Resenhas
Religião e política na obra de Giorgio Agamben1
Recepção: 19 Agosto 2020
Aprovação: 06 Dezembro 2020
O ano de 2020 certamente foi um ano em que o nome “Giorgio Agamben”, para o bem ou para o mal, circulou pelo quatro cantos do globo. As fortes declarações do filósofo romano contra a medicalização da vida, com a qual uma ampla ala da esquerda parecia, na esteira de Foucault e outros pensadores críticos, concordar, assumiu, para muitos, tons demasiadamente irresponsáveis perante a crise sanitária. Fato é que a biopolítica e todas as suas variantes (tanato e sobretudo necropolíticas) ganharam um corpo sem precedente no debate filosófico contemporâneo, para além mesmo dos circuitos propriamente acadêmicos; e isso, claro, não sem deixar de trazer certas suspeitas sobre a pertinência dos diagnósticos biopolíticos. Apesar disso, o que é indiscutível frente à repercussão do posicionamento de Agamben sobre as medidas de isolamento social é que sua obra ocupa o posto de um clássico do pensamento contemporâneo. No Brasil não foi diferente. A centralidade das reflexões críticas de Agamben também pautaram muitos dos acalorados debates virtuais, tanto no que diz respeito à pandemia quanto à sua obra como um todo. Prova disso são as duas obras coletivas que vieram à público este ano, fazendo de Agamben um autor indispensável para pensarmos o nosso tempo.
A primeira dessas coletâneas foi fruto do seminário realizado em 2018 no Rio de Janeiro (PUC-Rio e PPGP-UFRJ) intitulada AGAMBiarra – Primeiro Seminário de Pesquisadores de Giorgio Agamben, contando inclusive com um texto do próprio Agamben; a segunda coletânea é fruto do seminário Religião e política na obra de Giorgio Agamben, que foi realizado na Puc-Campinas. As duas coletâneas são indispensáveis nas bibliotecas dos pesquisadores de Agamben. Mas é sobre esta última que pretendo aqui tratar.
Religião e política na obra de Giorgio Agamben se destaca pela qualidade dos textos que traz. O livro reflete certamente um amadurecimento da pesquisa-Agamben no Brasil e cada autor soube trazer algo que vale a pena ser comentado, razão pela qual optei, nas páginas que se seguem, por me endereçar a cada um dos textos em particular. Além desses excelentes textos comentando Agamben, o livro traz cinco conferências realizadas pelo professor Colby Dickinson, que é um grande interlocutor norte-americano a respeito da obra de Agamben. Dickinson é professor do departamento de Teologia na Loyola University, em Chicago, e desenvolve suas pesquisas a partir da relação entre teologia e filosofia continental.
Uma palavra também deve ser dita a respeito da apresentação do livro, feita pelo professor Oswaldo Giacóia Júnior. O professor Giacóia tem uma importância fundamental em diversas áreas de estudos filosóficos no Brasil, notadamente nos estudos-Nietzsche. O mesmo grau de importância deve ser atribuído a ele nos estudos-Agamben. A qualidade do material presente nessa coletânea deve muito a ele, que em virtude de sua abertura, curiosidade e coragem cedeu espaço aos “agambenianos”, dentre eles Glauco Barsalini, um dos idealizadores do evento e da coletânea. A apresentação do professor Giacóia é muito mais do que uma mera apresentação; ela nos traz uma profunda reflexão que toma as meditações agambenianas sobre a linguagem como mote e que conversa com suas reflexões presentes em livro Agamben: por uma ética da vergonha e do resto.
As cinco conferências do professor Colby Dickinson abrem cada seção da coletânea. A terceira seção, dedicada à relação entre Agamben, Heidegger e Aristóteles, conta com duas contribuições. Apesar desse seccionamento, os textos apresentam uma linha argumentativa única. As conferências desenvolvem diversos aspectos importantes do pensamento de Agamben. Talvez o destaque recaia no trato que ele confere à questão das bipolaridades, que Dickinson reflete à luz do jargão kantiano de antinomia: reiteradas são as tentativas de compreender o estatuto do chamado “antinomianismo” em Agamben. O ponto central de sua argumentação, no entanto, diz respeito à tese segundo a qual o que encontramos no filósofo italiano não seria tanto um livrar-se totalmente da soberania, mas uma tentativa de pensar uma outra forma de relação com ela. A busca por uma “outra forma de soberania” (uma soberania outra, talvez) é o que se repete nas conferências.
