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Recepção: 06 Janeiro 2021
Aprovação: 17 Abril 2021
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v21i2.2365
Resumo: Este artigo analisa a obra Mal-entendido em Moscou de Simone de Beauvoir a partir de dois temas específicos: o envelhecimento e a finitude. O livro narra a história de André e Nicole, dois professores universitários aposentados que sentem o peso da idade ao viajar para a União Soviética pela segunda vez na vida. Assim, inicia-se uma série de mal-entendidos: a não comunicação, o medo de envelhecer, o amor de longa data, a pressuposição de uma identidade feminina, as expectativas políticas e a diferença da compreensão de mundo dos personagens. O texto trata desses desencontros principalmente do impacto do envelhecimento e a percepção da finitude para a protagonista, o que nos instiga a pensar como essas inquietações reverberam também em todos nós. O artigo se subdivide do seguinte modo; primeiro aborda de maneira geral a relação entre filosofia e literatura na produção de Beauvoir; a seguir apresenta o enredo da obra destacando alguns elementos importantes para a discussão e; por último, investiga questões sobre o envelhecimento e a facticidade, buscando entender o enfoque original que a filósofa delineia na criação corajosa e realista que faz de seus personagens.
Palavras-chave: Simone de Beauvoir, Feminismo, Envelhecimento, Finitude, Literatura.
Abstract: This article aims to analyze the work Mal-entendido em Moscou .Misunderstanding in Moscow), by Simone de Beauvoir from to specific themes: the aging and the finitude. The book tells the story of André and Nicole, two retired professors who feel the weight of aging and travel to the USSR for the second time in their life. Thus, a series of misunderstandings start taking place: the lack of communication, the fear of aging, a long-standing love, the assumption of female identity, their political expectations and the difference between the characters’ comprehension of the world itself. In this text, I address these divergences, especially the impact of aging and the realization of finiteness by the main character and how these matters of uneasiness reverberate in all of us as well. The article is subdivided as follows; first it deals in general with the relationship between philosophy and literature in Beauvoir's production; the following presents the plot of the work, highlighting some important elements for the discussion and; finally, it investigates questions about aging and facticity, seeking to understand the original focus that the philosopher outlines in the courageous and realistic creation that she makes of her characters.
Keywords: Simone de Beauvoir, Feminism, Aging, Finitude, Literature.
Considerações iniciais
Eu nasci em toda parte, sob os céus agora estilhaçados dos gregos,
dentro dos tamancos de uma fazendeira bretã,
em um teatro elisabetano, na fome e privação de minha avó,
e na escola secular,
compulsória e livre que o Estado foi tão gentil em me oferecer,
mas também nas rebeliões que foram só minhas,
nas bofetadas que as seguiram ou precederam,
na aflição lúcida de Simone de Beauvoir e no fogão de Descartes.
E há mais por vir.
Michèle le Doeuf
Simone de Beauvoir é sem dúvida uma figura importante para a filosofia, a literatura e os movimentos feministas. Sua obra mais conhecida, O segundo sexo, de 1949, é o resultado de uma exaustiva pesquisa sobre às condições das mulheres. Nele, a filósofa investiga as dimensões psicológicas, sexuais e sociais que relegaram às mulheres uma função secundária na sociedade, a outra em relação ao homem. Ao fazer isso expõe como as ciências naturais e mesmo as humanas ao longo do tempo criaram uma essencialização da mulher, de uma natureza feminina única que estereotipa e suplanta todas as diferenças entre elas.
As questões abordadas nessa obra repercutem ao longo da produção da autora. Por essa senda, o que este artigo pretende desenvolver é, a partir de uma interpretação de uma outra obra de Beauvoir O mal-entendido em Moscou (2015), discutir pela via literária, o tema da existência, problematizando a ideia da imanência das experiências vividas pelos personagens, enfatizando a questão do envelhecimento e da finitude que são fundamentais na construção do seu pensamento filosófico.
Para isso o texto se divide em três partes: primeiro apresenta a importante relação entre o pensamento e a literatura nas obras de Beauvoir; segundo, expõe o enredo da obra a ser analisada; terceiro, explora os temas do envelhecimento e finitude ao longo do livro para entender a originalidade do pensamento de Beauvoir que atravessa sua obra literária e filosófica.
Beauvoir: a literatura e a filosofia
Desde pequena Beauvoir se apaixona pela literatura e aos nove anos já decide que quer ser escritora. Durante a infância, ainda no colégio católico, publica seus primeiros escritos num jornal da escola que ela mesma funda. Podemos perceber que sua sede pela leitura e pela escrita começa desde muito cedo2.. “Eu tinha os olhos fixos num futuro promissor: tornar-me ia escritora. Era na aprendizagem de escrever que essencialmente minha liberdade estava engajada” (BEAUVOIR, 1972, p. 29). A escrita tornou-se para Beauvoir, seu modo de existir e de se afirmar.
