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A phronesis como forma de hermenêutica
Edimarcio Testa
Edimarcio Testa
A phronesis como forma de hermenêutica
Phronesis as a form of hermeneutics
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 148-160, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: A phronesis aristotélica da Ética Nicomaqueia está na base de todo pensamento de Hans-Georg Gadamer, bem como de toda a sua teoria hermenêutica, sob a forma de modelo. Mostro, mediante descrição, que ela é referência para a abordagem gadameriana dos problemas hermenêuticos da aplicação e da natureza da própria hermenêutica. Disso resulta que a phronesis assume uma forma hermenêutica na medida em que contribui para a caracterização da atividade aplicativa do intérprete e para a determinação da hermenêutica filosófica como práxis, as quais se encontram fundamentalmente enraizadas na finitude humana.

Palavras-chave:GadamerGadamer,Hermenêutica filosóficaHermenêutica filosófica,PhronesisPhronesis,AristótelesAristóteles,FinitudeFinitude.

Abstract: The Aristotelian phronesis of Nicomachean Ethics is at the basis of all Hans-Georg Gadamer thought, as well as of all his hermeneutical theory, in the form of a model. I show, through description, that it is a reference for the Gadamerian approach to the hermeneutical problems of the application and the nature of the hermeneutics itself. As a result, phronesis takes on a hermeneutic form insofar as it contributes to the characterization of the interpreter's application activity and to the determination of philosophical hermeneutics as praxis, which are fundamentally rooted in human finitude.

Keywords: Gadamer, Philosophical hermeneutics, Phronesis, Aristotle, Finitude.

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A phronesis como forma de hermenêutica

Phronesis as a form of hermeneutics

Edimarcio Testa1
Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 148-160, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 31 Março 2021

Aprovação: 13 Maio 2021

1.Introdução

O conceito aristotélico de phronesis está na base de todo pensamento de Gadamer. Ele é um tema constante no pensar gadameriano2., desde sua formação acadêmica e escritos da juventude até suas produções da velhice. Tal constância temática da phronesis remonta aos primeiros anos da década de 1920, quando do encontro de Gadamer com as “interpretações fenomenológicas” da ética aristotélica desenvolvidas pelo jovem Heidegger, nos cursos de Friburgo (1919 – 1923) e de Marburgo (1923-1928). Ela é, depois, documentada praticamente ao longo de toda a obra de Gadamer, a saber: no ensaio de 1930, Saber prático .Praktisches Wissen), dedicado à interpretação do pensamento socrático, platônico e aristotélico; na quarta conferência do texto O problema da consciência histórica (1957), denominada “O problema hermenêutico e a ética de Aristóteles”; no capítulo de Verdade e método (1960) intitulado “A atualidade hermenêutica de Aristóteles”, no qual Gadamer mostra a original referência das ciências do espírito ao saber moral ou prático no sentido aristotélico; na “conversão” da hermenêutica em filosofia prática, implementada numa série de importantes ensaios dos anos setenta e oitenta, e, por fim, na tradução e no comentário do livro VI, da Ética Nicomaqueia (1998), efetuada e publicada pelo próprio Gadamer.

A phronesis também está na base do pensamento hermenêutico gadameriano. Ela é modelo para a hermenêutica filosófica, na medida em que participa decisivamente3. da elaboração da teoria hermenêutica de Gadamer, sob a forma de saber prático4.. Enquanto “uma espécie de modelo dos problemas que surgem na tarefa hermenêutica” (GADAMER, 2000, p. 669), consoante exposto em Verdade e método, a phronesis serve ainda de parâmetro, por exemplo, para a formação da “linha argumentativa” gadameriana5., no que tange ao problema hermenêutico da aplicação, isto é, da conjugação do universal e do particular. Ela é responsável, inclusive, pela realização da unidade entre teoria e prática hermenêutica, conforme Gadamer expressa no título de um de seus ensaios tardios - Hermenêutica como tarefa teórica e prática (1978).

Em ambos os contextos, além de ocupar uma posição de nítida relevância, a phronesis é objeto de reabilitação, por parte de Gadamer. Com ele, a phronesis aristotélica não é tomada no sentido de mera continuação, mas encontra um lugar diferente, num contexto também diferente. Inserida no horizonte da filosofia prática elaborada por Aristóteles, a virtude intelectual da phronesis é utilizada pela hermenêutica filosófica, em especial, de acordo com as questões das quais se ocupa. Desse modo, a leitura gadameriana da Ética Nicomaqueia confere ao conceito de phronesis um formato hermenêutico, que necessita ser explicitado, caso se queira alcançar uma compreensão adequada da seguinte questão: em que sentido a phronesis é uma forma de hermenêutica? Explicitar esse sentido hermenêutico da phronesis constitui o objetivo do presente artigo.

Tendo em vista tal pretensão, utilizo Verdade e método como o texto-base desta investigação, por ser a obra gadameriana de maior impacto no domínio hermenêutico. Utilizo, também, escritos de Gadamer publicados nas décadas posteriores à sua obra-prima, além de textos de comentadores consagrados, uma vez que eles auxiliam na elucidação da temática em foco. Por último, utilizo, obviamente, o texto aristotélico da Ética Nicomaqueia, do qual Gadamer toma, como referência, a noção de phronesis. Tomando por base esses textos, procuro descrever a forma hermenêutica da phronesis. Ressalto que Friederike Rese realiza, em Phronesis como Modelo da Hermenêutica.6, uma excelente descrição do modo como a phronesis aristotélica é modelo para a hermenêutica. Sua descrição, no entanto, além de estar publicada no idioma alemão, sem nenhuma tradução, até o momento, para a língua portuguesa, restringe-se, por uma questão de propósito, a Verdade e método. Pretendo, aqui, estendê-la inclusive para outros textos gadamerianos, ampliando, com isso, não só o leque de abordagem, mas também o desenvolvimento hermenêutico da phronesis.