Certamente a referência maior de Dickinson para fundamentar sua tese é o destaque conferido ao messianismo de Paulo, que não parece ensejar uma mudança do mundo, dos fatos, do tempo, ou mesmo conduzir a uma espécie de subtração à realidade fática ou emancipação das instituições de poder; trata-se, a partir do messianismo fraco de Paulo, de se buscar uma forma outra de viver, de uma forma outra de experiência e de relação outra com as coisas, com o tempo, com as identidades. O messianismo paulino, segundo Dickinson, consiste num “pilar do pensamento de Agamben em sua totalidade” (p. 183) e desde a primeira conferência até a última, parece-me, é ele quem guiará Dickinson a pensar essa relação outra com o poder soberano. Dickinson propõe que o messianismo de Paulo seja compreendido em termos de uma dialética negativa, a qual é articulada para se pensar a forma-de-vida. Enigmática e constante também é a referência à noção de “identidade sem relação”, que acompanha Dickinson em seu percurso, que vai da soberania como ficção até importantes considerações sobre a noção de amor em Agamben.
Dito isso, passemos agora às contribuições inéditas dos colegas brasileiros. Cada título em negrito a seguir consiste numa reprodução dos títulos de cada seção do livro onde se encontram os artigos.
O artigo de Douglas F. Barros, Notas sobre a desconstrução da soberania: Agamben e Negri, em diálogo à distância, é um excelente exemplo de como a crítica pode contribuir tanto para a compreensão do problema quanto para o seu refinamento. Uma crítica bem-feita permite ao criticado, aos críticos (leitores), e eventualmente até mesmo àquele que critica, rever suas posições, reavaliar o que está em jogo, entender os limites dos diagnósticos. Barros, no caso, retoma o tema da crítica da soberania em Agamben como uma crítica à operatividade presente em Opus dei e apresenta o projeto do filósofo romano como uma proposta de pensar uma ética pautada numa ontologia da inoperosidade. A principal querela entre Agamben e Negri é a das apostas, respectivamente, numa potência destituinte e num poder constituinte. O que Barros entrevê, no entanto, é que a despeito das críticas à Agamben, notadamente a suposta ausência de uma teoria da ação revolucionária, Negri iria cada vez mais ao seu encontro na elaboração de uma crítica da soberania, sem, no entanto, jamais abandonar uma perspectiva marxista, que principiologicamente é incompatível com o flerte de Agamben com o anarquismo (apesar de Agamben manter um importante e ainda pouco explorado diálogo com Marx e o marxismo).
Hélerson Silva em Estado de sítio, estado de necessidade, estado de revolução: os dispositivos (jurídicos) e a governabilidade na América Latina, além da valiosa contribuição como tradutor de muitos dos textos de Dickinson, fez algo que nós, filósofos, ainda fazemos (quando o fazemos) muito timidamente. Cada vez mais percebemos a importância de traduzirmos as categorias europeias numa linguagem e num contexto mais próximo ao nosso, Latino-Americano. Esse é o caso de sua contribuição ao pensar a ideia de estado de exceção permanente em Agamben junto às análises do politólogo Aníbal Pérez-Liñán. Podemos dizer que assim como Agamben enxerga na formulação do dogma trinitário um laboratório privilegiado de observação do paradigma governamental, Silva faz das experiências latino-americanas de deposição presidencial um verdadeiro laboratório privilegiado para observamos o paradigma da deposição (presidencial) sem ruptura, ou ainda, uma espécie de ruptura sem ruptura; tudo se passa como se nos territórios onde o neoliberalismo pôde se instaurar de modo mais traiçoeiro, os mecanismos de ruptura institucional tivessem sido suspensos, restando o impeachment como técnica normal de governo. Se soberano é aquele que pode suspender as leis e a ordem democrática pelo dispositivo da exceção, o impeachment aparece como esse dispositivo nada excepcional, mas que suspende sempre que necessário e sempre de modo fenomenicamente democrático — i.e., sem jamais romper com a ordem instituída — as decisões democráticas. Desse modo, o estado de exceção permanente se torna uma forma corrente de despolitização institucional.