É interessante perceber que Beauvoir tenha se dedicado mais a literatura do que a qualquer outro gênero, pois encontra nesse segmento uma abertura para refletir poeticamente sobre temas fundamentais que a acompanharão ao longo de sua produção como: a problematização e a crítica a criação de uma categoria feminina a qual todas as mulheres deveriam corresponder, a temporalidade, a finitude humana e o engajamento existencial e político que surgem a partir disso. Mas escrever não se torna uma tarefa fácil, pois a literatura é para ela um esforço constante, um impulso que a direciona, mas que só com muita disciplina e atenção rigorosa se concretiza. Para escrever é preciso estar comprometida com a seriedade do trabalho e da pesquisa meticulosa que servirá de base para as histórias e ensaios, mas o fundamento no qual ela também se assenta, são os questionamentos existenciais, frutos de suas próprias reflexões filosóficas. Aliado a esse enfoque, é importante frisar também a importante contribuição de seu pensamento político que permeia todas as obras na medida em que debate as dimensões históricas, políticas, sociais e culturais que sedimentaram o pensamento ocidental.
Segundo Beauvoir:
A não ser uma ou duas exceções, todos os escritores que conheço enfrentam enormes dificuldades: eu sou como eles. E, contrariamente ao que se supõe, romance e autobiografia me absorvem muito mais que um ensaio; também me dão muito mais alegrias. [...] Faz-se muitas vezes uma ideia mais romântica da literatura. Mas ela me impõe disciplina justamente porque é algo diferente de um ofício: uma paixão ou, digamos, uma mania (BEAUVOIR, 2018b, p. 272-273).
É impossível, portanto, dissociar totalmente a filosofia de Beauvoir de seus escritos literários, pois neles está presente uma interpretação muito singular do existencialismo, de como a condição humana, que mesmo sendo determinada em alguns aspectos, possibilita um horizonte de criação no qual experienciamos e construímos a liberdade em cada situação (mitsein)3..
A escrita de Beauvoir tem uma particularidade especial, seu estilo está relacionado intrinsecamente à sua própria vida, ou seja, grande parte de seus textos são compostos a partir de suas experiências, no entanto, à despeito disso, é atravessada pela experiência de várias mulheres, ou seja, não é a mera singularidade a característica do seu pensamento, mas justamente a capacidade de dar voz à diferentes falas. Assim nascem obras como as volumosas Memórias, cartas, ensaios íntimos, novelas e também os livros e ensaios. Contudo, apesar dessa linha tênue que liga sua vida a seus escritos, suas obras não são subjetivistas ou solipsistas, nem fruto de algum tipo de egotismo, antes, revelam uma interpretação acurada de sua época e partilham com o leitor as inquietações que provocaram suas reflexões. São a partir dos seus próprios desassossegos que desenvolve e aprofunda temáticas fundamentais sobre as mulheres, a morte e o envelhecimento. Segundo Ferreira: “Simone de Beauvoir encontra-se entre aqueles para quem vida e pensamento estão indissoluvelmente relacionados. Mais ainda, mostra-nos a sua vida, fazendo dela um dos temas centrais dos seus textos” (FERREIRA, 2009, p. 183).
É preciso certa dose de despojamento e coragem para escrever sobre si mesma e ainda assim evocar problemáticas mais abrangentes e densas, que interesse uma vasta gama de leitores, sem se tornar exagerada ou enfadonha. A escrita de Beauvoir consagra um estilo muito particular de fazer filosofia, que transita entre os relatos pessoais e uma interpretação ousada e subversiva de sua época e da própria história que a consolidou, provocando o questionamento das tradições e propondo novos modos de pensar, que excedem os moldes usais. De acordo com Santos “Com seu método de seguir e de contestar, de retomar e de comentar, Beauvoir inaugura uma forma própria de filosofar e de tornar a filosofia uma prática dialógica de vida” (SANTOS, 2012, p. 272).
Para Beauvoir, nem a filosofia e nem a literatura em sentido estrito podem dar conta da pluralidade de significações que a existência humana possui, por isso ela cria o que denomina “romance metafísico”, que a permite expor a sua filosofia a partir de uma criação ficcional.
Honestamente lido, honestamente escrito, um romance metafísico provoca uma descoberta da existência de que nenhum outro modo de expressão poderia fornecer o equivalente; longe de ser, como se pretendeu por vezes, um desvio perigoso do gênero romântico, pareceu-me, pelo contrário, na medida em que é conseguido, a realização mais perfeita, pois se esforça por apreender o homem e os acontecimentos humanos nas suas relações com a totalidade do mundo, pois só ele pode ter êxito no que fracassa a pura literatura como a pura filosofia: evocar, na sua unidade viva e na sua fundamental ambiguidade viva, esse destino que é o nosso que se inscreve de uma só vez no tempo e na eternidade (BEAUVOIR, 1948, p. 104-‐105, tradução nossa).
O romance metafísico não é apenas uma justaposição de uma área à outra, mas o diálogo entre elas. Beauvoir se serve de suas próprias experiências, e dos universos que cria em sua literatura, para pensar originalmente a ambiguidade da existência e seus desdobramentos na ação concreta, ou seja, abandonando os moldes tradicionais do pensamento filosófico, expõe por meio da literatura sua compreensão de liberdade e da importância do universo de relações que mesmo determinando de modo contingencial sua vida, não a impedem de criar, de fazer, de resistir e refazer-se nesse processo.