Após essas observações procedimentais, destaco que o artigo se desdobra em duas partes. Na primeira delas, mostro que Gadamer apela para o conceito aristotélico de phronesis, enquanto modelo, no contexto do problema hermenêutico da aplicação. Ao fazer isso, Gadamer caracteriza a atividade do intérprete, não só como uma atividade de compreensão e interpretação, mas também de aplicação, transcendendo a hermenêutica metodológica romântica. Na segunda parte, mostro que o apelo gadameriano à phronesis aristotélica configura a hermenêutica filosófica enquanto práxis, distanciando-se das pretensões técnico-metodológicas oriundas da ciência moderna. Com isso, Gadamer enfatiza a dimensão prática da hermenêutica, intrinsecamente vinculada à sua dimensão teórica. Será essa natureza prática capaz de evidenciar outro elemento fundamental da hermenêutica filosófica, qual seja, a finitude humana.

2. O problema hermenêutico da aplicação

É no contexto do problema hermenêutico da aplicação, na segunda parte de Verdade e método, que Gadamer faz referência à virtude intelectual aristotélica da phronesis.7. Para ele, a compreensão é “um caso particular de aplicação de algo universal a uma situação concreta e determinada”. (2000, p. 645). Na perspectiva da phronesis aristotélica, o agente moral deve aplicar os fins éticos universais a uma situação particular de ação. De modo análogo, o intérprete deve aplicar um texto, o universal, a uma situação específica de compreensão. Em ambos os casos, a tarefa é a mesma: aplicar um universal a uma situação particular. É precisamente essa coincidência de atividade que torna possível a Gadamer tomar a phronesis como modelo para a hermenêutica.

A noção de aplicação é introduzida, no universo reflexivo hermenêutico, pela hermenêutica pietista do século XVIII, como atesta a obra Instituciones hermeneuticae sacrae (1732), do teólogo evangélico Johann Jacob Rambach, ao qual Gadamer faz referência. Com a pretensão de explicar a atividade do intérprete de textos religiosos, Rambach teria acrescentado, às já conhecidas faculdades espirituais da compreensão (subtilitas intelligendi) e da interpretação (subtilitas explicandi), a faculdade espiritual da aplicação (subtilitas applicandi). Essas três faculdades ou momentos constituíam, segundo Gadamer, todo o ato de compreensão. Ademais, é significativo o fato de receberem a denominação subtilitas, pois os três momentos são compreendidos “menos como métodos sobre os quais se dispõe, mas sim como uma faculdade que exige uma particular finura de espírito”. (GADAMER, 2000, p. 635).

Rambach distingue rigorosamente as três faculdades espirituais (subtilitas intelligendi, explicandi e applicandi), deixando claro que é possível existir, consequentemente, três fases diferentes no tratamento de um texto religioso: a primeira delas é a compreensão, quer dizer, a recepção cognitiva daquilo que é dito no texto; a segunda é a interpretação, isto é, o ato de formular aquilo que é dito no texto com as próprias palavras, e, por fim, a aplicação, que consiste na tentativa de vincular o compreendido e o reformulado [com palavras próprias] à situação concreta do ouvinte. É oportuno observar que a aplicação, neste contexto religioso, ocorre “na forma de pregação, na qual o intérprete oficialmente autorizado transmite a mensagem sagrada e atemporal do texto religioso nas condições da presença do ouvinte”. (RESE, p. 130). Frente à hermenêutica pietista, Gadamer questiona a forma de estruturação e realização dos três momentos, a partir dos quais se aborda um texto religioso. Para ele, há dúvidas, não só em distingui-los nitidamente entre si, como também em permitir que sejam postos em sucessão cronológica, como pretendeu fazer Rambach.

Não obstante, o momento da aplicação é suprimido do processo hermenêutico, no período romântico. Conforme Gadamer, o problema hermenêutico adquiriu, de modo especial com Friedrich Schleirmacher, “sua relevância teórica precisamente pelo fato de o romantismo reconhecer a íntima unidade entre intelligere e explicare”. (2000, p. 635). Se, por um lado, esta unidade interna teve o mérito de sistematizar os momentos hermenêuticos da compreensão e da interpretação, em razão de se realizarem necessariamente na linguagem, por outro, ela “teve como consequência excluir completamente do âmbito da hermenêutica aquele que era o terceiro momento do problema da interpretação, a aplicação”. (GADAMER, 2000, p. 637). Para além da hermenêutica romântica e da distinção das três subtilitas do pietismo, Gadamer considera que compreensão, interpretação e aplicação constituem um processo unitário. Em suas próprias palavras, “a aplicação constitui, como a compreensão e a explicação, um aspecto integrante do ato interpretativo em sua unidade”. (2000, p. 637). Como se vê, os três momentos não podem ser separados, sendo integrantes de um mesmo processo, no qual o intérprete busca compreender e interpretar um texto8..

Com o intuito de legitimar o significado fundamental da aplicação, Gadamer apela para a história esquecida da hermenêutica. Segundo ele, no passado era óbvio se julgar que a tarefa da hermenêutica consistia em “adaptar o sentido de um texto à situação concreta a que este se insere”. (2000, p. 637). O modelo originário desta tarefa é o intérprete da vontade divina, que sabe interpretar a linguagem do oráculo. Também nos dias de hoje, diz Gadamer, o trabalho do intérprete não consiste simplesmente na reprodução, em outra língua, daquilo que diz seu interlocutor; ao intérprete cabe expor os argumentos do interlocutor, de modo que lhe pareça adequado à situação dialógica concreta, na qual apenas ele se encontra na posição de conhecedor da linguagem das duas partes.

