Resumo: Friedrich Nietzsche dizia que a transcendência e a negação da vida, próprias do niilismo reativo que caracteriza a autofagia do Ocidente, eram subprodutos do excesso de memória, plasmado em ressentimento e “espírito de vingança”. Por outro lado, o xamã yanomami Davi Kopenawa, liderança indígena e autor, junto ao antropólogo Bruce Albert, do livro A queda do céu, responsabiliza o esquecimento dos brancos (napë pë) por sua própria derrocada — derrocada que leva todos os povos não-brancos consigo, em um vertiginoso cataclisma ambiental e pandêmico de dimensões planetárias que Kopenawa e os Yanomami chamam de “queda do céu”. Neste artigo, pretendemos lidar com essa equivocidade perspectiva do olvido, vislumbrando nela uma questão filosófica crucial: como compreender esse duplo cruzamento entre olvido e memória, quando saímos do discurso filosófico ocidental e partimos para o discurso de um pensador yanomami? Haveria em jogo, aqui, uma equivocidade do olvido, no sentido em que o esquecimento é outro, a depender de sua direção?
Palavras-chave:AntropocenoAntropoceno,MemóriaMemória,PerspectivismoPerspectivismo,PestePeste,CosmopolíticaCosmopolítica,YanomamiYanomami.
Abstract: Friedrich Nietzsche said that transcendence and the negation of life, both proper of the autophagy of the West’s reactive nihilism, were product of an excess of memory, embodied in resentment and “vengeful soul”. On the other hand, to the Yanomami shaman Davi Kopenawa, indigenous leader and author of The Falling Sky together with the anthropologist Bruce Albert, the forgetfulness of the White people (nape pë) is responsible for their own decay — a decay that carries all non-White people with itself in a dizzying environmental and pandemic cataclysm of earthly scales; this is what Kopenawa and the Yanomami people call “falling sky”. In this paper, one intends to deal with this equivocal and perspectivist sense of oblivion, as one sees in it a crucial philosophical question: how to understand the double crossing between oblivion and memory when one quits the Western philosophical discourse and goes on to the sayings of a Yanomami thinker? Was there an equivocation of oblivion at stake, in the sense that forgetfulness is always different depending on its direction?
Keywords: Anthropocene, Memory, Perspectivism, Plague, Cosmopolitics, Yanomami.
Artigos
Epidemia da insônia: Kopenawa e a equivocidade do esquecimento
Insomnia epidemic: Kopenawa and the forgetfulness equivocity
Recepção: 07 Abril 2021
Aprovação: 16 Maio 2021
… para nós, habitantes das águas do grande Lago Maracaibo, embora na verdade era o nosso Karoorare, lugar do grande espelho, o mundo é um grande Olho que vemos e que nos vê.
(José Ángel Quintero Weir,
indígena do povo Añuu)
Alguém que vi de passagem
Numa cidade estrangeira
Lembrou os sonhos que eu tinha
E esqueci sobre a mesa
Como uma pêra se esquece
Dormindo numa fruteira.
(Milton Nascimento e Ronaldo Bastos)
Em Cem anos de solidão, Gabriel García Márquez nos apresenta o que ele chama de “peste da insônia”, doença contagiosa que assola a cidade fictícia de Macondo. Se, no início da obra, Macondo emergia como “uma aldeia de vinte casas de barro e cana-brava, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos”, num “mundo tão recente que muitas coisas careciam de nome e, para mencioná-las, devia-se apontá-las com o dedo” (MÁRQUEZ, 2012, p. 1), no momento da peste, o vilarejo se encontrava em “um incipiente processo de modernização” (PAULA, 2018, p. 3), em meio a um eixo narrativo que envolvia a inveja nutrida pelo patriarca José Arcadio Buendía frente aos “ciganos”, “representantes de uma alteridade tecnicamente mais evoluída” com seus “prodígios mágicos e científicos — quando não mágico-científicos” (ibid.). A peste surge, então, interligada com o imaginário do progresso e da técnica, materializado na família Buendía-Iguarán, e se inicia pela menina Rebeca, prima distante de Úrsula, esposa de José Arcadio. Embora a peste não ocupe mais que algumas páginas, em contraste com a passagem da longa chuva que ocupa grande parte do miolo do livro, ela acaba por marcar toda a narrativa como um presságio do destino trágico dos Buendía-Iguarán, fadados à solidão centenária. Isso porque “o mais temível da enfermidade da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço algum, senão sua inexorável evolução até uma manifestação mais crítica: o olvido” (MÁRQUEZ, 2012, p. 28, grifo meu).
