizá-las, explorá-las até a sua exaustão completa e, então, matá-las. Como dissemos, seja por um discurso que consideramos ufanista por parte dos teóricos europeus em torno à modernidade-modernização europeia enquanto universalismo pós-tradicional via racionalização, o qual, inclusive, sequer menciona o colonialismo, o racismo, a exclusão dos/as outros/as da modernidade relativamente à modernidade-modernização ocidental (pense-se, aqui, nas obras de Weber e Habermas, que, ao produzirem um discurso filosófico-sociológico da modernidade europeia com caráter endógeno, autorreferencial e autossubsistente, não mencionam uma única vez sequer ao colonialismo, ao racismo, aos/às outros/as da modernidade), seja pela luta anticolonial em termos de emancipação das sociedades e dos sujeitos colonizados e escravizados e, nesse caso, a correlação de modernidade e/como colonialismo/fascismo, é a diferença, a alteridade, a diversidade, o pluralismo, o multiculturalismo que emerge em cheio e que, a partir da postura de diferenciação, heterogeneidade e complexidade dali dinamizadas, coloca a questão dos direitos humanos, isto é, de um universalismo pós-tradicional, como um ponto, como uma necessidade inultrapassável para pensarmos seja nossas sociedades democráticas, enquanto herdeiras dessa modernização no mínimo contraditória, seja a própria condição global em que vivemos, e tudo isso sempre a partir de uma perspectiva de desconstrução, de descolonização, de descatequização, de enquadramento, de crítica, de reflexivização, de transformação, de reforma das perspectivas etnocêntricas, coloniais, racistas, fundamentalistas, fascistas e totalitárias, de modo a efetivar e a radicalizar cada vez mais os processos de reconhecimento, inclusão, integração e participação institucionais, sociais, políticos, econômicos, culturais e epistêmicos dos sujeitos e dos grupos humanos. Com efeito, o pluralismo implica diretamente em desconstrução, descolonização, descatequização, reformismo, porque, como dissemos acima, a diferença na esfera pública e enquanto sujeito político-cultural militante desnaturaliza, historiciza e politiza a sociedade-cultura-consciência e, então, por consequência, ataca diretamente posições fascistas, totalitárias, racistas e fundamentalistas que, ao assumirem uma perspectiva essencialista e naturalizada de cunho pré-político, pré-cultural, pré-jurídico e a-histórico, negam a diversidade (assumindo-a, no máximo, como uma questão superficial, a ser efetivamente apagada em termos fundacionais, quando não em termos materiais), deslegitimam o pluralismo e, então, violam a singularidade das diferenças, não por acaso atacando também a universalidade dos direitos humanos, a condição basilar do Estado democrático de direito e mesmo a ideia de uma modernização enquanto universalismo pós-tradicional calcado na diferença, promotor do pluralismo e demarcado exatamente pela desnaturalização, historicização e politização da sociedade-cultura-consciência (RANCIÈRE, 2014; HABERMAS, 2012a; HONNETH, 2003; RAWLS, 2000a).
É por isso que falamos, acima, que do pluralismo, da diversidade, da diferença, da alteridade chegamos diretamente ao universalismo, isto é, aos direitos humanos como a condição em comum a partir da qual esse mesmo pluralismo está fundado e pela qual é dinamizado e se dinamiza. Com efeito, em um contexto de pluralismo, de diferenciação, de heterogeneidade e de complexidade, em particular tendo-se em vista as experiências próprias ao etnocentrismo, ao racismo, ao fundamentalismo, ao colonialismo, ao fascismo, ao totalitarismo, as normas, as práticas, o simbolismo e as perspectivas estruturantes em comum levam à construção de uma condição jurídico-institucional e sociocultural genérica, mas ao mesmo tempo fundacional, nuclear à intersubjetividade, que tem como base tanto a separação e a diferenciação entre direito, política e moral quanto a correlação direta entre direitos fundamentais, que são estendidos a todos e a cada um dos sujeitos humanos, e de direito, com a consequente universalidade desses mesmos direitos fundamentais e, por meio de sua correlação ao direito, do estabelecimento do direito como procedimentalismo, principialidade, simbologia e linguagem institucional e social, conforme estamos enfatizando aqui. Portanto, o pluralismo e, por consequência, as experiências históricas de violência colonial, etnocêntrica, racista, fundamentalista, fascista e totalitária levam exatamente à separação e à diferenciação entre direito, política e moral, com a consentânea solidificação de uma hierarquia entre eles. Por direito, estamos entendendo o conjunto (a) direitos humanos ou direitos e garantias fundamentais, (b) sistema público de direito, constituição política e direito positivo e, finalmente, (c) o devido processo legal, incluindo-se (d) a separação, a diferenciação, a autossubsistência, a endogenia, a autonomia, a independência, a autorreferencialidade, a autossuficiência e a sobreposição do judiciário em relação ao sistema político. Note-se, quanto a isso, alguns pontos fundamentais. Todos e cada um dos sujeitos sociopolíticos, estejam onde estiverem, são – pelo menos do ponto de vista da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito – sujeitos de direito e sujeitos a direitos (e, nesse caso, sujeitos com direito a ter direitos); e, aliás, a universalidade dos direitos é incondicional, irrestrita, irrevogável, inalienável, inviolável e inultrapassável, sendo estendida amplamente a todos e a cada um (inclusive ao fascista, ao racista, ao fundamentalista, o que é a suprema ironia a estes tipos de sujeito-grupo, uma vez que almejam exatamente a derrubada da democracia e do Estado de direito e a violação dos direitos humanos, os quais são a única base que impede que os próprios fascistas, racistas e fundamentalistas sejam eliminados!). Ademais, todos, como sujeitos de – e a – direitos, estão submetidos de modo isonômico, simétrico e horizontalizado ao sistema público de direito, independentemente de suas pertenças, sendo que este mesmo sistema público de direito trata a todos e a cada um como sujeitos de – e a – direitos em sentido simétrico. Por consequência, todos e cada um são obrigados, assim como se dá com as próprias instituições, a utilizarem do procedimentalismo, da principialidade, da simbologia e da linguagem do direito positivo em termos de sua vinculação privada e pública, o que também significa que sua inserção social e institucional se dá sob a forma do devido processo legal, e ambas as posturas devendo sempre estar fundadas na universalidade dos direitos humanos. Daqui emerge seja a correlação de direitos humanos ou direitos fundamentais e direito, seja a separação e a diferenciação de direito, política e moral, seja, então, a relação estratificada entre eles, enquanto característica estruturante e dinamizadora da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito.
Ora, o específico da democracia pluralista e universalista está exatamente em que ela é constituída como um, por um, em um sistema público de direito que se estrutura, se legitima, se dinamiza e enquadra à sociedade civil democrática, pluralizada, diferenciada, heterogênea e complexa a partir da co-originariedade de direitos humanos e direito. Desse modo, a democracia é, antes de tudo, direito, e não política e nem moral. O que significa essa afirmação de que a democracia pluralista e universalista é, de modo ontogeneticamente primigênio – e, portanto, em seu nível metanormativo – direito, e não política e nem moral? Significa, primeiramente, como desenvolvemos acima, que o pluralismo axiológico-cultural e a diferenciação, a heterogeneidade e a complexidade sociopolíticas já não podem mais ser resolvidos por meio da imposição – na verdade, dando “nome aos bois”: como massificação, unidimensionalização e totalização – de uma perspectiva pré-jurídica com caráter essencialista e naturalizado, ao estilo de princípios, práticas, valores, simbologias e sujeitos de base biológica e/ou religiosa. Note-se que o pluralismo, enquanto condição fundacional da democracia e do universalismo, não pode ser efetivamente assumido e valorizado desde uma perspectiva pré-jurídica que se coloque como anterior a ele e que, por isso mesmo, afirme exatamente a superficialidade e o caráter não-necessário desse mesmo pluralismo – ou, no caso, seu caráter condicionado à realização de uma perspectiva étnico-racial-moral essencialista e naturalizada de sentido a-histórico, pré-político, pré-cultural e pré-jurídico, estando, nesse caso, os direitos humanos subordinados e sendo uma consequência dessa concepção étnico-racial-moral (ou mesmo sendo assumidos por ela em termos de legitimação e materialização, com o que teríamos os “direitos humanos para humanos direitos”, em que, por exemplo, um torturador como Carlos Alberto Brilhante Ustra é descrito por nosso vice-presidente, Gal. Hamilton Mourão, como “respeitando os direitos humanos de seus subordinados”3.). As experiências históricas do colonialismo, do fascismo, do totalitarismo, do racismo e do fundamentalismo estão aí para nos recordar e nos ensinar permanentemente que a biologia e a religião na cultura e enquanto base de justificação do pluralismo e da normatividade levam exatamente ao etnocídio e ao genocídio planificados, à produção de menoridades político-culturais que, enquanto sujeitos-grupos-condições anormais, antinaturais, decaídas ou selvagens, podem ser instrumentalizados, tutelados e, quando for o caso, simplesmente assassinados. A exigência mais fundamental da diferença, da alteridade, do/a Outro/a, do pluralismo, do multiculturalismo está exatamente na recusa de fundamentos pré-jurídicos em termos de tematização, compreensão e enquadramento das, entre as e pelas diferenças, tanto institucional quanto socialmente. E, por isso mesmo, a partir do direito, temos a emergência da política e da moral, no contexto desse mesmo pluralismo. Dito de outro modo, conforme desenvolveremos mais adiante, a democracia pluralista e universalista emerge como direito e, a partir dele e de sua condição ontogeneticamente primigênia, a política e a moral se desenvolvem como subsidiárias, como consequências do direito – por conseguinte, é a partir dos direitos humanos que as diferentes posições étnico-morais efetivamente emergem enquanto caudatárias, subsidiárias e consequências dele, sendo esta uma das conquistas fundamentais da democracia.
Nesse sentido, nós nos perguntamos: qual é a base fundacional e estruturante da democracia pluralista? O que lhe confere universalidade? E, então, em que sentido a democracia pluralista e universalista é, antes de tudo e como condição para tudo o mais, direito, e não política e nem moral – direito e somente depois política e moral? O núcleo dessa mesma democracia pluralista e universalista, na medida em que ela tem por base a condição estrutural da diferença como sua pedra angular, seu pilar mais básico, e desde as experiências histórico-político-culturais do colonialismo, do racismo, do fundamentalismo, do fascismo e do totalitarismo contra a diversidade, consiste na universalidade dos direitos humanos ou, falando em linguagem jurídico-constitucional, nos direitos e garantias fundamentais e na segurança, isonomia, simetria e horizontalidade jurídicas de todos, entre todos e para com todos, indistintamente, incondicionalmente, irrestritamente (inclusive aos fascistas, aos racistas, aos fundamentalistas!). O que confere universalidade à democracia pluralista são os direitos humanos, os quais representam um conjunto normativo genérico que se estende a todos e a cada um dos sujeitos humanos no espaço e no tempo históricos. Note-se, apenas a título de esclarecimento, que estamos falando a partir da perspectiva normativo-epistemológica da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito, a qual é herdeira de um processo de descolonização, de descatequização e de enfrentamento do eurocentrismo-colonialismo-racismo-fundamentalismo-fascismo-totalitarismo, o que significa, repetimos mais uma vez, que, nela e desde ela, todos e cada um dos sujeitos sociopolíticos, estejam onde estiverem, são sujeitos de direitos fundamentais, sujeitos a direitos fundamentais e, portanto, são sujeitos de direito como seu núcleo estrutural (são sujeitos de – e a – direitos e, então, como sujeitos jurídicos, são consequentemente agentes morais e políticos livres, que podem escolher as várias posições normativo-axiológicas existentes em seu contexto e mais além, ou que podem pertencer a esse ou àquele grupo étnico-moral-político). Ademais, perceba-se, nessa nossa colocação anterior, que os direitos humanos, conferidos universal, incondicional e irrestritamente a todos e a cada um dos sujeitos sociopolíticos, ao serem colocados como a base fundacional tanto para a compreensão do pluralismo humano quanto para a significação de cada pessoa humana, implicam em que, seja no âmbito metanormativo, seja na esfera propriamente histórica, política e cultural, esses mesmos direitos humanos venham antes que as posições político-morais, em que esses mesmos direitos humanos sejam ontogeneticamente primários às posições político-morais, as quais, por extensão, são subsidiárias, são consequência dos direitos humanos. Assim, os direitos humanos não apenas são ontogeneticamente primários às pertenças e aos contextos político-morais, como também transformam a todos e a cada um dos sujeitos sociopolíticos em sujeitos de direito e, por conseguinte, em sujeitos a direitos, com direito a ter direitos – essa é a correlação originária entre direitos humanos e direitos de que estamos falando aqui. Como acreditamos, essa condição ontogeneticamente primária da universalidade dos direitos humanos enquanto base fundacional da democracia pluralista estruturada como um sistema público de direito é revolucionária e, na verdade, conforme estamos insistindo, constitui-se na única possibilidade de uma democracia pluralista e universalista e de – e por meio de, no – seu sistema público de direito enfrentarem de modo consistente ao fascismo, ao totalitarismo, ao racismo e ao fundamentalismo hodiernos.
