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Discurso e técnica na era da informação1
Discourse and technique in the information age
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 161-176, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepção: 12 Janeiro 2021

Aprovação: 18 Abril 2021

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v21i2.2382

Resumo: Trata-se de uma reflexão fenomenológica acerca da essência do homem a partir do sentido da sua discursividade na época da técnica. Considerando a história da metafísica no seu fim, em que todo dizer e pensar estão comandados pelas tecnologias da informação, pergunta-se pela atual situação da linguagem, entendida como o pronunciamento da existência humana. Tendo por base a fenomenologia heideggeriana, em especial, a noção de discurso (Rede) enquanto estrutura fundamental explicitada pela ontologia existencial deSein und Zeit, demonstra-se que o cerne da discussão não é simplesmente colocar em questão o uso instrumental e a aplicação tecnológica da linguagem. Antes, o fundamental para elaboração da interrelação entre discurso e técnica é captar o sentido pelo qual o homem contemporâneo discursa sua existência-no-mundo, passando de um modo originário de dizer(-se) e entender-se para aquele em que tanto ele como o seu mundo são governados por um poder desafiador e provocador do real em sua realidade. Mostra-se que, para garantir esta posição do homem contemporâneo junto aos entes, é necessário que a técnica seja um sentido para pronunciar a sua existência, conferindo o significado de ser-dispositivo para a existência e suas possiblidades mais próprias, bem como para as coisas mundanas. Simultaneamente, explicita-se que, estando a realização da existência humana guiada por este sentido e poder desafiador representados pela técnica, são exigidas, entre outras consequências, a instrumentalização das línguas e a sua redução a um sistema de comunicação gerido por tecnologias informacionais.

Palavras-chave: Existência, Discurso, Linguagem, Comunicação, Informação.

Abstract: The study consists of a phenomenological reflection on the essence of man based on the meaning of his discourse in the era of technique. Considering the history of metaphysics at its end, in which all saying and thinking are commanded by information technologies, one wonders about the situation of language, understood as the pronouncement of human existence. Based on Heidegger's phenomenology and, particularly, on the notion of discourse (Rede) as a fundamental structure made explicit by Sein und Zeit's existential ontology, it is demonstrated that the focus of the discussion is not simply to question the instrumental use and technological application of language. Rather, the key for elaborating the interrelationship between discourse and technique is to capture the sense by which the contemporary man discourses his existence-in-the-world, transitioning from an original way of saying and understanding himself to one in which he and his world are governed by a challenging and provocative power of realness in his reality. It is shown that, to guarantee this contemporary man’s position with the entities, it is necessary for the technique to be a meaning to pronounce its existence, providing the meaning of being-device for the existence and its own possibilities, as well as for the mundane things. At the same time, it is clarified that, since the realization of human existence is guided by this meaning and challenging power represented by the technique, the instrumentalization of languages and their reduction to a communication system managed by information technologies, among other consequences, are required.

Keywords: Existence, Discourse, Language, Communication, Information.

“O autor, de quem é o Oráculo de Delfos, não diz nem subtrai nada, assinala o retraimento” (Heráclito, fragmento 94).

“... meditar significa despertar o sentido para o inútil” (Heidegger, Língua de tradição e língua técnica).

O presente artigo, escrito no estilo de uma reflexão fenomenológica3, busca apontar para a questão da interrelação entre a linguagem - independente das suas modulações oral, escrita ou gestual - e a técnica. Situa este encontro dos dois fenômenos na estrutura ontológico-existencial do discurso, compreendendo-o a partir da análise existencial operada por Heidegger na sua obra Sein und Zeit. No entanto, a questão da linguagem ultrapassa a perspectiva ekstático-transcendental desta obra, o que também vale para a questão da técnica. No pensamento fenomenológico heideggeriano, a envergadura da elaboração de ambas as questões, em vastidão e profundidade, mede-se apenas quando também se tem em vista o horizonte do acontecimento histórico da verdade do ser, com suas noções particulares. Nesta perspectiva da história do ser, a existência humana, na sua relação técnica com o mundo, é pensada desde os primórdios e os desdobramentos da metafísica, então, tanto a linguagem, a técnica, como a própria existência histórica do homem é experienciada desde um esquecimento e um abandono da dimensão originária e retraída ou misteriosa vigência do ser, a partir da qual o homem concretiza a sua essência desde muito e, de modo insigne, hodiernamente, na época da comunicação informacional e cibernética. Este é o horizonte e tarefa do pensamento tardio de Heidegger. Porém, sob o nome e apelo de superação de metafísica, também o são da experiência de dizer e pensar e pensar o ser que se traduz na supracitada obra capital do pensamento heideggeriano. Não é mérito e meta deste artigo, porém, investigar estas conexões conceituais, junções e disjunções estabelecidas mediante rupturas e virada (Kehre) do itinerário do pensamento heideggeriano, realizando um estudo crítico-analítico de cada uma das questões e suas interrelações. Concentrando, aliás, de modo desajeitado, em explicitar o sentido da mútua pertinência entre linguagem e técnica no solo do discurso, tão somente ensaia-se evidenciar a coisa mesma em questão: às quantas andamos nós, dado que estamos provocados a cultivar o mundo tecnicamente e a medir todas as modalidades de pensar e dizer com os parâmetros das tecnologias da informação, com a possibilidade de ser nós mesmos, tanto singular quanto historicamente, e que há muito nos define como os únicos entes capazes do discurso? Com esta indagação, a reflexão tão simplesmente se incube de indicar para a necessidade de uma experiência, nomeando-a suscintamente com as palavras de Heidegger (1995, p. 7) e, logo, no seu estilo linguístico, “daquilo que toca, ameaça e oprime a nossa existência (Dasein)”.

1.A interrelação de discurso e técnica: o(s) problema(s) em torno do uso instrumental e aplicação tecnológica da linguagem?

A linguagem fala. E, nos tempos de domínio ilimitado das ciências mediante a figura da técnica, a linguagem fala tecnologicamente. Por meio dos aparatos técnicos, a linguagem fala criando novas modalidade de expressão; nos meios virtuais de comunicação, lança-se mão de codificações, símbolos, imagens e caracteres tecnologicamente (re)produzidos que criam novas formas de representação figurada e conceitual da realidade. Com isto, a fala da linguagem ultrapassa as estruturas tradicionais da gramática, rompe os limites do uso padrão, inventando falas, sintaxes e semânticas que parecem serem mais próximas do cotidiano dos falantes, incluindo as formas mais coloquiais do uso da linguagem. Deste modo, a linguagem, em seu falar tecnológico, parece dar vozes a sujeitos e permitir a eles se expressarem livre e criativamente a sua subjetividade, povoada de afetos, crenças, opiniões e pensamentos de todo particulares. Nestas redes de informação, surgem formas antes inabituais de comunicação e de expressão suscitadas pela tecnologia, porém, a linguagem ainda continua falando por meio da lógica da linguagem computacional com as suas rigorosas regras, raciocínios e operações predefinidas4. Tão imperiosa é a fala tecnológica da linguagem que até as maquinas reproduzem as vozes e as línguas humanas, dando a entender que a linguagem se define pelo falar e que aquilo que a rege seria a lógica computacional-informacional. Com efeito, as máquinas de última geração são comunicativas e interativas, ao ponto de serem elas a darem as regras e o padrão para a compreensão do que seja o humano falar, expressar, comunicar e interagir socialmente. Deste modo, o falar tecnológico da linguagem não liberta o homem e não o deixa livre para exprimir-se singularmente, assim como não libera o sentido do mundo e das coisas naturais e artificias que lhe pertencem. Pois, apenas sobre tudo isto discorre, explica e comunica sob os imperativos da informação, da planificação global e controle cibernéticos5 (HEIDEGGER, 2000b, p. 622). Nestes casos, passa-se despercebido que o falar, sob o domínio do tecnológico, é uma resposta a comandos, apenas uma troca de sinais unívocos e abstratos, criados por fórmulas matemáticas, em vista de uma comunicação veloz, clara e limpa dos mal entendidos (HEIDEGGER, 1995, p. 36).