A história da hermenêutica mostra também que, ao lado da hermenêutica filológica, existiam uma teológica e outra jurídica, comportando, as três juntas, o conceito pleno de hermenêutica. Apesar dessa unidade originária, a hermenêutica filológica e a histórica separam-se das outras disciplinas hermenêuticas, em decorrência do desdobramento da consciência histórica dos séculos XVIII e XIX, ocupando um lugar de exceção, como metodologia investigativa das ciências do espírito. Esse fato, porém, não altera, no entendimento de Gadamer, o estreito vínculo que unia originalmente a hermenêutica filológica com a jurídica e a teológica, a saber: “o reconhecimento da aplicação como momento constitutivo de toda compreensão”. (2000, p. 639).

Tanto na hermenêutica jurídica, como na teológica, é imprescindível a tensão que se constitui entre o texto da lei ou da revelação, por um lado, e o sentido que alcança sua aplicação no momento concreto da interpretação, no juízo ou na pregação, por outro lado. Desse modo, textos jurídicos e da revelação não podem ser reduzidos a objetos de interpretação histórica. Para serem compreendidos adequadamente, isto é, conforme as pretensões que eles mesmos apresentam, eles devem ser compreendidos “em cada momento e em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta. Compreender significa sempre, necessariamente, aplicar”. (GADAMER, 2000, p. 639).

A reflexão sobre o fenômeno da aplicação textual conduz Gadamer a admitir que, na compreensão, “sempre se verifica uma espécie de aplicação do texto a ser compreendido à situação atual do intérprete”. (2000, p. 637). Neste ponto, Gadamer acompanha, no entendimento de Jean Grondin, a intuição de Heidegger, que considera o compreender sempre como um compreender-se, implicando um encontro consigo mesmo. Compreender consiste, então, o mesmo que aplicar um sentido aos questionamentos e à situação presente do intérprete. Desse modo, não há, primeiramente, uma compreensão pura e objetiva de sentido, que, num momento posterior, na aplicação aos questionamentos do intérprete, obtenha um especial significado. Nas palavras de Grondin, “nós já nos levamos conosco para dentro de cada compreensão, e isso de tal modo, que, para Gadamer, compreensão e aplicação coincidem”. (1999, p. 193). Tal coincidência não é casual, haja vista que em toda compreensão está contida uma aplicação.

A questão da aplicação adquire um especial significado na compreensão da tradição. Conforme Gadamer, o cerne propriamente do problema hermenêutico está no fato de que a tradição enquanto tal deve ser entendida cada vez de modo diferente. Isso remete, do ponto de vista lógico, à questão da relação entre o geral e o particular. Por conseguinte, o compreender consiste na aplicação de um universal a uma situação concreta e determinada. Neste caso da aplicação, a ética aristotélica torna-se, segundo Gadamer, especialmente relevante, pois Aristóteles, apesar de não versar sobre o problema hermenêutico, nem sua dimensão histórica, trata da “avaliação exata do papel que possui a razão no agir ético”. (2000, p. 645). O interessante, nessa avaliação aristotélica, é que ela diz respeito a uma razão e a um saber que não estão separados do ser que deveio, determinando-o e sendo determinado por ele. Com isso, verifica-se, na ética de Aristóteles, uma peculiar relação entre ser moral e consciência moral. Essa peculiaridade do vínculo entre ser e saber moral também se apresenta no âmbito do problema hermenêutico, já que esse “se aparta evidentemente de um saber puro, separado do ser”. (GADAMER, 2000, p. 649).

O exemplo da ética aristotélica, declara Gadamer, auxilia a hermenêutica no desmascaramento e na esquiva da ideia de objetivação, resultante do método objetivador da ciência moderna. Para ele, o saber ético, assim como Aristóteles o descreve, não é evidentemente um saber objetivo. Sua verdadeira peculiaridade, frente ao saber científico e técnico, é assim explicitada por Gadamer: “Aquele que sabe não está diante de um estado de coisas, que basta registrar objetivamente, mas está imediatamente envolvido e interessado naquilo que conhece. É algo que ele tem que fazer”. (2000, p. 649). Todavia, como é possível tal especificidade do saber ético? Pode-se extrair, dessa questão, uma quantidade de respostas da análise aristotélica da phronesis.

Da discussão de Aristóteles, Gadamer identifica três aspectos relevantes para a aplicação hermenêutica. Em primeiro lugar, as normas éticas universais são “imagens orientadoras”, isto é, diretrizes, que, para sua realização, demandam uma consideração da situação concreta. Como afirma Gadamer, “a imagem que o homem faz sobre aquilo que deve ser, por exemplo, os conceitos de justo e injusto, de decoro, de coragem, de dignidade, de solidariedade etc [todos os conceitos que possuem seus correlatos no catálogo aristotélico das virtudes], são em certo modo imagens diretrizes, pelas quais ele se guia”. (2000, p. 655). Junto a isso está a discussão aristotélica sobre a equidade (epieikeia), que designa “a correção da lei”, atestando que a efetivação ou aplicação de uma lei a uma situação particular pode implicar a alteração da letra da lei, no intuito de realizar seu verdadeiro significado. O mesmo pode ocorrer com a projeção ou aplicação do prejuízo do texto. Ele pode implicar, como afirma Lawrence Schmidt, “uma modificação de seu significado para torná-lo inteligível no horizonte do intérprete, mas esta modificação é uma realização de seu significado verdadeiro”. (p. 157).