Com efeito, a universalidade dos direitos humanos e a sua consentânea atribuição irrestrita a todos e a cada um dos sujeitos sociais levam a que esses sejam compreendidos, antes de tudo, como sujeitos de – e a – direitos e, portanto, como sujeitos de direito, dotados de direitos e de garantias fundamentais e exigentes de segurança, isonomia, simetria e horizontalidade jurídicas, o que implica, nesse caso, na própria necessidade de uma ordem institucional e social de direito no âmbito doméstico e na esfera internacional. Para o que nos interessa agora, é importante esclarecermos que é exatamente dessa condição fundacional universalista viabilizada pelos direitos humanos, de todos e de cada um como sujeitos de – e a – direitos fundamentais, que emerge não apenas a noção de sujeito de direito, de sujeito jurídico, mas também todo o conjunto sistêmico, institucional, sistemático, mediado, processual, instancial e público do direito (e por meio do direito). É aqui que a democracia pluralista e universalista como direito e estruturada enquanto um sistema público de direito ganha todo o seu sentido e tem toda a sua dinâmica. Porque, da mesma forma como a universalidade dos direitos humanos e a sua atribuição irrestrita e incondicional a todos e a cada um como detentores de direitos fundamentais invioláveis e inalienáveis e, portanto, sua definição ab origine como sujeitos de direito, como sujeitos jurídicos levam a que esse mesmos sujeitos (tanto indivíduos quanto coletividades, inclusive e obviamente coletividades ameaçadas) sejam, antes de tudo e como condição para tudo o mais, sujeitos e coletividades jurídicos, sujeitos e coletividades de direito e, só depois, sujeitos sociopolíticos e coletividades étnico-culturais singulares, assim também a universalidade dos direitos humanos é e exige, de modo ontogeneticamente primário, uma ordem de direito e, no caso, uma correlação estrutural e uma emergência co-originária de direitos humanos e direito que imbrica democracia e direito, democracia como direito, democracia no direito, democracia por meio do direito. É a co-originariedade de direitos humanos e direito que se coloca como a pedra angular constitutiva, legitimadora e dinamizadora da democracia pluralista, conferindo-lhe universalidade, e de seu sistema público de direito centralizado e protagonizado pelas instituições judiciário e sistema político, ambos mais uma vez com sentido universalista, diferenciados, interdependentes e sobrepostos, caudatários dessa e fundados nessa universalidade dos direitos humanos e traduzidos completamente no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo, bem como manifestados objetivamente apenas por meio do devido processo legal público. Sobre esse ponto refletiremos mais adiante. Por ora, interessa-nos ressaltar que os direitos humanos se materializam ab origine por meio do direito, em termos de sistema público de direito, de constituição política e de direito positivo, ramificando-se, como já salientamos acima, em direitos e garantias fundamentais e em segurança, isonomia, simetria e horizontalidade jurídicas. E, no mesmo diapasão, o direito tem sua base exclusiva, suficiente e necessária na universalidade dos direitos humanos, tornando-se independente, diferenciado, autônomo, endógeno, autorreferencial, autossubsistente, autossuficiente e sobreposto em relação à política e à moral, na medida em que é primigênio a elas – e, por conseguinte, tornando a política e a moral subsidiárias dele, como uma consequência dele.
A co-originariedade de direitos humanos e direito, que é, como estamos argumentando, a pedra angular da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito, leva a que o direito seja ontogeneticamente primigênio à política e à moral, as quais são subsidiárias e consequências dele. Isso implica em três pontos fundamentais à democracia pluralista e universalista e ao seu sistema público de direito. Em primeiro lugar, dado que os direitos humanos se dão no/como/pelo direito e que o direito se funda de modo exclusivo, suficiente e necessário nos direitos humanos, sem necessidade de qualquer outra base normativa pré-jurídica, tem-se a anterioridade, a diferenciação e a separação do direito em relação à política e à moral. O direito vem antes, perpassa e é o resultado final da política e da moral, ou seja, elas não podem estruturar-se internamente e vincular-se social e institucionalmente de outro modo que não como tradução ao procedimentalismo, principialidade, simbologia e linguagem do direito positivo, da mesma forma como sua legitimidade em uma democracia reside apenas e fundamentalmente na universalidade dos direitos humanos. Posições políticas (institucionalizadas ou não) e morais (sempre privadas) somente são legítimas democraticamente se puderem fundar-se na universalidade dos direitos humanos, assumindo-os, fomentando-os e protegendo-os, e apenas se puderem ser traduzidas – e se puderem traduzir-se – nesse procedimentalismo, nessa principialidade, nessa simbologia e nessa linguagem do direito positivo (cf.: RAWLS, 2003; HABERMAS, 2003a, 2003b; HONNETH, 2007a; FORST, 2010; RANCIÈRE, 2014). O direito é primigênio ontogeneticamente falando e, portanto, diferenciado e independente da política e da moral, o que significa, por um lado, que lhe basta a utilização do arcabouço normativo fornecido pelos direitos humanos em sua universalidade, não tendo qualquer necessidade de assumir bases político-morais com caráter pré-jurídico, da mesma forma como, por outro, que sua constituição é eminentemente lógico-técnico-legalista, apolítico-despolitizada e formalista-despersonalizada, enquanto um sistema público com caráter sistemático, processual, mediado e instancial, demarcado por uma perspectiva altamente institucionalista. Ao passo que a política informal e a política formal podem eventualmente assumir posições pré-jurídicas em seu enraizamento social e institucional, da mesma forma como as morais privadas podem promover a sua comunidade de crença como a condição salvífica universalista para si e para os demais, o direito está totalmente limitado e orientado pela sua condição institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada, não podendo agir de nenhum outro modo que não apenas em termos de sua fundação na universalidade dos direitos humanos, de sua tradução completa no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo, de seu foco no/como/pelo devido processo legal e, finalmente, sob a forma de produção autorreflexiva, autocontrolada e autocorretiva da universalidade na/como/pela legalidade, em termos sistemáticos, mediados, processuais, instanciais e públicos. Dito de outro modo, a política (institucionalizada ou não) e a moral (sempre privada) podem em algum aspecto (não muito grande, obviamente, pois em uma democracia os direitos humanos são a baliza, o caminho e a fronteira fundacionais e orientadores de tudo e de todos) assumir perspectivas pré-jurídicas com caráter antissistêmico e em termos de personalismo, voluntarismo, espontaneísmo, vocacionamento, messianismo e missionarismo, mas o direito em particular e o sistema público de direito de um modo geral não podem jamais assumir posturas personalistas, espontaneístas, voluntaristas e heroicas, tendo de permanecer sempre e pungentemente institucionalistas, legalistas, tecnicistas, formalistas e despersonalizados, o que significa, obviamente, que posturas antissistêmicas, anti-institucionais, antijurídicas e infralegais destroem a estrutura sistêmica, sistemática, processual, mediada, legal, técnica, formalista e despersonalizada do direito em particular e das instituições públicas (fundadas sempre no direito, aliás) de um modo geral, implodindo-as desde dentro. A rigor, a própria política (institucionalizada ou não) e a própria moral (sempre privada), como já dissemos acima, somente podem adquirir legitimidade se efetivamente estiverem fundadas na universalidade dos direitos humanos e se puderem e quiserem ser traduzidas no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo, o que significa que mesmo a política (institucionalizada ou não) e a moral (sempre privada) têm de assumir uma postura interna e pública legalista, sistêmica, institucional, não podendo detonar uma perspectiva antissistêmica, infralegal, missionária e messiânica seja contra o sistema público de direito, seja contra o pluralismo, seja contra a universalidade dos direitos humanos, aos quais o direito, a política e a moral estão sempre submissos, dos quais eles são sempre subsidiários. Esta é a exigência fundamental da democracia pluralista e universalista calcada nos direitos humanos e constituída enquanto um sistema público de direito demarcado pela co-originariedade de direitos humanos e/no/como/pelo direito: fundação na universalidade dos direitos humanos; tradução ao procedimentalismo, à principialidade, à simbologia e à linguagem do direito positivo; condição ontogeneticamente primária do direito frente à política e à moral e, portanto, subsidiariedade e consequencialidade da política e da moral em relação ao direito; devido processo legal; postura sistêmica altamente institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada; devido processo legal. Nada mais e nada menos.
Nesse sentido, a lógica estruturante da democracia consiste na dinâmica direito-moral-direito, direito-política-direito e direito-cultura-direito, em que essa co-originariedade e essa realização concomitante da universalidade dos direitos humanos e do direito (sistema público de direito, direito positivo, devido processo legal) leva exatamente à afirmação do caráter ontogeneticamente primário do direito (por causa dos direitos humanos) e da subsidiariedade da política (formal e informal) e da moral (sempre privada) em relação a esse mesmo direito (e, portanto, também aos direitos humanos). Como já dissemos acima, qualquer posição político-moral que quiser constituir-se e frutificar em uma democracia e que almeja enraizamento público e reconhecimento institucional deve correlatamente fundar-se na universalidade dos direitos humanos, proteger, fomentar e reconhecer a diferença-diversidade-alteridade e traduzir-se completamente no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo. Isso vale, em uma democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito, para todas as suas esferas, instituições, sujeitos, práticas, valores e símbolos intersubjetivamente vinculantes. Esta lógica fundacional da democracia, viabilizada pela co-originariedade e pela emergência concomitante de direitos humanos e direito, vem resolver o problema da politização e da instrumentalização do direito em particular e das instituições públicas de um modo mais geral por posições político-morais essencialistas e naturalizadas, as quais possuem uma forte tendência homogeneizadora, massificadora e unidimensional que as coloca no umbral do fascismo, do totalitarismo, do racismo e do fundamentalismo, quando não levando-as diretamente ao fascismo, ao totalitarismo, ao racismo e ao fundamentalismo, isto é, à imposição da lógica fascista moral-direito-moral, moral-política-moral e moral-cultura-moral, ou biologia-moral-biologia, biologia-direito-biologia, biologia-política-biologia e biologia-cultura-biologia (refletiremos de modo mais detalhado sobre essa lógica fascista em termos de sociedade-cultura-normatividade-consciência no próximo capítulo). Portanto, (a) a co-originariedade e a emergência concomitante de direitos humanos e direito, (b) a condição ontogeneticamente primária, a separação, a diferenciação, a autonomia, a independência, a endogenia, a autossubsistência, a autossuficiência, a autorreferencialidade e a sobreposição do direito frente à política e à moral, (c) a subsidiariedade e a consequencialidade da política e da moral em relação ao direito e, então, como fecho de abóboda destes três princípios, (d) a lógica estruturante e universalista da democracia enquanto constituída pela dinâmica direito-moral-direito, direito-política-direito e direito-cultura-direito têm sua razão de ser em termos de enfrentamento do fascismo, do totalitarismo, do racismo e do fundamentalismo, isto é, em termos de recusa da colonização, da instrumentalização e da politização do direito e da política pela moral e, de modo mais abrangente, em termos de constituição de instituições públicas (direito e política sistêmicos) que possam estar estruturadas como uma perspectiva antifascista, antitotalitária, não-fundamentalista e antirracista, isto é, baseadas apenas na universalidade dos direitos humanos como sua condição exclusiva, suficiente e necessária, completamente traduzidas no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo, manifestadas exclusivamente por meio do devido processo legal público e sistemático e, em tudo isso, tendo a política e a moral como subsidiárias e como consequências do direito, cujo caráter ontogeneticamente primário é a plataforma desde a qual a democracia pluralista e universalista como sistema público de direito efetivamente se funda, se legitima, se dinamiza e evolui ao longo do tempo.
Com isso, chegamos ao segundo ponto caudatário da co-originariedade de direitos humanos e direito em termos desse núcleo fundacional da democracia pluralista e universalista enquanto – e por meio de – um sistema público de direito. Se a co-originariedade de direitos humanos e direito confere ao direito uma condição ontogeneticamente primária, diferenciada, independente, autorreferencial, autossubsistente e sobreposta à política e à moral, e se a política e a moral são subsidiárias e consequências daquela co-originariedade, tendo, portanto, de fundar-se na universalidade dos direitos humanos e de traduzir-se completamente ao direito, se, com isso, instaura-se a lógica direito-moral-direito, direito-política-direito e direito-cultura-direito como a base estruturante, legitimadora e dinamizadora da democracia pluralista e universalista calcada no sistema público de direito, temos, a partir disso, a constituição de instituições públicas com caráter sistêmico, sistemático, mediado, processual, instancial e publicizado que, por meio do direito, produzem objetividade normativo-jurídico-política – universalidade na/como/pela legalidade – de modo reflexivo, controlado e corretivo. Note-se – e isso é mais uma vez fundamental para entendermos a democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito com um sentido e uma orientação antifascistas, antitotalitários, não-fundamentalistas e antirracistas – que a democracia em suas instituições públicas e por suas instituições públicas é marcada pela produção mediada, indireta, impessoal, seriada e progressiva de normas, práticas e símbolos intersubjetivamente vinculantes, ao contrário do fascismo-totalitarismo, que, embasado no racismo biológico, no fundamentalismo religioso, no etnocentrismo cultural e no instrumentalismo econômico, é demarcado pela imposição direta, imediada e imediata da vontade do líder-partido-seita, o qual, baseado no dualismo-maniqueísmo moral (viabilizado pelo racismo e pelo fundamentalismo), não só tem um acesso pessoal direto à verdade do mundo, senão que vê essa mesma verdade do mundo de modo exclusivo e íntimo, enquanto guerra de exclusão recíproca entre bons e maus, o que o legitima nessa sua cruzada antissistêmica, voluntarista, personalista, vocacionada, missionária e messiânica de “correção do sistema”, isto é, de destruição dos direitos humanos, da diferença, da democracia e do Estado de direito. Ademais, no caso da democracia, essa processualidade, essa sistematicidade e essa condição mediada são dinamizadas por uma postura de legalidade, tecnicalidade, formalidade e despersonalização institucionais, a qual é previsível, controlável, verificável e corrigível, ao contrário novamente do fascismo, no qual o líder-partido-seita é imprevisível, personalista, voluntarista, vocacionado e, portanto, ausente de qualquer mediação estruturante e de qualquer moderação legal – tem-se, de um lado, um líder-partido-seita-cabeça imoderado que subsume na sua pessoa as próprias instituições e, de outro, como seu complemento, uma massa-milícia digital-social de aclamação pura e simplesmente, a qual é mera extensão corporal daquele líder-partido-seita-cabeça. Enquanto vontade e ação imediadas, imediatas e diretas, desde um caráter psicológico-coletivo personalista, voluntarista, vocacionado, espontaneísta, missionário e messiânico calcado no dualismo-maniqueísmo moral, o líder-partido-seita e a massa-milícia digital-social fascistas produzem uma situação de violência simbólico-material generalizada, destruindo mediações jurídicas estruturantes, deslegitimando a universalidade dos direitos humanos e a centralidade do pluralismo, violando o devido processo legal e desvirtuando a atuação imparcial, impessoal e neutra das instituições. A consequência dessa perspectiva fascista imediada, imediata, direta, personalista e espontaneísta, a qual lhe é dinamizada pelo dualismo-maniqueísmo moral próprio à lógica totalitária moral-direito-moral, moral-política-moral e moral-cultura-moral (ou, como dissemos, biologia-moral-biologia, biologia-política-biologia, biologia-direito-biologia e biologia-cultura-biologia), consiste exatamente na consolidação da insegurança jurídica, em especial no momento em que há efetivamente politização, instrumentalização e colonização do direito-judiciário pela política e pela moral, a qual subverte desde dentro o ideal de institucionalidade, legalidade, tecnicalidade, formalismo, despersonalização e apoliticidade-despolitização tanto do sistema público de direito encabeçado pelo judiciário quanto da própria esfera política formal.