Será sobre esse universo dialógico como procedimento filosófico e literário que pretendemos adentrar nos próximos tópicos, a partir da análise do Mal-entendido em Moscou.
O universo da obra: Mal-entendido em Moscou
Essa obra foi escrita por Simone de Beauvoir entre os anos de 1966 e 1967, a princípio para fazer parte da coletânea: A mulher desiludida de 1968. No entanto, a própria autora acabou a substituindo pela história “A idade da discrição”. Então, a obra só veio a ser publicada bem mais tarde, em 1992, junto com outras, na revista Roman, com o título de Beauvoir Series, prefaciada pela filha adotiva de Beauvoir, Sylvie Le Bon. O texto inédito no Brasil foi traduzido e publicado somente em 2015.
Para que possamos encaminhar a discussão sobre a obra é necessário, mesmo que brevemente, apresentar seu enredo. A obra narra a viagem de André e Nicole, dois professores aposentados, a União Soviética. Eles já conheciam o país de uma viagem anterior, em meados dos anos 60 e agora retornam para visitar a filha do primeiro casamento de André, a vivaz Macha. André e Nicole estão na casa dos sessenta anos e encaram a viagem da França, onde moram, à Rússia com muita expectativa e uma dose de nostalgia, geradas pelas boas lembranças da primeira visita. O casal possui uma harmonia perceptível, que faz com que o leitor se simpatize imediatamente com eles. A ternura e o carinho com que tratam um ao outro é belo e tocante. Macha, em contrapartida, representa a nova União Soviética, é jovem, otimista e determinada. Ela recebe o pai e a madrasta com respeito e afeição e se dispõe a guiá-los por várias regiões do país, mostrando hospitalidade e orgulho de morar em Moscou. A primeira parte da obra trata da chegada do casal e dos primeiros passeios pelo país, ainda muito animados e felizes pela viagem. Mas desde o começo percebemos que a juventude de Macha, de algum modo, evoca em Nicole a consciência do envelhecimento e das consequências deste. Algumas passagens demonstram como André também se preocupa com esse assunto, em relação ao corpo que sente o peso da idade e do cansaço que se amplia a cada momento, mas o envelhecimento sem dúvida é sentido de modo diferente para cada um. Mas além desta questão, outros temas igualmente importantes aparecem ao longo da obra, como por exemplo, as convicções políticas do casal e de Macha, que mesclam o ideal socialista de outrora com a atual gestão da União Soviética.
O mal-entendido que nomeia a obra acontece bem mais adiante, quando André aceita a proposta da filha de ficar mais dez dias em Moscou e adiar o retorno planejado do casal para Paris. André diz que comentou com Nicole sobre essa possibilidade e ela afirma peremptoriamente que não foi consultada, se sentindo menosprezada pela decisão unilateral do esposo. Esse é o mal-entendido principal, mas na verdade ele não é o único e nem o mais importante, pois no fundo, o que subjaz a este episódio, são vários outros descompassos que norteiam a vida do casal e que vem à tona a partir desse pequeno equívoco. No entanto a obra não é apenas sobre uma simples crise conjugal dos protagonistas, mas trata, sobretudo, dos medos, dúvidas e incertezas que normalmente carregamos conosco e que se tornam mais evidentes com o passar dos anos. O livro é um retrato sensível e realista de como o processo do envelhecimento afeta o corpo e a imagem que habitualmente temos de nós mesmos, e ao fazer isso efetiva, na verdade, uma investigação sobre a temporalidade e a finitude humana. Nicole e André apesar de conviverem por décadas e nutrirem um carinho muito grande um pelo outro, sofrem, cada um a seu modo, o peso dos anos e será, pois, acompanhando o percurso desses personagens, que pretendemos mostrar, no tópico subsequente, como Beauvoir alinha a literatura com a filosofia de um modo belo, poético e original.
Envelhecimento, temporalidade e finitude
O envelhecimento evoca no ser humano a consciência da temporalidade e da finitude. A angústia advém da percepção de que é impossível deter a passagem do tempo e que ela carrega consigo, inevitavelmente, o término da vida. Tratar desse assunto não é, portanto, uma tarefa fácil, porque ela pressupõe também a nossa própria vida, impedindo uma análise totalmente imparcial e dissociada daquele que assume essa empreitada. É inconcebível falar sobre o tempo sem que percebamos como ele deixa suas marcas indeléveis em cada um de nós. Talvez por isso a filosofia tenha se dedicado tão pouco a se ocupar dessa temática, embora a maior parte dos pensadores trate do tempo e da infinitude, são raros aqueles que abordam a questão do envelhecimento que permanece implícita nas discussões propostas.
A literatura, no entanto, permite pensar o envelhecimento para além dessa esfera, possibilitando que pela experiência do outro, nos dilemas dos personagens, vivenciemos a consciência de nossa própria finitude e possamos então pensá-la filosoficamente. É esse tipo de deslocamento experiencial, ou melhor, de reconhecimento de si que as obras de Beauvoir promovem.