Contudo, não se trata de colocar a questão desta relação instrumental entre linguagem e técnica, isto é, do uso das línguas nos espaços atuais de comunicação social e das novas possibilidades linguísticas de expressão e interação entre os falantes – o que não quer dizer que o fenômeno da comunicação digital e tecnológica e, sobretudo, de nossa afeição e condescendência ao seu apelo, não seja aquele que atualmente nos é dado como irrecusável convite para pensar tal encontro. As raízes do seu domínio e fascínio, do caráter irresistível da sua dominação e de tudo mais que é absorvido no tecnológico, porém, certamente não podem ser encontradas nos âmbitos em que a linguagem humana é compreendida sob o signo do instrumento da comunicação ou como veículo de expressão. O nó da questão da interrelação entre técnica e discursividade, então, não está no uso das máquinas que reproduzem a linguagem humana e como elas, cérebros eletrônicos, são capazes de falar, comunicar e traduzir de uma língua para outra. Nossa abordagem poderia ser antecipada com o seguinte: “Entretanto, tem-se sempre em primeiro plano ainda a aparência de que homem dominasse as máquinas de linguagem. Porém, a verdade deveria ser o seguinte: que as máquinas de linguagem puseram a linguagem em funcionamento e, deste modo, dominam a essência do homem” (HEIDEGGER, 2002b, p. 149, tradução minha). A questão central é que esta maquinaria da linguagem, a partir da qual a fala é uma expressão da contabilidade, de um pensamento calculador-representador, já dominou nossa existência e, ao permitir que se ela se pronuncie de acordo com um único apelo único (o do controle e de asseguramento de toda realidade, inclusive a humana), avia a nossa humanidade para um destino cujas consequências ainda não são plenamente conhecidas. Por conseguinte, em primeiro plano não está o fato de que, com a emergências das tecnologias comunicacionais, impõem-se novas discursividades, outros percursos de fala e expressão escrita, gerando (aparentemente) novas sintaxes e semânticas. De igual modo, com o tema “discurso e técnica”, também não se debate os problemas epistemológicos e metodológicos referentes à fala da linguagem como instrumento de apresentação e representação do real, cujo sentido é predeterminado pelo conhecimento técnico-científico e ao qual o falar e o escrever devem corresponder e esclarecer, eliminando toda forma de ambiguidade e obscuridade.

Poder-se-ia, então, concluir que se trata de apor ou antepor aos usos e falas tecnológicas da linguagem outras formas e modalidades, por assim dizer, mais livres, expressivas e criativas do falar humano, de constituição do sujeito falante. “Discurso e linguagem” porém não acena para questões estilísticas dos discursos, fazendo defesa de formas de expressão artístico-poéticas. E isto por uma simples razão: a linguagem não será entendida a partir da fala. E como falar é, para nós, segundo nossa compreensão habitual, expressão, atividade humana, representação e apresentação (verbal ou não verbal) do real e do irreal, não se tomará a linguagem como instrumento de expressão, comunicação e representação. Em um caminho mais radical, se tivéssemos que considerar a fala segundo as gramáticas das inúmeras línguas e diversas modalidades e metas dos usos linguísticos das línguas pelos diferentes atores sociais enquanto falantes, o que não é caso desta reflexão, deveríamos ter claro uma inversão: é o falar que necessita ser discutido a partir da linguagem e, sobretudo, desde uma experiência originária e criativa da linguagem no e como acontecimento da existência e coexistência humana.

Na perspectiva da fala, não falamos desde a linguagem, embora estejamos sempre falando dela, sobre a linguagem. Não nos instalamos nela. Melhor, colocamo-nos fora da linguagem, numa posição superior, como se isto fosse possível, como não pertencêssemos a todo instante à linguagem. Habitualmente, porém, colocamo-nos nesta posição superior, para depois recolocar a fonte da linguagem dentro de nós, na forma de pensamentos e representações que deverão ser exteriorizados. Assim, caímos ou até decaímos numa fala abundante, rica e valorosíssima, produzido pelos conhecimentos científicos e filosóficos, porém, surdos à linguagem, ao seu acontecimento em nós e, com princípio, antes de nós. Permanecemos em um horizonte metalinguístico, somente no qual e desde o seu campo de visão se impõem, cada vez mais, os justos problemas da relação externa entre discurso e técnica, da análise da linguagem pelo conhecimento científico e filosófico, da aplicação das linguagens nas tecnociências e outros saberes. Com esta impostação, tratamos de coisas sérias como as consequências ético-política da disseminação de falsas informações nas redes sociais de comunicação. Porém, pode ser que permaneçamos surdos à essência da linguagem. Sobre esta surdez e inexperiência da linguagem dos discursos metalinguísticos:

Mas fazer uma experiência com a linguagem é algo bem distinto de se adquirir conhecimentos sobre a linguagem. Esses conhecimentos nos são proporcionados e promovidos infinitamente pela ciência da linguagem, pela linguística, pela filologia das diferentes línguas e linguagens, pela psicologia e pela filosofia da linguagem. Atualmente, o alvo cada vez mais mirado pela investigação científica e filosófica das línguas é a produção que se chama “metalinguagem” tomando como ponto de partida a produção dessa supralinguagem, a filosofia científica compreende-se consequentemente como metalinguística. Isso soa como metafísica. Metalinguística é a metafísica da contínua tecnização de todas as línguas, com vista a torna-las um mero instrumento de informação capaz de funcionar interplanetariamente, ou seja, globalmente. Metalinguagem e esputinique, metalinguística e técnica de foguetes são o mesmo (HEIDEGGER, 2003, p. 123).

Constantemente recaímos, portanto, nesta compreensão metalinguística da linguagem ao considerar apenas a aplicação e a implicação tecnológica da linguagem no falar humano nas escritas e oralidades. Não fazemos justiça nem à linguagem nem à técnica, pois pensamos e falamos de tudo, de um ponto de vista exterior, de modo demasiadamente maquinal ou, conforme o significado estreito, apenas tecnologicamente. Por exemplo, falamos demasiadamente de modo técnico sobre a técnica, restringindo-a um conjunto de maquinaria, série de procedimentos automatizados e padronizados para alcançar um fim. Se, no percurso histórico da humanidade, “a técnica nos domina de alto a baixo, numa regência, sem volta nem reserva, é por já ter apoderado e haver controlado todas a nossas línguas. Na tendência de seus vetores, já não sobra espaço para nenhuma outra sintaxe, já não resta outra semântica, já não nos fica nenhum outro encontro que não esteja logicamente controlado” (LEÃO, 2013, p. 221). Ela possui um poder, que rege com sua lógica única todas as semânticas e sintaxes existenciais em que o homem se expressa como homem, portanto, muito aquém do pretenso domínio dela pelo homem ao toma-la apenas com meio para um fim e direcioná-lo a um uso benéfico ou pacífico para a humanidade. Antes de homem colocar meios técnicos e as diversas tecnologias a seu serviço, a técnica mesma já dispôs a humanidade do homem com um meio para suas forças, para uma realização da existência humana em que é permitido pronunciar-se apenas numa língua de sintaxe e semântica única, esmagando toda singularidade. Precisamos, então, saber também o que é a técnica na sua essência, no poder que ela possui na determinação da existência humana e na destinação da humanidade para, somente depois, medir a envergadura dos desafios e problemas da tecnologia, incluindo o da aplicação das tecnologias informacionais à linguagem. Também aqui se impõe outra inversão: é partir da técnica e de uma profunda experiência da sua essência que nos é dado falar com propriedade da tecnologia, saltando fora de um confronto fervoroso e apaixonado de posições ou favor ou contra a técnica, portanto, que lutam entre si em um campo de visão binária e que operam com a mesma lógica e linguagem dos computadores. Para tanto, buscamos na essência do ser humano, com maior precisão, em uma das dimensões profundas da sua estrutura ontológico-existencial, um “lugar” em que se possa fazer esta experiência: o discurso.