É por isso que estabelecemos, acima, que o segundo ponto estruturante da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito consiste na sua perspectiva sistêmica, sistemática, mediada, processual, instancial e publicizada por parte do judiciário e do sistema político. Com efeito, quando pensamos nas instituições públicas democráticas, nada acontece de modo imprevisível, espontâneo, personalista e voluntarista – e nada deve acontecer desse modo, senão que sempre desde um procedimento previsível, programado, lógico, consequencial, fiscalizável e publicizado; no mesmo diapasão, quando pensamos em sujeitos institucionalizados ao judiciário e ao sistema político, nos referimos ao fato de que nenhum deles possui uma atuação personalista, vocacionada, missionária, messiânica e heroica, mas sim técnica, profissional, institucional, isto é, formalista, despersonalizada, imparcial, impessoal, neutra e apolítico-despolitizada, calcada tanto no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo quanto no embasamento empírico, na prova material e no devido processo legal, sendo que essa atuação está sempre demarcada pela tramitação instancial e pela hierarquia processual; e, ainda, quando nos referimos à atuação institucional por parte do judiciário e do sistema político democráticos, jamais nos referimos a uma perspectiva antissistêmica, anti-institucional, antijurídica e infralegal, mas sempre e pungentemente a um ideal de institucionalidade, legalidade, tecnicalidade, formalismo e despersonalização procedimental-metodológico-axiológico. O que significa, no caso da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito, a ideia de que a lógica direito-moral-direito, direito-política-direito e direito-cultura-direito, calcada na co-originariedade de direitos humanos e direito e na precedência, diferenciação, autonomia, autossubsistência e sobreposição do direito em relação à política e à moral, leva à necessidade de um trâmite sistêmico, sistemático, processual, mediado, instancial e publicizado da produção da objetividade normativo-jurídico-política? E, por consequência, o que significa que a democracia pluralista e universalista por meio de seu sistema público de direito construa universalidade na/como/pela legalidade em termos indiretos, mediados, previsíveis e controlados?
Para começo de conversa, a perspectiva sistêmica, sistemática, mediada, processual, instancial, seriada, progressiva e publicizada própria às instituições jurídico-políticas democráticas (na especificidade de cada instituição, em suas relacionalidades, complementaridades e sobreposições), legitimada, embasada e orientada pela constituição política e pelo direito positivo, tem por meta viabilizar uma produção autorreflexiva, autocontrolada e autocorretiva da objetividade normativo-jurídico-política, garantindo-lhe legitimidade e cogência institucional e social. Mais uma vez o fascismo pode nos servir como perspectiva paradigmática comparativa – e, não por acaso, o fascismo é o grande alvo da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito, sendo que o enfrentamento do fascismo é seu objetivo primeiro e último, ao ponto de a democracia constituir-se em uma perspectiva societal-cultural-institucional-normativa antifascista, antitotalitária, não-fundamentalista e antirracista. Pois bem, a condição sistêmica de nossas instituições jurídico-políticas significa e implica em que é por meio do processo de institucionalização de sujeitos, práticas, valores e procedimentos de legitimação e de produção da objetividade normativo-jurídico-política que essa mesma democracia é gestada, justificada, implementada e orientada ao longo do tempo. Só há objetividade democrática por meio da institucionalização desses sujeitos, desses métodos, dessas práticas, desses valores e desses símbolos propriamente democráticos em torno aos direitos humanos, à pluralidade e ao direito, e enquanto produção institucional da objetividade normativo-jurídico-política; e isso pressupõe, por consequência, que o sistema público de direito é a estrutura formal-material desde a qual sujeitos validados intersubjetivamente (cortes jurídicas, lideranças políticas, funcionários públicos, autoridades investigadoras etc., ínsitos às instituições públicas de um modo geral e correlacionados ao judiciário, ao legislativo e ao executivo de modo mais particular) têm legitimidade e autoridade para assumir pautas sociais e analisar procedimentos e valores intersubjetivamente vinculantes à luz dos direitos humanos, da constituição política e do direito positivo, por meio do devido processo legal e, finalmente, desde a separação e a sobreposição entre poderes (o direito sobre a política e a moral, o judiciário sobre o sistema político, o legislativo sobre o executivo). Ademais, essa perspectiva sistêmica própria primeiramente ao direito e, depois, em segundo lugar, às instituições públicas leva a que eles sejam concebidos como um conjunto estruturalmente autorreferencial, autossuficiente e autossubsistente de instituições, poderes, princípios, procedimentos, métodos, práticas, valores e símbolos que se ramificam sobre todos os aspectos da vida humana democrática (vide a questão da judicialização da política enquanto um fenômeno hodierno dessa democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito) e que encontram exatamente nas instituições e em sua perspectiva e sujeitos lógico-técnicos, apolítico-despolitizados e formalista-despersonalizados a sua dinâmica estruturante. Nesse sentido, os sistemas sociais são estruturas-arenas formais, conjunturalmente completas, que possuem dinâmicas sistemáticas de constituição, de justificação e de implementação da objetividade normativo-jurídico-política, de modo que essa produção da universalidade na/como/pela legalidade exige a satisfação de princípios fundacionais e, desde aqui, a estruturação sequencial, consequencial, lógica e progressiva dessa mesma objetividade normativo-jurídico-política. Isso significa, conforme estamos insistindo, que a produção da objetividade normativo-jurídico-política democrática, desde seu sistema público de direito, não é espontaneísta, voluntarista e imprevisível, mas lógico-técnica, programável e previsível, na medida em que, da afirmação da base fundacional da democracia, isto é, a co-originariedade de direitos humanos e direito, e da assunção da perspectiva institucionalista como o fundamento dinamizador dessa produção da universalidade na/como/pela legalidade, tem-se um sistema lógico-técnico de sujeitos, procedimentos e princípios estruturantes formais que podem ser verificáveis, desconstruídos e reconstruídos em qualquer momento do trabalho institucional, ademais de estarem, como mostraremos logo adiante, demarcados pelo princípio da publicidade processual-administrativa e, então, plenamente visíveis aos sujeitos institucionalizados e aos sujeitos não-institucionalizados, incluindo-se, aqui, a opinião pública, os quais podem fiscalizá-los, conhecê-los e, assim, se for o caso, enquadrar judicial e politicamente as instituições com vistas à correção de suas mazelas. Por isso mesmo, a produção da objetividade normativo-jurídico-política é processual em um duplo sentido: primeiramente, somente se dá por meio do devido processo legal enquanto o único instrumento público de que a democracia, suas instituições, seus sujeitos institucionalizados e seus sujeitos não-institucionalizados possuem para manifestar-se intersubjetivamente e, então, para produzir objetividade normativo-jurídico-política válida; em segundo lugar, o devido processo legal possui uma estruturação metodológica eminentemente técnica e despersonalizada, em que se separa autoridade produtora do processo e autoridade julgadora dele, em que se produz um conjunto sistemático de fatos materiais estruturalmente justapostos e com caráter sequencial e consequencial, interpretado à luz da constituição política e da principialidade própria ao direito positivo (além de somente poder ser manifestado em termos do procedimentalismo, da principialidade, da simbologia e da linguagem do direito positivo) e, finalmente, em que se estabelece um trâmite processual escalonado e sobreposto que, por meio do recurso penal, é demarcado por produção, decisão, revisão, correção e confirmação de sentença, ademais de dinamizado por jurisprudência objetiva, similaridade decisória e previsibilidade de aplicação da norma, garantindo-se, aqui, isonomia e segurança jurídicas que, como dissemos, são os valores estabilizadores e legitimadores da democracia como um todo – ou, como estamos vivenciando hoje com a violação do devido processo legal, com a consolidação do lawfare institucional e de uma polícia de Estado, isto é, em termos de politização do direito, a violação do devido processo legal e o solapamento da segurança e da isonomia jurídicas, que demarcam o caos próprio ao fascismo hodierno como bolsonarismo, o qual começou no sistema jurídico. Note-se, aliás, que essa condição sistemática e processual da produção da objetividade normativo-jurídico-política é marcada pela existência de edifícios jurídico-políticos constituídos em estratos sobrepostos e justapostos, dinamizados por tramitação instancial, seriada e progressiva entre câmaras de revisão (o exemplo vale tanto para o sistema jurídico quanto para o sistema político, inclusive para suas interconexões e sobreposições) que possuem hierarquia processual entre si. E é essa tramitação longa, verticalizada e afunilada, demarcada por uma permanente revisão e correção de sentença, que permite a depuração do julgado de modo a proteger-se os direitos e as garantias fundamentais e a maturar-se essa mesma objetividade por meio de mediações estruturantes e da série consecutiva de avaliações e reavaliações do processo por diferentes cortes, o que mostra, mais uma vez, essa funcionamento sistêmico ou institucionalista, sistemático ou lógico-técnico, mediado, processual e instancial da democracia, pela democracia, como democracia, isto é, conforme estamos argumentando, da produção da universalidade na/como/pela legalidade enquanto a característica mais fundamental e a dinâmica mais básica da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito antifascista, antitotalitário, não-fundamentalista e antirracista.
Desse modo, chegamos ao terceiro ponto fundamental da co-originariedade de direitos humanos e direito e, assim, da correlação de democracia, pluralismo-diversidade, direitos humanos e direito, da democracia pluralista e universalista como um sistema público de direito, isto é, o fato de que seus sistemas sociais direito e política possuem e devem assumir um forte ideal de institucionalidade, legalidade, tecnicalidade, formalismo e despersonalização metodológico-procedimental-axiológico, eliminando internamente a si mesmos perspectivas personalistas, voluntaristas, vocacionadas, espontaneístas, missionárias e messiânicas, bem como suas posturas antissistêmicas, anti-institucionais, antijurídicas e infralegais que implodem desde dentro as instituições públicas. Obviamente, sociedades modernas ou democráticas são demarcadas de modo fundamental exatamente por seu sistema público de direito, de modo que toda e qualquer possibilidade de produção da objetividade normativo-jurídico-política válida somente é viabilizada neles, desde eles e por eles, o que mostra o grau de centralidade e de responsabilidade assumidos pelo judiciário e pelo sistema político em torno à universalidade dos direitos humanos, à constituição política, ao direito positivo, ao devido processo legal, às mediações jurídicas estruturantes e, finalmente, à separação e à sobreposição entre poderes (seja a separação e a sobreposição do direito em relação à política e à moral, seja a separação e a sobreposição do judiciário em relação ao sistema político, seja, finalmente, a separação e a sobreposição do legislativo em relação ao executivo) (cf.: HABERMAS, 2003a, 2003b, 2002a, 2002b). É do judiciário e do sistema político que o caos social se instaura e que emerge o fascismo enquanto personalismo jurídico-político antissistêmico, anti-institucional, antijurídico e infralegal; é do judiciário e do sistema político que a estabilidade e a legitimidade dessa democracia pluralista e universalista como um, em um e por um sistema público de direito são construídas. Tudo depende das instituições públicas, nessa mesma democracia, porque toda a produção da objetividade normativo-jurídico-política é construída, justificada e implementada desde elas, o que significa que a evolução social como um todo é estruturada, imposta, gerida, orientada e conduzida desde as instituições públicas, nas instituições públicas, pelas instituições públicas. Na verdade, tendo em vista a própria precedência ontogenética do direito em relação à política e à moral e, portanto, do judiciário em relação ao sistema político, pode-se dizer sem nenhum problema que toda a estabilidade e a legitimidade social em torno aos direitos humanos, ao pluralismo, ao direito, ao devido processo legal e às mediações jurídicas estruturantes dependem exatamente do judiciário, de sua integridade e, por consequência, da integridade do próprio sistema público de direito, a qual é garantida por esse mesmo judiciário, seja em termos de respeito, promoção e materialização dos direitos humanos, seja em termos de centralidade do devido processo legal, seja no que se refere à completa tradução do judiciário ao procedimentalismo, à principialidade, à simbologia e à linguagem do direito positivo, seja, finalmente, no que se refere à sua separação, diferenciação e autonomia em relação ao sistema político – situação que, na medida em que é efetiva, legitima o judiciário em suas tarefas de controle de constitucionalidade e de responsabilização jurídico-social e o fortalece em seu enquadramento do sistema político e da sociedade civil, permitindo-lhe impor a subsidiariedade da política e da moral ao direito, desde a co-originariedade de direitos humanos e direito e, portanto, desde a condição ontogeneticamente primeira do direito em relação à política e à moral.