Quem primeiro nos conta sobre a peste da insônia no livro é a mulher indígena Visitación, pertencente ao povo Wayúu, habitante da Península de Guajira, na Colômbia, povo cuja relação conflituosa com o homem branco pode ser vislumbrada tanto por seus próprios relatos, quanto pela historiografia colombiana. Visitación é apresentada como “uma índia guajira que chegou ao povoado com um irmão, fugindo de uma peste da insônia que flagelava a sua tribo havia muitos anos” (MÁRQUEZ, 2012, p. 24). Ela e seu irmão, Cataure, personagens “que se davam conta de tudo porque percorriam a casa [dos Buendía] sem cessar com seus pés sigilosos” (ibid. p. 27), são os únicos que conseguiam, no início, se comunicar com Rebeca, que os Buendía julgavam surda e muda até o momento em que “os índios lhe perguntaram em sua língua se queria um pouco de água e ela moveu os olhos como se os houvesse reconhecido e fez que sim com a cabeça” (ibid. p. 26). Tal conexão entre personagens forasteiros a Macondo, os irmãos indígenas e Rebeca, fez com que, ao ver a menina certa noite sobre a “cadeira de balanço, chupando o dedo e com os olhos fosforescentes como os de um gato na obscuridade” (ibid.), Visitación percebesse que a garota era portadora da peste, reconhecendo “nesses olhos os sintomas da enfermidade cuja ameaça os havia obrigado, a ela e a seu irmão, a desterrar-se para sempre de um reino milenar no qual eram príncipes”, perseguindo-os “de todos os modos até o último rincão da terra” (ibid.).
Visitación reconhece a peste não apenas devido à origem estrangeira de Rebeca, mas pela circunstância que envolvia Macondo quando a menina se revelou infectada. Os irmãos Wayúu já conheciam a epidemia desde seu passado, como tantas epidemias que têm acometido os mais diversos povos indígenas desde a invasão das Américas: também foram estrangeiros aqueles que trouxeram a varíola, a gripe e, mais recentemente, o coronavírus. “As origens míticas dos irmãos indígenas atestam um passado de pujança e esplendor, um reino perdido por conta do esquecimento, do desenraizamento e da migração forçada, decorrentes da implementação violenta do projeto colonial na América” (PAULA, 2018, p. 3). Quando Macondo deixa de ser uma pequena comunidade que emula “um cenário pré-colombiano, tal como esboçado pelo olhar deslumbrado dos primeiros conquistadores” (ibid.) e se transforma “num povoado ativo, com lojas, oficinas de artesanato e uma rota de comércio permanente” (MÁRQUEZ, 2012, p.24), Visitación reconhece a reprodução do genocídio a que seu povo esteve submetido desde o primeiro contato com os europeus, passando por 1967, ano de publicação da obra de Márquez. Seguindo pela infame rota da mercadoria, Visitación já o sabia, o progresso e a História dos brancos chegam trazendo consigo a peste, a insônia, o esquecimento e a morte.
“Insônia”, palavra proveniente do latim, significa literalmente “não sono” ou “falta de sono” (in+somnus). A palavra somnium (“sonho”), por sua vez, é de uma etimologia derivada da palavra “sono” (somnus). Dentre os gregos, os óneiroi (“sonhos”) são, por vezes, personificados, aparecendo na Teogonia de Hesíodo (1988, p. 207) como a “tribo dos sonhos” (phylon Oneirón), filhos de Nýx, deusa da noite, sendo irmãos de Hypnos, deus do sono. Ovídio (2017, XI, v. 620-50) transforma os óneiroi em somnia, filhos, desta vez, de Somnus (“sono”), o que reflete a derivação etimológica. Os somnia são cerca de mil, dos quais três se destacam: Morpheus (do grego morphé, “forma”), que adentra os sonhos dos homens metamorfoseado em humano, Icelos (do grego íkelos, “semelhante”), entre os deuses, mas conhecido entre os humanos por Phobetor (do grego phóbos, “medo”), porque causa temor ao se metamorfosear em fera, e Phantasos (do grego phantasia, “aparição”), que se transforma em entes inanimados, como pedras e correntes de água.
Já no castelhano, língua de Márquez, há entre sono e sonho uma homonímia produtiva: sueño. Com o sono, vêm os sonhos, e sem o sono, não há nada — exceto quando há: delírios, assombrações e viagens xamânicas. “O sono/sonho [sueño] da razão produz monstros”, aludia Francisco de Goya com o título de uma de suas mais famosas gravuras, produzida entre 1797 e 1799 para o Diario de Madrid — frase tão ambígua quanto o próprio pintor, podendo significar que a falta de razão, operante na vigília, produz no sono monstros, mas também que a própria razão, quando dorme, sonha monstruosidades, o que faz do sonhador da gravura goyana “um quixotesco sonhador da razão” que “sonha que a razão corrigirá os erros do mundo ao ponto de perder a cabeça [loses his mind]” (CIOFALO, 1997, p. 421-2).
