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Notas preliminares sobre o conceito de justiça no Livro I da República de Platão

Preliminary notes on the concept of justice in Book I of the Plato's Republic

Fernando Dala Santa 1
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina, Brasil

Notas preliminares sobre o conceito de justiça no Livro I da República de Platão

Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 1, pp. 433-445, 2021

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 06 Novembro 2020

Aprovação: 17 Janeiro 2021

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a discussão sobre a justiça no Livro I da Repúblicade Platão. A princípio, cabe observar que o modo como o Livro I é construído o torna muito próximo aos diálogos platônicos da juventude, permanecendo a controvérsia em relação à sua redação enquanto texto independente ou prefácio deliberadamente elaborado. No Livro I Platão mapeia as acepções correntes de justiça e as desconstrói em um decurso intelectual que responde às noções de moralidade tradicionais e à já degenerada perspectiva política dos sofistas. Com isso, sinaliza a necessidade de transcender os domínios da mera opinião, em nome de um fundamento superior para a justiça, universalizável e de chancela racional. O processo de depuração conceitual e delimitação contextual perpetrado no primeiro Livro auxilia no entendimento das complexas reflexões éticas, metafísicas e político-educacionais da República, razão que nos leva a inferir o caráter essencialmente propedêutico com que o Livro I foi elaborado.

Palavras-chave: Justiça, Livro I, Platão, República, Trasímaco.

Abstract: This article aims to analyze the discussion of justice in Book I of Plato's Republic. At first, it should be noted that the way Book I is built makes it very close to the Platonic dialogues of the youth, the controversy remaining in relation to its writing as an independent text or preface deliberately elaborated. In Book I Plato maps the common meanings of justice and deconstructs them in an intellectual path that responds to the traditional notions of morality and to the already degenerated political perspective of the sophists. With this, it signals the need to transcend the domains of mere opinion, in the name of a superior foundation for justice, universal and with a rational seal. The process of conceptual purification and contextual delimitation perpetrated in the first Book helps to understand the complex ethical, metaphysical and political-educational reflections of the Republic, reason that leads us to infer the essentially propaedeutic character with which Book I it was elaborated.

Keywords: Justice, Book I, Plato, Republic, Thrasymachus.

Considerações iniciais

Platão define o objetivo central da República logo no início do diálogo, cuja discussão se propõe a investigar a justiça, embora a questão se amplie sobremaneira no decorrer do texto, abarcando diversos outros temas. No entanto, o modo como a questão é apresentada e inicialmente se desenvolve guarda evidentes similitudes com as obras do período juvenil. Tais semelhanças se referem à linguagem empregada, vivacidade intelectual dos personagens e complexidade dos temas abordados, tanto que sobrevive o debate acerca da real configuração do Livro I, se um texto autônomo posteriormente anexado à República ou fragmento primitivo da obra lhe sendo indissociável.

Os objetivos dos diálogos platônicos da juventude, ditos “socráticos”, apontavam para a necessidade de apresentar princípios capazes de transcender o formalismo ético-religioso e o relativismo individualista que estavam na base da educação grega e definiam os parâmetros morais vigentes na sociedade. No entanto, os trabalhos juvenis de Platão ainda não demonstravam condições de instituir de modo claro quais seriam tais princípios. Somente o desenvolvimento da filosofia platônica, o seu amadurecimento intelectual mediante à inserção de novos conceitos e métodos de investigação, permitiu estabelecer as bases ontológicas e epistemológicas que legitimavam as concepções educacionais ético-políticas que os diálogos da primeira fase traziam de maneira pouco conclusiva. A possibilidade do Livro I caracterizar uma obra da juventude acaba por revelar o vínculo sistêmico entre os primeiros diálogos e as reflexões da República, e com isso demarca o ponto de equilíbrio entre as investigações éticas herdadas de Sócrates e as novas preocupações de Platão.

No presente artigo empreendemos um estudo preliminar acerca do Livro I na República, sua estrutura, personagens e de modo especial as primeiras noções de justiça presentes no diálogo, expressadas por Céfalo, Polemarco e pelo sofista Trasímaco. O Livro I possui a inequívoca função de apresentar as dificuldades inerentes à investigação acerca da justiça, sinalizando o caminho intelectual que ela invariavelmente teria que percorrer, isto é, demonstra o quão distante a essência da justiça se encontrava das concepções amparadas na doxa ou na prática persuasiva da sofística. Sócrates silencia os interlocutores em um contínuo de elevação conceitual, que responde sincronicamente ao descenso moral desde uma visão prosaica e ingênua até a redução da justiça à mera vantagem de quem governa. Não se trata de mera esgrima dialética, senão do genuíno anseio por encontrar a verdadeira justiça.

Embora tenha alcançado purificar o conceito, afastando-o de ideias irrefletidas e concepções subjetivas, a discussão levada a cabo no Livro I não pôde determinar a essência justiça. Esse fato tornava necessária a adoção de um novo rumo nas discussões, com o intuito de demonstrar que a justiça era preferível em si mesma. A única maneira de vencer a aporia gerada a partir da destituição das concepções correntes de justiça seria por meio do estabelecimento de bases sólidas sobre as quais a discussão poderia se amparar, bases essas que o método socrático, por si só, não poderia fornecer. O Livro I traz também, mesmo que de maneira ainda superficial, um elemento de essencial importância para a ideia de justiça que a República se propõe a definir: a concepção de justiça como uma virtude da alma, no Livro IV alicerçada na ideia da tripartição e na necessária harmonia entre os elementos que a constituem.