Ora, dada a centralidade do sistema público de direito democrático em termos de materialização da universalidade dos direitos humanos e de promoção do pluralismo, o que somente pode ser feito – recordemos – por meio da afirmação da co-originariedade de direitos humanos e direito e, então, por meio da subsidiariedade da política e da moral aos direitos humanos e ao direito, temos a necessidade de que o judiciário e o sistema político assumam essa perspectiva altamente institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada no que se refere à produção da universalidade na/como/pela legalidade e sob a forma de compartilhamento de tarefas entre judiciário (controle de constitucionalidade e responsabilização jurídico-social) e sistema político (produção de políticas públicas, previsão constitucional e principialidade jurídica) no que se refere à materialização dos direitos humanos, ambos sempre demarcados por uma atuação contramajoritária que é viabilizada exatamente pela sua fundação exclusiva, suficiente e necessária na universalidade dos direitos humanos e pela sua tradução completa no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo. Enfatize-se, aqui, mais uma vez, a comparação com o fascismo. Este, ao fundar-se na perspectiva pré-jurídica própria ao racismo biológico e ao fundamentalismo religioso, consolida uma posição de dualismo-maniqueísmo moral que confere todo o poder à pessoa (personalismo), à vontade (voluntarismo), à visão direta e ao desejo imediato (espontaneísmo e imposição imediada), bem como à postura heroica, salvífica, missionária e messiânica, do líder-partido-seita, impelindo-o a uma guerra de exclusão recíproca demarcada pelo não-reconhecimento da alteridade, pela violação das mediações jurídicas estruturantes, pelo solapamento do devido processo legal e, então, na medida em que não há reconhecimento da alteridade e universalização dos direitos fundamentais, pela utilização de perspectivas antissistêmicas, anti-institucionais, antijurídicas e infralegais desde dentro das instituições, por esse líder-partido-seita que centraliza-as e personifica-as (e que, ao personificá-las, rompe com a separação, a diferenciação e a sobreposição entre poderes e, assim, anula o Estado democrático de direito e o seu consentâneo sistema público de direito), e desde fora, pela massa-milícia digital-social de aclamação enquanto mera extensão corporal desse líder-partido-seita-cabeça. No fascismo, por conseguinte, os três fundamentos da democracia pluralista e universalista como um sistema público de direito são destruídos: (a) a co-originariedade e o aparecimento concomitante da universalidade dos direitos humanos e do direito, com a consequente condição ontogeneticamente primária, a separação, a diferenciação, a autonomia, a independência, a endogenia, a autorreferencialidade, a autossubsistência, a autossuficiência e a sobreposição do direito em relação à política e à moral, bem como o próprio fato de que a política e a moral são subsidiárias e uma consequência dessa relação co-originária de direitos humanos e direito – com a consentânea necessidade de fundação plena da política e da moral aos direitos humanos e de sua (da política e da moral) tradução completa ao procedimentalismo, à principialidade, à simbologia e à linguagem do direito positivo; (b) a condição sistêmica, sistemática, mediada, processual, publicizada e instancial das instituições públicas democráticas e, assim, uma produção reflexiva, controlada e corretiva da objetividade normativo-jurídico-política, a qual possui um caráter sequencial, consequencial, progressivo, gradativo e escalonado, demarcada por revisão, correção e confirmação permanentes entre os diversos estratos institucionais existentes (não é, portanto, como no fascismo, uma imposição voluntarista e espontaneísta, direta, imediata e imediada, que acontece fora do devido processo legal e que é realizada por meios antissistêmicos e infralegais); e (c) a constituição de sistemas sociais direito e política altamente institucionalistas, legalistas, tecnicistas, formalistas e despersonalizados, dinamizados por um procedimentalismo imparcial, impessoal, neutro e apolítico-despolitizado que erradica qualquer perspectiva personalista, voluntarista, espontaneísta e vocacionada e qualquer postura antissistêmica, anti-institucional, antijurídica e infralegal desde dentro do judiciário e do sistema político para fora, de modo a se efetivar o devido processo legal, a tradução plena da política e da moral ao direito, a separação e a sobreposição entre poderes e, em tudo isso, a materialização dos direitos humanos por meio das mediações jurídicas estruturantes e desde um trabalho institucional lógico-técnico, apolítico-despolitizado e formalista-despersonalizado sempre no, como e pelo devido processo legal.
Do caráter derivado da política e da moral em relação ao direito: ou por que a democracia não pode regredir – e em que sentido ela pode ser orientada institucionalmente a não regredir
Note-se, desse modo, que a condição antifascista, antitotalitária, não-fundamentalista e antirracista da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito depende de modo basilar da co-originariedade de direitos humanos e direito e, então, seja do caráter ontogeneticamente primário do direito em relação à política e à moral, seja, consentaneamente, do sentido subsidiário da política e da moral ao direito e aos direitos humanos, as quais são uma consequência deles, seja, finalmente, da intensidade em que o direito é capaz de sustentar uma perspectiva institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada e em que a política e a moral são efetivamente obrigadas a traduzirem-se no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo, bem como a fundarem-se na universalidade dos direitos humanos. Ora, é o sistema público de direito de um modo geral e o judiciário em particular, enquanto seu guardador primeiro e último, que impõem à política e à moral o caminho do direito, posto que a fundação da política (institucionalizada ou não) e da moral (sempre privada) democráticas aos direitos humanos e a sua tradução ao direito em geral não são pura e simplesmente desejadas pela política (institucionalizada ou não) e pela moral (sempre privada) como seu caminho direto e mais coerente, dependendo, portanto, exatamente do exemplo que vem do judiciário e da força, da estabilidade e da cogência do direito enquanto essa procedimentalismo, essa principialidade, essa simbologia e essa linguagem institucional e social que está calcada na correlação de universalidade dos direitos humanos, de perspectiva sistêmico-sistemática altamente institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada, de separação estrita entre judiciário e sistema político (e, antes, de diferenciação e separação estritas de direito, política e moral), de mediações jurídicas estruturantes e de centralidade do devido processo legal público-publicizado.
A centralidade do direito por sua co-originariedade aos direitos humanos e, assim, o caráter derivado da política e da moral em relação a ele são estruturantes à democracia, seu pilar de sustento, sem os quais ela não existiria enquanto perspectiva societal-institucional-normativa pluralista e universalista, sem os quais, inclusive, a própria ideia de um sistema público de direito e, então, a produção da universalidade na/como/pela legalidade simplesmente seriam uma ilusão. A centralidade do direito e o caráter derivado da política e da moral em relação a eles significam, primeiramente, que o direito está fundado na universalidade dos direitos humanos como sua base exclusiva, suficiente e necessária, ganhando, por meio dessa co-originariedade, precedência ontogenética e diferenciação, separação, autonomia, endogenia, autorreferencialidade, autossuficiência, autossubsistência e sobreposição em relação à política e à moral; em segundo lugar, eles significam que a política e a moral não podem, parafraseando Immanuel Kant por outros meios, dar nenhum passo sem fundar-se necessária, exclusiva e suficientemente na universalidade dos direitos humanos e sem traduzir-se completamente no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo. É importante ressaltar-se que essa fundação necessária, exclusiva e suficiente na universalidade dos direitos humanos e essa tradução completa ao direito são necessárias à política formal e à política informal como um todo, tanto no âmbito interno de cada organização e na sua militância social quanto no que se refere à sua vinculação pública e institucional: partidos políticos, lideranças políticas e movimentos políticos não podem utilizar-se dos seus direitos e das suas garantias democráticas para derrubar a própria democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito, negando a universalidade dos direitos humanos, a centralidade do pluralismo-diversidade, o caráter basilar do Estado democrático de direito e a formulação de políticas públicas em torno ao reconhecimento, à inclusão, à integração e à participação dos grupos sociopolíticos e sob a forma de correção de mazelas institucionais, sociais, culturais, políticas, econômicas e mesmo epistêmicas, ou, por outras palavras, eles somente são legítimos e validados jurídico-institucionalmente na medida em que, seja de modo formal, seja de modo material, estiverem fundados na universalidade dos direitos humanos e, então, traduzidos no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo. Isso significa, no caso dos partidos políticos, das lideranças políticas e dos movimentos políticos e de sua militância existentes no contexto de uma democracia, que perspectivas fascistas, totalitárias, racistas e fundamentalistas, calcadas em posturas personalistas, voluntaristas, vocacionadas, espontaneístas, missionárias e messiânicas e demarcadas por uma atuação antissistêmica, anti-institucional, antijurídica e infralegal, não são legítimas e não podem ser toleradas pelo sistema público de direito democrático, seja internamente às instituições (principalmente a elas, pois o fascismo contemporâneo começa de dentro das instituições para a sociedade civil e, em especial, do judiciário para o sistema político e deste para a sociedade civil, sob a forma de implosão antissistêmica, anti-institucional, antijurídica e infralegal do sistema público de direito e, então, de politização, de instrumentalização e de partidarização do direito), seja no contexto da sociedade civil. No mesmo diapasão, as perspectivas morais existentes em uma democracia – as quais somente são possíveis por causa dessa mesma democracia – têm de pagar o justo preço de sua viabilidade, de sua proteção e de seu fomento por essa mesma democracia e por seu sistema público de direito, a saber, exatamente a fundação na universalidade dos direitos humanos e a sua tradução ao direito positivo, com a devida valorização do pluralismo axiológico e do Estado democrático de direito. Obviamente, a política (institucionalizada ou não) e a moral (sempre privada) têm uma tendência forte a colocarem o direito como derivado e como consequência de posições normativas pré-jurídicas e a-históricas com caráter essencialista e naturalizado, inclusive a deslegitimar a relação entre direitos humanos e direito ou mesmo a ideia ampla de um sistema público de direito como ontogeneticamente basilares por sua suposta associação a interesses de classe específicos e particulares ou então pela sua possível deturpação de alguma forma de escatologia religiosa e de mitologia heroica étnico-racializada totalizante. Nem sempre podemos esperar a “servidão voluntária” da política e da moral ao direito e aos direitos humanos, senão que, como dissemos, é bem comum a tentativa – ilegítima, obviamente – de que a política e a moral busquem ardorosamente colonizar, instrumentalizar, politizar e partidarizar o direito, pondo em perigo a própria base estrutural da democracia pluralista e universalista enquanto um sistema público de direito calcado na co-originariedade de direitos humanos e direito e na subsidiariedade da política e da moral ao direito. Mas essa mesma democracia e seu sistema público de direito têm as condições – e condições plenas, diga-se de passagem! – para resolverem esses impasses (os quais são mínimos quando o judiciário se mantém íntegro e independente em relação ao sistema político e às perspectivas morais privadas próprias à sociedade civil).
Ora, é aqui que um sistema público de direito e, de modo mais específico, um judiciário independente têm condições tanto de instituir e de motivar quanto, quando for o caso, de obrigar a política e a moral a fundarem-se na universalidade dos direitos humanos e a traduzirem-se ao direito positivo, protegendo, fomentando e realizando o pluralismo-diversidade e o Estado democrático de direito. Já dissemos acima e nos permitimos retomar agora: assim como a co-originariedade de direitos humanos e direito e, então, a condição ontogeneticamente primária do direito em relação à política e à moral são os pilares fundamentais de uma democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito e em termos de produção autorreflexiva, autocontrolada e autocorretiva da universalidade na/como/pela legalidade, o judiciário assume um papel de guardador dessa universalidade dos direitos humanos, de sua co-originariedade ao direito e, então, de proteção, fomento e realização do pluralismo por meio do enquadramento seja do sistema político, seja da sociedade civil, seja, finalmente, de si mesmo, de modo que o direito reflexiviza, enquadra, controla, corrige e orienta a política e a moral desde fora e se reflexiviza, se enquadra, se controla, se corrige e se orienta desde dentro – o direito controla a política e a moral desde fora (lembrando que elas também podem controlar-se desde dentro por meio dos direitos humanos, do pluralismo e do direito – a questão é saber se querem controlar-se voluntariamente!) e somente o direito controla a si mesmo desde dentro. Nesse sentido e por relação consequencial, o judiciário enquadra, controla, corrige e orienta o sistema político e a sociedade civil, e somente o judiciário se enquadra, se controla, se corrige e se orienta desde dentro de sua estrutura institucional estratificada, instancial e hierárquica, em termos de suas câmaras de revisão, corregedorias, conselhos e ouvidorias. Note-se, relativamente isso, que a co-originariedade de direitos humanos e direito e, na verdade, a utilização dos direitos humanos como base exclusiva, suficiente e necessária ao direito conferem-lhe essa condição ontogeneticamente primária, essa diferenciação, essa independência, essa autonomia, essa endogenia, essa autorreferencialidade, essa autossuficiência e essa sobreposição em relação à política e à moral, de modo que o direito se converte em um sistema lógico-técnico próprio, que não é, que não se confunde e que não precisa nem da política (institucionalizada ou não) e nem da moral (sempre privada) – obviamente estamos falando aqui do âmbito metanormativo, mas isso também pode ser provado desde uma perspectiva histórico-política (como pode ser percebido no exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos consentânea à Organização das Nações Unidas e do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional); e, por extensão, a política e a moral se tornam subsidiárias e somente existem como consequência seja da universalidade dos direitos humanos, seja da materialização deles no/como/pelo direito sistêmico (constituição política e direito positivo; judiciário; mediações jurídicas estruturantes; devido processo legal; separação e sobreposição entre poderes). Portanto, o direito é autorreferencial, mas a política e a moral não, posto que são subsidiárias ao direito e aos direitos humanos, dependendo exatamente de sua fundação na universalidade dos direitos humanos e de sua tradução ao direito positivo, as quais precisam ser validadas pelo direito. No mesmo diapasão, o judiciário é autorreferencial, endógeno e independente ao sistema político e à sociedade civil, mas o sistema político e a sociedade civil não o são frente ao direito de um modo geral e ao judiciário em particular, existindo apenas subsidiariamente ao judiciário, isto é, em termos de sua fundação na universalidade dos direitos humanos e de sua tradução ao direito positivo, validadas exatamente pelo judiciário.