O xamã yanomami Davi Kopenawa, ao perceber que a política dos brancos (napë pë, em idioma yanomami) só faz emitir “falas emaranhadas” de suas peles de papel, “palavras retorcidas daqueles que querem nossa morte para se apossar de nossas terras” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 390), alerta para o sonho monstruoso do Ocidente: “os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos” (ibid.). Com isso, ao grafar suas palavras em papeis e dados com suas antropotecnias humanistas milenares, os brancos, com seu “pensamento […] curto e obscuro”, esquecem “[d]as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo” (ibid.). Os brancos esquecem, e por isso, destroem tudo com sua marcha civilizatória, inclusive a si mesmos.
Curioso constatar que, para Friedrich Nietzsche, era pela falta de olvido que o europeu havia se embrenhado em um niilismo vertiginoso e autofágico após uma trajetória milenar de transcendência. O grande problema da metafísica europeia, para Nietzsche, era o ressentimento decadente, afeto reativo fruto do excesso de memória que catalisava o “espírito de vingança” (NIETZSCHE, 2011, p. 119) na base de todas as transcendências negadoras da vida. Saudosos do velho ecúmeno, os europeus das navegações do século XVI, dando início à trajetória de “globalização terrestre” (SLOTERDIJK, 2005, p. 21), dizimaram a América indígena e escravizaram diversos povos, sobrepujando-se com uma mnemotécnica feroz capaz de manter os navegantes aquecidos sob o frio dos ventos oceânicos, protegidos das intempéries caribenhas, africanas e sul- e norte-americanas, agarrados a uma tradição teológico-humanista milenar. Foi a mesma saudade, a mesma memória ibérica, excessiva e longa que, contudo, condenou os povos da Europa à doença autoimune que se anunciaria com a morte de Deus (NIETZSCHE, 2012, §125).
Assim, contra a memória excessiva dos europeus, causa de sua autofagia niilista, fazia-se imperativo, para Nietzsche, o esquecimento como fármaco. A possibilidade de esquecer é a possibilidade de relacionar-se com o Outro de forma não reativa, abstrata e identitária, mas ativa, corpórea e metamórfica; trata-se, pois, da possibilidade de experimentar “uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência “[…] do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou ‘assimilação física [Einverleibung]’” (NIETZSCHE, 1999, p. 47, grifos nossos). É uma possibilidade ativa de infectar e se deixar ser infectado pela diferença; uma “assimilação física” ou “encorporação”2 que mais tem a ver com a alteridade que com a ipseidade, com a assunção de pontos de vista alheios que nos atravessam e nos descartam (NODARI, 2011, p. 465-6). É, enfim, a potência de prescindir de um aparato imunitário implacável, de se livrar das “filosofias do homem vestido”, que caminharam “como as formigas de Ésquilo na direção de Prometeu” (ANDRADE, 1992, p. 285), e de penetrar nas imunidades alheias, bem como de se deixar ser penetrado em sua imunidade, em um ato virulento de “antropofagia trágica” (MELLO, 2007) no sentido oswaldiano do termo: “o homem, como o vírus, o gen, a parcela mínima da vida, se realiza numa duplicidade antagônica — benéfica e maléfica —, que traz em si o seu caráter conflitual com o mundo” (ANDRADE, 1972, p. 129, grifos nossos). Afinal, como já havia sugerido Oswald de Andrade, “é preciso dar o passo de Nietzsche na direção do Super-homem” (id. 1992, p. 286), que assume o conflito inerente ao campo de afinidades interperspectivo para, enfim, “atingir a filosofia da Devoração”, “a antropofagia” (ibid.).