É isso que constitui o valor de um bom romance. Ele permite efetuar experiências imaginárias tão completas, tão inquietantes quanto as experiências vividas. O leitor se interroga, tem dúvidas, toma partido e essa elaboração hesitante de seu pensamento é para ele um enriquecimento, como nenhum ensinamento doutrinal poderia proporcionar (BEAUVOIR, 1946, p. 1154-5).
No Mal-entendido o envelhecimento é um tema que aparece constantemente. É uma preocupação tanto para Nicole, como para André, ainda que de modos distintos. Beauvoir aborda o tema com sinceridade e realismo, abdicando do romantismo e da superficialidade com que geralmente é tratado.
A presença jovial de Macha, ao longo da obra, acentua em Nicole a percepção de seu próprio envelhecimento, do qual é impossível se esquivar. Essa consciência não é algo que vem aos poucos, ao longo das passagens dos anos, mas advém abruptamente, como se de um momento para o outro, tanto os personagens, como nós mesmos, percebêssemos o peso da idade. “Talvez eu tenha envelhecido demais nesses últimos três anos, disse Nicole a si mesma: já não suporto bem o desconforto. E isso só vai piorar. ‘Estamos na flor da última idade’ diz André. Estranha flor: de cardos” (BEAUVOIR, 2015, p. 58). Beauvoir desconstrói, portanto, o mito idealizado da velhice que se apoia na bela imagem de uma vida de plenitude, sabedoria e encantamento. Envelhecer não é nada agradável, pois denota a deterioração do corpo e a proximidade da morte. Aí estão os cardos, os espinhos, dessa última flor. Mais adiante, dirá Nicole que “envelhecer é feio”. Todavia, o sentimento angustiante de Nicole não objetiva apenas expressar com crueza a dificuldade da aceitação do processo de envelhecimento, mas livrá-lo da ilusão de uma espécie de ascetismo a ele frequentemente associada.
Diziam isto constantemente: a senhora tem um ar jovem, vocês são jovens. Elogios ambíguos que anunciam futuros penosos. Manter a vitalidade, a alegria e a presença de espírito é continuar jovem. Logo, são próprios da velhice a rotina, a melancolia, a caduquice. Dizem: a velhice não existe, não é nada; ou então: é muito bonita, muito tocante; mas, quando a encontram, fantasiam-na em palavras mentirosas. Macha dizia: a senhora é jovem, mas pegou Nicole pelo braço. No fundo, era por causa dela que, desde a chegada, Nicole sentia o peso da sua idade (BEAUVOIR, 2015, p.58-59).
Esse retrato ácido do envelhecimento revela o quanto normalmente se evita uma abordagem mais aprofundada desse processo ao enclausurá-lo numa fictícia imagem de graciosidade e novas potencialidades. O velho é sempre encarado como alguém que acumulou certa sabedoria e experiência, mas tratado com descaso e abandono. O imaginário desse processo não condiz, portanto, com a sua vivência. Beauvoir rompe o véu da serena aceitação da passagem do tempo e escancara as dores do transcurso da vida advinda do envelhecimento que não compactua com o ideal definido socialmente. A filósofa não encobre os sentimentos e preocupações que surgem nos personagens sobre esse tema, muito pelo contrário, patenteia suas reflexões com honestidade e lucidez.
Em outra passagem, Nicole pondera sobre a época que era professora e que, de certo modo, se alimentava da vitalidade de seus alunos, ao mesmo tempo, em que observava com condolência os colegas mais velhos. O velho era sempre o outro, de quem ela podia se apiedar, mas agora eis que é ela e não estava preparada para se defrontar com sua própria velhice. Há que se considerar também que o tema do envelhecimento e o peso que ele exerce sobre as mulheres, mesmo com todas as diferenças culturais que existem, traz consigo como contraponto à valorização da juventude e da beleza idealizada que nela se alicerça. Segundo Salgado: “[...] sabe-se que, em uma sociedade, é melhor ser homem do que ser mulher, ser jovem do que ser velho, portanto ser mulher e ser velha é duplamente desvalorizado” (SALGADO, 2002, p. 12). As imagens da jovialidade são celebradas nos mais diferentes níveis, na mídia, nas redes sociais, na família, etc., de modo que, atuam sobre as pessoas, principalmente sobre as mulheres, de modo violento e opressivo. Nesse sentido, nessa lógica de dominação perpetrada por uma sociedade capitalista e patriarcal, envelhecer não é somente um fardo para as mulheres, mas significa perder a beleza, a força e o viço que caracterizam a própria vida.
Assim, apesar da aparente complacência que temos com o envelhecimento, a palavra “velhice” adquire um sentido pejorativo, como algo ofensivo que deve ser suprimido, pois indica o perecimento do corpo e a iminência da morte.
No oceano do tempo, ela era uma rocha imóvel, atingida por ondas sempre novas, sem erodir. E agora a correnteza a levava e a levará até que encalhe na morte. Tragicamente sua vida fugia. E, no entanto, era um gotejar de hora a hora, minuto a minuto. [...] Meus dias escapavam de mim a galope, e em cada um deles eu me perco (BEAUVOIR, 2015, p. 92).