As especificidades do Livro I e a sua aparente desconexão com restante da República

O Livro I da República possui algumas características que indicariam uma redação anterior ao restante da obra, tipificando um diálogo autônomo, com o presumível título de Trasímaco, por ser este sofista o interlocutor principal de Sócrates no decorrer desse intervalo do texto. Leitura que estabelece um paralelo com os outros grandes sofistas apresentados nas obras de Platão, a saber, Protágoras, Górgias e Hípias. Tais peculiaridades, doutrinais e estilísticas, sugerem que Platão teria redigido o Livro I na juventude, expandindo-o na maturidade até dar forma à República como a conhecemos2., ou adaptando-o para lhe servir de preâmbulo, embora muitos autores, dentre os quais Guthrie (1998), Kahn (1993) e Pappas (1995), considerem esse critério carente de sustentação textual ou histórica. No geral, os argumentos que servem de sustentáculo para a hipótese da redação prévia são: 1) evidências estilométricas, que dão conta da significativa aproximação entre a linguagem do Livro I e a dos diálogos socráticos; 2) semelhanças em relação aos diálogos da primeira fase no que diz respeito à forma (Laques, Carmides . Eutífron) e conteúdo (sobretudo o Górgias).

Para a questão estilométrica, sem adentarmos nos meandros desta complexa discussão filológica, optamos por seguir a leitura de Kahn (1993), para afirmar que se a estilometria infere o Livro I como anterior aos demais Livros da República, não pode garantir em que época foi escrito, isto é, se é contemporâneo aos diálogos de definição ou às primeiras obras do período médio. Por esta razão, o Livro I, em que pese as inegáveis semelhanças linguísticas com os diálogos juvenis, ao apresentar mais características tardias do que qualquer texto anterior se coloca em um espaço fronteiriço entre as obras da juventude e as da maturidade (KANH, 1993, p. 133-134), justamente o lugar que se esperaria de um prelúdio consciente e deliberado à República.

Já no que se refere às questões de ordem conteúdo-metodológica temos em evidência o caráter marcadamente aporético do Livro I. A inconclusão observável ao final das deliberações perpetradas no Livro I o torna muito semelhante a alguns dos diálogos socráticos, nos quais Platão mantém um esquema habitual, partindo da definição de uma virtude, modificada no decorrer das discussões mediante à demonstração da sua insuficiência, mas sem qualquer vislumbre de respostas definitivas. Outro ponto a ser considerado está na reação dos interlocutores frente à argumentação socrática. Se nos diálogos posteriores, ou mesmo nos Livros seguintes da República, Sócrates expõe didaticamente suas teorias a comedidos e compenetrados ouvintes, cada vez mais presos a formalidades dramáticas, no Livro I os personagens são intelectualmente ativos e historicamente engajados, “de tal modo que as convicções teóricas se lhes desprendem como emanações da personalidade e das suas circunstâncias” (PAPPAS, 1995, p. 42). A respeito das mudanças percebidas na transição do Livro I para o Livro II da República, evidenciadas pelo abandono das similitudes com os diálogos da primeira fase, Schleiermacher (1836, p. 356) pondera que Sócrates não é mais o questionador ignorante que investiga apenas por desígnio divino, senão alguém que já possui, de fato, algo a transmitir, levando enquanto progride os conhecimentos já adquiridos numa estreita conexão.

Contrária à hipótese da redação independente se encontra a linha interpretativa que considera o Livro I o prefácio criteriosamente estabelecido para a República, ideia ratificada em uma passagem contida no início do Livro II, momento no qual o Sócrates platônico deixa transparecer tal significação ao se referir à discussão precedente enquanto “prelúdio” (Rep. 357a). Ademais, o Livro I apresenta um final sobremaneira negativo se tomado em relação aos diálogos da primeira fase, que embora se encerrassem invariavelmente em aporia, permitiam o vislumbre de possíveis desfechos em um momento futuro. Isso implica afirmar que a resolução das questões levantadas no Livro I não estava destinada a um diálogo posterior, mas se daria no desenrolar da discussão presente na própria República. Corrobora com esta interpretação as várias menções e antecipações feitas por Sócrates a elementos abordados no decorrer da obra3.. Essa função proléptica4. do Livro I é destaca por Kahn (1993) e Lisi (2017): os conceitos ali apontados estarão, em maior ou menor grau, presentes em toda a estruturação argumentativa da República e lhes são imprescindíveis, por vezes funcionando como chaves de leitura.

Conforme aponta Paviani (2003, p. 25), o objetivo do Livro I não é tirar conclusões definitivas, mas introduzir os diversos aspectos que envolvem o problema da justiça, com o intuito de pavimentar o caminho para um modelo de investigação já amadurecido. No Livro I Platão retoma e aprofunda concepções advindas das investigações anteriores e antecipa e sinaliza diretrizes desenvolvidas posteriormente, razão pela qual esse texto, se autônomo ou não, mais do que um ponto de ruptura, ressalta o vínculo estrutural entre as diferentes temáticas e abordagens que compõem a filosofia platônica. A República, em certo sentido, define o momento a partir do qual Platão equaciona e harmoniza suas próprias concepções filosóficas e métodos de investigação com toda a herança da filosofia socrática. Se o tema da obra e a maneira como ele é introduzido e desenvolvido de início são inegavelmente socráticos, as doutrinas e discussões subsequentes são eminentemente platônicas, sem que haja qualquer espécie de descompasso latente.