2. O fenômeno do discurso: âmbito ontológico-existencial da interrelação entre linguagem e técnica

Não é no “lugar da fala” que a linguagem e a técnica se encontram de modo privilegiado e vigoram de modo íntimo. Pelo contrário, é no horizonte do discurso. Linguagem é discurso. Técnica também é discurso. Linguagem e técnica são duas modalidades diferentes de uma mesma dimensão fundamental que é o discurso, compreendido ontológico-existencialmente, isto é, como elemento da estrutura profunda do ser humano. Porém, enquanto modalidades discursivas, não são textos ou conjunto articulado de afirmações que enunciam algo por meio de signos ou sobre a referência das palavras às coisas. Discurso também não se compara, aqui, com as narrativas ou qualquer manifestação oral da língua de um povo, objetos do patrimônio cultural que guardam e transmitem de geração a geração a identidade de uma comunidade. De igual modo, não é ainda o conjunto de expressões não verbais e gestuais que bem podem configurar até uma língua estruturada em sinais. É bem antes o curso pelo qual a existência, singular e histórica, dos seres humanos se pronuncia a si mesma. Discursos são os desdobramentos pelos quais a existência dos homens se manifesta, percursos em que eles se definem como seres históricos e, ao mesmo tempo, intercomunicam sem palavras e codificações linguísticas na compreensão e manifestação do sentido da (co)existência histórica, na destinação comum de si mesmos. Trata-se de um acontecimento tácito e permanente de constituição da humanidade, prévio a qualquer elaboração temático-linguístico, seja ela articulação sonora e/ou escrita. Ao mesmo tempo, é um acontecimento eloquente, sobretudo, para aqueles que o sabem ouvi-lo e perscruta-lo, por exemplo, os poetas cuja poesia tem algo a dizer sobre o sentido e o mistério da existência humana sobre a terra. É eloquente, porém, porque pronuncia a vida humana como (co)existência no mundo, em tons, modulações e ritmos que revelam afinação de todos com todos e de todos nós com as coisas que nos rodeia. Discurso, deste modo, é a articulação significativa da compreensão de nossa condição de sermos junto ao mundo, partilhando uma abertura comum da existência com os outros (HEIDEGGER, 2000a, p. 219). Enquanto discurso, portanto, a linguagem é o fenômeno que nos permite a compreensão do significado de normas, metas, operações e tudo mais que é necessário compreender para conviver e realizar algo comunitariamente. Deste modo, enquanto o ser humano fala, silencia, expressa-se em gestos, obras de arte, produções culturais, regras sociais tácitas ou explícitas, enfim, em todas as formas usuais de expressão, o ser humano já pronunciou sua existência conforme determinado sentido histórico, compreendendo assim a si mesmo, os outros e o seu mundo e as coisas que nele comparecem. Neste sentido de um pronunciamento existencial, muito mais que a fala ou a vocalização, aquilo que rege o discurso é a eloquência do silêncio; entretanto, não o silêncio entendido em oposição à fala, que é apenas mudez (HEIDEGGER, 2000a, p. 223-224), mas aquele que acompanha toda fala e pronunciamento como uma prontidão e um ato de escutar o todo que cada palavra, signo ou gesto torna presente tacitamente diante dos falantes. Da escuta deste acontecimento - que já é por si uma compreensão do todo e mútuo entendimento dos homens, de si e do outros, (HEIDEGGER, 2000a, p. 222) -, em todo falar e escrever, depende o quão densas são as produções linguísticas, em seus diversos estilos, formas e modalidades, com que intensidade o homem se protege do constante risco de reduzir a linguagem às escrivinhações e tagarelices das comunicações, das informações e da divulgação do conhecimento.

Qual o elemento comum que permite situar a técnica no mesmo solo da linguagem? A linguagem brota do discurso. O traço fundamental do discurso é deixar manifesto, permitir que o discursado venha à luz naquilo que ele mesmo é. Discursar, no seu sentido originário, é manifestar: deixar e fazer ver o discursado em sua evidência própria (HEIDEGGER, 2000a, p. 63). O rigor do discurso não é, primeiramente, uma questão de mera retórica, no sentido já historicamente empobrecido da arte de expressar-se de modo célebre e eloquente, o que decai na habilidade de falar em público e manipular uma racionalidade persuasiva. De igual modo, não é de clareza e objetividade, de articulação coerente dos juízos na escrita. É, antes, uma questão de presença em “carne e osso” do discursado a partir do desvelamento que é o discurso, então, de pleno aparecimento daquilo sobre o que se discursa, com toda a sua evidência, diante dos olhos de quem discursa ou para quem se discursa. O rigor do discurso é a poder de revelação, a sua lógica vidente, isto é, que faz visível o que se esconde, mesmo que seja preservando a sua ocultação. Para tal discursar, então, também vale, como síntese de seu rigor, a máxima das sentenças do oráculo de Delfos: “não diz nem subtrai nada, assinala o retraimento” (HERÁCLITO, 2017, p. 95). É deixar ver e fazer ver o visto no que ele é, na sua mais autêntica visibilidade como um brilho a resplandecer dele mesmo. Como tal, discursar é deixa-ser. Eis o elemento comum que, por certo, a técnica não põe plenamente em obra.

Os discursos humanos são um favorecimento, um acontecimento existencial de agraciamento. Em vez de promoverem intercâmbios (inter)humanos com ou sobre o real, com ou sem fins utilitários, eles favorecem que o discursado – o próprio homem e, com sua correspondência à linguagem, tudo o que o circunda - se revele a partir de si mesmo e se mostre desde o brilho de seu sentido, de forma mais nítida possível. Sua lógica ou lόgoς primordial, como expressão do favorecimento que permite cada ente vir à fala e evidência em seu ser, não será a do funcionamento eficaz, mesmo que possa deficientemente se concretizar nesta modalidade de deixar e fazer ver. Por esta razão, não obstante as máquinas falem, cada vez mais com maior precisão técnica, jamais elas serão capazes do discurso propriamente dito. Discursar, portanto, é propiciar que o sentido de cada situação, de cada ente, de todo existente, tantas vezes oculta aos olhares do cotidiano, apareça na sua própria visibilidade.