Kopenawa, xamã de um desses povos “antropófagos” de que falava Oswald de Andrade, nos diz aparentemente o contrário de Nietzsche: foram os brancos que esqueceram das palavras míticas dos sonhos e que, por isso, têm a visão curta e precária. Contra o esquecimento dos napë pë, erguem-se as vozes da floresta. Ainda assim, é possível observar esse esquecimento ativo de que fala Nietzsche no modo de vida de povos como os Yanomami. Como, então, compreender esse duplo cruzamento entre olvido e memória, quando saímos do discurso filosófico ocidental e partimos para o discurso de um pensador yanomami? De que tipo é o esquecimento dos brancos de que fala Kopenawa, como o olvido da peste que se conjuga ao ressentimento recalcitrante da transcendência, e de que tipo é o “esquecimento” nietzscheano dos índios, revertido em memória xamânica dos seres míticos? Haveria em jogo, aqui, uma equivocidade do olvido, no sentido em que o esquecimento é outro, a depender de sua direção? Além disso, há relação entre progresso (ou seja, História e comércio) e esquecimento (e, consequentemente, cataclisma), como há na Macondo dos Buendía? Que papel, enfim, exerce a peste e o contágio nesse jogo?
Com estas questões no horizonte, este artigo começará por tematizar alguns aspectos da economia cosmológica do “mundo-floresta” (urihi a), expostos por Kopenawa junto ao antropólogo Bruce Albert em seu livro A queda do céu, concentrando-se na discussão sobre valor, vida e epidemia (xawara), a última relacionada à exploração de minério e ao contato sobrenatural com os brancos. Com isso, analisaremos a questão do matihi, palavra yanomami polissêmica que também é utilizada para nomear as mercadorias dos brancos — discussão diretamente relacionada com as questões do valor e da epidemia. Por fim, retomaremos a questão principal sobre sonho e esquecimento, onde tentaremos ensaiar uma forma de compreender essa equivocidade do olvido de maneira positiva.
De início, é necessário abordar a discussão do que Kopenawa chama de “valor de fertilidade” da floresta e sua relação com o “valor de fome” ou de “seca”. Esta discussão nos permite compreender o que está em jogo no esquecimento napë, pois o valor da fertilidade se opõe diretamente ao valor financeiro de troca dos brancos, relativo à acumulação de capital: “o dinheiro não nos protege, não enche o estômago, não faz nossa alegria. Para os brancos, é diferente. Eles não sabem sonhar com os espíritos como nós” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 217). Além disso, o valor de fertilidade (në ropë), cuja “imagem” (utupë)3, Në roperi, serve de alimento para os espíritos xamânicos xapiri pë (ibid. p. 128), reflete a posição antagônica e incomensurável entre a cosmologia napë, no interior da qual a natureza, a alteridade e o sobrenatural são mudos, cegos ou simplesmente não existentes (ou não dignos de existência), onde vigora o capital e todas as resistências que ele suscita, e a cosmologia yanomami, onde tudo tem, potencialmente, seu valor de fertilidade, tudo carrega espírito e, portanto, tudo pode ter agência e influência na economia geral dos fluxos. Como diz Albert em nota: “é o ‘valor de fertilidade’ da floresta enquanto agente (në ropeni) que faz as plantas crescerem” (ibid. p. 631, grifo nosso); é sua visita que faz crescer vegetação e que, com isso, atrai caça e mantém os povos alimentados, espantando o valor de fome (në ohi) “da floresta privada de frutos e de caça” (ibid.). Nas palavras de Kopenawa:
As árvores da floresta e as plantas de nossas roças também não crescem sozinhas, como pensam os brancos. Nossa floresta é vasta e bela. Mas não o é à toa. É seu valor de fertilidade que a faz assim. É o que chamamos në rope. Nada cresceria sem isso. O në rope vai e vem, como um visitante, fazendo crescer a vegetação por onde passa. Quando bebemos yãkoana, vemos sua imagem que impregna a floresta e a faz úmida e fresca. As folhas de suas árvores aparecem verdes e brilhantes e seus galhos ficam carregados de frutos. [...] Esse valor de fertilidade da terra está ativo por toda parte. É ele que faz acontecer a riqueza da floresta e que, desse modo, alimenta os humanos e a caça. É ele que faz sair da terra todas as plantas e frutos que comemos. Seu nome é o de tudo o que prospera, tanto nas roças como na floresta (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 207, grifos nossos).
Apesar de o solo exalar valor de fertilidade, tal valor tem que ser a cada vez reconvocado pelos xamãs, dado que, “quando a riqueza da floresta se afasta de nossas casas, não retorna por conta própria” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 210). Essa é ocasião para o surgimento de Ohinari, ser da fome e imagem do valor de fome da floresta. “Ohinari é o que os brancos chamam de pobreza” (ibid.) — uma pobreza mortal que priva as pessoas de alimento, as leva a maus devires, mas que, ao contrário da “pobreza de mundo” heideggeriana, propriedade que separa essencialmente os animais vedados de mundo dos humanos formadores de mundo (cf. HEIDEGGER, 1992, §59b), é gradual e se instala a posteriori e pode ser evitada ou revertida pelos xamãs. “Para evitarem que isso aconteça, os xamãs devem beber mais e mais yãkoana, para enviar seus xapiri em busca da imagem da fertilidade em florestas distantes, ou até mesmo nas costas do céu” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 210).