O Livro I é o resgate do modelo argumentativo socrático, a consolidação de um processo dialético de acercamento da verdade, possível apenas com a desconstrução do falso conhecimento e a consequente abertura para uma delimitação intelectual intersubjetiva. A maior fluência dialógica do Livro I permite resgatar sentidos latentes, que dão ritmo e significação distintos ao restante da obra. Se adotarmos tal concepção, seremos capazes de perceber na República a perfeita comunhão entre os temas de ordem moral traduzidos na busca pela definição de uma virtude (o que é a justiça?) e as implicações metafísicas, epistemológicas, políticas, religiosas, psicológicas e educacionais inerentes a essa reflexão. Portanto, uma interlocução que conjuga o tema do Górgias com a estrutura argumentativa dos diálogos de definição configura, em definitivo, uma introdução perfeita à República desde um ponto de vista dramático e filosófico (KAHN, 1993, p. 40).

Ao refutar as opiniões correntes no que tange à justiça, Platão evita que o diálogo se torne uma fuga da realidade e o projeto que o acompanha mera elucubração utópica, posto que inicia as deliberações em um ambiente sócio-histórico concreto e claramente delimitado. A importância da leitura do Livro I está justamente na ideia de que os argumentos filosóficos surgem como desdobramentos de circunstâncias concretas, para demonstrar os limites do senso comum (ANNAS, 1981, p. 17-18). O trabalho de depuração conceitual empreendido no Livro I carrega a gênese de todas as determinações positivas que aparecem na República e ao mesmo tempo reforça o nexo estrutural que aproxima as distintas fases do pensamento platônico em torno de interesses de ordem político-educacional.

As primeiras definições de justiça: Céfalo e Polemarco

A República tem início com uma narrativa de Sócrates acerca de uma visita que fizera ao Pireu, a antiga capital comercial do Peloponeso, em companhia de Gláucon, com o objetivo de render homenagens à deusa cuja festa se realizava pela primeira vez5. (Rep. 327a). Terminados os festejos, Sócrates é convidado à casa de Céfalo, rico meteco6. que possuía uma fábrica de escudos em Atenas, na qual se encontravam Polemarco (filho do anfitrião) e seus irmãos Lisias e Eutidemo, o famoso sofista Trasímaco, além de Carmantidas, Clitofonte, Nicerato e Adimanto.

O tema da justiça, mote declarado da Republica7., aparece no diálogo por meio de Céfalo, o primeiro a fazer referência ao “justo” e ao “injusto”. Quando inquirido por Sócrates acerca daquilo que agora, já na velhice, considerava o maior benefício proporcionado pela sua fortuna, Céfalo proclama que as riquezas são úteis ao homem sensato na medida em que permitem não cometer nenhuma injustiça, “não ludibriar ninguém nem mentir, mesmo involuntariamente, nem ficar a dever, sejam sacrifícios aos deuses, seja dinheiro a um homem” (Rep. 331a-b). Esta é a primeira definição de justiça esboçada na República, embora não deliberadamente formulada e ainda restrita à identificação de algumas ações tidas por justas: dizer a verdade e restituir aquilo que se tomou. Sócrates sem dificuldades expõe a fragilidade de tal acepção, demonstrando que nem sempre é algo justo restituir o que se deve. O contraexemplo socrático, simples e sem grandes implicações filosóficas (GUTHRIE, 1998, p. 421, nota 13), supõe o caso em que se recebe as armas de um amigo em perfeito juízo e este, posteriormente, tomado de loucura as requisita (Rep. 331c). Segundo a definição que deriva das palavras de Céfalo, a devolução das armas é uma obrigação que a justiça impõe enquanto parâmetro externo de conduta, mas de modo algum configura uma ação correta.

Céfalo tipifica o indivíduo arraigado a “uma filosofia natural de vida, que o torna superior àqueles que, por terem seguido descaminhos, não suportam, na velhice, os males do corpo e vivem a culpar os demais pelos seus sofrimentos” (NOGUEIRA 2000, p. 06). Embora trate Céfalo com respeito e deferência, Platão empreende através da sua figura uma crítica à cultura tradicional e à complacência moral que a acompanha (ANNAS, 1981). O ideal de uma vida justa seguida pela serenidade da consciência tranquila na velhice a princípio nos parece positivo, todavia, expressa uma noção de justiça como último consolo do homem cuja morte se avizinha. Céfalo declara ser a busca pela justiça algo não pertencente aos que se encontram no vigor da juventude: “tu bens sabes, ó Sócrates, que depois que uma pessoa se aproxima daquela fase em que pensa que vai morrer, lhe sobrevém o temor e preocupação por questões que antes não lhe vinham à mente” (Rep. 330d). As reais preocupações de Céfalo se referiam à possibilidade de ter que expiar no Hades as injustiças em vida cometidas, em consonância ao que aparece no Górgias (522e): “ninguém teme a morte em si mesma, exceto quem for de todo covarde e irracional, o que se teme é cometer injustiças. Com efeito, a alma chegar ao Hades carregada de iniquidades é o mais grave de todos os males”.

Tudo o que restava ao velho meteco era contemplar o passado e constatar que não cometera injustiças, quitando todas as dívidas, tanto as circunscritas ao âmbito mundano quanto as que se referem às obrigações para com o divino. Embora demonstrasse sentir-se genuinamente feliz em sua ingênua serenidade, Céfalo não teria condições de orientar seus próprios filhos, tampouco possuía algo a transmitir, “a não ser observações tranquilizantes, considerações moralizantes de segunda mão e aquele gênero de curiosidades que parecem ser feitas para serem sucessivamente repetidas” (PAPPAS, 1995, p. 46). O que transparece da conduta de Céfalo é uma honestidade pragmática, atrelada às noções da cultura tradicional, cuja raiz não faz menção à justiça em si mesma, tampouco está preocupado com aspectos de ordem política em sentido mais amplo, mas se apega aos atos que não o fariam injusto aos olhos de homens e deuses, afastando pela observância aos preceitos cíveis e religiosos a animosidade humana e os temores de um possível juízo divino.