Castor Bartolomé Ruiz nos presenteia com uma arqueologia da sacralidade em A sacralidade da vida e a vida nua: um problema ético-político. Como se sabe, Agamben reintroduziu no debate filosófico contemporâneo, não por acaso no interior dos estudos biopolíticos, a importância do direito romano. Duas são as grades contribuições de Ruiz para os estudos de Agamben: (i) a discussão com uma literatura secundária importante acerca do termo sacer; e (ii) a contribuição autoral, do próprio Ruiz, amparado, é claro, nas investigações agambenianas, sobre os direitos humanos, mas que ao meu ver vão além do filósofo italiano (sobretudo as quatro formulações finais). Destaco nesse sentido as passagens finais de seu artigo, nas quais Ruiz torna transparente os paradoxos da racionalidade jurídica moderna que pretende proteger a vida sempre salvaguardando seu poder (de ameaça) sobre ela. Também importante é a reflexão sobre a noção de dignidade, que Ruiz lê como a “forma secular da sacralidade”. A força do texto de Ruiz reside certamente em seu convite à reflexão sobre a ação ética nas sociedades contemporâneas.
Se os leitores de Agamben enxergam normalmente Walter Benjamin como um antídoto às ideologias conservadoras (fascistas e nazistas) presentes, de modo manifesto ou não, em autores como Carl Schmitt ou Martin Heidegger, Mariana Pfeister nos traz um debate igualmente oportuno para a neutralização da ideologia totalitária. Pfeister, em seu artigo Schmitt e Peterson: um debate acerca da Teologia política, que é parte de sua Dissertação defendida em 2019 na PUC-Campinas, privilegia o debate de Schmitt com Peterson no interior da obra de Agamben. Peterson ficou conhecido pela “liquidação teológica da teologia política”. Sua principal contribuição nesse debate foi tentar demonstrar que a teologia cristã não comporta um pensamento político, razão pela qual a teologia política só poderia ser concebida como uma ideia política. O paganismo e o judaísmo, por outro lado, seriam capazes de comportar uma teologia política. Já aí fica evidente a disputa com Schmitt, autor cristão que não abdica da teologia política cristã. Contrariando Schmitt, apenas paganismo e judaísmo poderiam, segundo Peterson, estabelecer uma aliança entre divindade(s) e povo. Para Peterson, a trindade obstaculiza qualquer eventual teologia política cristã. Apesar disso, pelas portas dos fundos, retorna uma ocasião para uma política cristã pela ideia de “agir político” contido na liturgia cristã. Retomando os momentos decisivos dessa querela, a autora mostra de que modo os elementos trazidos por Peterson para a discussão trazem também consigo distinções importantes para pensar o aspecto governamental do poder no Ocidente, inclusive aqueles que fundamentam uma ideia de estado de exceção.
Rossano Pecoraro, em Profanar o nada. A luta de gigantes e o núcleo vazio da máquina política, e Caio Henrique Lopes Ramiro, em Agamben e a luta de gigantes acerca de um vazio, escrevem textos que se complementam e que conduzem o leitor nos labirintos do que certamente corresponde ao ponto mais comentado da literatura especializada em Agamben. Ambos tratam do fio secreto que une as leituras agambenianas de Walter Benjamin e Carl Schmitt. Mas isso de forma alguma significa que cada texto não tenha sua autonomia. Enquanto o texto de Ramiro reconstrói exemplarmente os principais pontos da "luta dos gigantes acerca do vazio", Pecoraro realiza uma leitura muito menos reconstrutiva e mais problematizante, colocando perguntas ao próprio Agamben e exigindo do filósofo romano mais do que o que ele até agora nos deu. O que guia o texto de Pecoraro é uma ambição pela ética, pela atividade profanatória, pela descrição real do como seria esse uso comum; o que manifesta, certamente, o desejo de muitos dos leitores de Agamben, especialistas ou não. Ramiro, por outro lado, contribui com muitas referências e detalhes que nos remetem para além de uma mera reconstrução da narrativa agambeniana. Percebemos uma lúcida compreensão da bastante complexa situação alemã do entre guerras, notadamente no que diz respeito à vida intelectual. Ramiro nos expõe, na esteira de Agamben, mas também para além dele, o que Susanne Heil em referência às conexões entre Benjamin e Schmitt imortalizou com a expressão Gefärliche Beziehungen (ligações perigosas).