Em segundo lugar, a aplicação de uma norma ética a uma situação concreta não pode ser determinada previamente, isto é, antes do tempo adequado, como se fosse um procedimento dedutivo. Ela comporta incerteza e requer deliberação. Desse modo, em toda aplicação de caráter moral emerge a necessidade de deliberação. Nos próprios termos de Gadamer, “o saber moral exige sempre, e imprescindivelmente, um tal processo de deliberação”. (2000, p. 663). Essa chega ao fim naquilo que deve ser feito na “imediatez da situação dada”. Nessa circunstância, o agente moral provavelmente tenha que ponderar sobre as diversas atuações possíveis, até encontrar aquela que constitua o meio adequado para se atingir o fim justo. Se o agente moral precisa saber ver o que uma situação exige dele, “este ver não significa perceber a situação naquilo que nela é visível como tal, mas aprender a vê-la como situação da ação, isto é, à luz daquilo que é justo”. (GADAMER, 2000, p. 665). Esse sentido de ver o que deve ser feito está presente na comparação que Aristóteles realiza entre a forma pela qual se vê o triângulo como uma figura plana mais simples.

Em terceiro lugar, ao lado da phronesis, a virtude da consideração reflexiva, Gadamer coloca a compreensão (Verständnis). Esta constitui uma modificação da virtude do saber moral, uma vez que, nela, “não se trata de si mesmo, mas do outro”. (GADAMER, 2000, p. 667). Ela é, ainda, uma forma de juízo moral. Fala-se de compreensão quando, no ato de julgar, “alguém é capaz de se deslocar completamente para a concreta situação em que o outro deve agir”. (GADAMER, 2000, p. 667). Nesse sentido, o homem que compreende não se coloca numa posição de saber ou julgar, na qual simplesmente se posta diante do outro sem ser afetado; pelo contrário, ele se coloca numa posição a partir da qual assume uma pertença específica que o une com o outro, de modo que pensa e é afetado com ele. Daí a pertinência de Gadamer mencionar Aristóteles, o qual diz que apenas amigos podem oferecer conselhos.

Como se pode notar, a relação do problema hermenêutico da aplicação com a descrição e a análise aristotélica do fenômeno ético, especialmente da virtude da phronesis, mostra-se, para Gadamer, como um tipo de modelo perante os problemas provenientes da atividade hermenêutica. Nessa perspectiva, é pertinente mencionar, uma vez mais, a descrição de Aristóteles, segundo a qual a efetivação da norma ética numa situação concreta requer deliberação, para estabelecer como esse universal pode ser aplicado e realizado nesta circunstância particular. A deliberação ética da phronesis aristotélica constitui-se, conforme Schmidt, num modelo de aplicação por duas razões: primeiro, ela atesta como se pode aplicar logicamente um universal, o texto, a uma situação particular, a do intérprete, sem inserir de modo dedutivo o indivíduo numa norma universal; segundo, ela atesta como aquele que está implicado com a compreensão pode adquirir autoconhecimento sem presumir uma perspectiva objetiva. (p. 156). Além de ser parâmetro de aplicação, a phronesis aristotélica também é referência para a determinação da natureza prática da hermenêutica filosófica de Gadamer.

3. A hermenêutica filosófica como práxis

O principal motivo de Gadamer recorrer à noção aristotélica de phronesis, para explicar sua compreensão hermenêutica, está no fato dessa noção designar um certo tipo de saber. A natureza desse se revela na delimitação quanto aos outros tipos de saber, como exposto por Aristóteles no livro VI da Ética Nicomaqueia e retomado parcialmente por Gadamer em Verdade e método. Nesse sentido, o saber da phronesis se diferencia, por um lado, do saber técnico (techne) e, por outro lado, do saber científico (episteme) e do saber filosófico (sophia). No entanto, para além da demarcação das diferenças entre o saber da phronesis e o saber da ciência, é de fundamental importância o estabelecimento das diferenças entre o saber ético e o saber técnico, se se quer compreender a dimensão prática da hermenêutica filosófica gadameriana.

O saber ético não é, evidentemente, o saber da ciência. A delimitação que Aristóteles realiza entre ambos os saberes é, de acordo com Gadamer, “clara, sobretudo se se tem presente que, para os gregos, a ciência, pensada a partir do modelo da matemática, é um saber do imutável, que se funda sobre a demonstração e que, por isso, todos podem aprender”. (2000, p. 649). Dessa delimitação do saber ético, frente ao saber matemático, uma hermenêutica das ciências do espírito não poderia aprender nada de útil, pois, em contraposição à ciência teórica, diz Gadamer, “as ciências do espírito vinculam-se estritamente ao saber moral. Elas são ‘ciências morais’. Seu objeto é o homem e aquilo que sabe de si”. (2000, p. 649). O homem, porém, autocompreende-se como um sujeito que age. Por isso, ele lida “com coisas que nem sempre são como são, mas podem ser também diferentes”. Nelas, o homem descobre em que medida pode agir, devendo seu saber orientar sua ação.

O saber ético não é, também, o saber da técnica. Essencialmente, o saber da phronesis, da mesma forma que o saber da arte (techne), refere-se ao domínio do mutável e da ação. Aqui está, segundo Gadamer, “o verdadeiro problema do agir moral, que Aristóteles se ocupa na ética. Um direcionamento da ação pelo saber verifica-se sobretudo, e de modo exemplar, naquilo que os gregos denominam de techne”. (2000, p. 651). Apesar dessa aproximação entre o saber da phronesis e o saber da técnica, torna-se particularmente importante realizar uma distinção entre esses tipos de saber. É o que Gadamer realiza em Verdade e método, utilizando tal diferenciação para ilustrar como ele compreende a atividade do intérprete e, por consequência, a hermenêutica.