A finitude é uma discussão sempre presente nos textos de Beauvoir, que ao tratar da facticidade, explora também a questão da gratuidade da vida e suas contingências. Nessas passagens se percebe a influência muito clara do existencialismo, mas a pensadora o adapta às suas próprias inquietações. Desse modo, compreende que o acaso que lhe permite existir, também possibilita a construção e reconstrução de si. Como afirmará Nicole ao interrogar sobre sua imagem, sobre o que a constitui, ela percebe “que isso lhe provocava a vertigem de sentir de uma só vez a contingência e a necessária coincidência com sua história” (BEAUVOIR, 2015, p. 76).
Assim, a facticidade mesmo que me atordoe, impondo a cada passo a sombra fulgurante da morte, também me permite sua transcendência, não pela negação, ou pela busca de algum conforto alheio, mas justamente pela confirmação da transitoriedade da vida. Será nesse sentido que Santos vislumbra em Beauvoir um projeto autotanatográfico.
Isso porque a dimensão de thánatos parece se sobrepor ao horizonte da vida, do bíospropriamente dito, o que se revela de várias formas, seja no fascínio com que o tema da morte frequentemente surge nos seus textos de memória e de ficção, seja na constante alusão à incompletude da escrita e da própria vida (SANTOS, 2012, p.274).
Para a autora, Beauvoir ao tematizar constantemente a morte, transfigura sua própria existência e prepara a sua chegada. Talvez seja daí que Beauvoir tenha aprendido com Michel Montaigne a acercar-se da morte, unindo suas reflexões existencialistas a sugestão montaigniana de meditar sobre seu próprio perecimento. Pensar sobre a morte ao invés de negá-la, como geralmente estamos acostumados a fazer, exige coragem, porque culturalmente somos compelidos a evitar essa reflexão. Os amigos, a família e a sociedade tendem a celebrar a vida e relegar para segundo plano a discussão sobre o envelhecimento e a morte.
A morte é um tema interdito, ou tratamos dela com neutralidade, em uma descrição biológica e científica, ou deixemos para depois, pois sua verdade, o término da vida, parece por demais inconveniente para aqueles que querem viver a vida no seu máximo. No entanto, esse comportamento acaba por criar não somente uma tentativa de distanciamento da morte, mas também de tudo que ela representa, por isso, nos apiedamos da velhice, nos condoemos dos velhos, mas não os queremos por perto e nem queremos vivenciar a experiência de envelhecer. Como resposta a esta dura discussão, tergiversamos de pensar sobre o envelhecimento, portanto, ao criar uma aura mística de aperfeiçoamento ascético sobre ele pelo qual não desejamos passar. Como diz Macha “melhoramos com o avanço da idade” (BEAUVOIR, 2015, p.66), um otimismo tolo aos olhos de André, que dia a dia, percebe o esgotamento do corpo e suas limitações.
A grande contribuição de Beauvoir aos seus leitores, então, é justamente a possibilidade de pensar essas questões espinhosas (como cardos) pelos olhos dos seus personagens e vivenciar com eles seus temores e inquietações (que também são as nossas). A filósofa não apenas conta uma bela história sobre os conflitos existenciais que emergem para o casal com o avanço da idade, mas permite que participemos desse processo e que também nos reconheçamos nele. A obra oferece, então, a possibilidade de encarar a realidade do envelhecimento e da morte sem o apanágio das doces ilusões, assim, o término da vida deixa de ser um golpe implacável do destino para ser a serena aceitação de nossa própria mortalidade. A finitude transcende a situação de mera fatalidade para ser um conduto da nossa liberdade. Tal como preconizara Montaigne:
Não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer, desaprendeu de servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento (Michel de MONTAIGNE, 1996, p. 97).
É preciso considerar também uma outra camada de leitura que pode escapar a uma primeira impressão, o texto de Beauvoir não apenas nos convida a pensar os dilemas do envelhecimento dos seus personagens, mas o lugar que a velhice ocupa nas diferentes experiências vividas. Sem dúvida, nesse sentido, o caráter literário da obra encontra também seu pensamento filosófico. Mesmo sendo um processo considerado natural e biológico, o envelhecimento na verdade também passa pelo estatuto determinado socialmente. Ou seja, ainda que a experiência diga respeito a subjetividade daquele que a vivencia, seu acontecimento é sempre pressuposto por outras forças que condicionam não apenas o pensamento mas o que deve ser a velhice concreta. Por isso, afirmará a autora em um outro texto importante sobre essa temática:
Como todas as situações humanas, a velhice tem uma dimensão existencial; modifica a relação do indivíduo com o tempo e, portanto, sua relação com o mundo e com a própria história. Por outro lado, o homem não vive em estado natural. Na sua velhice, como em qualquer idade, seu estatuto é imposto pela sociedade à qual pertence. (BEAUVOIR, 1990, p.99).