É nesse sentido que o direito funda, reflexiva, enquadra, controla, corrige e orienta a política e a moral, obrigando-as a fundarem-se na universalidade dos direitos humanos e a traduzirem-se completamente no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo; e, por extensão, é nesse mesmo sentido que o judiciário, ontogeneticamente primário ao sistema político e à sociedade civil, enquadra, reflexiviza, corrige, controla e orienta a esse mesmo sistema político e a essa mesma sociedade civil no que tange à dialética entre as diversas posições políticas (institucionalizadas ou não) e morais (sempre privadas) em torno ao sentido e ao caminho da coletividade-pluralidade-diversidade democrática, caminho esse que somente pode ser – falando em termos metanormativos – o da materialização da universalidade dos direitos humanos sob a forma de direitos e de garantias fundamentais e de segurança, isonomia, simetria e horizontalidade jurídicas, desde o trabalho compartilhado e da atuação contramajoritária do judiciário em termos de controle de constitucionalidade e responsabilização jurídico-social e do sistema político no que se refere à produção de políticas públicas, de previsão constitucional (naqueles aspectos que não são cláusulas pétreas, com o que teríamos a necessidade de uma assembleia nacional constituinte que, ela mesma, não pode fugir de sua fundação na universalidade dos direitos humanos, de seu respeito ao pluralismo e de sua tradução à linguagem do direito positivo) e de principialidade jurídica – em ambos os casos, o caminho constitutivo e evolutivo de e por uma democracia pluralista e universalista constituída enquanto sistema público de direito é o da ampliação cada vez mais radicalizada do reconhecimento, da inclusão, da integração e da participação de todos os grupos sociopolíticos, desde um prisma antifascista, antitotalitário, não-fundamentalista e antirracista e em termos de produção da universalidade na/como/pela legalidade. Ora, a produção da universalidade na/como/pela legalidade se dá exatamente a partir de uma atuação sistêmica, sistemática, processual, publicizada, instancial (dentro de cada sistema social, sena no judiciário, seja no sistema político, bem como entre eles e em termos de sobreposição do judiciário em relação ao sistema político) e mediada que parte da condição ontogeneticamente primária e da autorreferencialidade do direito em relação à política e à moral e, por conseguinte, da autorreferencialidade, da independência e da endogenia do judiciário e do consequente caráter subsidiário do sistema político e da sociedade civil frente a ele. Por outras palavras: o direito gera, reflexiviza, enquadra, corrige e conduz a política e a moral desde fora e somente se autorreflexiva e se autocorrige desde dentro, bem como, de modo totalmente consentâneo, o judiciário enquadra, reflexiviza, corrige e orienta o sistema político e a sociedade civil desde fora e somente se reflexiva, se controla e se corrige desde dentro. É esta integridade do direito de um modo geral e do judiciário em particular que constitui-se na chave para entendermos o tipo específico de dinâmica institucional democrática em termos de seu sistema público de direito e sob a forma de produção da universalidade na/como/pela legalidade.
Esta dinâmica de internalidade do direito e de subsidiariedade da política e da moral e esta dinâmica consentânea de internalidade do judiciário e de subsidiariedade do sistema político e da sociedade civil determinam a integridade do direito e o caráter consequencial da política e da moral, bem como a constituição e a atuação contramajoritárias do judiciário frente ao sistema político e à sociedade civil e a consequente subsidiariedade destes em relação àquele em um triplo sentido: (a) direito não é política e nem moral, mas política e moral têm de ser direito; (b) direito-judiciário controla diretamente a política (ou sistema político) e a moral (ou sociedade civil e seu pluralismo axiológico), a partir da base normativa dada pela universalidade dos direitos humanos, mas somente é controlado indiretamente pelo sistema político e pela sociedade civil (isto é, em termos de acionamento de conselhos, corregedorias e ouvidorias, por meio do devido processo legal), porque a avaliação do devido processo legal no amplo trâmite instancial hierárquico que ele possui é prerrogativa exclusiva do judiciário e por meio do direito, e nunca do sistema político por meio da política ou da sociedade civil por meio da moral, o que significa que o direito precisa sempre se manter e ser mantido diferenciado e separado da política e da moral, ou seja, enquanto um conjunto sistêmico-sistemático autoestruturado e maximamente internalista; e (c) o judiciário é um sistema de direito autorreferencial, autossubsistente e autossuficiente, diferenciado, independente, autônomo, endógeno e sobreposto ao sistema político e à sociedade civil, demarcado por uma perspectiva altamente institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada e por uma postura axiológica imparcial, impessoal, neutra e apolítico-despolitizada. Nesse sentido, como dissemos acima, o judiciário se estrutura desde dentro pelo/como direito, ao passo que o sistema político e sociedade civil se estruturam desde dentro pelo direito (a política e a moral devendo ser, fundar-se e traduzir-se ao direito e aos direitos humanos), sendo também enquadrados desde fora pelo judiciário e a partir do próprio direito.
Essa relação ontogeneticamente originária de direitos humanos e direito, essa condição autorreferencial e autossubsistente do direito em relação à política e à moral, a posição subsidiária da política e da moral aos direitos humanos e ao direito (a política e a moral como uma consequência dos direitos humanos e do direito) e, portanto, a necessidade de tradução completa da política e da moral ao direito demarcam e singularizam a democracia pluralista e universalista enquanto uma perspectiva antifascista, antitotalitária, não-fundamentalista e antirracista caracterizada pela dinâmica direito-moral-direito, direito-política-direito, direito-direito-direito e direito-cultura-direito, dinâmica esta que já mostra exatamente a estruturação internalista, endógena e autorreferencial do direito sobre si mesmo e a perspectiva de subsidiariedade e de consequencialidade da política e da moral ao direito, tanto em termos de fundamentação na universalidade dos direitos humanos quanto no que se refere à sua tradução ao direito e à sua (do sistema político e da sociedade civil) possibilidade de enquadramento sob a forma de controle de constitucionalidade e responsabilização jurídico-social por parte do judiciário, enquanto exigências inultrapassáveis para sua validade e legitimidade democráticas, seja na sua esfera privado-comunitária, seja em sua vinculação público-institucional. No caso, por conseguinte, temos, como base normativa, a correlação de direitos humanos e direito; no mesmo diapasão, como plataforma institucional temos a tradução da política e da moral ao direito, com sua fundação na universalidade dos direitos humanos; e, como dinâmica estruturante e legitimadora, temos exatamente a centralidade do judiciário enquanto guardador seja do pluralismo-diversidade, seja dos direitos humanos, seja da integridade do Estado democrático de direito, seja da efetividade do devido processo legal, e isso em termos de controle de constitucionalidade e de responsabilização jurídico-social frente ao sistema político e à sociedade civil, como estamos argumentando. Nesse diapasão, o direito é um conjunto sistêmico, sistemático, processual, instancial e publicizado completo, autossubsistente, autossuficiente e endógeno, ao qual se acede somente por meio da institucionalização, em termos do devido processo legal e a partir da tradução dos sujeitos sociopolíticos ao direito, enquanto sujeitos jurídicos; não se acede ao sistema jurídico em termos políticos e morais, isto é, de modo pré-jurídico, seja relativamente ao tipo de fundamentação, seja ao instrumento acionador da prática jurídica, seja, inclusive, no que se refere ao tipo de sujeito propriamente legal. A fundamentação jurídica se dá pela correlação de direitos humanos, tradução ao direito e construção empírica do conjunto material probatório, tramitada instancialmente e dinamizada em termos de câmaras de revisão hierárquicas orientadas à revisão, à correção e à confirmação de sentença, demarcada, ademais, por jurisprudência objetiva, similaridade decisória e previsibilidade de aplicação da norma; o instrumento jurídico fundamental – e é o único instrumento jurídico possível na democracia, tanto às instituições públicas e aos sujeitos institucionalizados quanto à sociedade civil e aos sujeitos não-institucionalizados – consiste no devido processo legal público-publicizado; e, então, o sujeito básico ao direito é, de um lado, no que diz respeito à atuação das cortes, um técnico impessoal, imparcial, neutro, formal, despersonalizado e apolítico-despolitizado, bem como, no que se refere ao sujeito social que aciona as instituições, um sujeito jurídico, um sujeito de direito que, por meio de sua tradução ao direito, utiliza-se do devido processo legal para exigir reparação institucional e social desde o judiciário.
Note-se que somente se adentra no judiciário sob a forma de uma perspectiva sistêmica, sistemática, processual, instancial e publicizada; que os sujeitos institucionais e sociopolíticos somente se manifestam de modo público e objetivo no/como/pelo devido processo legal; e que as instituições e os sujeitos sociopolíticos apenas se expressam pública e objetivamente em termos de tradução ao procedimentalismo, à principialidade, à simbologia e à linguagem do direito positivo. Isso prova não somente o fato de que o direito é autorreferencial, autossubsistente, autônomo, endógeno, ontogeneticamente primigênio em relação à política e à moral, constituindo-se como um conjunto normativo-institucional-procedimental completo, mas também e por consequência de que ele não pode em hipótese alguma ser acessado de modo pré-jurídico, isto é, em termos políticos e morais, assim como, obviamente, de que ele não pode optar por politizar-se e instrumentalizar-se pela política e pela moral. Entretanto, se o direito é totalmente endógeno e independente da política e da moral, o contrário não é verdadeiro, como também dissemos ao longo do texto: com efeito, na medida em que são subsidiárias da correlação de direitos humanos e direito, na medida em que são uma consequência dessa correlação entre direitos humanos e direito, a política e a moral perdem qualquer condição autorreferencial e autossubsistente, endógena, autossuficiente, independente e autônoma em relação aos direitos humanos e ao direito. A política e a moral já não bastam enquanto esferas autoestruturantes, necessitando de modo fundamental seja de sua legitimação pelos direitos humanos, seja de sua tradução ao direito positivo, seja, então, de seu enquadramento e validação pelo judiciário e através do devido processo legal no que tange ao controle de constitucionalidade e à responsabilização jurídico-social.
A política e as morais democráticas não são independentes aos direitos humanos e ao direito, não existindo de modo ontogeneticamente primário em relação a eles, senão que somente possuem validade e legitimidade após eles e por meio deles, isto é, como subsidiárias e como consequências deles. Portanto, a ideia de uma autossubsistência da política e da moral para além do direito, independentemente do direito – e algumas vezes contra ele – não cabe, não tem lugar em uma democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito, porque isso equivaleria a se deslegitimar e a se negar seja a única base estruturante da democracia, seja a sua dinâmica de orientação da pluralidade e de produção institucional da universalidade na/como/pela legalidade, isto é, a correlação de direitos humanos e direito, a separação e a diferenciação entre direito, política e moral, a condição ontogeneticamente primária do direito em relação à política e à moral, a diferenciação, a separação, a autonomia, a autossubsistência e a autorreferencialidade do direito em relação à política e à moral e, então, a subsidiariedade e a consequencialidade da política e da moral aos direitos humanos e ao direito, que as obrigam a traduzirem-se nesse mesmo direito e a fundarem-se de modo inultrapassável na universalidade dos direitos humanos. Isto, como queremos, mostra o caráter dependente da política e da moral e, inclusive, o sentido deficitário, incompleto, não-objetivo da política e da moral quando desligadas e contrapostas à correlação de direitos humanos e direito, quando deixadas sem qualquer base estruturante que não sua escatologia pré-jurídica e a-histórica dependente ou do racismo biológico, ou do fundamentalismo religioso, ou do etnocentrismo cultural, ou, como síntese de todos estes fatores, do dualismo-maniqueísmo moral e, então, levando à guerra missionária e messiânica de exclusão recíproca, negadora da universalidade dos direitos, das mediações estruturantes e do próprio pluralismo-diversidade. Note-se que essa ideia de uma incompletude, de um déficit e de uma parcialidade da política e das morais democráticas quando desligadas e autônomas do direto, caudatária da própria tendência homogeneizadora, massificadora e totalizante que é específica a perspectivas pré-jurídicas, a-históricas, dualistas-maniqueístas e heroico-escatológicas, implica em que a política e as morais democráticas – ou que possam ser chamadas de democráticas – precisem de complementação, de enquadramento, de controle e de orientação desde fora delas, pela correlação de direitos humanos e direito. Nesse sentido, mais uma vez, chegamos à nossa afirmação acima de que a política e a moral democráticas não são autorreferenciais, autossubsistentes, endógenas, autônomas e autossuficientes de si por si mesmas, necessitando tanto do complemento fundacional dado pelos direitos humanos e de uma manifestação público-institucional viabilizada em termos de sua completa tradução ao direito quanto do enquadramento, da reflexivização, do controle e da orientação últimos dados pelo judiciário e sob a forma de controle de constitucionalidade e de responsabilização jurídico-social.
A política (formal e informal, ou institucionalizada e não-institucionalizada) e a moral (sempre privada, no contexto de uma democracia) possuem internamente uma justificação e uma orientação pré-jurídicas, as quais lançam mão de fundamentos essencialistas e naturalizados com caráter a-histórico, que, por se colocarem ontogeneticamente primários aos direitos humanos, ao pluralismo e ao direito, intentam subsumi-los, anulá-los, subvertê-los, quando não simplesmente eliminá-los, uma postura que demanda controle das instituições e seu solapamento, bem como a imposição de uma atitude imediada, missionária e messiânica que vai das instituições à sociedade civil e desta para aquelas e que é marcada pela unidimensionalização, pela massificação e pela totalização das diferenças, produzindo e reproduzindo minorias político-culturais de modo planificado e desde o prisma do dualismo-maniqueísmo moral, da erradicação das mediações e da imposição de uma guerra de exclusão recíproca. Como já dissemos antes, não é mero acaso que a lógica fascista básica é exatamente a dinâmica moral-direito-moral, moral-política-moral e moral-cultura-moral, ou mesmo a dinâmica biologia-moral-biologia, biologia-direito-biologia, biologia-política-biologia e biologia-cultura-biologia: trata-se de uma perspectiva normativa que subsume o pluralismo-diversidade-diferença, a correlação de direitos humanos e direito e, finalmente, o Estado democrático de direito, a separação e a sobreposição entre poderes e o devido processo legal a uma perspectiva pré-jurídica e a-histórica com caráter essencialista e naturalizado que, primária ontogeneticamente falando, arrasa com a separação entre direito, política e moral e, portanto, com a subsidiariedade da política e da moral aos direitos humanos e sua tradução ao direito – não por acaso, mais uma vez, o colonialismo, o fascismo e o totalitarismo bebem no racismo biológico, no fundamentalismo religioso e no etnocentrismo cultural e levam seja à instrumentalização econômica, seja ao etnocídio-genocídio planificados, isto é, à violência simbólico-material direta como sua base estruturante e a sua consequência mais fundamental, demarcada pela negação dos direitos fundamentais a grupos racializados, estigmatizados e menorizados normativamente e pela subversão das instituições públicas, com a desestruturação permanente e mesmo a supressão do Estado democrático de direito.