A crítica platônica à moral tradicional pode ser melhor observada se contrapormos as convicções de Céfalo a algumas passagens do Eutífron (ANNAS, 1981, p. 21-22; TRABATTONI, 2010, p. 40), diálogo no qual Platão se propõe a analisar a piedade8., uma das partes da justiça. No início do referido diálogo Eutífron se dirige ao tribunal com o intuito de apresentar acusação contra o próprio pai, que mediante a maus tratos fizera perecer um de seus funcionários, por sua vez acusado de matar um escravo. A iniciativa de levar ao tribunal uma denúncia contra seu progenitor sugere que Eutífron prezasse a piedade e, por conseguinte, a justiça, de tal modo que a despeito dos laços que o uniam ao acusado não se furtaria do dever de buscar punição a um criminoso. Contudo, não era propriamente a justiça que levava Eutífron a agir de tal maneira: acreditava que ao conviver com um assassino acabaria por se tornar igualmente impuro, devendo fazer piedoso a si mesmo e ao criminoso apresentando-o à justiça (Eutíf. 4c).

Para Eutífron, cujo senso moral estava ancorado em princípios ético-religiosos tradicionais, era irrelevante uma reflexão acerca do caráter da ação (se boa ou má), levando em conta somente o aspecto exterior e mecânico do contato com uma pessoa considerada impura. Ademais, sustentava o pretenso conhecimento da exata distinção entre o que agrada e o que desagrada aos deuses: ser piedoso é perseguir a quem pratica injustiças, “comete delito e peca, seja por homicídio, seja por saqueio de templos ou por outra coisa do gênero” (Eutíf. 5d). A concepção de piedade expressa por Eutífron “é perfeita e absolutamente vazia e não tem nenhum conteúdo positivo. Isto pela razão muito simples e muito grave de que ele partilha com o vulgo a ideia inconsciente que este tem dos deuses” (KOYRÉ, 1966, p. 105). Mesmo moralmente correta, desde o ponto de vista da atitude excessivamente cruel assumida pelo pai em relação ao funcionário, a iniciativa de Eutífron estava adscrita à deletéria pretensão de conhecer a vontade divina, em nome da qual ainda se cometem alguns dos mais odiosos crimes. Na condição de legítimo representante da cultura tradicional, Eutífron “crê ser sábio sem o sê-lo, porque baseava seu comportamento não em um verdadeiro conhecimento daquilo que é o bem, mas em um vazio formalismo privado de uma real relevância ética” (TRABATTONI, 2010, p. 40). A similitude manifesta entre Céfalo e Eutífron está no fato de manterem formas de pensamento arcaicas, privilegiando aspectos exteriores de orientação para as virtudes as quais pretendiam ser possuidores (justiça e piedade respectivamente). A atitude de ambos os personagens, embora não fosse em si mesma portadora de maldade, retrata o alvo das críticas platônicas ao formalismo vazio da cultura pré-filosófica, cuja aceitação se daria pela ação inconstante da doxa.

Era claramente infrutífero contrapor concepções filosóficas mais profundas à definição de justiça precariamente esboçada por Céfalo, por esse motivo Platão respeitosamente o afasta das discussões. Nesse ponto do diálogo o ancião sai de cena, substituído por Polemarco, seu primogênito, sob o pretexto de tratar de um sacrifício (Rep. 331d). A partir de então o diálogo enseja dar início à discussão propriamente filosófica acerca da justiça, posto que Polemarco, conforme descrito no Fedro (257b), era um amante da filosofia. Polemarco retoma e aprofunda a argumentação do pai, invocando como suporte as palavras do poeta Simónides, as quais (analogamente ao que Céfalo proferira a pouco) afirmam ser justo dar a cada um o que lhe corresponde; acrescentando que se deve fazer bem aos amigos e mal aos inimigos (Rep. 331d-332a). Mediante à argumentação socrática, que demonstra ser tal ponto de vista ainda insuficiente, em que pese a dificuldade de diferenciar verdadeiramente amigos de inimigos, Polemarco esforça-se no sentido de precisar sua afirmação, da qual se extrai a terceira definição de justiça expressa na República: “é justo fazer o bem a um amigo bom e mal a um inimigo mau” (Rep. 335a).

É notório o caráter puramente lexicográfico da ideia de justiça emanada do raciocínio de Polemarco, que não define a justiça, senão nomeia determinada ação com o título de justa. Ora, o objetivo buscado por Sócrates era muito diferente do que a discussão havia apontado, “a diferença entre definição filosófica e definição lexográfica é claríssima, no caso dos termos de ética passíveis de discussão” (PAPPAS, 1995, p. 46). A argumentação de Polemarco se mostrava quase tão ingênua e arraigada a concepções morais arcaicas quanto a de Céfalo. Pappas (1995, p. 52) observa que apesar da aparente sofisticação, Polemarco ainda reflete a cultura da qual seu pai fazia parte, herdando a tendência para aceitar de pronto as opiniões correntes. A noção genérica de justiça como reparação, ou de maneira mais precisa a ideia de que consistiria em beneficiar os amigos bons e prejudicar inimigos maus, indubitavelmente não agradava as pretensões filosóficas de Sócrates, pois ainda não tocava na questão do valor em si mesmo da justiça e, a exemplo de Céfalo e Eutífron, estava pautada em formulações de valor exterior e critérios subjetivos de análise. A pergunta pela essência da justiça não poderia ser reduzida à questão sobre que condutas seriam consideradas favoráveis, ou, no mínimo, dignas de elogio.