Supondo-se que a técnica (techne) fosse o modelo da hermenêutica, e não a phronesis, o saber do intérprete poderia ser transmitido como o conhecimento de uma habilidade qualquer. Entretanto, o conhecimento do intérprete difere do conhecimento do artesão. O saber do intérprete, por exemplo, não pode ser transmitido do mesmo modo que o saber técnico, uma vez que ele requer uma forma específica de transmissão – o que justifica o apelo de Gadamer à distinção aristotélica entre phronesis e techne. Enquanto o saber técnico guia o artesão na produção (poiesis) de objetos de uso, obras de arte ou na criação de um certo estado, o saber ético da phronesis oferece uma orientação ao agente moral em sua ação (práxis), isto é, em sua reação diante das mais diversas situações de atuação.

Segundo Gadamer, “aprende-se uma techne e pode-se também desaprendê-la. O saber moral, ao contrário, não se aprende e nem se pode desaprender”. (2000, p. 651). Do ponto de vista técnico, aprender significa adquirir, sobretudo por meio da transmissão de outros, um conhecimento do “modo de se fazer algo” (Know how), que não se tinha antes. Por exemplo, pode-se aprender e, depois, desaprender uma técnica de se fabricar mesas. Já do ponto de vista ético, aprender significa lembrar o que já sabemos, isto é, recordar a “tradição da qual fazemos parte e que é constitutiva de nosso caráter”. (SMITH, 1988, p. 9). Enquanto membros de uma comunidade e de sua tradição, participamos do conhecimento do bem. Tal saber, por sua vez, não pode ser transmitido aos outros, sendo sua aprendizagem uma tarefa exclusiva do indivíduo, por meio da própria experiência. Assim, somos marcados, por um lado, pelos referenciais dos bons cuidados concernentes à saúde, oriundos da tradição a qual pertencemos e, por outro lado, pela exigência de que a realização concreta de tais cuidados depende exclusivamente de nossa atuação.

O saber ético também se distingue do saber técnico em virtude de “uma modificação fundamental da relação entre meios e fins”. (GADAMER, 2000, p. 663). No saber técnico, o fim é separável da ação que o realiza, uma vez que ele segue existindo como trabalho (ergon), apesar de sua atividade ou criação ter terminado há tempo. O saber técnico é, ainda, “sempre particular e serve a fins particulares”. (GADAMER, 2000, p. 663). Além disso, ele não exige que o sujeito mesmo que o pratica pondere novamente sobre os meios que lhe permitem atingir o fim. No saber ético, o fim é inseparável da ação, quer dizer, o fim a que o agente moral visa somente pode se realizar por meio de seu próprio agir – a saúde (fim) só se efetiva mediante atos saudáveis ou do ser saudável, por exemplo. Além disso, o fim do saber ético não é algo particular; ao contrário, ele determina o viver corretamente, em geral. O saber ético, ainda, requer sempre o “buscar conselho consigo mesmo”, isto é, a deliberação e a reflexão, pois além de não dispor antecipadamente dos meios idôneos para a realização dos fins, os próprios fins jamais se apresentam de um modo perfeitamente determinado.

O saber técnico não leva em conta o bem e o mal. É o que descreve a forma degenerada da phronesis que caracteriza o Deinos, ou seja, o homem que, fazendo uso de sua aguçada inteligência, tira proveito de toda e qualquer situação. Opondo-se evidentemente à phronesis, o “Deinos usa e abusa de seu poder sem nenhuma consideração ética”. (GADAMER, 2003, p. 56). O saber ético implica, por seu turno, além de uma característica relação para consigo mesmo, uma notável relação para com o outro, pois a par da phronesis há o fenômeno da compreensão (Verständnis), no sentido da Synesis, designando “a compreensão que nos permite seguir o outro em sua ação”. A compreensão nos permite, também, descobrir um vínculo comum com o outro, como no engajamento de uma causa justa e na relação de amizade. A compreensão nos permite, ainda, reconhecer o direito da situação concreta do outro e, partir daí, inclinar-se para a tolerância, a compaixão e o perdão.

Estabelecidas, ao modo de Gadamer, as distinções elementares entre saber ético e saber técnico, faz-se necessário, então, relacionar, analogicamente, phronesis e hermenêutica. Da analogia entre ambas, pode-se extrair três consequências fundamentais (RESE, p. 144 e 145). Em primeiro lugar, o intérprete, assim como agente moral, participa de um acontecimento: seus pré-juízos atuam no processo de compreensão de um texto, da mesma forma que os fins do agente moral atuam no processo de avaliação de uma situação de ação. Por isso, o intérprete não pode abster-se de si mesmo e de seus pré-juízos prévios sobre o assunto. Se tentar fazê-lo, ele sucumbe à ilusão de uma compreensão supostamente científica, isto é, objetiva. Como diz Gadamer, “o compreender não é tanto um método, mediante o qual a consciência se põe em relação a um objeto, por ela escolhido, para obter um conhecimento objetivo, mas pressupõe pertencer a um processo vivo de transmissão histórica em andamento”. (2000, p. 639).

Em segundo lugar, o confronto com o texto produz efeitos no intérprete, tal como o agente moral é continuamente afetado pelo próprio comportamento em uma dada situação de ação. O intérprete não pode se manter numa posição externa ao processo de compreensão, nem mesmo em suas repercussões sobre si mesmo. Contrariamente, seus pré-juízos sobre o assunto (Sache) são postos em xeque pelo próprio texto; caso ele esteja de acordo com a argumentação textual, também seus pré-juízos podem ser modificados pelo texto. No entendimento de Gadamer, é no confronto com o texto que o intérprete pode efetivamente realizar a autêntica e “mais elevada experiência hermenêutica” (2000, p. 745).