Uma das alterações da relação com o tempo que acontece no processo de envelhecimento mostra, como afirma a autora e a própria Nicole parece concordar, que “velho é sempre o outro” (1990, p.9) pois não consegue equilibrar aquilo que é visto exteriormente, nas marcas e limitações do corpo, com a compreensão interior da passagem do tempo. Se há um descompasso entre a imagem que é vista de fora, pelos outros, e aquela que é sentida desde dentro, por aquele que a vivencia, isso se deve em grande parte pela definição analítica que normalmente se faz do envelhecimento, como um processo alheio que é possível categorizar e dimensionar objetivamente, deixando de considerar as experiências diferentes de cada um. Nesse sentido, a obra literária de Beauvoir realiza o esforço de mostrar essas experiências desde dentro, no modo como cada personagem se inquieta com suas próprias impressões e pensamentos sobre o envelhecimento. No entanto, não nos enganemos, Beauvoir, como já tematizei anteriormente, não apenas apresenta a dimensão subjetiva de seus personagens, mas mostra como esta é atravessada e influenciada pela dimensão histórica, política e social que age sobre as pessoas. Nesse sentido, o esforço é portanto, ainda maior, na medida em que enlaça diferentes níveis que se entrecruzam na trajetória e nas possibilidades que se apresentam para cada personagem, sem abster-se de problematizar as condições que determinam socialmente como deve se configurar a velhice. Nas palavras da autora:
A sociedade destina ao velho seu lugar e papel, levando em conta sua idiossincrasia individual, sua impotência, sua experiência. Reciprocamente, o indivíduo é condicionado pela atitude prática e ideológica da sociedade em relação a ele. Não basta portanto descrever, de maneira analítica, os diversos aspectos da velhice. Cada um desses aspectos vai reagir sobre todos os outros e ser afetado por todos esses outros. É nesse movimento indefinido dessa circularidade que é preciso apreender a velhice (BEAUVOIR, p.99).
Assim o envelhecimento não é regido unicamente pela deterioração do corpo com o avanço da idade e com todas as limitações que dela advém para cada um, mas também se assoma a isso, a determinação social que estabelece para aquele que envelhece o estatuto que este deve ocupar. Esse impasse, tensiona ainda mais a experiência do envelhecimento pois pressupõe para ele um único tipo de vivência possível escamoteando as nuances diferenciadas que o compõe.
O peso da idade também evoca outras preocupações nos personagens. Nicole, no seu contraponto com Macha também questiona a sua própria história. Ela vê em Macha todos os sonhos que tinha em juventude e foram se apagando ao longo dos anos. A força, a determinação e a independência de Macha remetem aos anseios que ela já possuíra antigamente. Lembra-se de como na adolescência tinha aversão ao que chamava de “profissão de mulher”, o padrão, a mulher idealizada por toda a sua família e amigas, criadas para serem sempre grandes esposas, belas e recatadas, mas que prescindiam, em função disso, de seus próprios desejos e vontades. É sensível o relato que faz das aspirações que a mãe tinha para sua vida e de como pretendia fugir delas. Para sua mãe:
Seu sonho era que Nicole arranjasse um casamento com alguém rico, pérolas, peles raras. E a briga começou. “Uma moça pode.” Ela continuou seus estudos, jurou contrariar seu destino: escreveria uma tese notória, teria uma cátedra na Sorbonne, provaria que o cérebro de uma mulher vale tanto quanto o de um homem. Nada disso aconteceu. Ela deu cursos e militou nos movimentos feministas. Mas, como as outras — estas outras de quem não gostava —, deixou-se absorver por seu marido, seu filho, seu lar. Macha com certeza não se deixava absorver por ninguém. No entanto, aceitava com naturalidade sua feminilidade: sem dúvida porque vivia, desde seus quinze anos, em um país onde as mulheres não têm complexo de inferioridade. Macha visivelmente não se sentia inferior a ninguém (BEAUVOIR, 2015, p.80-81).
A presença de Macha remete Nicole ao projeto que possuía para sua vida, mas que não conseguiu realizar, ainda que grande parte das escolhas que tenha feito pareçam ter sido motivadas pelo amor por André. Toda a luta feminista que Nicole encampava em sua juventude se dissolve na construção da família, por isso que a presença embora extremamente agradável de Macha, também lhe feria, por lembrá-la das convicções abandonadas ao longo do seu percurso. Nisso se evidencia também o contraste entre os personagens, determinadas pela diferença de gênero. As escolhas são condicionadas fortemente pelo contexto no qual se vive e envelhecer, tal como viver, não é a mesma coisa para homens e mulheres. André ainda que sinta os problemas do envelhecimento, não abandonara seus planos, os realizara plenamente ao longo de sua vida enquanto Nicole teve de renunciar a seus projetos, não por escolha própria, mas pela condição de mãe e esposa que passara a ocupar. A percepção de Nicole quanto às diferenças de suas trajetórias, e principalmente no que se refere à desigualdade de suas posições é justamente o que causa a ruptura entre as experiências do envelhecimento para cada um dos personagens. O que está em jogo, portanto, não é tão somente a experiência comum do envelhecimento, do amor, da vida que partilham, mas daquilo que singulariza a existência de ambos, abrindo para cada um deles possibilidades que são em sua origem desiguais, qual seja, algumas condições que antecedem as escolhas já estão pressupostas no que diz respeito a diferença entre Nicole a André, ou em outras palavras, entre mulheres e homens.