O valor de fertilidade de uma roça pode ser furtado, propositalmente ou não, por xamãs inimigos ou xamãs aliados. “Porém, mesmo quando a riqueza de nossas plantações é assim levada por um xamã visitante, isso não dura muito. Continua havendo muita fertilidade në rope na floresta, e se nossas roças ficam com valor de fome, basta bebermos yãkoana para trazê-la de volta para junto de nossa casa” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 214). Ele também pode ser trocado ou emprestado para casas de aliados, ajudando na manutenção de alianças extracomunitárias.
Há, contudo, dois modos especialmente peremptórios de fazer fugir o valor de fertilidade: o desmatamento excessivo e a perfuração do solo em busca de minério (cf. KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 469). Ambos se relacionam à necessidade de manter uma camada superficial de solo de onde provém os sopros vitais da floresta (wahari) (cf. ibid. p. 468-70), com folhagem o suficiente para prender o sopro, a umidade e a temperatura ideal na floresta e para garantir a compostagem necessária para dar ao solo “seu cheiro e seu valor de fertilidade” (ibid. p. 471). Por conta disso, as roças yanomami são sempre cultivadas na “pele da floresta” em “locais onde vemos que há uma roça posta no solo da floresta”, “sem avançar longe demais”, utilizando-se da “madeira dos troncos já caídos” para fazer “lenha para as fogueiras” e cozinhar alimentos e em locais “onde mora a imagem da fertilidade në rope, onde a terra é bela, onde o solo é seco e um pouco elevado, a salvo de inundações” (ibid. p. 469-70).
“Assim, quando os brancos […] arrancam [a floresta] com seus tratores, logo só resta pedregulho e areia nas profundezas da terra, e a umidade vai embora. […] se [në roperi] resolver ir embora, nada mais crescerá, o solo ficará quente demais e a floresta logo passará a ter valor de fome” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 470-1). Isso se dá porque, além da pele da floresta guardar valor de fertilidade em abundância, o “centro do antigo céu Hutukara”, onde se situa në rope, também é “onde está enterrado o metal de Omama, nas nascentes dos rios” (ibid. p. 328). Para os Yanomami, os metais e minérios pertencem a Omama, o demiurgo dos Yanomami, que, com esses metais, “trabalhava […] em sua roça desde sempre”, e foi Omama quem “ensinou nossos ancestrais a trabalhar com esse metal em suas roças” (ibid. p. 222). Os fragmentos do metal de Omama, “lascas do céu, da lua, do sol e das estrelas que caíram no primeiro tempo”, servem de “esqueleto” à floresta que, por sua vez, é a “carne e […] pele de nossa terra, […] dorso do antigo céu Hutukara caído no primeiro tempo (ibid. p. 357). Esse esqueleto metálico, escondido “lá no meio dos morros das terras altas, onde também [Omama] fez jorrar os rios” e de onde “surgem os ventos e o frescor da floresta” (ibid. p. 360), é o que impede que a terra se rasgue e que seus habitantes caiam “no mundo de baixo”, como acontecerá “se os brancos de hoje conseguirem arrancá-lo com suas bombas e grandes máquinas, do mesmo modo que abriram a estrada em nossa floresta” (ibid. p. 359). Ele fica guardado “no frescor do solo”, coberto “por grandes rochas duras, pedregulhos ocos, pedras brilhantes, cascalho e areia”, substâncias que “contém seu calor, como uma grande geladeira de vacinas” (ibid. p. 359-60).