Na concepção grega era comum identificar o bom ao útil, portanto, agir bem era sempre algo vantajoso, revertendo-se invariavelmente em resultados benéficos: seria impensável atrelar uma ação boa a uma postura e especialmente a um resultado negativo. Com efeito, a justiça sendo algo bom, da maneira que Sócrates acreditava, não poderia de modo algum causar o mal. Enquanto “perfeição dos homens” (Rep. 335c), a justiça teria por finalidade intrínseca tornar melhores os que a ela são submetidos, e não fazer deles piores; do mesmo modo que a perfeição referente a qualquer arte não pode criar um mau artífice. Assim, a formulação de Polemarco se mostrava um contrassenso, por trazer implícita a absurda possibilidade de que a justiça, pela sua própria ação, viesse a promover a injustiça: ao prejudicar os inimigos se estaria, antes de tudo, tornando-os tanto piores. Polemarco acaba por sucumbir ante aos argumentos de Sócrates, que arremata a discussão ao afirmar que “fazer mal não é ação do homem justo, quer seja a um amigo, quer a qualquer outra pessoa, mas, pelo contrário, é ação de um homem injusto” (Rep. 335d).

As formulações de justiça expostas por Trasímaco: a conveniência do mais forte

Sócrates e Polemarco haviam chegado a um acordo a respeito do que a justiça não era, embora ainda estivessem distantes de uma descrição satisfatória: “mas, uma vez que parece que a justiça e o que é justo não eram nada disto, que outra coisa poderá dizer-se que são?” (Rep. 336a). Nesse momento irrompe intempestiva a voz do sofista Trasímaco9., exigindo de Sócrates o abandono daquele frívolo e inútil diálogo e a definição clara e concisa daquilo que entendia por justiça, acreditando ser mais fácil perguntar do que oferecer respostas (Rep. 336c-d). Coerente com seu método de investigação, Sócrates reitera a ignorância que o impelia a questionar sem propor soluções cabais, ironizando a pretensa sabedoria do sofista, por ser evidente que Trasímaco “desejava falar para se cobrir de glória, pois supunha que daria uma resposta admirável” (Rep. 337e-338a).

A presença de Trasímaco nas discussões nos remete ao ambiente intelectual observado em alguns dos primeiros diálogos platônicos (especialmente o Protágoras e o Górgias), nos quais o interlocutor não é um discípulo amigável, mas um sofista maduro e temível, disposto a apresentar argumentos contrários à justiça com força apaixonada (GUTHRIE, 1998, p. 423). Trasímaco, após certa relutância, aceita expor as suas próprias definições de justiça, desde que lhe fosse garantida determinada soma em dinheiro10: “afirmo que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte” (Rep. 338c). A concepção de justiça como reflexo do interesse do mais forte transfere em definitivo a discussão para o campo político. Para Trasímaco cada governo estabelece as leis segundo a sua conveniência, e,

uma vez promulgadas essas leis, fazem saber que é justo para os governos aquilo que lhes convém, e castigam os transgressores, a título de que violaram a lei e cometeram injustiça. Aqui tens, meu excelente amigo, aquilo que eu quero dizer, ao afirmar que há um só modelo de justiça em todos os Estados – o que convém aos poderes constituídos. Ora estes é que detêm a força. De onde resulta, para quem pensar corretamente, que a justiça é a mesma em toda a parte: a conveniência do mais forte (Rep. 338e-339a).

Diferente da definição de Polemarco, que refletia a tentativa de sustentar um nexo necessário entre a ação justa e a justiça em si mesma, como se o adjetivo “justo” correspondesse a uma propriedade real dos objetos; Trasímaco objetiva a descoberta da origem da justiça na estrutura de poder da cidade: seja qual for o grupo que assuma o governo, não renunciará ao privilégio de usar a lei em benefício próprio. “Daí que ‘justiça’ não corresponda a nenhuma real propriedade, de coisa ou pessoa, mas a uma atraente palavra com que protegemos o exercício descarado do poder” (PAPPAS, 1995, p. 56). O Estado caracterizaria uma opressão organizada, que serve ao opressor e se vale da violência para sobreviver. A lei e, por conseguinte, a moral e a justiça, seriam meramente expressões convencionais das relações de dominação no âmago da cidade (BURNET, 1964, p. 98; KOYRÉ, 1966, p. 114). Na concepção de Trasímaco, se o ensejo demandar, os fortes podem transgredir qualquer regramento moral, porquanto o poder se autofundamenta, revestido de justiça convencional. Com isso, o sofista incorre em um perigoso positivismo jurídico, ao inferir a paridade entre justiça e legalidade e a elevação do poder ao status de parâmetro último da justiça, visão política de larga aceitação à qual Platão contrapõe um ideal superior (ADAM, 1963, p. 86).