A nossa sociedade civil:
[...] leva a aceitar a visão de que enquanto os homens de idade avançada são “durões, rudes e viris”, as mulheres estão “enrugadas”. Os cabelos brancos e a calvície que fazem os homens parecerem “distintos e muito atrativos”, mostram uma mulher em “decadência”. [...] que reforçam constantemente o poder que emana do patriarcado. (SALGADO, 2002, p. 11-12).
Assim, é no plano prático, da vida, no exercício decisório que a liberdade se efetiva, no entanto, ela não é a mesma para todos. Por isso sua importância política, porque está ligada às ações das pessoas, e é nesse campo que a verdadeira batalha acontece. Segundo Rosa e Machado:
Beauvoir não busca colocar a liberdade das mulheres no plano ontológico, mas colocar a liberdade como algo circunstancial, ou seja, as escolhas derivam de circunstâncias em que o indivíduo está inserido, não há uma verdade universal correspondente para todas as épocas ou sociedades (ROSA; MACHADO, 2016, p. 251).
Assim, quando pensamos essa questão das mulheres nas obras de Beauvoir, o foco não é a descoberta de um sentido metafísico unívoco, pois é preciso considerar as diferenças históricas e contingenciais que afetam cada experiência.
No Mal-entendido, o conflito entre os personagens regida pelas condições históricas e sociais diferentes, reparte a obra em duas partes, a primeira cuida de mostrar o amor e a cumplicidade que une André e Nicole e os passeios e encontros na União Soviética, mas já adianta o desconforto dos personagens diante de alguns temas; a segunda se desenrola a partir da desavença entre eles, fazendo com que cada um se feche dentro de suas próprias incertezas e passem a duvidar do carinho que nutriam. Será a partir de um rompante específico (o mal-entendido) que Nicole irá expressar o ressentimento por ter abandonado o projeto que possuía para si mesma em função do casamento. O que fere Nicole não é o fato de ter se apaixonado por André, nem de ter passado longas décadas ao seu lado, mas de ter abdicado de seus anseios de juventude e agora não poder recuperá-los novamente, enquanto André parecia estar completamente realizado. Sua fala é melancólica e comovente:
De fato não houve uma simetria verdadeira entre suas vidas. André teve exatamente o que desejou: um lar, filhos, lazeres, prazeres, amizades e algumas agitações. Ao passo que ela havia renunciado a todas as suas ambições da juventude: por causa dele. André nunca se deu conta. Por causa dele ela era esta mulher que não sabia mais como empregar o tempo que lhe sobrava para viver. Outro homem a incentivaria a trabalhar, dando o exemplo. Já ele a desvirtuara. Nicole se encontrava de mãos vazias, sem ter nada no mundo além de André, que de repente ela não tinha mais. Contradição atroz da raiva nascida do amor e que mata o amor (BEAUVOIR, 2015, p.107, grifo nosso).
Se Nicole sofre por ter abandonado seus sonhos, percebemos na continuação da leitura que André também padece por estar envelhecendo, por não se considerar um homem desejável para a esposa e um pai admirável para a filha. No entanto, o que afeta Nicole é que André não perceba todas as suas renúncias e como isso se torna ainda mais difícil justamente por ver em Macha aquilo que não conseguiu realizar, não por insuficiência ou incompetência de sua parte, mas porque socialmente não lhe era possível. A diferença de gênero cria condições e opções diferentes e desiguais para cada um e é a constatação dessa dissimetria que a atordoa.
Assim, ainda que nos apiedemos de Nicole por ter abandonado seu projeto e escolhido o casamento, no fundo, percebemos também que o casal possui uma história juntos que é composta de lutas, mas também de renúncias e adaptações de ambos os lados. Todo o turbilhão de ressentimento que Nicole expressa nas suas reflexões internas após o incidente, será pelo menos momentaneamente apaziguada mais adiante na reconciliação do casal. No entanto, a reconciliação também não apaga todos os sofrimentos, como se eles nunca tivessem existido, pelo contrário, só demonstra que os sentimentos e as dúvidas que eles tem (como todos nós temos) são muito mais intrincadas e, por isso mais humanas, do que frequentemente se supõe, principalmente se levarmos em consideração essas pequenas nuances que interferem em todo o processo e sobre os quais não detemos controle.
Assim, Beauvoir concede ao seu leitor, ao tratar de temas universais – os temores, a morte, a culpa, o amor e as incertezas – uma obra profunda e complexa. Ler os romances de Beauvoir é se defrontar, a todo o momento, com questões emocionais, ideológicas, éticas e políticas e tudo isso pela seara de um universo ficcional envolvente. O leitor vivencia pelos impasses dos personagens suas próprias inquietações, sofre, vibra e aprende com eles.
Nas palavras de sua protagonista Nicole.
Esta é a vantagem da literatura, pensou ela: nós guardamos as palavras conosco. As imagens murcham, deformam-se, apagam-se. Mas ela reencontrava as velhas palavras em suas cordas vocais, quase como foram escritas. As palavras os uniam aos séculos passados, quando os astros brilhavam exatamente como hoje. E esse renascimento e essa permanência lhe davam uma impressão de eternidade. A terra se desgastou; e, no entanto, havia momentos como este, nos quais ela parecia fresquinha como nas primeiras eras e nos quais o presente era suficiente (BEAUVOIR, 2015, p. 42).