Em terceiro lugar, ao orientar sua hermenêutica a partir do modelo da phronesis aristotélica, Gadamer enfatiza muito mais o papel do confronto do intérprete com o texto do que o papel do intérprete nesse confronto com o texto. Disso decorre que o intérprete, para desenvolver uma interpretação textual independente, não pode distanciar-se daquilo que diz o texto (Sache), ao modo de uma “contemplação”, por exemplo. Além disso, a interpretação desenvolvida pelo intérprete não é o resultado de um processo de compreensão que, como tal, possui o caráter de uma obra desconectada da atividade compreensiva. Se assim fosse, o modelo hermenêutico seria o saber da teoria ou da técnica, e não o saber prático da phronesis.

Enquanto atividade de compreensão e interpretação de um texto, a hermenêutica opera um saber de natureza prática. Esse orienta o intérprete, da mesma forma que orienta o agente moral, além de não poder ser transmitido a outros, não é tão separável do intérprete como seria uma habilidade técnica. Isso significa que não é possível explicitar objetivamente todo o processo envolvido na produção de uma interpretação. Desse modo, não se pode reduzir o conhecimento do intérprete a algumas regras metódicas, passíveis de uso, na compreensão de um texto. Todavia, como se pode ensinar ou aprender a interpretação? Desenvolvendo uma certa atitude, dirá Gadamer. E como se adquire essa atitude? Por meio das ações que lhe são correspondentes, ou seja, mediante as múltiplas repetições da atividade de interpretação do texto. Entretanto, não basta simplesmente repetir essa atividade. Ela deve ser realizada “já com uma certa atitude ou postura”. (RESE, p. 146).

Tal atitude se caracteriza pela disposição do intérprete em colocar à prova seus pré-juízos sobre o assunto do texto, bem como pelo seu esforço de configurar uma representação coerente desse assunto, no decorrer do seu engajamento com o próprio texto. O resultado do confronto com o texto é, por conseguinte, uma interpretação fundamentada na compreensão daquilo que é dito no texto. Considerando-se que o diálogo9. entre o intérprete e o texto, imprescindível para se desenvolver uma interpretação, não só deve ser renovado frente a cada novo texto, mas também, ao término da interpretação de um texto, não pode ser antecipado para a próxima interpretação textual. O fim de uma interpretação, por parte do intérprete, é sempre o fim da interpretação de um determinado texto. Mesmo assim, não há nada que impeça a retomada da questão do texto sob uma nova perspectiva. Por outro lado, o intérprete também não chega a um ponto final, no refinamento da atitude que lhe permite interpretar textos, pois essa atitude se baseia na própria experiência.

A experiência da ação moral é, consoante Gadamer, diferente daquela realizada na produção. A experiência é também indispensável para a formação do artesão, visto que ele deve ser capaz de aplicar seus conhecimentos nas condições de uma situação concreta. Nessa aplicação, porém, o objeto, ao qual o artesão aplica seu saber, permanece externo a ele próprio. Para o intérprete, ao contrário, aquilo que é objeto de aplicação não segue externo a ele. Desse modo, os pré-juízos do intérprete sobre algo podem ser transformados no confronto com o texto. Gadamer inclusive descreve o fenômeno da aplicação com ênfase no texto, que se aplica aos pré-juízos do intérprete, ao invés deste aplicar seus pré-juízos ao texto. Nesse sentido, a interpretação tem início em um desafio provindo do próprio texto que, além de ‘quer dizer algo’, antecede a primeira pergunta do intérprete. Assim, a tensão inicial ou originária entre “texto e intérprete é motivada pelo texto”. (FLICKINGKER, p. 43). O significado dessa posição é que algo do texto acontece com o intérprete. Ao lidar com o texto, o horizonte10 de compreensão do intérprete é modificado, pois alguns de seus pré-juízos são confirmados, enquanto outros são refutados. Essa negação das concepções prévias sobre o assunto do texto caracteriza a experiência hermenêutica. Com base nisso, Gadamer afirma que o saber do intérprete, assim como ocorre com o saber prático do agente moral, baseia-se, sob certa medida, na experiência.

Gadamer entende que a atitude correta do intérprete diante de um texto é uma atitude de abertura (2000, p. 733 e 745). Entretanto, antes de se encontrar com o texto, o horizonte do intérprete não é indeterminado. Pelo contrário, sua compreensão do assunto, até o presente momento, constituiu-se mediante a leitura de textos anteriores e devido ao pertencimento a uma determinada cultura. Isso é válido, fundamentalmente, também para o agente moral. Seu juízo, perante uma situação de ação, também se caracteriza por certas ideias éticas, em parte históricas. É o caso da ideia do bem, que pode ser concebida como diferente, ao se considerar a cultura e o momento histórico. Enquanto atitude voltada para o bem, a racionalidade da phronesis apresenta-se igualmente sob influência histórica, conforme explicita Rese: “o conceito aristotélico de racionalidade prática (phronesis) está em parte também condicionado historicamente por sua orientação para as virtudes”. (p. 147). Em razão dessa historicidade, a phronesis torna-se um conceito orientador da hermenêutica gadameriana. A razão hermenêutica, segundo Gadamer, é também histórica, uma vez que o intérprete está condicionado pelo seu pertencimento a um certo domínio cultural e por sua história particular de vida.

O conceito de phronesis é responsável pela realização da unidade entre teoria e prática hermenêutica. (DOTTORI, p. 01). Tal unidade se revela, para além de Verdade e método, no próprio título de um dos ensaios tardios de Gadamer: Hermenêutica como tarefa teórica e prática (1978). Nesse escrito, Gadamer procura demonstrar que a hermenêutica não possui apenas uma dimensão teórica, mas também uma dimensão prática. Na verdade, diz Gadamer, ambas as dimensões não podem ser separadas uma da outra, sendo regidas por uma relação de reciprocidade: na “hermenêutica nos encontramos com a mesma implicação recíproca entre interesses teóricos e ocupações práticas”. (1983, p. 76). A hermenêutica é, ao mesmo tempo, teórica, por referir-se à reflexão filosófica sobre a atividade do intérprete11, e prática, por concernir à práxis da compreensão, no sentido da filosofia prática de Aristóteles.