Contudo, a ideia da justiça como vantagem dos soberanos se mostra problemática pelo fato de estes eventualmente se equivocarem a respeito da própria vantagem, promulgando leis que lhe são prejudiciais. E sendo justo que os súditos obedeçam às leis, é forçoso que por vezes atuem em desacordo à conveniência de quem comanda (Rep. 339d). Para fugir da aporia exposta pela viva possibilidade de governantes serem prejudicados pela observância das leis de sua própria autoria, Trasímaco recorre à similaridade entre a governança da cidade e uma tékhne, posteriormente retrabalhada por Sócrates no sentido de ser a política a técnica de bem gerir a pólis. Assim, de modo semelhante ao médico que se equivoca em seu diagnóstico e no momento do equívoco não é em verdade um médico; também o governante ao estabelecer leis que lhe sejam desfavoráveis não é, enquanto erra, verdadeiramente um governante no sentido estrito do termo.

Efetivamente, só quando o seu saber o abandona é que quem erra se engana e nisso não é um artífice. Por consequência, artífice, sábio ou governante algum se engana, enquanto estiver nessa função, mas toda a gente dirá que o médico errou, ou que o governante errou. Tal é a acepção em que deves tomar a minha resposta de há pouco. Precisando os fatos o mais possível: o governante, na medida em que está no governo, não se engana, promulga a lei que é melhor para ele, e é essa que deve ser cumprida pelos súditos. De maneira como declarei de início, afirmo que a justiça consiste em fazer o que é conveniente para o mais poderoso (Rep. 340e-341a).

Trasímaco busca esquivar-se da dificuldade expressa pelos virtuais erros cometidos pelos governantes, mas com isso permite que Sócrates se municie para uma contraofensiva: “ao postular uma forma idealizada de governante, reintroduziu a analogia da profissão e, com ela, as mesmas questões que Polemarco fora incapaz de responder. Em particular, se a justiça e a governança política são profissões, quais são os respectivos objetivos e metas?” (PAPPAS, 1995, p. 58). Tomando por paradigma o próprio exemplo utilizado por Trasímaco, Sócrates demonstra que o objetivo de uma arte lhe é sempre exterior, ou seja, procura o bem do seu objeto e não de quem a pratica. Se qualquer arte se presta a beneficiar não o próprio artífice, o mais forte no sentido expresso por Trasímaco, senão os que se submetem ou recorrem a ela, quais sejam, os mais fracos; “nenhum chefe, em qualquer lugar de comando, na medida em que é chefe, examina ou prescreve o que é vantajoso a ele mesmo, mas o que é para seu subordinado, para o qual exerce a sua profissão” (Rep. 342e).

É evidente que a definição de justiça defendida pelo sofista havia se subvertido. Trasímaco se viu obrigado a ceder a uma das seguintes possibilidades: 1) os governantes eram falíveis, podendo equivocar-se na redação de leis que nem sempre lhes seriam favoráveis; 2) por serem sábios, enquanto possuidores da arte de governar, os soberanos não errariam ao beneficiar os súditos e não propriamente a si mesmos. Todavia, como não poderia ser diferente da imagem de um sofista delineada por Platão, Trasímaco lança mão de um subterfúgio, ao declarar que os governantes eram semelhantes a pastores, que engordam suas ovelhas com vistas não ao bem dos animas, e sim ao próprio lucro (Rep. 343a-b). Transparece aqui todo o imoralismo da compreensão sofística da política e, por conseguinte, da justiça, por meio da ideia de “serem a justiça e o justo um bem alheio, que na realidade consiste na vantagem do mais forte e de quem governa, e que é próprio de quem obedece e serve ter prejuízo; enquanto a injustiça é o contrário, quem manda nos verdadeiramente ingênuos e justos” (Rep. 343c). Sendo a justiça um bem alheio, o súdito que respeita as leis do governante é justo, pois beneficia o mais forte, enquanto aquele que transgride as leis é injusto para com o governante, mas obtém para si um benefício. Em outras palavras, a injustiça é benéfica para quem a pratica, enquanto a justiça beneficia unicamente aos governantes, em detrimento do homem justo.

Conforme a máxima de Trasímaco, agora convertida em expressão do ponto de vista convencionalmente aceito, a injustiça seria sempre mais vantajosa que a justiça. E se a violência organizada é a própria natureza do Estado, está perfeitamente claro que a tirania descreve a manifestação extrema da injustiça, o modelo político que proporciona a maior felicidade ao homem injusto e o maior dos prejuízos aos que lhe forem vítimas. Assim, se um homem comum é apanhado a roubar ou fraudar, a lei acometerá sobre ele: será castigado e receberá as maiores injúrias, sofrerá a acusação de sacrílego, arrombador, traficante de escravos, espoliador. Mas se, ao contrário, um homem em posição de mando, além de se apropriar dos bens dos cidadãos, fizer deles escravos e os tornar seus servos, será qualificado de feliz e bem-aventurado por todos, pois “aqueles que criticam a injustiça não a criticam por recearem praticá-la, mas por temerem sofrê-la” (Rep. 344a-c). Em suma, poderíamos afirmar que para Trasímaco “a justiça é uma virtude apenas para covardes e ingênuos” (PAVIANI, 2003, p. 22), impedidos de angariar os benefícios que a injustiça potencialmente oferece.