Contudo, o sentido de tudo que pode ser discursado aparece na forma de um retraimento, de esconder por si mesmo. Pois tudo que se mostra a partir de si mesmo, se o seu aparecer é o produto e próprio o produzir-se – portanto, não a expressão de algo oculto que não se mostra, com o sintoma é só o sinal da causa de certa doença – é, ao mesmo tempo, aparição qua aparição e velamento da própria aparição (HEIDEGGER, 2000a, p. 60). Aquilo que precisa ser discursado é também aquilo se vela na sua aparição e, portanto, só permite ser radicalmente discursado se seu velamento vier à fala em todo e qualquer modalidade e concretização linguística do discurso. O discursar revelador – o que, em sua modalidade originária, é uma redundância pleonástica – não esclarece, mas aponta o encobrimento, ilumina-o sem poder apaga-lo. Por isto, a linguagem possui um elemento velado, “obscuro”, recluso ou hermético, no sentido que discursar é medir-se com o inefável, de mostrar o não-dito ou não-dizível em sua inerente recusa: deixa-lo aparecer em sua medida velada. Dito com a poética de Manoel de Barros (2013, p. 460), para quem “com as palavras se podem multiplicar os silêncios”, a linguagem é a arte de carregar água na peneira:

O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA

Tenho um livro sobre águas e meninos.

Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira

Era mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele

para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água

O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio

do que do cheio.

Falava que os vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito

Porque gostava de carregar água na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que

carregar água na peneira.

No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça,

monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o voo de um pássaro brotando

ponto no final da frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.

Até fez uma pedra dar flor!

A mãe reparava com ternura.

A mãe falou: Meu filho, você vai ser poeta.

Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios com as suas peraltagens.

E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos. (BARROS, 2013, p. 453-454)

Discursar, portanto, é um jogo unitário entre revelar e velar; é apreender é a fluição daquilo que escorre, anunciando e, quiçá, enunciando o aceno do mistério em seu velamento, o qual envolve os homens com sua existência no mundo, rodeados pelas coisas. Assim, se a linguagem doa ao ser humano a possibilidade de ser capaz do discurso, isto é, de concretiza-lo em palavras, gestos e sinais, ela se dá a nós como tarefa de aproximarmos a nós e tudo mais, por meio das línguas, do inefável e do inexprimível. Na realização de tal incumbência, na correspondência ao dom da linguagem, o discurso permite que o mundo seja originariamente o mundo histórico dos homens. Permite, ao mesmo tempo, que os seres humanos sejam eles mesmos, no vigor de sua essência histórica. Seguimos com a reflexão, procurando deixar este ponto mais evidente.

3. Discurso e linguagem: o pronunciamento da essência humana como existência-no-mundo

Graças ao discurso, como acenado acima, o homem é o único ente cujo ser é entranhado pela linguagem. Pois nenhum outro ente é capaz de fazer visível o invisível, sem destruí-lo; sua existência possui a potencialidade de revelar o sentido que permanece invisível, mas também de obliterar o acesso ao invisível, deixando tudo é viger apenas como mera aparência, meramente dizível. Pertence à existência humana tanto o poder de descobrir sentidos, mas também de encobri-los ainda mais, por exemplo, derivando conceitos e (re)produzindo representações vazias. Desta reprodução, que dá os sentidos por entendidos e já demasiadamente esclarecidos, vive o falatório cotidiano, como hoje, no reino da comunicação virtual, no passe e repasse interminável de informações por meio de um só clique. Mas também o falatório cotidiano da produção científica, movida pela máquina da atualização incessante e divulgação do conhecimento. Em todo caso, na sua invisibilidade, sentido é a evidência que guia a realização e o (de)mostrar-se de tudo o que é. Latente em todas as tramas de significados, o sentido necessita-se do discurso da existência humana para se manifestar plenamente, pois só o homem é o ente que mora na linguagem.

De outro modo, para que o mundo apareça como mundo, no seu sentido ou na sua totalidade, carece do discurso da existência humana. Assim, o homem, enquanto ente determinado pela linguagem na sua essência, encontra-se permanentemente convocado a deixar manifestar-se o que, antes da aparição, permanece não-dito, uma invisibilidade não evidenciada. Na base do discurso que pronuncia a existência histórico-singular dos homens, a linguagem é o dizer que manifesta o antes oculto como o sentido de tudo que é. Tal dizer, porém, ao iluminar o sentido, guarda e resguarda o oculto; permite que o sentido de realização se ilumine no seu retraimento e, ademais, a partir de seu retrair. A linguagem não pode ser restrita ao exercício de esclarecer, eliminar toda forma de obscurecimentos e ambiguidades, sobretudo, se tal esclarecer está sob o interesse da manipulação sem fim do esclarecido, do informar que, nos tempos do conhecimento, não cessa, nem pode cessar, pois trairia o defasado ideal de uma humanidade esclarecida e esclarecedora. Tantas vezes, porém, tal informar se reduz ao passar de boca em boca sem nenhuma evidência daquilo que se discursa. Por isto, a linguagem, se ela vigora na sua essência, há de ser aquilo que pelo qual o ser humano protege o essencial em seu mistério.

A linguagem, então, não é atividade do homem. Em sentido originário, é o homem que é um feito da linguagem. Pois é por meio da linguagem que o ser humano revela a sua existência histórica e configura o mundo em que vive, único em cada época. Como verdadeiro “sujeito” do acontecimento manifestativo no seu todo, fundada no discurso, a linguagem pronuncia a existência humana e, ao mesmo tempo, discursa o mundo como dimensão inerente a ela. Deste modo, o discurso trama os significados a partir da qual todas as coisas com que o homem lida estejam referenciadas umas às outras, compondo uma totalidade familiar. Sem mundo, o homem não seria homem, mas seria apenas um objeto ao lado de outras coisas, pois sua existência é conformadora de mundo. De igual modo, sem o discurso que pronuncia a existência-no-mundo, o mundo seria um como monturo e o homem estaria depositado nele. Mundo é o entre, o vazio que envolve tudo que é discursado. Deste vazio, o discursado necessita para vir à tona, manifestar-se e velar o seu sentido. Mas se o mundo é conformado pelos discursos da existência humana, ele é a totalidade junto a qual o homem se encontra em casa. Então, o discurso, se originário, manifesta mundo enquanto a casa em que o homem mora. Este fenômeno, na emergência do pensamento filosófico, veio à linguagem com a palavra fundamental ethos. Na linguagem oral e escrita, se as palavras são carregadas de sentido, este fenômeno vem à tona na forma de um vazio, que não é pura ausência de preenchimento, mas sim pleno do sentido de abertura da existência e, em torno dele, dos significados responsáveis por expressar de modo silencioso a totalidade junto a qual a humanidade de uma época vive, sente-se em casa. Por ser este espaço primário da significância, a morada do mundo é o âmbito primário de compreensão e, como tal, de convivência, de compartilhamento de significados na escuta e silêncio, assim como de articulação das coisas em uma rede de entranhada referencialidade, mesmo que não se pergunte pelo poder deste vazio em revelar todas as coisas com que lidamos nas atividades práticas, teóricas e contemplativas. Por exemplo, é pelo “fato” de que todas as coisas já se assentaram neste vazio, o mundo, que podemos dela falar ou escrever.