No ensaio supramencionado, Gadamer afirma não ser acidental a “oscilação da palavra ‘hermenêutica’ entre um significado prático e um significado teórico”. (1998, p. 293). Uma oscilação de significados da mesma natureza ocorre, por exemplo, com a lógica e a retórica. Fala-se da existência de lógica ou da falta dela no tratamento cotidiano com as pessoas, sem se fazer, necessariamente, referência a uma disciplina filosófica em particular. O mesmo fenômeno acontece com a retórica, pois a palavra expressa tanto a arte, como a capacidade natural de falar. Nesse sentido, não há dúvidas de que a aprendizagem de alguma coisa sem a posse de um talento natural leva a resultados modestos, bem como a ausência de talento natural para falar é difícil de se compensar com o ensino metodológico. Com a arte da compreensão [a hermenêutica] não é diferente, uma vez que ela “designa sobretudo uma capacidade natural do ser humano”, sendo “algo mais que um método das ciências ou o distintivo de um determinado grupo de ciências”. (GADAMER, 1998, p. 293).

Na hermenêutica gadameriana, a dimensão prática está na origem da dimensão teórica. No texto de sua “Autoapresentação”, publicado em 1977, Gadamer declara: “A gênese de minha ‘filosofia hermenêutica’ não é, no fundo, outra coisa que a tentativa de explicar teoricamente o estilo de meus estudos e de meu ensino. A práxis veio primeiro”. (1998, p. 388). Enfatizando a primordialidade da prática ante a teoria, Gadamer, ao se referir especialmente sobre seu estilo de ensino na universidade, diz: “O que eu ensinava era sobretudo a práxis hermenêutica”. A hermenêutica é, antes de tudo, “uma práxis, a arte de compreender e de tornar compreensível. Ela é alma de todo ensino que quer ensinar a filosofia”. (1998, p. 389). O ensino de filosofia é, então, marcado por uma evidente “postura hermenêutica”, praticada por Gadamer, que procura evitar construções teóricas não provenientes inteiramente da experiência.

Mas o que significa práxis? Certamente, não significa apenas aplicação prática de teorias científicas, por exemplo. Se assim fosse, aquela palavra seria compreendida de maneira muito estreita. Não há dúvidas, entretanto, de que também a aplicação de teorias constitua a práxis. Mas o termo práxis designa mais coisas. Conforme Gadamer, “nesta palavra cabe a totalidade de nossos assuntos práticos, toda atuação e comportamento humano, a total autoinstalação do homem neste mundo; portanto, também sua política, legislação e aconselhamento político”. (DUTT, p. 95). Assim sendo, a práxis comporta o modo de vida humano em sua totalidade. É com esse sentido que o termo práxis se constitui em tema da filosofia prática inaugurada por Aristóteles. Este possui diante de si o horizonte da polis grega, com a práxis dos seus cidadãos livres. Tal horizonte prático evidencia que a vida compartilhada dos homens, por não estar previamente determinada - ao contrário do que ocorre com a ordem da vida dos animais -, apresenta-se ordenada na medida em que é conduzida pela razão. E, diz Gadamer, “esta racionalidade que dirige a práxis se chama, em Aristóteles, phronesis” (DUTT, p.95).

A racionalidade da phronesis, ao vincular o logos com o ethos, é capaz de superar a cisão entre teoria e prática. No ensaio “Sobre a possibilidade de uma ética filosófica” (1961), Gadamer declara que existe, na ética grega antiga, uma convergência positiva entre a ética filosófica e a ética prática. Por ética filosófica entende-se uma filosofia da moral. Já por ética prática entende-se o estabelecimento de uma tábua de valores - à qual o agente moral possa se referir - e o saber de como aplicar tais valores, que orienta o apelo do agente moral a esta tábua de valores na prática. Considerando essa convergência, Aristóteles explicita, ressalta Gadamer, o que já estava presente na doutrina socrático-platônica acerca do conhecimento da virtude: “que não queremos apenas saber o que é a virtude, mas conhecê-la para nos tornarmos bons”. (2007, p. 277). Gadamer observa, também, que a transição para a práxis é inerente ao antigo conceito de saber em geral. Com isso, o conhecimento científico, em particular, não “é um agregado anônimo de verdades, mas um comportamento humano”. (GADAMER, 2007, p. 277). Nesse contexto, a teoria não se opõe absolutamente à práxis, mas ela mesma é uma práxis refletida, um modo de ser supremo do homem, capaz de conciliar seu pensar com seu agir. No domínio ético, todavia, não pode haver uma cisão entre teoria e práxis, mas um vínculo tensional, posto que, nele, não há nenhum saber especializado que deva ser aplicado, de maneira posterior.

O cerne da problemática que orienta o questionamento de Gadamer, relativamente à ética de Aristóteles, consiste na crítica ao conceito moderno de ciência. De acordo com a posição gadameriana, a ciência moderna se caracteriza por oposição à prática, outorgando à teoria um papel de supremacia com relação àquela, quanto à explicação da multiplicidade dos fenômenos. Tal “modelo de ciência pressupõe um domínio sobre o plano prático, compreendendo-se como instrumento e não como reflexão ou retrato da práxis humana”. (ROHDEN, 2008, p. 142). Desse modo, o mundo contemporâneo, marcado sobretudo pela dominação da tecnologia baseada na ciência, pelo culto ao especialista e pela mistificação da especialização, acaba deturpando a real compreensão da práxis. No entendimento de Gadamer, “houve um esquecimento e uma deformação do que a práxis realmente é”. (BERNSTEIN, p. 102).