É o resfriamento desse esqueleto de metal que proporciona a “brisa úmida” que caracteriza o valor de fertilidade exalado pelo solo. Sem essa “tampa de panela” dos “seres da terra que chamamos de maxitari e do ser maléfico do tempo chuvoso, Ruëri” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 360), que garante a diferença termodinâmica necessária para a vida na floresta, a “fumaça de epidemia [xawara a wakixi]” (ibid. p. 663) engolfaria todos os habitantes da floresta, queimando-os vivos e tragando-os para o subsolo. Isso porque o metal é o principal repositório das fumaças de epidemia xawara, que, aliás, também estão por toda parte “no território dos brancos à nossa volta”, onde “há somente terras feridas” (ibid. p. 328). Segundo Kopenawa, do minério extraído e queimado, sai uma “fumaça de metal densa e amarelada, uma fumaça de epidemia tão poderosa que se lança como uma arma para matar os que dela se aproximam e a respiram” (ibid. p. 357). Os metais que os próprios Yanomami utilizam, metais mais fracos, “menos nocivo[s], mas também […] menos resistente[s]” (ibid. p. 358), que eles usam para construir ferramentas simples, como machadinhas, são metais neutralizados, tornados “inofensivos” por Omama “por precaução” (ibid.), enquanto os metais mais perigosos, “muito pesado[s] e ardente[s]”, foram escondidos debaixo da terra porque o demiurgo “temia que seu irmão Yoasi fizesse mau uso dele” (ibid.). Chegar ao metal verdadeiro, extraí-lo e queimá-lo seria para Kopenawa o equivalente a uma explosão nuclear: “se os brancos um dia chegassem até o metal de Omama, a poderosa fumaça amarelada de seu sopro se espalharia por toda parte, como um veneno tão mortal quanto o que eles chamam de bomba atômica” (ibid. p. 359).
Os brancos, ignorando o potencial danoso da liberação e queima dos minérios, dado que “seu pensamento é cheio de escuridão”, “acabaram por atravessar as águas para vir à sua procura na terra do Brasil” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 359), como os argonautas de Jasão que se lançaram rumo à Cólquida em busca do Velocino de Ouro. O ouro, aliás, ilustra bem as razões cosmológicas pelas quais se diz que os metais carregam a morte — para além das correlações indiretas entre a extração de minério pelos garimpeiros, a contaminação por mercúrio e o contágio das doenças que eles levam das cidades à floresta. De acordo com Kopenawa, o ouro está intrinsecamente vinculado ao que os Yanomami chamam de “pai do ouro [oru hwɨɨ e]” (ibid. p. 663). “Trata-se de um ser maléfico assustador e feroz, capaz de nos cortar a garganta, de dilacerar nossos pulmões e de secar nosso sangue”, cuja imagem “é gigantesca e impregnada de fumaça de epidemia” (ibid. p. 361-2). Da mesma forma, “o ouro, quando ainda é como uma pedra, é um ser vivo” que “só morre quando é derretido no fogo, quando seu sangue evapora nas grandes panelas das fábricas dos brancos”, exalando “o perigoso calor de seu sopro [wixia a wakixi], que chamamos de oru a wakixi, a fumaça de ouro” (ibid. p. 362).
“Ocorre o mesmo com todos os minérios, quando são queimados”: na queima, condição necessária para a produção “de todos os objetos que os brancos fabricam”, o sangue dos metais, seu “sopro vital [wixia]” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 362), se transforma em gás epidêmico, fumaça (wakixi)4, e escapa, “suja[ndo] o corpo dos brancos das cidades, sem que o saibam” (ibid. p. 362). “Depois, toda essa fumaça maléfica flui para longe e, quando chega até a floresta, rasga nossas gargantas e devora nossos pulmões. Queima-nos com sua febre e nos faz tossir sem trégua, e vai nos enfraquecendo, até nos matar” (ibid. p. 363). Todos esses vapores metálicos, que terminam contaminando no próprio fabrico as mercadorias dos brancos, são chamados de fumaças de epidemia, manifestações da “mesma fumaça de epidemia xawara, que é nossa verdadeira inimiga” (ibid. p. 363). Kopenawa chama de xawara “todas as doenças de brancos que nos matam para devorar nossa carne”, como “o sarampo, a gripe, a malária, a tuberculose” (ibid. p. 366). Embora a “gente comum” só perceba seus eflúvios, como as fumaças da queima do minério, os sintomas explícitos e a poluição aérea, os xamãs observam que tais epidemias são agenciadas pela “imagem dos espíritos da epidemia, que chamamos de xawarari”, “seres maléficos [que] se parecem com os brancos, com roupas, óculos e chapéus, mas estão envoltos numa fumaça densa e têm presas afiadas” e “só têm fome de gordura humana e sede de nosso sangue, que bebem até secar” (ibid.).