No sentido originário, a linguagem discursa a existência do homem com seu mundo. Como tal, o existir mundano do homem é um vigoroso. originário deixar-ser. Morando de modo próprio na linguagem, o ser do humano é deixar ser a si mesmo como possibilidade, isto é, como dom e promessa aberta de si mesmo enquanto tarefa de singularização. Possibilidade é o porvir de cada homem desde a assunção do que se foi, fazendo-se presente enquanto singular concreção inacabada de si mesmo: aparição no mundo de uma existência única em finita concretização. Tal é o sentido da existência humana que é um feito ou agraciamento da linguagem. Resposta à possiblidade, compreendo-a como tarefa singular e inalienável é o projeto (HEIDEGGER, 2000a, p. 200-201). Sendo um lance compreensivo de si mesmo, abrindo-se, o ser humano histórico e singular, projeta mundo, discursa o vazio de uma totalidade, pelo qual cada ente, por ínfimo que seja, pode também ser o que é. Pronunciando a singularidade histórica ou pessoal de cada ser humano, a linguagem também pronuncia o mundo comum como estrutura com a qual cada singular interpela, junto com o outro, tudo o que nos rodeia com o chamado: manifeste-se, venha a ser o que é. Para o outro, este chamado é convocação à reponsabilidade de tornar-se si mesmo, dado que também ele é possibilidade. Na responsabilidade por si, deixa ser quem tu és! – dizem mutuamente os homens na base ontológica do discurso. A técnica, assentada no mesmo fundamento, permite-nos discursar nossa existência-no-mundo com o mesmo vigor de realização de nossa essência de entes que moram na linguagem?

4. Discurso e técnica: o pronunciamento da existência-no-mundo como poder desafiador

Todo discurso necessita de sentido, de maneira originária o discurso ontológico de pronunciamento da existência humana. Deste modo, o sentido é o apelo que provoca o homem, na e pela linguagem, a abrir sua existência e descortinar o seu mundo. O homem contemporâneo encontrou este apelo na técnica. Doando um sentido histórico à abertura da existência-no-mundo, acontecimento tantas vezes não meditado, a técnica interpela constantemente o humano no seu ser, apodera-se de todas as estruturas manifestativas ou apofânticas da sua existência e, ademais, impondo um padrão único de discursividade. Com a resposta e o consentimento humanos ao apelo que ela é, a técnica também discursa mundo. De que modo? Articulando tudo que é numa rede de dispositivos que visa a exploração ilimitada (HEIDEGGER, 2002a, p. 22-24). Sendo um sentido do discurso apofântico da existência humana, a técnica forja que cada ente venha para “fora”, isto, faz o vir à aparência. Ao seu modo, (ex)pondo os entes todos como fundo ou reserva de energia, ela também desvela. O desvelamento por ela operado é dis-ponente (HEIDEGGER, 2002a, p. 19), pois forja o ente aparecer disponível ou recomendável e, aliás, numa disponibilidade tal que possa ser re-posto a todo instante aos seus fins. Não só forja aparecer, mas também tudo entrelaça num sistema de funcionalidades e instrumentalidade para uma exploração global. Compondo uma rede cujo sentindo de entrelaçamento, pelo qual as coisas tem o significado único de ser um dispositivo, a técnica discursa mundo. É segundo esta discursividade que tudo, então, é revelado como fonte de energia a ser extraída, para depois ser transformada em outra forma de energia. Transforma-se para estocar, para que a energia convertida possa ser armazenada e, por fim, distribuída. Onde é recebida, a energia é reprocessada como fonte de produção (HEIDEGGER, 1995, p. 26; 2002a, p. 20). Todas as coisas, então, aparecem enredadas numa rede de processamento e reprocessamento de energia. Por isto, tudo ainda está relacionado com tudo, mas cada coisa serve a um poder ilimitado que toma tudo como ente assegurável e calculável no seu ser.

A técnica conta com tudo, é um poder omniabrangente. Porém, é inclusiva unicamente na medida em que assegura que tudo seja reserva e fonte de energia. Até as reservas a serem protegidas, por exemplo, as ambientais, são asseguradas e calculadas em vista do poder produtor e explorador da indústria do turismo. Nada escapa a este padrão único de manifestação e integração na trama do mundo moderno; nada se apresenta a não ser como um dispositivo desta rede artificiosa. Na verdade, não há reservas propriamente ditas, pois tudo é discursado de forma que todo oculto é trazido às forças para fora, tudo é passível de ser exposto para ser explorado. Propriamente dita, reserva é o nome para o resguardar-se do misterioso, do inefável. Ao contrário, no mundo da técnica, não há nada retraído e, se ainda há, é por deficiência a ser superada pelos novos e aprimorados métodos de exposição das energias. Assim, as coisas não são nem mais puros objetos; mas objetos que receberam nova camada de significado e, assim, foram transformados em dispositivos e, conforme o significado usual, fundo de reserva supostamente inesgotável para a exploração e consumo. E eles só se interligam em vista de um funcionamento de uma máquina de produção global, de uma economia de contornos planetários: também o mundo, sendo essencialmente uma trama de significados articulada por mor do sentido da existência do homem singular e/ou histórico, ganha outra camada de significância, plana por sinal. Nada se recolhe, nem o mundo nem as coisas mundanas; vigoram tão só ob-jetos enquanto o meramente posto e reposto diante de nós pelo poder avassalador da técnica, de modo que já não se justifica mais uma linguagem originária capaz de colher o retraimento do misterioso e, nisto, recolher a existência humana no inefável. O que é justificável, porém, não é o essencialmente necessário. O necessário se impõe por uma premência, um certo aperto de uma precisão incontornável, experimentada como uma constrição existencial, que a justificação de uma conveniência ou adequação aos apelos de uma época histórica nem sequer pressente. Assim, necessário é o que essencialmente conduz a uma decisão histórica acerca do sentido do existir no mundo (HEIDEGGER, 2015, p. 47-8). Cego a tudo isto, o homem contemporâneo não pressente a necessidade de discurso que o convoque, de modo preemente, a libertar a si mesmo para a realização de sua essência mais própria, isto é, para o originário pronunciamento de sua existência-no-mundo. Consente a sua liberdade ao poder desafiador da técnica. No entanto, o homem continua a pronunciar a sua existência mediante a linguagem conveniente à técnica e, por isto, ele permanece sendo o único ente que toca discursivamente todas as coisas discursivamente, permitindo-as se manifestarem. Contudo, o discurso é regido pelo sentido da disponibilidade, pelo apelo de tudo controlar e assegurar como um artifício das tramas da produção e exploração.

Em correspondência ao apelo da técnica, portanto, o discurso ainda discursa a existência-no-mundo, realiza a essência do homem como ente capaz da palavra, porém, ao modo de um poder desafiador, uma interpelação que intima a si e a tudo que é a aparecer, no seu ser, e comparecer na omniabrangência do seu mundo segundo o império da disponibilidade e instrumentalidade. A técnica, portanto, pode ser tida como a linguagem de um poder provocante, desafiador que desvenda a vida humana e o real conforme um descobrimento disponente. Também ela deixa vir à tona, como nas línguas, as coisas e os homens, como sujeitos falantes ao modo tecnológico. Por meio da técnica, o homem e as coisas vêm à palavra, isto é, surgem no seu aparecimento. A técnica diz as coisas e diz quem somos hoje ou, melhor, como nos entendemos nos tempos atuais. Aliás, é por ela que, ultimamente, tudo tem sido dito de modo preponderante. Pois, no sentido originário, dizer “significa fazer ver e entender qualquer coisa, levar uma coisa a aparecer” (HEIDEGGER, 1995, p. 34). Contudo, o discurso da técnica é uma contradição. Por que razão? Por falta de clareza, objetividade ou coesão no discurso? Por falta de coesão ao ligar duas coisas, por razão de um contrassenso? Absolutamente não. Seria apenas uma contradição no sentido da ideologia do sistema capitalista, de legitimação dos princípios de funcionamento de sua maquinaria econômica em vista do lucro e de sua racionalidade instrumental? Tratar-se-ia de uma contradição inerente aos processos capitalista de produção? Por certo, sim. Mas, na sua mais radical verdade, o dizer dela secretamente contradiz não somente porque, nos tempos modernos, a técnica migra da infraestrutura das relações de produção para o reino supraestrutural da “racionalidade do mercado”, no qual, junto com a ciência, legitima as formas de dominação (HABERMAS, 1983, p. 328), portanto, em razão os mecanismos ideológicos do sistema capitalista. Fundamentalmente, a técnica é uma contradição em função do sentido mesmo que rege seu discurso: levar tudo a se exprimir, obrigando-o a falar ou pronunciar-se como objetividade calculável, captando cada coisa como produto ou algo produzível, isto é, (dis)posto em seu ser como algo pronto para a produção conforme o significado literal e moderno desta ação humana.