Marcelo Hanser Saraiva nos traz em Crítica do dispositivo da vontade em Giorgio Agamben uma importante contribuição por meio da leitura da noção do dispositivo da vontade. Este também é um ponto ainda muito pouco comentado da obra de Agamben, apesar de ser uma questão que o acompanha desde O homem sem conteúdo. Saraiva centra seu texto sobre o livro Karman. Mas antes mesmo de entrar neste texto especificamente ele contribui com algumas considerações importantes acerca da noção de dispositivo em Agamben e que ainda não se vê tanto entre os comentadores. Refiro-me aqui à dupla dimensão do dispositivo; ontológico-modal e pragmático-política. Com isso, Saraiva mostra compreender muito bem a atitude anti-substancialista que guia a filosofia de Agamben, que aparece como um verdadeiro teórico dos dispositivos. Além disso, não escapa a Saraiva o viés histórico-contingente do dispositivo, algo que certamente ele pôde compreender em razão de suas leituras de Foucault e Nietzsche que aguçaram sua intuição para bem compreender esse registro no qual a filosofia de Agamben se inscreve. Essa refinada leitura é condição sine qua non para uma abordagem correta do dispositivo teológico-jurídico da vontade que Agamben realiza em Karman.
Glauco Barsalini no texto O hos me e o simples uso de fato como chave para a desativação de dispositivos contemporâneos busca, relacionar dois temas centrais e “prognósticos” de Agamben: o messianismo de Paulo e o espírito franciscano. Barsalini mobiliza dois operadores centrais de Agamben contra o maquinário soberano, o como (se) não, paulino e o usus facti. O primeiro ponto importante da argumentação recai sobre a noção de escravo, notadamente numa oposição entre uma servidão por natureza (Aristóteles) em oposição a uma servidão por vocação (Paulo). A seguir Barsalini retoma a querela entre os Padres menores e o Papa João XXII para recuperar o tema da relação entre uso e propriedade. Agamben, como sabemos, parte em defesa dos franciscanos, argumentando pela existência de um uso irredutível à propriedade; caso toda forma de uso implicasse apropriação, não haveria outra forma de estar no mundo senão à do capitalismo. Temos com isso o embasamento de uma filosofia que se apresenta como forma-de-vida, como vida messiânica.
O texto de Marcos Norris, A des/crença de Giorgio Agamben, propõe um interessante paralelo entre o ateísmo materialista de Jean Paul Sartre e o “teísmo ateu” de Agamben. Norris enxerga entre ambos os autores, salvaguardadas suas diferenças, uma semelhança de fundo, que diz respeito à crença no Nada. Para Sartre, é preciso enfrentar a contradição entre a inexistência de Deus e a existência de absolutos morais; quer dizer, dada a inexistência de Deus, deveria se seguir a neutralidade moral do universo; e, no entanto, é "absolutamente claro que matar um homem é errado" (p. 160). A despeito da divergência de tradições, Norris nos mostra como Sartre e Agamben tendem a concordar quanto ao fundamento ontológico negativo, no caso de Sartre, no não-ser de Deus, e no caso de Agamben, no substrato negativo que sustenta o ter-lugar da linguagem. Essa leitura enseja o privilégio agambeniano de uma leitura do nomos em Paulo não como uma crença num sentido representacional das leis de Deus, mas, tendo recurso à pistis, revela uma adesão a uma instância linguística cuja denotação é suspensa, deixando manifesta a radical contingência da realidade. Dessa forma, o cristianismo paulino de Agamben desafiaria, paradoxalmente, a autoridade moral de Deus. O mesmo dilema do ateísmo sartreano surge aqui, em Agamben, porém em termos éticos: haveria ética sem uma autoridade ética?
O interesse de Agamben por Paulo de Tarso tem certamente a ver com as preleções que Heidegger proferiu na qualidade de Privatdozent em Freiburg no semestre de inverno de 1920/21, as quais vieram a integrar o volume n.60 da Gesammelte Ausgabe do filósofo de Messkirch. Mostrar alguns dos pontos de contato entre o empreendimento fenomenológico heideggeriano e a leitura realizada por Agamben consiste na contribuição de Renato Kirchner à coletânea, sob o título O tempo messiânico paulino segundo Martin Heidegger e Giorgio Agamben. O ponto de conexão entre Heidegger e Agamben na leitura de Paulo corresponderia, segundo Kirchner, a uma preocupação com a situação na qual se encontra Paulo no momento da escrita das epístolas. Desse modo, Kirchner nos indica uma possível relação entre a descrição fenomenológica da vida fática (faktisches Leben) - a qual corresponderia à verdadeira preocupação de Heidegger muito mais do que uma descrição fenomenológica da religião em si - e a situação messiânica. Tendo esclarecido essa ponte, o núcleo de interesse recai sobre hos me paulino. Em Heidegger, que assume a complexidade do sintagma, o hos me assume “a ideia de que o cristão deve desativar essas referências em relação ao mundo circundante” (p. 236); em Agamben o sintagma indica uma “transformação qualitativa do tempo vivido em nossas próprias existências nas condições em que sempre já nos encontramos vivendo faticamente no mundo” (p. 241). Em ambos, no entanto, o sintagma aparece como um chamado a uma atitude ética, mas que passa por uma concepção específica do tempo.