Como os metais se encontram debaixo da terra, o garimpo e a mineração são duas das principais vias de extração e, consequentemente, duas das principais atividades produtoras de surtos epidêmicos — sem contar no próprio mercúrio, derrubado nos rios, e nas implicações entre atividades de mineração, desmatamentos, caçadas ilegais e assassinatos. O garimpo e a mineração predatória são duas amostras de como o éthos baixo-canibal dos napë pë é idêntico ao éthos baixo-canibal dos xawarari pë: adeptos do mito da antropogênese adâmica a partir do barro, os brancos, que extraem do fundo da terra os metais deixados por Omama a fim de produzir suas mercadorias — “para os outros brancos poderem com ele fazer dentes e enfeites, ou só para esconder em suas casas!” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 335) —, são descritos por Kopenawa como “verdadeiros comedores de terra [urihi wapo pë]” (ibid. p. 337). Devoram, “com voracidade de cães famintos” (ibid.), da mesma terra que julgam ser matéria-prima de seus próprios corpos e liberam, com isso, uma corte de espíritos canibais xawarari junto à fumaça da epidemia surgida da queima do minério.
A descrição feita por Kopenawa das ações desses espíritos da epidemia xawarari é visualmente chocante, e exibe claramente a forma como os napë pë partilham, além da semelhança fenotípica, de sua “baixa antropofagia”5 e de sua ânsia acumulativa6, mas o mais curioso é a maneira como o canibalismo xawarari termina por transformar suas caças em mercadorias enlatadas: “uma vez cozidas, guardam essas carnes em grandes caixas de ferro para comer mais tarde. Preparam assim latas de carne humana em grandes quantidades, como os brancos fazem com seus peixes e seus bois” (ibid. p. 367, grifos nossos). Da mesma forma, “esses seres xawarari moram em casas repletas de mercadorias e comidas, como os acampamentos de garimpeiros” (ibid.). Estes espíritos canibais da epidemia xawara se assemelham, assim, especialmente aos brancos, sendo, inclusive, seus sogros sobrenaturais (cf. ibid. p. 309), cuja relação com os brancos é marcada “pela subordinação”, como “as relações entre espécies animais próximas, mas de tamanhos diferentes, entre Vênus e a Lua, entre um cão e seu dono, entre patrões e operários” (ibid. p. 656).
“Quando [os xapiri pë] não conseguem afugentá-los, […] instalam suas redes nas nossas casas e vão nos devorando à vontade, sem pressa”, comendo “primeiro um grupo de gente”, para em seguida “devorar uma parte dos sobreviventes” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 309). Desse modo, atuam de forma verdadeiramente epidêmica, contaminando os Yanomami em surtos, aos poucos, e se espalhando por contágio entre pessoas e entre pessoas e mercadorias. Ao mesmo tempo, imitam os próprios fenômenos fágicos dos brancos, como sua devoração descuidada da “carne de seus animais domésticos, que são os genros de Hayakoari, o ser anta que faz a gente virar outro” (ibid. p. 390), e sua abstração do animal caçado, transformado em um pedaço de carne isolado, como se tivesse sido construído artificialmente e não extraído de um verdadeiro ser vivo — abstração intimamente conectada com a abstração da terra em lote imobiliário, na transformação do valor de fertilidade em valor mercadológico. É por isso que os xawarari prosperam “onde os brancos fabricam seus objetos e onde os armazenam” (ibid. p. 367), seguindo também os rastros das mercadorias dos brancos. “Os grandes rios, as estradas e as pistas de pouso são seus caminhos e portas de entrada na floresta” (ibid.), verdadeiras highways que, com a globalização, interconectam todos os pontos do globo em uma extensa e ubíqua rede pandêmica, como apontou, com ironia, Bruno Latour a respeito da pandemia do Novo Coronavírus: “se o objetivo é conectar bilhões de humanos, os micróbios estão aí para isso mesmo!” (LATOUR, 2020).
Enquanto os Yanomami, cientes do perigo epidêmico da queima de metais, evitam contato com os minérios enterrados, “os brancos, tomados por seu desconhecimento, puseram-se a arrancar os minérios do solo com avidez, para cozê-los em suas fábricas” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 363, grifo nosso), com o fim de produzir mercadorias em profusão. Esse desconhecimento se funda no fato de que “o pensamento dos brancos permanece cheio de esquecimento”, não sabendo “sonhar e […] como fazer dançar as imagens de seus antepassados” (ibid. p. 327-8). Os brancos se assemelham, até certo ponto, a crianças e jovens em sua relação com os espíritos: “Quando se é jovem, ainda não se sabe nada. O pensamento é cheio de olvido. É só muito mais tarde, uma vez adulto, que se pode tomar dentro de si as palavras dos antigos” (ibid. p. 376, grifo nosso).