Em sintonia com Aristóteles, é preciso, então, novamente legitimar a práxis humana, enquanto uma esfera autônoma do saber, integrando-a também à hermenêutica. A fusão da hermenêutica filosófica com a práxis dar-se-á, por seu turno, mediante a apropriação gadameriana da phronesis aristotélica, pois, conforme a interpretação de Gadamer, a phronesis é uma forma de saber e de racionalidade adequada à práxis. A phronesis também se apresenta, num horizonte mais amplo, como uma filosofia da finitude humana, na medida em que manifesta o fenômeno do outro. Para Gadamer, o verdadeiro significado de nossa finitude consiste no fato de termos consciência não só de que somos condicionados historicamente, mas sobretudo de que somos condicionados pelo outro. Nessa relação ética se torna evidente o quão difícil é nos adequar e compreender as exigências do outro, e a única “maneira de não sucumbir a essa finitude, de vivê-la justamente, é abrir-se ao outro na situação de diálogo, de ouvir o outro, o Tu que está diante de nós”. (GADAMER, 2019, p. 38). Essa abertura ao outro explicita, assim, o caráter prático da hermenêutica filosófica, baseado no saber ético da phronesis.

4. Considerações finais

Note que Gadamer considera a phronesis aristotélica um modelo, a partir do qual aborda os problemas da aplicação e da natureza da própria hermenêutica. Da abordagem do primeiro problema decorre uma caracterização da atividade do intérprete enquanto aplicação. Da abordagem do segundo problema resulta a determinação da hermenêutica como práxis. Ao contribuir para isso, a phronesis estabelece o sentido em que pode ser tomada como uma forma de hermenêutica, a saber: ela não só realiza a mediação entre o universal e o particular, mas também designa certo tipo de conhecimento, o saber prático. De modo mais amplo e profundo, tal sentido remete à finitude humana, manifesta no encontro com o outro, na qual se enraíza a hermenêutica filosófica.

Material suplementar
Referências
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BERNSTEIN, Richard J. From hermeneutics to praxis. In: BERNSTEIN, Richard J. Philosophical profiles: essays in a pragmatic mode. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1986. p. 94-114.
DOTTORI, Riccardo. Il concetto di phronesis in Aristotele e l’inizio della filosofia ermeneutica. Paradigmi, Milano/Bologna, n. 3, p. 53-66, 2008. Disponível em: < https://www.academia.edu/31404528/Il_concetto_di_phronesis_in_Aristotele_e_linizio_della_filosofia_ermeneutica >. Acesso em: 15 fev. 2020.
FLICKINGER, Hans-Georg. Gadamer & a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
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GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Trad. Paulo César Duque Estrada. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
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GADAMER, Hans-Georg. Filosofía práctica (1993). In: DUTT, Carsten (ed.). En conversación con Hans-Georg Gadamer. Trad. Teresa Rocha Barco. Madrid: Editorial Tecnos, 1998.
GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Trad. Benno Dischinger. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999.
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SMITH, Christopher. The ethical dimensions of Gadamer’s hermeneutical theory. Research in Phenomenology, Leiden, v. 18, n. 1, p. 75-91, jan. 1988.
Notas
Notas
2 Esta é a posição de Riccardo Dottori. Para ele, o conceito de phronesis não só permanece como tema constante no pensamento de Gadamer, mas também conduz, a partir de seu desdobrar, ao desenvolvimento do pensamento gadameriano conhecido como filosofia hermenêutica. (2008, p. 11).
3 Dottori observa, ainda, que a hermenêutica filosófica “somente é possível sobre a base da phronesis”. (2008, p. 11).
4 Gadamer relata que a apresentação da phronesis por Heidegger, no seminário de Friburgo, em 1923, como “um gênero de conhecimento diferente”, foi, para ele, uma palavra mágica. (1998, p. 381). Esta ideia de um “saber completamente diferente”, denominada por Gadamer de “saber prático”, conforme consta no próprio título de seu ensaio de 1930 (Praktisches Wissen), pode ser considerada, na interpretação de Stefano Marino, como “a intuição original de Gadamer”. (2008, p. 196).
5 No ensaio Problemas da razão prática, publicado em 1980, Gadamer afirma que a phronesis, ao servir de modelo para sua própria linha argumentativa, torna a hermenêutica, enquanto teoria da aplicação, “uma tarefa filosófica central”, para ele. (1998, p. 317).
6 Phronesis als Modell der Hermeneutik. (2007, p. 127-149).
7 Esta questão é esboçada anteriormente, por Gadamer, na sua quarta conferência de Louvain, de 1958, intitulada “O problema hermenêutico e a ética de Aristóteles”, publicada no texto O problema da consciência histórica. (2003).
8 Isto é adequado no contexto da segunda parte de Verdade e método. No entanto, na terceira parte desta obra, na qual Gadamer reivindica a universalidade de sua hermenêutica, o domínio hermenêutico é ampliado do “texto” para qualquer objeto de natureza linguística - “todo ser que pode ser compreendido é linguagem”. Cf. GADAMER, 2000, p. 965.
9 Para Gadamer, a compreensão, dado seu caráter interativo, manifesta-se como diálogo. Cf. 2000, p. 777.
10 Gadamer concebe a compreensão como um processo de fusão de horizontes (Horizontverschmelzung). Cf. GADAMER, 2000, p. 633.
11 É precisamente isto que Gadamer leva a cabo em Verdade e método, ao descrever o que acontece quando um intérprete tenta compreender um texto e desenvolver uma interpretação dele.
Autor notes
1 Doutorando em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo – RS, Brasil. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Porto Alegre – RS, Brasil. Bolsista PROSUC/CAPES
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