É exatamente pelo legado histórico do colonialismo, do fascismo e do totalitarismo, sob a forma do racismo biológico, do fundamentalismo religioso, do etnocentrismo cultural e do instrumentalismo econômico, chegando-se a esse processo planificado de produção de menoridades político-culturais e de seu etnocídio-genocídio direto, que, como democracias, nos tornamos atentos não apenas acerca da correlação inextricável de direitos humanos e direito, mas também e por consequência da impossibilidade de a política e a moral serem desligadas dessa mesma correlação, dados seu déficit, sua incompletude e sua incapacidade de lidar com as diferenças enquanto diferenças e em termos anticoloniais, antirracistas e não-fundamentalistas; por outro lado, o direito, na medida em que está fundado nos direitos humanos, na medida em que é primigênio ontogeneticamente falando, independente e diferenciado frente à política e à moral e na medida em que se ramifica em um sistema público de direito mediado, sistemático e processual centralizado no devido processo legal, na separação entre poderes e em um forte ideal de institucionalidade, legalidade, tecnicalidade, formalidade e despersonalização, tem todas as condições não só de se estruturar de modo autônomo, endógeno e autossubsistente, mas também de complementar formal e materialmente a política e a moral, reflexivizando-as, enquadrando-as, corrigindo-as e orientando-as, ensinando-lhes (ou até mesmo impondo-lhes, quando for o caso) valores, práticas e símbolos fundamentais à democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito e demarcada pela produção da universalidade na/como/pela legalidade. Com efeito, o direito como base formal-material da democracia pluralista e universalista permite que a pluralidade das formas de vida possa frutificar dentro de um conjunto de regras, de valores, de práticas, de símbolos e de instituições em comum que assumem, protegem e promovem as diferenças, imbricando-as a partir da universalidade e da reciprocidade em relação aos direitos fundamentais, sem exclusão de ninguém nessa perspectiva de oferta incondicional e irrestrita de direitos e de garantias fundamentais e de segurança, isonomia, simetria e horizontalidade jurídicas; ademais, enquanto um sistema público de direito, o direito possui uma estrutura sistemática, processual, mediada e instancial de produção reflexiva, controlada e corretiva da objetividade normativo-jurídico-política, evitando uma imposição direta, imediada e imediata dos valores, das práticas e dos símbolos intersubjetivamente vinculantes e sendo capaz não apenas de incluir a todas as formas de ser e estar no mundo democráticas, mas também de uma postura de reflexividade, correção e controle relativamente a equívocos processual-institucionais e a problemas de integração social existentes – inclusive, dada sua publicidade administrativa e sua condição sistêmica lógico-técnica, apolítico-despolitizada e formalista-despersonalizada, podendo ser fiscalizado, visibilizado e dinamizado pela sociedade civil e em termos seja de opinião pública, seja de acionamento das instituições pelos canais oficiais de contato e de interação, como os conselhos, as corregedorias, as ouvidorias e até mesmo no que se refere a projetos de lei de origem popular (quando se trata, neste último ponto, do sistema político). Por conseguinte, o direito, na medida em que se funda na universalidade dos direitos humanos e na centralidade da diversidade, na medida em que é ontogeneticamente primário à política e à moral, tornando-as suas subsidiárias, na medida, ainda, em que forma um sistema público de direito altamente institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizado demarcado por sistematicidade, processualidade, publicidade e tramitação instancial, é supersensível ao pluralismo, à diferenciação, à heterogeneidade e à complexidade sociopolíticas, sendo capaz dessa produção autorreflexiva, autocontrolada e autocorretiva da objetividade normativo-jurídico-política, assumindo, assim, esse sentido antifascista, antitotalitário, não-fundamentalista e antirracista que é próprio à democracia pluralista e universalista somente por causa de seu sistema público de direito, somente por causa da correlação originária de direitos humanos e direito e de sua manifestação em termos do devido processo legal.
É por isso que a hegemonia de posições fascistas no âmbito da esfera pública e institucional democrática tende a romper e, na verdade, a apagar completamente a diferença, a separação, a autonomia, a independência, a endogenia, a autorreferencialidade, a autossubsistência e a sobreposição do direito em relação à política e à moral, retirando-lhe sua autossuficiência e seu sentido autoestruturado, transformando-o em mera extensão dessa moral essencialista e naturalizada, convertida em messianismo e missionarismo políticos por todos os meios, em particular a guerra de exclusão recíproca, a colonização das instituições jurídico-políticas, a destruição das mediações sociais e a invisibilização, quando não a própria negação, do pluralismo e da diversidade. Como estamos argumentando, essa destruição da separação e da diferenciação entre direito, política e a moral abala estruturalmente, fundacionalmente a democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito antifascista, antitotalitário, não-fundamentalista e antirracista, uma vez que não só retira a correlação originária entre direitos humanos e direito e, então, o sentido pós-tradicional dessa mesma democracia, como também subsume o direito e a política a uma noção normativa simplificadora, massificadora, homogeneizadora e totalizante incontida, imediada, imediata e direta, que assume as diferenças como mera superficialidade a ser apagada em vista dessa noção religiosa, étnica e biológica forte. Ora, é importante lembrar que o apagamento e o solapamento da diferenciação e da separação entre direito, política e moral pode ser feito de duas maneiras: a primeira, conforme já dito acima, acontece a partir do crescimento da hegemonia de posições político-morais fascistas, totalitárias, racistas e fundamentalistas no âmbito da sociedade civil e sua gradativa conquista do sistema político e do sistema jurídico (chamaremos esse modelo de versão clássica do fascismo); a segunda diz respeito à politização, à instrumentalização e à colonização do direito desde dentro, isto é, por operadores públicos do direito inseridos no sistema judiciário, os quais partidarizam o direito e o submetem diretamente à guerra político-partidária fratricida, dali ramificando-se à sociedade civil em termos de criação de uma massa-milícia digital-social de aclamação que lhes legitima nessa sua cruzada antissistêmica, anti-institucional, antijurídica e infralegal de destruição do sistema desde dentro das instituições para fora (chamaremos esse modelo de versão contemporânea do fascismo).
Na versão clássica do fascismo, a colonização moral do direito e sua consentânea politização e instrumentalização em termos de guerra de exclusão reciproca com caráter regressivo parte da hegemonia do totalitarismo no contexto do amplo espectro cultural próprio à sociedade civil, que lhe abre camino para a consequente vitória partidário-eleitoral e, então, para a colonização imediata do sistema político, desde o qual o sistema judiciário é alinhado diretamente à promoção não só da violação do devido processo legal, mas também da racialização da sociedade ou mesmo de sua subsunção ao fundamentalismo – lembrando que certos regimes fascistas e totalitários, como o nazismo alemão e o comunismo russo, bebem no racismo biológico, ao passo que perspectivas fascistas e totalitárias como o salazarismo português, o franquismo espanhol e as ditaduras militares latino-americanas (incluindo-se, aqui, a ditadura militar brasileira) são baseadas e se sustentam em uma forte perspectiva fundamentalista em termos religioso-morais. Nessa perspectiva clássica, por conseguinte, uma moral forte, de cunho essencialista e naturalizado, impele a uma militância política totalizante que, da sociedade civil para o sistema político e deste para o judiciário, instrumentaliza as instituições e o Estado de direito, retirando-lhes sua diferenciação, sua autonomia, sua autorreferencialidade e sua sobreposição às morais particulares e colocando-os a serviço da promoção desse totalitarismo agora institucionalizado. Na versão contemporânea do fascismo, temos uma implosão do sistema público de direito desde dentro do judiciário, em que operadores públicos do direito se utilizam de posturas personalistas, voluntaristas, espontaneístas, missionárias e messiânicas e de atitudes antissistêmicas, anti-institucionais, antijurídicas e infralegais com o intuito de corrigir o sistema desde dentro – mas paradoxalmente, autodestrutivamente – em termos de lawfare institucional, polícia de Estado e Estado de exceção, violando o devido processo legal e partidarizando, politizando e instrumentalizando o direito. Nesse caso, o fascismo começa no sistema jurídico, alinha-se à guerra político-partidária no âmbito do sistema político e enraíza-se na sociedade civil em termos de manipulação da opinião pública e de produção e de estímulo permanentes a uma massa-milícia digital-social de aclamação garantidora do populismo contramajoritário relativamente à condenação prévia e partidarizada dos adversários políticos ao “partido” de setores do judiciário. Aqui também, como já acontecia com a versão clássica do fascismo, temos (a) o solapamento da co-originariedade de direitos humanos e direito, (b) o apagamento da diferenciação e da separação entre direito, política e moral, (c) a fragilização, quando não a eliminação, da autonomia, da independência, da endogenia, da autorreferencialidade, da autossubsistência, da autossuficiência e da sobreposição do direito em relação à política e à moral e do judiciário frente ao sistema político e à sociedade civil, (d) a deslegitimação do devido processo legal, (e) o rompimento da perspectiva metodológico-axiológica imparcial, impessoal, neutra e apolítica-despolitizada que é necessária ao direito e, finalmente, (f) a destruição do sistema público de direito enquanto uma perspectiva constitutiva, dinamizadora e procedimental altamente institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada que está demarcada por sistematicidade, processualidade, instancialidade, mediações, progressividade e publicidade. O direito partidariza-se e, ao se aliar e se vincular de modo voluntarista, missionário e messiânico à guerra político-partidária em termos de “limpeza do congresso” (palavras do ex-juiz Sergio Fernando Moro), alia-se a partidos e lideranças políticos “cujo apoio é importante” (mais uma vez palavras do ex-juiz Sérgio Moro, referindo-se, no caso, a Fernando Henrique Cardoso), viola o devido processo legal e as hierarquias processuais (“vagabundos” do STF, conforme fala do procurador da república Diogo Castor de Mattos) e busca construir uma escatologia heroica politizada e moralizada do direito capaz de legitimar infralegalmente essa politização, cujos “sinais conduzirão multidões” (palavras do procurador da república Deltan Dallagnol ao ex-juiz Sérgio Fernando Moro). O direito, aqui, é apenas um instrumento politizado e partidarizado da guerra político-partidária fratricida; e a sua violação e instrumentalização flagrantes e pungentes, as quais são necessárias para que ele possa ser efetivamente politizado e partidarizado (tendo, portanto, de assumir uma perspectiva antissistêmica, anti-institucional, antijurídica e infralegal, rompendo com seu ideal de institucionalidade, legalidade, tecnicalidade, formalismo e despersonalização fortes), destroem a segurança e a isonomia jurídicas que são a base de estabilização e de legitimidade seja das instituições públicas, a primeira delas o judiciário, seja então da própria sociedade civil e de sua pluralidade sociopolítica. É por causa disso que o bolsonarismo hegemônico não só pode ameaçar com o descumprimento de decisões judiciais, como também cogitar em intervenção no Supremo Tribunal Federal sem qualquer pudor e sem que haja reação incisiva por parte do sistema público de direito, em especial o judiciário e o Ministério Público Federal, dos partidos e das lideranças políticos e, finalmente, da própria opinião pública – tem-se, ao contrário, a normalização e a forte ênfase em uma defesa direta, por lideranças políticas institucionalizadas e sujeitos de direito próprios seja ao judiciário, seja à sociedade civil, da derrubada do Estado democrático de direito através de uma ditadura militar.
Desse modo, o solapamento, o apagamento, a fragilização e até a destruição da diferença, da separação, da autonomia, da independência, da endogenia, da autorreferencialidade, da autossubsistência, da autossuficiência e da sobreposição do direito em relação à política e à moral leva, de modo correlato e consequente, (a) à fragilização da co-originariedade de direitos humanos e direito, (b) à subversão da subsidiariedade da política e da moral ao direito e, então, (c) à perda da independência e da sobreposição do judiciário frente ao sistema político e à sociedade civil, com sua partidarização, politização e instrumentalização pelo sistema político em guerra fratricida, o que implica, neste último caso, na deslegitimação do direito, na perda de sua integridade e na sua incapacidade em enquadrar, orientar e validar o sistema político e a sociedade civil. De base estruturante da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito, o direito-judiciário se transforma no fator, na dinâmica e no sujeito fundamentais de desestabilização da democracia; de árbitro da imparcialidade institucional e de sua orientação universalista por meio da legalidade e de sua fundação na universalidade dos direitos humanos, o judiciário se transforma em fator de desequilíbrio político e de porteira que abre o caminho do fascismo em sua cruzada antissistêmica, anti-institucional, antijurídica e infralegal, agora desde dentro das instituições para fora. E isso nos mostra tanto o fato de que o judiciário é a instituição central dessa democracia pluralista e universalista constituída como um sistema público de direito, sendo a base desde a qual é guardada e efetivada a correlação originária de direitos humanos e direito, com o consequente caráter ontogeneticamente primário, diferenciado e independente do direito em relação à política e à moral (e ao sentido subsidiário destas àquele, obviamente), quanto de que essa separação e essa diferenciação entre direito, política e moral se coloca como o núcleo fundacional, o instrumento estruturante e a última fronteira que impede a emergência do fascismo, do totalitarismo, do racismo e do fundamentalismo no contexto das instituições e entre instituições e, desde elas (e motivada por elas), no contexto da sociedade civil. Note-se, inicialmente, que a democracia pluralista e universalista, de sentido pós-tradicional, não está constituída enquanto um sistema público de direito por acaso, mas exatamente enquanto um aprendizado histórico calcado nas experiências do fascismo, do totalitarismo, do racismo e do fundamentalismo, bem como nos consequentes processos de violência simbólico-material ampla dinamizados desde eles, justificados por eles, em termos de centralidade de uma moral essencialista e naturalizada incontida e totalizante orientada missionária e messianicamente à colonização, à homogeneização e à massificação da diversidade, desde uma guerra de exclusão demarcada por uma postura normativa dualista-maniqueísta imediada, imediata, incontida, imoderada e direta. A ideia de um sistema público de direito fundado na correlação de direitos humanos e direito, constituído enquanto uma perspectiva sistemática, processual, mediada, instancial, progressiva e publicizada, dinamizado por sistemas sociais judiciário e política altamente institucionalistas, legalistas, tecnicistas, formalistas e despersonalizados, marcado por imparcialidade, impessoalidade e neutralidade metodológico-axiológicas e centralizado no devido processo legal tem por meta exatamente a constituição de uma sociedade antifascista, antitotalitária, não-fundamentalista e antirracista através da separação, da diferenciação, da autonomia, da independência, da endogenia, da autorreferencialidade, da autossubsistência, da autossuficiência e da sobreposição do direito em relação à política e à moral, bem como do judiciário em relação ao sistema político e à sociedade civil.