Sócrates intenta sustentar sua analogia ao tornar explícita a diferença entre a finalidade intrínseca de uma arte e o proveito que dela obtém o artífice. Ainda que um pastor cuide do rebanho tendo a perspectiva do lucro ao vendê-lo, a meta da sua arte não pode ser outra que não o bem-estar das ovelhas. Se ao final o pastor decidir tosquiá-las ou sacrificá-las, tal opção não interfere no aspecto essencial da sua arte, depende de circunstâncias que lhes são externas. Ligada a cada profissão está a “arte dos lucros” (Rep. 346a-d), razão pela qual ninguém pretende “espontaneamente governar e tratar e curar os males alheios, mas antes exige um salário, porquanto aquele que pretende exercer bem a sua arte jamais faz ou prescreve, no exercício da sua especialidade, o que é melhor para si mesmo, mas para o cliente” (Rep. 346e-347a). Mesmo à governança corresponde uma retribuição. Quando os cidadãos mais habilitados se prestam a assumir o poder é por recearem a má gerência do Estado e não em nome do interesse pessoal, dado que “o maior dos castigos é ser governado por quem é pior do que nós, se não quisermos governar nós mesmos. [...] De tal maneira que todo aquele que fosse sensato preferiria receber benefícios de outrem a ter o trabalho de ajudar ele os outros” (Rep. 347c-d). Aqui Platão antecipa a imperiosa harmonização de interesses individuais e necessidades coletivas, cuja configuração final se expressa na figura do governante perfeito, na união entre poder político e conhecimento filosófico.

Contudo, Sócrates muda o rumo da discussão, atendo-se a um aspecto específico da explanação do sofista, que a seu ver clamava por urgente solução: “portanto, de modo algum concordo com Trasímaco, em que a justiça seja a conveniência do mais forte. Mas esse ponto havemos de o examinar de novo. Parece-me valer muito mais a afirmação que agora fez Trasímaco, ao declarar que é melhor a vida do injusto do que do justo” (Rep. 447e). A defesa socrática da justiça como mais vantajosa se ampara em três aspectos basilares: o primeiro concebe a justiça como conhecimento. Sócrates busca partir de um ponto comum, de um aspecto da injustiça aceito por ambos os debatedores. Tal característica é encontrada no conceito de pleonexia, que define o hábito ou o desejo de se apoderar de mais do que é direito (PAPPAS, 1995, p. 60). A justiça, ao contrário, tende a manter-se nos limites do lhe compete. Destarte, “o justo não quer exceder seu semelhantes, mas o seu oposto; ao passo que o injusto quer exceder tanto o seu semelhante quanto o seu oposto” (Rep. 349c). Sócrates se volta novamente à analogia entre a justiça e as profissões, demonstrando que somente um ignorante em uma arte pretende sobrepujar igualmente sábios e inexperientes; ao passo que o sábio, pela ação da sua sabedoria nos termos de uma arte, excede apenas os ignorantes, e nunca outros sábios. Por consequência, seria forçoso que a justiça fosse compreendida como uma virtude e a injustiça como um vício: “logo, o justo revela-se-nos como bom e sábio, e o injusto como ignorante e mau” (Rep. 349e-350d).

O segundo ponto se refere à justiça enquanto cooperação. Toda atividade que pressupõe a ação conjunta exige certa atitude cooperativa, sendo a justiça entre as partes condição imprescindível para a execução de qualquer empresa, seja em “um Estado ou um exército, piratas, ladrões ou qualquer outra classe” (Rep. 351c). No âmbito individual, a injustiça fará o homem incapaz de atuar, por promover a revolta e a discórdia interna; em seguida tornando-o inimigo de si mesmo e dos justos (Rep. 352a). Seguindo o raciocínio de Sócrates, a justiça seria promotora da harmonia, enquanto a injustiça não teria outro resultado senão desavenças e inimizades (Rep. 352b).

A terceira e mais profundo argumento a favor da justiça concebe a vida do homem justo supera em felicidade a do injusto. Sócrates defende que cada ser possui uma função que lhe é própria, mostrando-se melhor na sua execução do que qualquer outro, graças à posse de certa virtude (arete). A alma humana não seria uma exceção:

- A alma tem uma função, que não pode ser desempenhada por toda e qualquer outra coisa que exista, que é a seguinte: superintender, governar deliberar e todos os demais atos da mesma espécie. Será justo atribuir essas funções a qualquer outra coisa que não seja a alma, ou deveremos dizer que são específicas dela?

- À alma, e nenhuma outra coisa.

- E agora quanto à vida? Não diremos que é uma função da alma?

- Acima de tudo – respondeu.

- Logo, diremos também que existe uma virtude da Alma?

- Di-lo-emos (Rep. 353d-e).

Ora, se a função da alma é viver, a arete que lhe é inerente, e que a faria se desenvolver da melhor maneira possível, seria a justiça. “Logo, é forçoso que quem tem uma alma má governe e dirija mal, e, quem tem uma boa faça tudo isso bem” (Rep. 533e). Em suma, a justiça tipifica uma virtude da alma enquanto a injustiça constitui um vício, “logo, o homem justo é feliz, e o injusto desgraçado, [...] então jamais a injustiça será mais vantajosa que a justiça” (Rep. 354a). Se Trasímaco é incapaz de redarguir às exposições de Sócrates, este, por sua vez, não alcança uma conclusão adequada (ADAM, 1963, p. 87). O sofista, enfim, se dá por vencido, abandonando o debate com um pejorativo encolher de ombros (GUTHRIE, 1998, p. 425), enquanto Sócrates lamenta que a discussão tenha se distanciado da busca pela essência da justiça, terminando negativamente sem que se tivesse qualquer luz acerca da questão inicial.