Quanto ao texto de Luís Gabriel Provinciatto, A obra de arte como lugar do aberto, eu diria que se trata de uma leitura obrigatória para os leitores de Agamben. Como sabemos, a obra toda de Agamben é transpassada pelas vias abertas pela filosofia de Heidegger. O livro O homem sem conteúdo, primeiro livro publicado por Agamben, consiste, no entanto, num momento privilegiado para se medir essa dívida com as investigações heideggerianas. Provinciatto explora em seu artigo a explícita herança de Agamben com a intuição heideggeriana do prejuízo de uma apreensão estética da obra de arte, do que se segue a necessidade de sua destruição. Provinciatto argumenta, com muito conhecimento de causa diga-se de passagem, a relação entre a máquina estética e a máquina antropológica. O que une a reflexão sobre as máquinas a serem desativadas é a ideia de aberto. O texto conta com uma aprofundada exegese tanto dos momentos mais importantes de O homem sem conteúdo quanto da conferência Origem da obra de arte. A noção de aberto é apresentada quase que como um contradispositivo, razão pela qual acredito ser possível encontrar no artigo de Provinciatto importantes indícios para entendermos algumas das características das "máquinas" em Agamben, sobretudo a partir do contraste com a noção de "aberto".
O texto de Alex Villas Boas, intitulado Transcendência e práxis: poética e política em Giorgio Agamben, retoma o diagnóstico de Agamben presente em O homem sem conteúdo acerca do ofuscamento da poíesis pelo fazer prático (práxis) e põe em movimento uma interessante interpretação que resgata a relação entre poesia e teologia. O percurso começa com a expulsão dos poetas da pólis por Platão, passa rapidamente por Aristóteles e ganha com Nietzsche os contornos de uma poíesis trágica. Este é o panorama que Boas constrói num primeiro momento para depois, lançando mão sobretudo de Dante, pensar uma poética teológica. Ele se apoia no privilégio que Agamben concede à comédia em detrimento da tragédia e passa a advogar por um poetar teológico cômico, que se voltaria, portanto, contra o legado metafísico platônico, mas também contra a metafísica do artista de Nietzsche. Boas defende, assim, a existência de uma poesia que é também teologia e que encontra na comédia dantesca o seu locus antitrágico e político na medida em que oposto à exclusão dos corpos e em favor de uma "comunhão dos corpos" e de uma "comunidade política inclusiva" (p. 314); uma poíesis, portanto, antibiopolítica.
A contribuição de Daniel Souza, de título As alianças nas ruas em junho de 2013 - coligações de corpos errantes, é um presente para os estudiosos de Agamben. Ela faz parte de sua tese de Doutorado, defendida em 2019 e intitulada A 'revolta da ineficiência': os acontecimentos de junho de 2013 no Brasil e suas destituições político-teológicas. Pouco ainda se procurou pensar a "filosofia prática" de Giorgio Agamben, sobretudo porque ela de antemão se recusa a ser prática num sentido corriqueiro. Dentre os principais conceitos agambenianos que orbitam essa parte "propositiva" de sua obra estão uso, inoperosidade, poder destituinte, potência de não. Esses são termos completamente não clássicos quando pensamos em teoria política tradicional. Souza assume para si o desafio de ler nos fragmentos, rastros, vestígios e indícios da maior mobilização que já tivemos no Brasil desde a redemocratização o agir-não com toda a sua potência e concretude. Certamente a virtude do artigo está na materialidade com que Souza nos relata a eficiência de uma ação política poderosa pela sua ineficiência, algo certamente difícil de se conceber, mas bastante tangível na narrativa. Sem se deixar capturar pelas armadilhas do poder constituinte que promoveria, segundo Agamben, mais do mesmo, quando muito com os pólos invertidos, Souza nos mostra, alternando entre uma refinada argumentação teórica e relatos pessoais muito bem escritos, de que forma as manifestações proporcionaram experiências de inoperosidade. A riqueza da experiência das jornadas teria sido, para Souza, o tornar inoperoso de todo um complexo de dinâmicas que em seu funcionamento normal significam tão somente a exploração cotidiana neoliberal na metrópole. É por uma experiência outra do tempo, das ruas, das praças, dos muros, dos ônibus, dos prédios, das avenidas, enfim, dos corpos que as destituições e profanações agambenianas aparecem. Para além dos efeitos e consequências político-institucionais que as manifestações de junho tiveram, o uso inoperoso interrompe a experiência linear, cotidiana e banal e faz assim surgir, em estilhaços, a política do comum. Os papéis são desfeitos. Corpos são desterritorializados. Junho de 2013 como centelha da possibilidade. Da possibilidade do comum. Da possibilidade de abertura. Do uso comum. Por fim, os interessados no pensamento de Judith Butler também encontrarão nas reflexões de Souza excelentes comentários sobre as políticas de aliança e sobre a não-violência.