Por isso que falamos, acima, de que o judiciário é a instituição central dessa democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito demarcado pela correlação originária de direitos humanos e direito, cuja função central consiste em garantir tanto essa correlação originária e sua consequente materialização quanto a diferenciação, a separação, a autonomia, a autorreferencialidade e a sobreposição do direito em relação à política e à moral, bem como a consentânea subsidiariedade da política e da moral ao direito – garantir, portanto, que a política e a moral sejam sempre consequência do direito, que elas se traduzam completamente ao direito e, finalmente, que se fundem de modo irrestrito na universalidade dos direitos humanos. Essa é a atuação fundamental do judiciário em termos de controle de constitucionalidade e de responsabilização jurídico-social, e é no cumprimento efetivo dela ou em sua violação que temos respectivamente seja a solidificação de uma perspectiva societal-institucional-normativa antifascista, antitotalitária, não-fundamentalista e antirracista que é efetivamente pós-tradicional, seja a emergência e a hegemonia do fascismo contemporâneo em termos de politização e de partidarização do judiciário com o consequente apagamento dessa diferenciação, dessa autonomia, dessa independência e dessa autossuficiência do direito frente à política e à moral, com a subsidiariedade e a consequencialidade delas em relação ao direito. Por outras palavras, tudo passa pelo direito-judiciário, quando nos referimos a uma democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito; tudo passa e tudo depende desse mesmo judiciário, inclusive o sucesso do fascismo em colonizar as instituições públicas e em subverter a relação entre direito, política e moral, isto é, a sobreposição do direito e a dependência da política e da moral em relação a ele. Tudo passa pelo judiciário porque, na medida em que ele se responsabiliza por controle de constitucionalidade e por responsabilização jurídico-social, a determinação de toda e qualquer perspectiva política e moral enquanto legalmente válida (isto é, se está fundada ou não na universalidade dos direitos humanos e se está traduzida ou não ao procedimentalismo, à principialidade, à simbologia e à linguagem do direito positivo) dependerá exatamente da atividade jurisdicional das cortes, de seu julgamento; e, por conseguinte, tudo depende do judiciário no sentido de que é seu exemplo interno, sua integridade interna em torno (a) à assunção da correlação originária de direitos humanos e direito, (b) de fomento, proteção e efetivação da autonomia, da diferenciação, da separação, da autossubsistência e da sobreposição do direito em relação à política e à moral, (c) de ênfase no devido processo legal e (d) de utilização de uma perspectiva sistêmica, sistemática, processual, mediada, instancial e publicizada altamente institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada, que garantirá sua orientação antifascista e sua legitimidade de atuação contramajoritária, o que lhe confere total legitimidade para obrigar o sistema político e a sociedade civil a fundarem-se na universalidade dos direitos humanos, a assumirem o pluralismo-diversidade-diferença e a se traduzirem completamente ao direito. Na medida em que mantém sua integridade interna, isto é, sua separação, autonomia e autossubsistência em relação ao sistema político e às morais próprias à sociedade civil, o judiciário assume hegemonia inconteste relativamente a elas, solidificando a correlata centralidade do direito em relação à política e à moral e, assim, impondo a fundação seja do direito, seja da política, seja da moral na universalidade dos direitos humanos como base estrita, suficiente e necessária deles e para eles. Ora, a integridade do judiciário depende exatamente de sua tecnicalidade-logicidade, de sua apoliticidade-despolitização e de sua formalidade-despersonalização; e essa integridade é destruída com a partidarização e a politização do judiciário e, nesse caso, por meio da atuação interna do judiciário em termos antissistêmicos, anti-institucionais, antijurídicos e infralegais em prol da guerra político-partidária fratricida. Por isso que, em nossa interpretação, a versão contemporânea do fascismo se dá como politização, partidarização e instrumentalização do direito pelo judiciário e, depois, pelo sistema político e pela sociedade civil, sob a forma de um personalismo jurídico-político antissistêmico, anti-institucional, antijurídico e infralegal que vai do judiciário para o sistema político e deste para a sociedade civil, normalizando o lawfare institucional, a polícia de Estado e o Estado de exceção, inclusive com o fato de que a relação entre direitos humanos e direito deixa de ser o núcleo legitimador da política e da moral, fomentando-se, nesse caso, a colonização do direito pela moral e a orientação do direito e da política em termos de dualismo-maniqueísmo moral e de guerra de exclusão recíproca, seja dentro das instituições públicas, seja na sociedade civil, e em concerto entre ambas.
Com isso, chegamos ao núcleo estruturante, definidor e dinamizador da democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito, o qual consiste, como já dissemos ao longo do texto, na diferenciação, na separação, na autonomia, da independência, na endogenia, na autossubsistência, na autossuficiência, na autorreferencialidade e na sobreposição do direito em relação à política e à moral e no caráter subsidiário e consequencial da política e da moral para com o direito. Na medida em que a única base fundacional do direito consiste na universalidade dos direitos humanos e, portanto, na medida em que os direitos humanos se afirmam normativamente e se materializam na prática sob a forma do sistema público de direito de um modo geral (constituição política e direito positivo; judiciário e seu trabalho de controle de constitucionalidade e de responsabilização jurídico-social; devido processo legal público-publicizado; divisão de tarefas entre judiciário e sistema político) e de direitos e garantias fundamentais e segurança, isonomia, simetria e horizontalidade jurídicas em particular, tem-se que o direito é um sistema endógeno, autônomo, completo em si mesmo, ademais de autoestruturado, sem qualquer necessidade de base política e de legitimação moral – tem-se, na verdade, tanto o fato de que os direitos humanos se objetivam e se realizam no/como/pelo direito e de que o direito (e, por conseguinte, a democracia pluralista e universalista como sistema público de direito) tem como única, exclusiva e suficiente base fundacional aos direitos humanos quanto o fato de que o direito não é política e nem moral, ademais de não depender nem da política e nem da moral (por outro lado, a política e a moral deve assumir a forma, o procedimento, a simbologia e a linguagem do direito). É por isso que o direito é um sistema autossubsistente, autossuficiente e autorreferencial que, por sua vez, funda a política e a moral, as quais não são autorreferenciais, autossubsistentes e autossuficientes: a política e a moral são incompletas, deficitárias e tendem à imoderação e ao descontrole quando desligadas da fundação da universalidade dos direitos humanos e de sua tradução ao direito e sempre que objetivarem uma primariedade ontogenética em relação a ele, aos direitos humanos e ao pluralismo-diversidade. Por isso, em uma democracia pluralista e universalista constituída enquanto um sistema público de direito, todas as perspectivas políticas (institucionalizadas ou não) e morais (sempre privadas) precisam estar fundadas na universalidade dos direitos humanos e traduzidas ao direito, o que significa, com isso, o seu enquadramento, a sua reflexivização, a sua correção, o seu controle e a sua orientação em termos de judiciário em particular e de sistema público de direito de um modo geral. Note-se que não é a política que funda o direito e a moral; e não é a moral que funda o direito e a política, mas os direitos humanos que fundam o direito e que embasam a política e a moral e, no mesmo diapasão, o direito, agora ontogeneticamente primário à política e à moral, que funda, enquadra, orienta e dinamiza a política (institucionalizada e não-institucionalizada) e a moral (sempre privada).
O direito democrático, assim, possui quatro sentidos básicos: um conjunto sistêmico e sistemático de instituições, estratos instanciais e hierarquias processuais estruturadas lógica e tecnicamente (da universalidade para a particularidade, da particularidade para a jurisprudência objetiva, a similaridade decisória e a previsibilidade e aplicação da norma, e destas mais uma vez para as particularidades) e dinamizadas pela produção do devido processo legal público-publicizado a partir da base normativa dada pela constituição política e pelo procedimentalismo, pela principialidade, pela simbologia e pela linguagem do direito positivo, cabendo aqui todo o protagonismo às cortes judiciais; o direito positivo enquanto esse conjunto sistemático de princípios, de práticas, de argumentações e de símbolos desde o qual – e somente desde o qual – as instituições públicas e os sujeitos institucionalizados e a sociedade civil e os sujeitos não-institucionalizados (estes concebidos como sujeitos de direito) manifestam-se e objetivam-se pública, institucional e reciprocamente, inclusive como a plataforma desde a qual é produzida a objetividade normativo-jurídico-política; o devido processo legal enquanto o único instrumento público e particular de produção dessa mesma objetividade normativo-jurídico-política; e o direito como direitos humanos, este sendo o pilar desde o qual o sistema público de direito e o direito positivo, assim como o devido processo legal, efetivamente ganham sentido, justificação e dinamização em termos da democracia pluralista e universalista. Perceba-se, nestas quatro características próprias ao direito, o fato da correlação de universalidade dos direitos humanos e direito e, então, da universalidade do próprio direito quando comparado com perspectivas políticas e morais particulares: o direito é e materializa a universalidade dos direitos humanos em sua extensão irrestrita e incondicional dos direitos e das garantias fundamentais e da segurança, da isonomia, da simetria e da horizontalidade jurídicas para todos e para cada um dos sujeitos sociopolíticos enquanto sujeitos de direito, enquanto sujeitos a direitos. Estas quatro características, portanto, transformam o direito em um sistema, em uma base e em um princípio autônomos, diferenciados, independentes, autossuficientes, autossubsistentes, autorreferenciais e sobrepostos à política e à moral, de modo que este mesmo direito não só não necessita de nenhum complemento exterior a si mesmo (bastando-lhe a universalidade dos direitos humanos ramificada em constituição política e em direito positivo e seu ideal de institucionalidade, legalidade, tecnicalidade, formalismo e despersonalização sistêmicas), como também ele somente se estrutura desde dentro de si mesmo enquanto um sistema endógeno e conjuntural completo, demarcado por sistematicidade, processualidade, mediações, instancialidade, progressividade e publicidade. Em contrapartida e por causa dessa especificidade da democracia pluralista e universalista constituída como um sistema público de direito, em termos de co-originariedade de direitos humanos e direito, a política e a moral não são e não podem ser autoestruturadas em si mesmas e desde si mesmas – sequer podem ser autônomas ao direito (mas o direito pode e deve ser autônomo, diferenciado e independente à política e à moral); a política e a moral não se fundam em seu próprio eixo constitutivo e não se dinamizam a partir de princípios internos, senão que são subsidiárias e, na verdade, uma consequência da condição ontogeneticamente primária do direito e de sua correlação aos direitos humanos. Desse modo, a política e a moral somente são objetivas, justificadas e validadas democraticamente na medida em que se fundam na universalidade dos direitos humanos e se traduzem no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo, constituindo-se, justificando-se, corrigindo-se e objetivando-se por meio do devido processo legal sistêmico, sistemático, mediado, instancial, progressivo e público-publicizado, o que também significa que, enquanto estruturas, dinâmicas e princípios incompletos, deficitários e não-referenciais, a política e a moral precisam da orientação dada pelo direito, assim como o sistema político e a sociedade civil necessitam do enquadramento, da reflexivização, da validação e da orientação dada pelo judiciário em termos de controle de constitucionalidade e de responsabilização jurídico-social. Ademais, enquanto uma consequência da correlação, da concomitância e da co-originariedade de direitos humanos e direito, o judiciário e o sistema político têm por meta a materialização desse conjunto de direitos humanos em termos de compartilhamento de tarefas (sempre demarcada pela sobreposição do direito em relação à política e à moral e do judiciário frente ao sistema político e à sociedade civil, bem como de sua necessidade de atuação contramajoritária e de constituição institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada): nesse caso, o judiciário realiza controle de constitucionalidade e responsabilização jurídico-social e o sistema político produz políticas públicas, previsão constitucional e principialidade jurídica, de modo a, complementarmente entre sistema jurídico e sistema político e hierarquicamente do sistema jurídico para o sistema político, efetivar-se processos institucionalizados e institucionalizantes de reconhecimento, integração, inclusão e participação de sujeitos, grupos e pautas sociopolíticos ainda não plenamente realizados, de modo a se superar os efeitos do racismo estrutural, do fundamentalismo religioso, do etnocentrismo cultural e do instrumentalismo e da desigualdade econômicos. Por outras palavras, política e moral estão a serviço da materialização dos direitos humanos; de modo mais específico, o objetivo do sistema jurídico e do sistema político consiste exatamente em materializar os direitos humanos em termos de direitos e de garantias fundamentais e de segurança, de isonomia, de simetria e de horizontalidade jurídicas (a partir daquele compartilhamento de tarefas que falamos acima e sempre em termos de primazia do direito em relação à política e à moral, com a consequente subsidiariedade e tradução destas a ele). Este é o fundamento, a dinâmica estruturante e a meta diretiva do sistema público de direito democrático calcado no pluralismo, nos direitos humanos, nas instituições públicas e no direito.