Os argumentos finais de Sócrates no Livro I antecipam elementos concernentes às discussões futuras do diálogo e são demasiado profundos para as premissas até então sustentadas. Em especial, poderíamos citar a introdução do conceito de justiça como uma virtude da alma, cuja importância na sustentação do discurso socrático não corresponde ao nível de definição que o conceito de alma possuía até o momento. Pappas (1995, p. 67) afirma que “o argumento final do Livro I não consegue atingir um fundamento firme; não porque a sua abordagem seja errada, mas porque o termo axial que introduz – ‘alma’ – surge no argumento sem definição nem explicação”. Nas palavras de Paviani (2012, p. 95), “o problema que surge é o de saber, por exemplo, se a justiça, como virtude da alma, é a mesma virtude das artes em geral ou não. Nesse sentido, é incoerente reduzir a alma ao simples viver no sentido biológico, devido, entre outros aspectos, à própria definição de justiça”. As aparentes lacunas expostas no final do Livro I evidenciam o caminho a ser percorrido no decurso da República. Os conceitos posteriormente discutidos sob a perspectiva política, metafísica e educacional se conectam às concepções do Livro I e complementam as reflexões que Sócrates platônico levanta ainda amparadas somente em arguta intuição.

Considerações finais

O Livro I carrega uma importância para a compreensão da República inversamente proporcional àquela atribuída pela tradição interpretativa. É neste espaço da obra que muitas questões se definem, ou ao menos tomam corpo. Não é somente o tema da justiça que aí aparece: toda a estrutura argumentativa da República, seu enfoque e objetivos teóricos, não estaria completa sem as reflexões do Livro I. A depuração do conceito de justiça, a definição daquilo que ela não é, prepara o terreno para a inserção de um modelo de investigação mais profundo e, por conseguinte, de respostas mais radicais no que se refere à essência da justiça e às implicações político-educacionais a ela vinculadas. Portanto, seja qual for a postura interpretativa adotada na leitura do Livro I, nos é evidente que o seu conteúdo carrega temas extremamente caros para os ideais de Platão.

Toda a deliberação a respeito do Livro I ser ou não “socrático” auxilia na compreensão da gênese temática do pensamento platônico, face ao dinamismo e inconclusão que o caracteriza. Por todas as similitudes com diálogos socráticos, o Livro I surge como o marco inicial da edificação racional de uma proposta de Estado perfeito, como se Platão tentasse representar nas páginas da República todas as fases do seu pensamento. A esse respeito é elucidativa a afirmação de Guthrie (1998, p. 422), que entende a construção da República como a tentativa empreendida por Platão de levar seus leitores ao clímax, através dos estágios da sua própria peregrinação filosófica. A conclusão negativa do Livro I parece apontar o esforço de Platão em transcender os limites aos quais a discussão sobre a justiça se encontrava circunscrita: critica a cultura tradicional e a influência dos poetas por meio das intervenções de Céfalo e Polemarco; para em seguida contrapor-se às concepções imorais da sofística na figura Trasímaco, cujo papel desempenhado na República claramente se refere a encarnar tudo aquilo que o diálogo pretende refutar. Assim, a proposta de reforma idealizada na República pretendia superar as deficiências da cultura tradicional, referentes à sua falta de justificação racional; e da sofística, falha no que tange aos aspectos morais, tencionando ver surgir um Estado justo, que conjugasse uma fundamentação filosófica da questão política.

É válido ressaltar que a concepção imoral de justiça idealizada por Trasímaco estava na base da educação oferecida pela facção degenerada dos sofistas políticos, de onde podemos perceber a gravidade das razões que levaram Platão a propor uma severa reforma educacional, de modo a promover a verdadeira justiça, alcançada somente quando a sabedoria se tornasse a única legitimadora do poder político. A paidéia filosófica de Platão, cujo esboço encontramos nos demais Livros da República, visaria a formação de cada indivíduo a partir das suas inclinações naturais, para a cumprir a função que melhor lhe coubesse, garantido a harmonia e a justiça na Cidade.

Referências

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TRABATTONI, Franco. Platão. Trad. Rineu Quinalia. São Paulo: Annablume, 2010.

Notas

2 É valido ressaltar que não partiu de Platão a divisão da República em dez Livros, mas dos mais tardios editores antigos, em uma distribuição amplamente arbitrária (PAPPAS, 1995, p. 41).
3 Para uma comparação pormenorizada das antecipações empreendidas no Livro I ver Kahn (1993, p. 136-140).
4 Referente à prolepse, recurso largamente utilizado na literatura grega que consiste em antecipar de modo intencional elementos a serem desenvolvidos nas partes subsequentes da obra. A prolepse “une a linearidade da progressão à circularidade da repetição” (LISI, 2017, p. 59).
5 A deusa em questão era Bêndis, deidade trácia a pouco tempo introduzida na cidade (ADAM, 1963, p. 01, p. 62), informação referendada pela alusão de Trasímaco ao “festival das Bendideidas” (Rep. 354a).
6 Estrangeiro com residência permanente em Atenas.
7 Cabe destacar que grande parte das edições modernas utiliza para a República o subtítulo “sobre a justiça”.
8 A significação de piedade expressa no Eutífron em nada se parece com aquilo que cotidianamente se depreende do vocábulo (compadecimento, compaixão, comiseração), mas se refere ao respeito e conhecimento acerca das questões religiosas. Assim, a indagação sobre o que é piedoso, poderia ser colocada como aquilo que agrada aos deuses.
9 Nascido na Calcedônia, colônia de Megara, Trasímaco era representante de um grupo de pensadores que ficou conhecido como sofistas políticos.
10 Platão mais uma vez destila suas críticas à prática sofística de ensinar somente mediante pagamento, presente em vários momentos da sua produção: Apologia (20a), Laques (186c), Sofista (231d-e), Hípias Maior (282b-e), Crátilo (384c e 391b-c) e Górgias (519c).

Autor notes

1 Doutor em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF), Passo Fundo – RS, Brasil. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), São Miguel do Oeste – SC, Brasil.
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