Beauvoir nos oferece, no Mal-entendido em Moscou, um retrato sensível e pungente das inquietações humanas sobre o envelhecimento e a morte, mas também uma imagem inspiradora do amor e da cumplicidade que podem compor nossas relações. Nesse espaço criado pela literatura vivenciamos um alargamento de nossas próprias experiências e por esta via podemos perceber que mesmo em meio a terras desgastadas há um potencial de frescor pelo qual podemos sempre lutar.
Considerações finais
A filosofia de Beauvoir alia uma interpretação aguda do existencialismo, surgida a partir de suas próprias inquietações, a uma escrita original e cativante. No Mal entendido ela entrega ao leitor um texto extremamente agradável de ler, porque está focado nas inseguranças que toda pessoa traz consigo, embora nem sempre se aperceba disso.
O grande mal-entendido que suplanta todos os outros na história não é a falta de consideração de André por Nicole, ou o esquecimento dela, da decisão de ficar mais dias em Moscou, mas as dúvidas, os medos, as incertezas que escondem um do outro, sobre o peso da idade que distintamente os afeta. O livro explora em algumas passagens como o relacionamento sofrerá frente às modificações do corpo com o avançar dos anos. O maior conflito não é, portanto, aqueles que expressam nas conversas e discussões entre eles, mas que carregam internamente, numa imagem confusa das experiências de cada um. Não é daquilo que falam de que trata a obra, mas muito mais daquilo que silenciam sem perceber e do grande monstro que essas inseguranças criam ao longo dos anos.
Esse retrato implacável do envelhecimento e da finitude apresentado na obra não pretende conduzir apenas a uma imagem decrépita da vida, mas serve como um alerta para que não acobertemos nossos receios sob um mar de pretensa tranquilidade, esse sim um grande perigo à vida e à afetividade.
Nesse sentido, torna-se oportuno transcrever aqui diálogo travado entre Sócrates e Céfalo, sobre a velhice, descrito por Beauvoir em outro belo texto intitulado A velhice (1990, p. 135):
Céfalo convidou Sócrates para visitá-lo, desculpando-se por não ir procurá-lo, pelo fato de estar velho e ser difícil sair de casa. Queria conversar com o amigo, pois para Céfalo, quanto mais amortecidos ficam os prazeres do corpo, mais crescem o deleite e o prazer da conversação. Sócrates aceitou o convite, respondendo que lhe agrada muito conversar com pessoas de mais idade, que já tinham percorrido um caminho que ele teria que percorrer. Assim, deu-se o início da conversa, quando Sócrates perguntou a Céfalo, como ele, já velho, sentia-se ao atingir a fase que os poetas chamavam de o limiar da velhice. Céfalo respondeu que muito bem, pois a triste cantilena, evocada por muitos, responsabilizando a velhice por todos os males, para ele era decorrente da própria vida e não da idade avançada.
Assim, aceitar a vida e engajar-se nela, tal como Céfalo o faz, aprendendo a lidar com as dificuldades do envelhecimento e a inevitabilidade da morte, talvez seja a melhor resposta para Nicole, André e todos nós. Mas para isso é necessário antes, perceber também que esta é uma questão de gênero, que está imbricada em uma construção social, que define papéis e confere atribuições específicas consideradas naturais a homens e mulheres, mas que não são naturais, são formas construídas socialmente, são produtos históricos. A cristalização desses produtos históricos em apenas um modelo, que não condiz com os paradigmas da nossa situação atual, é que podem e devem ser questionados e faz parte da nossa luta romper e recriar e nos refazermos nesse processo.
Referências
BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BEAUVOIR, Simone de. A força da idade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018a.
BEAUVOIR, Simone de. A força das coisas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018b.
BEAUVOIR, Simone de. L’existencialisme et la sagesse des nations. Paris: Éditions Nagel, 1948.
BEAUVOIR, Simone de. Mal-entendido em Moscou. Rio de Janeiro: Record, 2015.
BEAUVOIR, Simone de. Memórias de uma moça bem comportada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018c.
BEAUVOIR, Simone de. Tout compte fait. Paris: Gallimard, 1972.
BEAUVOIR, Simone de. Littérature et Métaphysique. In: Les Temps Modernes, Paris n. 7, 1946, p.1153-1163.
DEGUY, Jacques de; BEAUVOIR, Sylvie. Le. Simone de Beauvoir: écrire la liberté. Paris: Éditions Galllimard, 2008.
FERREIRA, Maria Luísa Ribeiro. As mulheres na filosofia. Lisboa: Edições Colibri, 2009.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Volume 1. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
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SAFFIOTI, Heleieth. Primórdios do conceito de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n.12, p.157-163, 1999.
SALGADO, Carmen Delia Sánchez. MULHER IDOSA: a feminização da velhice. Estudos interdisciplinares sobre o envelhecimento, Porto Alegre, v. 4, p. 7-19, 2002
SANTOS, M. G. Beauvoir: paradoxos e interlocuções metodológicas. Sapere Aude. Belo Horizonte, v.3, n.6, p.271-297, 2º sem. 2012.
Notas
Autor notes