Seguindo este sentido e, a partir dele, explicitando o pronunciamento tecnológico de “fora” para “dentro”, a dição da técnica é uma contradição pela razão que o mundo da técnica não é propriamente mundo, mas sim uma armação em vista do poder produtor e assegurador. O discurso da técnica, na verdade, desdiz o que a essência do mundo, emudece-o em seu poder manifestador, pretende preencher com palavras vazias e dispositivos o seu vazio pleno de sentido. De outro modo, o mundo discursado pela técnica não é uma casa comum na qual o homem pode fazer sua morada. Pois numa rede de objetos, numa armação de dispositivos que tudo ordena em vista da funcionabilidade e da exploração, não é possível viver e, portanto, morar. Mora-se onde a vida é protegida e, por isto, no lugar onde se sente em casa. O mundo pronunciado pela técnica é como um estoque, no qual cada coisa só pode aparecer como produto das fabricações humanas e, como tal, uma encomenda que está destinada a ser consumida nos processos intermináveis de produção e consumo (HEIDEGGER, 1977, p. 54). E, depois de consumida, reposta. Ora, o depósito que estoca produtos para o consumo não oferece nenhuma proteção para a vida humana, não propicia que ela cresça a partir de si mesma como propriamente humana. Uma contradição de base é pronunciar um mundo em que não se pode habitar humanamente.

Nesta direção de uma interdi(c)ção da vida humana como propriamente humana, é preciso lembrar que a técnica, como o apelo que orienta abertura da existência do homem contemporâneo, também enreda o homem na rede de dispositivos, amarra-o na armação da exploração total. Assim, o homem, na sua essência, como um ser que existe na e pela linguagem, não é mais que um ente disposto entre outros, que serve ao poder de controle e asseguração global. Disponíveis para o serviço a este poder estão as suas mais nobres capacidades, por exemplo, a linguagem. Deste modo, por uma segunda razão, olhando mais interiormente, a técnica é uma contradição porque discursa o homem na sua existência desdizendo também a sua essência. Deste modo, não só o mundo não é mais a casa comum ou morada dos homens, mas o também o homem não é o caseiro desta casa, isto é, aquele que zela e protege a casa como um espaço retraído de recolhimento, promoção e crescimento vigoroso da vida humana. O caseiro é, pois, aquele que cuida da casa-mundo, zela pelo essencial confiado ao homem conquanto é o seu mortal habitante (HEIDEGGER, 2002b, p. 139, 141), fazendo dela o âmbito protetor em que tudo e todos que a ela pertencem possam aparecer e medrar segundo o sentido mais próprio de sua manifestação, também da vida humana. Pois é neste desvelo pela casa-mundo que o homem, deixa ser a si mesmo, os outros e a coisas com que se ocupa. Como assinalado, ele o faz por meio da linguagem.

Enfim, a técnica pronuncia a existência humana no mundo, mas de um modo tal que a existência do homem nem as coisas que pertencem ao seu mundo histórico não são discursados conforme o vigor da possibilidade de cada qual serem o que são. O discurso da técnica não deixa ser o mundo compartilhado como casa e o ser humano como aquele existe na e pela linguagem enquanto o caseiro de sua habitação. Por causa deste acontecimento discursivo da existência humana no mundo, no qual se unem com intimidade técnica e linguagem, as línguas tiveram que se transformar profundamente, constituíram-se em falar dominado pelo tecnológico. Elas passaram a ser construídas artificialmente, tendo por referência o funcionamento das maquinas (por exemplo, na telegrafia) e, mais tarde, a tecnologia computacional e informacional. As máquinas falantes os instrumentos tecnológicos de comunicação à distância, então, põem-se como parâmetro do que é o falar humano. Por isto, as línguas são desde então inevitavelmente ligadas à programação de sinais, a equações e funções algébricas. Busca-se que elas sejam um dizer inequívoco, para que realizem com eficiência a sua vocação de serem veículos de uma informação acelerada e uma comunicação clara, unívoca em seu conteúdo. Paradoxalmente, vê-se que os espaços de comunicação tecnologicamente construídos são lugares onde reina a ambiguidade que turva a comunicação e as mensagens veiculadas nem sempre transmitem verdadeiras informações. Porém, o decisivo para o que aqui se medita é que esta transformação se deu silenciosamente no solo das línguas tradicionais e/ou maternas. Prova disto é que as línguas tecnológicas ainda guardam o essencial da linguagem: dizer como um deixar ver e entender o que se mostra. Mas elas já não deixam o demostrado aparecer a partir do como ele mostra a si mesmo. Não o deixam vir ao encontro em um interpelar que parte daquilo está para ser dito, isto é, desde aquilo que, em sua doação a nós, pede para ser dito. Esta deficiência se esconde sob o primado da eficiência e da clareza e isto em razão do sentido do poder desafiador da técnica. E, por isto, as línguas dos tecnólogos são incapazes de nos aproximar do inefável e indizível; por serem um cálculo do pensamento representador, necessitam repelir o mistério como não se fosse o âmbito primário de todo dizer. No entanto, continuam a ser um dizer do homem acerca de si mesmo e das coisas. A linguagem tecnológica, contudo, só deixa ser o que ela põe, antepõe como dizível de antemão. Só vem à fala o que ela dispõe para o controle de seu discurso. Como instrumentos da comunicação, colocadas a serviço deste insuficiente deixar-ser particular ao poder desafiador, a transformação, pela qual as línguas começam a vigorar como uma operação de sinais e um sistema de mensagens, possui o significado de uma violenta agressão sem precedentes não só à linguagem, mas também ao próprio homem e a tudo que o rodeia:

Com a dominação absoluta da técnica moderna cresce o poder - tanto a exigência como a eficácia - da língua técnica adaptada para cobrir a latitude de informações mais vasta possível. É porque se desenvolve em sistemas de mensagens e de sinalizações formais que a língua técnica é a agressão mais violenta e mais perigosa contra o carácter próprio da língua, o dizer como mostrar e fazer aparecer o presente e o ausente, a realidade no sentido mais lato. Mas porquanto a relação do homem, tanto quanto ao ente que o rodeia e o sustenta como ao ente que é ele próprio, repousa sobre o fazer aparecer, sobre o dizer falado e não falado, a agressão da língua técnica sobre o carácter próprio da língua é ao mesmo tempo uma ameaça contra a essência mais própria do homem (HEIDEGGER, 1995, p. 37-38).