Em O pai, o filho e o espírito da lei: uma proposta de leitura acerca da presença da autoridade em Brief an den Vater de Franz Kafka, Lucas Carvalho Lima Teixeira busca na literatura de Kafka - e bem sabemos que literatura, mas também poesia, ocupa o mesmo grau de relevância que a filosofia nas especulações agambenianas -, a célula originária do poder soberano. O texto consiste em mais do que um mero comentário. Há no texto de Teixeira uma especulação filosófica a respeito da fundação da autoridade a partir da mímesis da relação entre pai e filho na narrativa kafkiana. A teoria da soberania de Carl Schmitt e o ensaio de Walter Benjamin sobre Kafka, mas também aquele sobre o capitalismo como religião, vêm em seu auxílio para explicar de que forma a essência da lei consiste em sua pura forma, sua mera vigência, sem que a garantia de sua aplicação seja necessária para que sua autoridade soberana e a condição de vida nua/vida culpada exista. A estrutura da lei aparece, assim, nos relatos/confissões do filho para o pai a partir de situações corriqueiras, como um jantar. A dialética da violência mítica de Benjamin aparece na descrição do significado do casamento, único momento em que o filho não atende à expectativa de amor-próprio paterno e de saída aparece condenado a repetir a violência originária em seu próprio lar, que agora fundará. Teixeira se pergunta: "soberano e homo sacer não poderiam ser também chamados de 'pai e filho', e isso muito antes de ser cunhada a palavra soberania?'" A resposta é certamente positiva. O direito de vida e morte (vitae necisque potestas) corresponde na Roma antiga ao direito do pater sobre os filhos varões; ele descreve muito mais do que uma mera violência doméstica autorizada; trata-se de uma instituição que emerge da zona de indistinção entre público e privado, entre domus e civitas; é daí, também, que o poder soberano é proveniente. Teixeira nos mostra, deste modo, em Kafka, muito mais do que a ilustração ou exemplificação das especulações agambenianas; ele faz de Kafka um filósofo, um teórico da soberania, um teórico da autoridade.
O texto Forma vitae franciscana como renúncia ao direito: por um ethos do estado de necessidade como exceção ao direito positivo, de Ricardo Evandro S. Martins, recupera um dos pontos fundamentais da obra de Agamben para a discussão crítica do direito. Martins articula a argumentação presente em Altíssima pobreza com a de Estado de exceção para problematizar a relação entre direito e vida, entre lei e vida. Segundo Agamben, a vida nua corresponde àquela vida que fora separada de sua forma. Tendo em vista essa definição, Martins argumenta que ao se debruçar sobre a vida dos padres franciscanos o que encontramos é uma forma-de-vida, ou seja, uma vida que não pode ser separada de sua forma. O que impulsiona o debate é a Querela da pobreza, no século XIV, entre Guilherme de Ockham e o Papa João XXII. Encontramos nesse debate a centelha de uma forma de vida que renuncia à essência patrimonialista do direito romano, sem, no entanto, ser ilegal. Surge assim uma dimensão em que vida e forma se identificam. Abdica-se do dominium, mas não do jus. À exceção soberana Martins opõe o estado de necessidade permanente em que viviam os Frades menores e relaciona esse modo de vida excepcional que se subtrai à excepcionalidade soberana à argumentação sobre a necessidade em Estado de exceção.
O leitor de Religião e política na obra de Giorgio Agamben encontra num único volume uma variedade de portas de entrada possíveis numa filosofia intransigente com as alternativas fáceis e simples que se mostram à mão. A coletânea faz jus à empreitada de Agamben, que em sua regressão arqueológica não se furta à complexidade do contemporâneo.