Naqueles quatro sentidos do direito tematizados logo acima, nós podemos perceber que o direito é tanto forma quanto conteúdo. A forma é dada e manifestada seja pela constituição de um edifício público com caráter sistêmico, sistemático, processual, instancial e progressivo de estratos hierarquicamente sobrepostos e justapostos orientados à produção, à revisão, à correção e à confirmação processual; a forma jurídica também é dada pela objetividade da constituição política como fundamento normativo, derivada exatamente da universalidade dos direitos humanos; ademais, a forma jurídica é dinamizada pelo procedimentalismo, pela principialidade, pela simbologia e pela linguagem do direito positivo, a qual seve para o direito, para a política e para a moral, desde a qual todos devem traduzir-se em sua vinculação público-institucional; tem-se, ainda, o devido processo legal público-publicizado como a única ferramenta institucional e social desde a qual se produz objetividade normativo-jurídico-política, inclusive como o único instrumento desde o qual as instituições públicas e os sujeitos institucionalizados, bem como os sujeitos e as organizações não-institucionalizados se manifestam objetivamente, publicamente; e, finalmente, esse sistema público de direito é demarcado por um ideal forte de institucionalidade, legalidade, tecnicalidade, formalidade e despersonalização procedimental-metodológico-axiológicas. O conteúdo do/como/pelo direito é dado pela materialização dos direitos humanos em direitos e garantias fundamentais e em segurança, isonomia, simetria, horizontalidade e mediações jurídicas estruturantes, vinculando-se e sobrepondo-se diretamente o judiciário e/ao sistema político em torno à efetivação dos processos de reconhecimento, inclusão, integração e participação institucionais, a partir do compartilhamento de tarefas entre esse mesmo judiciário e esse mesmo sistema político. Nesse sentido, o sistema público de direito, na imbricação e na sobreposição de judiciário e sistema político, tem uma meta construtiva e propositiva em torno à materialização dos direitos humanos; e tal meta, a qual somente pode ser realizada por meio das instituições públicas e sob a forma de produção da universalidade na/como/pela legalidade, desde um judiciário e um sistema político altamente institucionalistas, legalistas, tecnicistas, formalistas e despersonalizados, consiste em materializar o pluralismo axiológico e a universalidade dos direitos humanos através da co-originariedade de direitos humanos e direito, da fundação da política e da moral aos direitos humanos e, então, da tradução da política e da moral ao direito. Por isso mesmo, a condição ontogeneticamente primária, a diferenciação, a independência, a autorreferencialidade e a sobreposição do direito em relação à política e à moral, bem como a subsidiariedade da política e da moral ao direito, com a sua consequente necessidade de complementação e de orientação pela correlação de direitos humanos e direito, conduz diretamente à ideia de que a democracia pluralista e universalista enquanto um sistema público de direito se caracteriza como uma perspectiva societal-institucional-normativa antifascista, antitotalitária, não-fundamentalista e antirracista por causa de sua produção sistêmica, sistemática, mediada, processual, instancial e publicizada da universalidade na/como/pela legalidade, sempre de modo seriado, sequencial, consequencial e progressivo, dinamizada por uma perspectiva lógico-técnica, formalista-despersonalizada e apolítico-despolitizada e por um procedimentalismo e por uma axiologia imparciais, impessoais e neutros, para os quais somente os direitos humanos e a principialidade própria ao direito positivo, no contexto da hierarquia institucional e da tramitação longa entre as câmaras de revisão, assim como na separação e na integridade do judiciário em relação ao sistema político, garantem objetividade normativo-jurídico-política vinculante e, portanto, a efetividade do pluralismo e dos direitos humanos através do direito e deste para a política e a moral complementadas por esse mesmo direito.
O direito e o fascismo, o direito contra o fascismo, o fascismo contra o direito: considerações finais
Não é mero acaso que posições fascistas, totalitárias, racistas e fundamentalistas, as quais possuem caráter antissistêmico, anti-institucional, antijurídico e infralegal, tentem a todo o momento e ingentemente deslegitimar e solapar o sistema público de direito de um modo geral e a correlação originária de direitos humanos e direito em particular, com a consequente deslegitimação e violação da diferenciação e separação entre direito, política e moral e da subsidiariedade da política e da moral ao direito: porque, na medida em que o direito se mantém íntegro seja em sua fundação na universalidade dos direitos humanos, seja na sua autonomia, independência, endogenia, autorreferencialidade, autossubsistência e sobreposição à política e à moral, toda e qualquer posição política (formal e informal) e toda e qualquer posição moral (sempre privada) terá de curvar-se necessariamente à universalidade dos direitos humanos e de traduzir-se completamente no procedimentalismo, na principialidade, na simbologia e na linguagem do direito positivo, refreando-se, moderando-se e, com isso, minimizando ou até abandonando sua tendência totalizante – e, em muitos casos, regressiva – relativamente ao pluralismo-diversidade, aos direitos humanos e ao Estado democrático de direito e suas mediações jurídicas estruturantes. Não é mero acaso, ademais, que posições políticas fascistas tentem a todo o custo e ingentemente a colonização, a politização, a partidarização e a instrumentalização de setores do judiciário com vistas à sua adesão à guerra político-partidária fratricida e em termos de subversão do sistema público de direito, do direito e do devido processo legal, inclusive com o apagamento da fronteira, da diferenciação, da separação, da autonomia e da autorreferencialidade do judiciário seja ao sistema político, seja, em consequência, à sociedade civil. O judiciário é a instituição mais central da democracia, na verdade é a instituição que efetivamente dá sentido, orientação, forma e conteúdo à democracia pluralista e universalista enquanto um sistema público de direito demarcada pelo e direcionado à produção da universalidade na/como/pela legalidade. Partidarizar e politizar o judiciário, que é a atitude central de partidos e de lideranças fascistas, tem por implicação exatamente a destruição do direito e, então, a submissão do judiciário a esses movimentos políticos antissistêmicos, anti-institucionais, antijurídicos e infralegais que querem não só se perpetuar no poder, mas promover uma reorientação do sistema público de direito que o leva à regressão totalizante relativamente ao universalismo pós-tradicional. Por isso, inclusive, que esses partidos e lideranças fascistas não objetivam apenas enriquecimento pessoal e contatos privilegiados com setores institucionais e socioeconômicos específicos, mas também, e talvez antes de tudo e como condição para tudo o mais, implantar uma perspectiva normativa ampla calcada em posições político-morais essencialistas e naturalizadas, às quais o direito está subsumido, subvertido, deturpado e instrumentalizado.
Partidarizar o judiciário é a atitude mais profícua para que o fascismo emerja e ganhe hegemonia institucional; e, na verdade, somente na medida em que o judiciário – ou setores importantes dele – está partidarizado, politizado e instrumentalizado é que o fascismo tresloucado pode efetivamente instaurar uma guerra de exclusão recíproca e uma postura dualista-maniqueísta correlata que arrasam com o direito, com a institucionalidade, com as mediações jurídicas estruturantes e com o devido processo legal, eliminando a segurança, a isonomia, a simetria e a horizontalidade jurídicas que são a base de legitimação e de estabilização da democracia como um todo, e que somente são possíveis pela integridade do judiciário e sua separação, diferenciação e sobreposição ao sistema político e à sociedade civil, uma vez que é ele que guarda, protege, fomenta e valida a co-originariedade de direitos humanos e direito, a primazia ontogenética do direito frente à política e à moral, assim como o caráter subsidiário e consequencial da política e da moral ao direito. Ora, é nestes momentos em que o judiciário não funciona e perde legitimidade institucional e social, seja frente ao sistema político, seja no que se refere à sociedade civil, seja, finalmente, entre os próprios estratos e câmaras de revisão dele constitutivos, que o fascismo aparece com suas soluções e propostas golpistas à luz do dia e sem qualquer pudor, propondo de modo explícito, pungente e direto a própria destruição do sistema público de direito de um modo geral e do judiciário em particular e, com isso, recusando essa correlação originária de direitos humanos e direito, essa primariedade ontogenética do direito em relação à política e à moral e essa subsidiariedade e consequencialidade da política e da moral ao direito. Porque somente se pode recusar obediência ao judiciário e propor-se explicitamente a derrubada do sistema público de direito como um todo quando já não se reconhece a centralidade dos direitos humanos e do direito, a centralidade do judiciário e, finalmente, a produção da universalidade na/como/pela legalidade, em termos sistemáticos, processuais, mediados, instanciais, progressivos e publicizados; no mesmo diapasão, somente se pode, desde o sistema político e da própria sociedade civil, propor o rompimento da ordem constitucional e da separação, da diferenciação e da sobreposição entre poderes na medida em que, além da perda de legitimidade, o judiciário – ou setores específicos dele – destruiu ou minou por si mesmo, desde dentro e voluntariamente o ideal de institucionalidade, legalidade, tecnicalidade, formalidade e despersonalização que deve caracterizar-lhe e orientar-lhe de modo estrito, aceitando e realizando internamente a si a politização e a partidarização do direito, isto é, a destruição do direito e, por conseguinte, a destruição do próprio judiciário em termos de auto-implosão interna, desde uma postura de personalismo jurídico-político antissistêmico, anti-institucional, antijurídico e infralegal.
Se se lembrassem de que o fascismo é o ilimitado, o imediado, o imediato, o incontido e a regressão totalizante ingovernável, não-reflexivizável, posto que seu dualismo-maniqueísmo moral o impele a uma guerra de exclusão e de autodestruição sem fim, primeiro contra os outros (inclusive os outros poderes) e depois contra si mesmo, o judiciário e os operadores públicos de direito pensariam muitas e muitas vezes antes de assumirem politização e partidarização, antes de realizarem uma postura antissistêmica, anti-institucional, antijurídica e infralegal desde dentro do sistema jurídico frente ao sistema político – antes de um contato tão estreito com partidos e lideranças políticos e grupos sociais, morais e econômicos específicos, uma atitude corriqueira e normalizada ao ponto da autodestruição suicida. Simplesmente não é acidental e não nos causa nenhum espanto a atitude fascista própria ao bolsonarismo, seja em termos de negação da universalidade dos direitos humanos, seja de solapamento do direito e de recusa da subsidiariedade da política e da moral em relação a ele, seja, finalmente, de proposição de derrubada do sistema público de direito e do judiciário: tal proposta foi encampada e agudizada por setores do judiciário que, agora, são consumidos pelo próprio bolsonarismo, sendo incapazes de marcar postura firme e de reagir a essa desestruturação avassaladora que o direito está sofrendo hoje – e que o judiciário também se impôs, assumiu e encampou não só como cúmplice ou figurante, mas também como ator principal. Se se lembrassem de que a fronteira primeira e última contra o fascismo é exatamente o direito em sentido amplo, a saber, a correlação originária de direitos humanos e direito, a condição ontogeneticamente primária, a separação, a diferenciação, a independência, a endogenia, a autonomia, a autorreferencialidade, a autossubsistência, a autossuficiência e a sobreposição do direito em relação à política e à moral, a perspectiva altamente institucionalista, legalista, tecnicista, formalista e despersonalizada do judiciário, o devido processo legal público-publicizado e as mediações jurídicas estruturantes, o judiciário e os operadores públicos do direito (mas também todos os partidos e lideranças políticos democráticos) teriam sido mais perspicazes no que diz respeito a manter a subsidiariedade da política e da moral ao direito e, por conseguinte, em fortalecer a integridade sistêmica e a autonomia, a separação e a diferenciação entre os poderes. Como não o fizeram, como toleramos por um largo tempo essa situação, estamos enfrentando esse processo mais uma vez avassalador e aparentemente normalizado, naturalizado e tolerado de modo amplo que, levado a efeito pelo bolsonarismo, intenta consolidar essa subversão do sistema público de direito e essa destruição seja da co-originariedade de direitos humanos, pluralismo e direito, seja da subsidiariedade e da consequencialidade da política e da moral ao direito. Ora, na medida em que não reconstruirmos essa base fundacional, constitutiva e dinamizadora da democracia pluralista e universalista constituída como um sistema público de direito, continuaremos sob a ameaça da regressão totalizante do, pelo e como fascismo. E a retomada dessa relação entre direitos humanos, pluralismo e direito, dessa primariedade ontogenética do direito em relação à política e à moral e dessa subsidiariedade da política e da moral ao direito já não é uma meta apenas das instituições públicas de um modo geral e do judiciário em particular, mas também de todos os partidos, lideranças, movimentos e sujeitos antifascistas existentes em nossa democracia. E ela concerne a todos nós, impele a todos nós, conclama a todos nós.
Referências
CATROGA, Fernando. Entre deuses e césares: secularização, laicidade e religião civil – uma perspectiva histórica. Coimbra: Edições Almedina, 2006.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Consta Editora, 1978.
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da UFBA, 2008.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Global, 2008.
FORST, Rainer. Contextos da justiça: filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo. São Paulo: Boitempo, 2010.
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo (Vo. I): racionalidade da ação e racionalização social. São Paulo: Martins Fontes, 2012a.
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo (Vol. II): sobre a crítica da razão funcionalista. São Paulo: Martins Fontes, 2012b.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. I). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003a.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade (Vol. II). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003b.
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Loyola, 2002a.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo: Martins Fontes, 2002b.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.
HONNETH, Axel. Sofrimento de indeterminação: uma reatualização da “filosofia do direito” de Hegel. São Paulo: Editora Esfera Pública, 2007a.
HONNETH, Axel. Reificación: un estudio en la teoría del reconocimiento. Buenos Aires: Katz, 2007b.
HUNT, Lynn. A invenção dos direitos humanos: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
KRENAK, Ailton. Encontros. Organização de Sergio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2015.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014a.
MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Lisboa, Edições Mulemba, 2014b.
MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
MUNDURUKU, Daniel. Daniel Munduruku. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2018 (Coleção Tembetá).
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016.
RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000a.
RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Ática, 2000b.
RAWLS, John. Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2000c.
RAWLS, John. Justiça e democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2012.
WEBER, Max. Ensayos sobre sociología de la religión (T. I). Madrid: Taurus, 1984.
WERÁ, Kaká. Kaká Werá. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2017 (Coleção Tembetá).
Notas
Autor notes