Concluindo a reflexão, é dever recordar que antes que as línguas fossem submetidas às medidas pela clareza e objetividade exigidas pela linguagem da técnica, convertessem em um sistema de comunicação da tecnologia informacional, este deixar-ser foi mantido e salvaguardado pelas línguas da tradição, aquelas que nos outorga a uma antiga origem como fonte de um renovado falar e escrever. Por séculos, por exemplo, foi conservado como a prerrogativa das tradições orais, por meio de suas narrativas e mito. As línguas da tradição são o testemunho de que as palavras, se são oriundas de um dizer originário, trazem à tona o sentido da existência comum de um povo com o seu mundo, à medida em que guardam e protegem um tesouro do qual se podem retirar, de tempos em tempos, renovadas possibilidades da língua falada e escrita. Porém, as línguas maternas, a oralidade, a transmissão oral, as falas coloquiais do cotidiano também foram absorvidas no discurso da técnica, regidas pelo seu poder. Deste modo, as línguas já não falam a partir do resguardo do tesouro do essencial, não protegem o invisível que se oculta na identidade do modo peculiar de um povo se referir ao seu divino, ao seu mundo, consigo mesmo, o que transparece em todas as suas obras, em todo fazer e não fazer, maneiras agir e formas de pensar. Pois quando é obliterado que o caseiro e a casa-mundo não sejam pronunciados a partir do vigor de sua essência, nenhuma língua poderá guardar a proveniência de tudo que é; consonantemente, nem poderá se mostrar como a possibilidade tipicamente humana que permite que tudo amadureça no tempo a partir de sua oculta origem. Isto é, fica impedido a elas manter viva a tradição exigida por elas mesmas, a fim de que seja transmitida e salvaguardada certa compreensão fundamental do sentido propriamente humano de existir, a partir da qual a tarefa e identidade de certo povo e de cada um de seus membros, o seu mundo e o seu divino são constantemente reinterpretados na linguagem e por meio do falar.

Na atual situação, nada escapa ao apelo que intima para pôr-se cegamente a serviço da calculabilidade técnica, também as línguas maternas e todo exercício cotidiano do falar que elas, enquanto guardiãs do sentido compartilhado do existir no mundo, permitem a cada indivíduo em particular. Ademais, um sentido que, desde que a tecnologia transforma o mundo em aldeia global, unificando os povos desde um domínio ou fascínio irresistível que toma indistintamente não menos que a discursividade existencial dos seres humanos, aniquila as diferenças ao enraíza-las em um modo preponderante e estandardizado de ser. Acrescenta-se que se as línguas dos tecnólogos não são simplesmente gênero linguístico à parte e oposto às línguas maternas e tradicionais, mas um acontecimento, que surge no seio das últimas e as transforma por inteiro e desde a sua essência/dizer, de um domínio sobre o homem e sua ontológica relação interpeladora dos entes mediante o mundo. Por estas razões, é digno perguntar se “face às forças da época industrial o ensinamento da língua materna não se torna outra coisa senão a simples transmissão de uma cultura geral por oposição à formação profissional” (HEIDEGGER, 1995, p 41). De outro modo, é necessário questionar se elas também não se tornaram tecnologias informais de informação sobre a cultura geral. Sinal disto se faz presente, paradoxalmente, no lugar onde se faz uma defesa em prol da preservação das línguas originárias e o saber de suas tradições. Com justiça, preocupa-se muito em salva-las da aniquilação provocada pelo processo cultural e civilizatório hegemônico, porém, às custas de transformar as línguas maternas em reserva cultural. Lida-se com elas, então, como dispositivos culturais e instrumentos de expressão da visão de um povo. Desta maneira, não se as intima a comparecer nosso mundo com mesma impostação e poder desafiador da técnica moderna? Neste modo de ocupação, não escondemos a nós mesmos a nossa inabilidade em reconhecer nelas e na nossa própria língua materna, mediante uma experiência do caráter discursivo de nossa essência humana e das suas estruturas profundas enquanto existência, a possibilidade concreta e particular de fazer-nos vizinhos ao mistério ou ao indizível? O cerne desta problemática é que esta inabilidade é o vir à fala de nossa destinação histórica, preparada ao longo de toda a tradição metafísica e ocidental e permitida pela linguagem mesma na medida em que ela é o dizer, em cada época, da condição de nossa existência no mundo.

Nesta atual destinação histórica das línguas e de nossa essência, é digno perguntar: o que será, por exemplo, de nossa língua portuguesa e qualquer outra língua materna? Esta pergunta, porém, pressupõe outra questão, dramática para nossa atua situação: o que será de nossa existência nos tempos em que é dominada pelo discurso da técnica? Trata-se de uma pergunta decisiva. Uma pergunta que, quiçá, ainda poderá ser posta a nós somente pela poesia. Mas o que é a poesia, dita e compreendida a partir da sua essência? Um estilo linguístico? Um gênero literário? Uma forma de que expressão, pela qual é lícito ao sujeito se exprimir em imagens, de maneira livre? Decerto estas definições são pouco poéticas e falam de modo metalinguístico, demasiadamente tecnológico da poesia. Não poderia a essência da poesia residir na possiblidade humana de fundar o que não é fundado (por não ser ente algum, mas a vigência do ser), de medir o desmedido (HEIDEGGER, 2013)? Isto é: não seria um modo da existência se pronunciar pelo qual o mistério de tudo é recolhido; uma possibilidade de existir que favorece o mistério se mostrar em sua profundeza abissal e em seu caráter inefável? Se isto tiver algum sentido, o dito poético será uma palavra essencial. Assim, as línguas maternas, se fundadas e afundas na poesia, poderão dizer algo de essencial. Nelas, ainda poderá ressoar o sentido da existência do homem no seu mundo, habitando-o, por exemplo, junto a árvores e pássaros:

A LÍNGUA MÃE

Não sinto o mesmo gosto da nas palavras:

oiseau e pássaro.

Embora elas tenham o mesmo sentido.

Será pelo gosto que vem de mãe? de língua mãe?

Seria porque eu não tenha amor pela língua

de Flaubert?

Mas eu tenho.

(Faço registro porque tenho a estupefação

de não sentir com a mesma riqueza as

palavras oiseau e pássaro)

Penso que seja porque a palavra pássaro

em mim repercute a infância.

E oiseau não repercute.

Penso que a palavra pássaro carrega até hoje

nela o menino que ia de tarde pra

debaixo das árvores a ouvir pássaros.

Nas folhas daquelas árvores não tinha oiseaux

Só tinha pássaros.

É o que me ocorre sobre língua mãe. (BARROS, 2013, p. 459-460)

Referências

BARROS, M. Poesia completa. São Paulo: LeYa, 2013.

HABERMAS, J. Técnica e ciência enquanto “ideologia”. In BENJAMIN, W.; HORKEIMER, M.; ADORNO, T. W.; HABERMAS, J. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 313-343. (Coleção Os pensadores).

HEIDEGGER, M. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In HEIDEGGER, M. Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores)

HEIDEGGER, M. A questão sobre a morada do homem. In Revista Vozes, ano 71 (4), Petrópolis, 1977, p. 53-54.

HEIDEGGER, M. Língua de tradição e língua técnica. Lisboa: Vega, 1995.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2000a. (Coleção Pensamento humano)

HEIDEGGER, M. Zur Frage nach der Bestimmung der Sache des Denkens. In HEIDEGGER, M. Reden und andere Zeugnisse eines Lebensweges. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2000b. p. 620-633.

HEIDEGGER, M. A questão da técnica. In HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: São Francisco, 2002a. p. 11-38. (Coleção Pensamento humano)

HEIDEGGER, M. Hebel – der Hausfrend. In HEIDGGER, M. Aus der Erfahrung des Denkens. Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2002b. p. 133-150.

HEIDEGGER, M. A essência da linguagem. In HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: São Francisco, 2003 p. 121-171. (Coleção Pensamento humano)

HEIDEGGER. M. Explicações da poesia de Hölderlin. Brasília: UnB, 2013. p. 43-59.

HEIDEGGER, M. Contribuições à filosofia. Rio de Janeiro: Via Verita, 2015.

HERÁCLITO. Fragmentos. In ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários.Petrópolis: Vozes, 2017.

GIL, G. Máquina de ritmo. In Banda larga cordel. Rio de Janeiro: Warner Music, 2008. Disponível em: https://gilbertogil.com.br/conteudo/musicas. Acesso em: 13 out. 2020.

LEÃO, E. C. A vigência do poético na regência do virtual. In LEÃO, E. C. Filosofia Contemporânea. Teresópolis: Daimon, 2013. p. 219-227.

Notas

1 Aos colegas de pensamento e ensino do filosofar do Curso de Filosofia da UFRB, pois a reflexão tentada neste artigo nasce em tempo e mediado pela ocasião de trabalho conjunto nesta instituição de ensino
3 O estilo do escrito permite que se descreva fenomenologicamente o estado da coisa em questão sem adentrar em muitos detalhes, sem o muito esmiuçar particular à “exegética filosófica”, com a qual a temática merece ser tratada. Deste modo, para o olhar perspicaz e a crítica arguta, por exemplo, de um perito conhecedor da obra heideggeriana, o texto que se segue pode parecer, em certos pontos, carente de rigor na apresentação desdobrada e articulada dos conceitos em questão. Reconhecemo-lo. No entanto, a circunstância em que surge o escrito urgia outra impostação na abordagem, visto que o texto é a base de uma comunicação (ampliada, posteriormente), pronunciada em tempos de pandemia da Covid-19, em 15 de outubro de 2019, integrando o V Ciclo Internacional de Debates: Oralidade, Escritura e Técnica (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nhrR51ywfgo). Dirigida a um público amplo, nem sempre especializado ou habituado às sutilezas da reflexão filosófica, a discussão apenas tenta deixar evidente a coisa mesma da questão tematizada. Neste sentido, em face da reconhecida deficiência, pode-se contra-argumentar as possíveis objeções: com certeza, aqui nada é útil para progresso da “exegese filosófica” ou à inovação da hermenêutica do pensamento heideggeriano. A pobre meta da reflexão é apenas apontar para a grandeza do inútil, sem sequer desprezar o útil, mas somente recolocando cada qual no seu lugar.
4 Bom exemplo para acenar para esta experiência deste domínio do binário é a composição de Gilberto Gil (2008), na qual ele imagina a substituição do processo criativo e até do musicista por uma máquina de ritmo. Assim, ele canta: “Máquina de ritmo / Programação de sons sequenciais / Mais de cem milhões de bandas / De escolas de samba virtuais / Virtuais virtuosas vertentes / De variações sem fim / Daí por diante, samba avante / Já sem precisar de mim”. Porém, as infindas combinações, produzidas pela máquina de ritmos, não passam de “Processo de algo-ritmos padrões / Múltiplos binários e ternários / Quaternários sem paixões / Colcheias, semicolcheias / Fusas, semifusas sensações / Nos salões das noites cariocas / Novas tecnoilusões”.
5 Por cibernética não se faz referência a uma ciência positiva específica, mas ao poder dominador que garante a unificação de todas as ciências na medida em que se fragmentaram e perderam a origem e a unidade de uma ἐpistήmh primeira ou, mais tarde, de uma mathesis universalis. Deste modo, trata-se da culminância da história do Ocidente, no qual a filosofia como metafísica chega a seu fim. Nesta época, o pensamento metafísico se dissolve e com isto o ideal de uma ciência fundamental, dando lugar às ciências particulares autônomas, fragmentadas e isoladas em seu campo conhecimento. Não obstante, elas aparecem unidas sob o signo de um único comando, que as submete, juntamente com todas as formas de agir humano, a um modo de proceder único de desafiar a realidade vigente. Portanto, a ideia de uma ciência fundamental é substituída por uma técnica, por um potente comando de todo saber e atividades humanas, subjugando-os ao fim da informação. Para tanto, este poder controlador deve fazer de cada coisa, por exemplo, por meio da linguagem, algo que se dispõe e constituir a totalidade do mundo como um depósito instrumentos e dispositivos, facilmente repostos, prontos para o mercado das informações e do consumo. Mas também a própria linguagem é concebida como uma coisa disponível para o uso informacional: “A cibernética transforma a linguagem num meio de trocas de mensagens” (HEIDEGGER, 1973, p. 270). Entre outros, seus efeitos são a de planificação totalizante, o automatismo dos processos e, em termos de linguagem, sua redução à instrumento de troca e comunicação (HEIDEGGER, 1995, p. 32-33), ademais, enquanto comportamento humanos a ser gerido pela retroalimentação (feedback). Cibernética, portanto, é o nome para esta técnica que tudo predispões a um poder que se mantem às custas do controle dos processos, da regulação e direcionamento destes e da autorregulação do próprio poder controlador. Por conseguinte, é a “técnica de regulação e da direção” (HEIDEGGER, 1995, p. 14), por cuja figura alcança-se o triunfo da automação. Como tal, ela intensifica uma característica e exigência própria da moderna técnica: a redução das ações humanas a práticas ou operações planejadas que asseguram de antemão não só os fins ou resultados, mas também os meios para conseguimento dos fins. E, para tanto, necessita de um princípio descobridor do real conforme a esta impostação asseguradora, dispositiva/antecipadora e exploradora que se põe antes do lado do saber, não só da aplicação prática. Desse modo, exige que todo os saberes se contenham dentro dos limites do modo de conhecer, específico das ciências modernas, cuja essência é o cálculo. Sendo este fruto do desdobramento da metafísica, a técnica moderna ainda é metafísica. O pensamento calculador-cibernético é apenas a última figura de sua história. Portanto, mais que a dissolução da filosofia, a cibernética é o modo de pensar dominante na época da técnica o pleno acabamento da filosofia enquanto metafísica. Porém, se este é o estágio terminal e a plena realização da filosofia, por outro, é a possibilidade que é dada ao homem de hoje para outro envio da sua essência e de outro princípio para o pensar, desde que seja pensada a fundo a técnica moderna e experimentado de modo decidido que aquilo que a determina, em princípio, não são os processos e os instrumentos de controle de um mundo técnico-científico e da ordem social que lhe corresponde. De modo semelhante, desde que o pensar e a linguagem sejam experienciados, desde a sua origem e acontecimento do ser, não serem fundamentalmente determinados pelos processos lógicos, sejam os da lógica no sentido clássico, como também dos processos de produção industrial e do controle cibernético. Consequentemente, a essência da técnica e da linguagem (tecnológica) não reside no seu caráter instrumental, no fato de serem feituras e fabricos ou somente resultados da ação humana, isto é, como coisas humanas e desenvolvidas pelo homem. Instrumentalidade é apenas uma face da representação antropológica da técnica e da linguagem, aliás, sem meditar sobre o caráter e proveniência metafísicas desta representação. Então, a questão principal em torno delas não está em buscar formas de uso que garantam o domínio pelo homem de seus instrumentos.

Autor notes

2 Doutor em Filosofia pela Pontificia Università Antonianum (PUA), Roma – Itália. Professor da Universidade do Tocantins (UFT), Palmas – TO, Brasil.


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