A falta de vivência sobrenatural pode ser uma das razões pelas quais jovens Yanomami têm mais facilidade em se sentir atraídos pelas mercadorias dos napë pë. Mas não se trata, aqui, de nada parecido com a infans, a ausência de voz dentro da qual o Ocidente aprendeu, desde Aristóteles e com mais ênfase na Modernidade colonial, a enquadrar todos aqueles que ainda são “adultos”, detentores do lógos, em potência, mas não em pleno ato — incluindo, nesse caso, povos indígenas, “primitivos”, sem lei, fé ou rei. Afinal, trata-se de olvido, ou seja, da perda de uma memória, como que em uma torção sobrenatural, geofilosófica e imagética da teoria platônica da reminiscência. Enquanto “as crianças dos brancos” têm de se tornar adultos aprendendo “a desenhar suas palavras” e “torcendo os dedos desajeitados por muito tempo e com os olhos sempre cravados em peles de imagens [i.e. papeis]”, entre os Yanomami, “os rapazes que querem conhecer os xapiri têm de vencer o medo e deixar que os mais velhos soprem o pó de yãkoana em suas narinas” para, mais tarde, “ligar seus pensamentos um ao outro, o mais longe que puderem” (ibid. grifo nosso). Enquanto os jovens Yanomami precisam ser lembrados pelo sopro de vida dos mais velhos para que seu pensamento se expanda para além das fronteiras de seu próprio povo, os brancos se esqueceram porque denegaram de partida o plano mítico, das utupë, fundando sua própria Bildung humanista, acumulativa e redundante, sobre tal denegação.
Uma explicação de como se configurou esse pensamento cheio de esquecimento pode ser dada pela própria equivocidade do termo matihi, “mercadoria”, equivocidade que aponta para o cerne do caráter ambíguo da própria noção de esquecimento. Os napë pë trazem consigo novos matihi pë que, ligados ao metal e às fumaças epidêmicas, são qualitativamente diferentes daqueles matihi pë próprios dos xapiri pë e dos Yanomami, cujo sentido principal indica “bens trocados durante os grandes ritos intercomunitários reahu” (ALBERT, 2002, p. 253), ocasião para construção de novas relações, bem como “todos os adornos com que [os antigos Yanomami] se arrumavam para as festas reahu” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 408). São bens que “pertencem a Omama e aos xapiri que ele criou” e, por isso, a própria palavra carrega um “valor de espírito [në xapiri pë]” (ibid. p. 408 [668]) vinculado ao valor de fertilidade da floresta. A transposição do termo matihi às mercadorias dos brancos, por sua vez, ocorreu em virtude dos primeiros contatos dos Yanomami com os napë pë, dada a estranheza e o brilho de metal dos objetos que guardavam em seus acampamentos, associados à magnitude das matihi dos espíritos xapiri pë (ibid. p. 409). Os matihi pë dos Yanomami, porém, ao contrário das mercadorias ocidentais, sobretudo aquelas produzidas industrialmente e em massa, são vivos. Os adornos de contas de vidro coloridas ilustram bem essa divergência, tais como aqueles que Kopenawa viu expostos no Museu do Homem, em Paris, parecidos com os adornos “pertencentes às imagens das mulheres estrangeiras waikayoma”: “[…] os brancos as fabricam hoje em dia com máquinas, em grandes quantidades. As que as waikayoma flechavam eram bem diferentes, pois se tratava de bens dos espíritos. Eram vivas e pareciam criancinhas” (ibid. p. 426).
Para além das relações de troca, contudo, os matihi pë tradicionais “são apenas o significante de uma ausência, a ausência de uma relação que se deve obliterar” (ALBERT, 2002, p. 253) — como é o caso das cinzas funerárias, “ingeridas ou enterradas para serem ‘postas no esquecimento’, no anonimato do chão da floresta” (ibid. grifo nosso). Assim,
[…] quando um de nós morre, também chamamos matihi os ossos que recolhemos de suas carnes putrefatas para queimar. Depois, suas cinzas são moídas num pilão e guardadas numa pequena cabaça pora axi. Também essa cabaça de cinzas tem o mesmo nome: matihi. Os ossos dos mortos e suas cinzas são coisas que não se pode destratar! Por isso a força dessa palavra, matihi, está associada desde sempre a eles. Se um convidado descartar as cinzas funerárias que lhe foram confiadas, enfrentará em seguida a vingança dos familiares do morto. […] Ninguém destrata as cinzas dos ossos de um morto sem consequência! […] Não é à toa que chamamos as cinzas e os ossos de nossos mortos de matihi! Nossos antepassados nos deram essa palavra poderosa, porque o valor que damos a essas coisas é maior até do que o que os brancos dão ao ouro que tanto cobiçam (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 408, grifos nossos).
Vinculados estritamente a pessoas em relação e a seu valor xapiri, os matihi pë não adquirem um valor autônomo, comercializável, devendo ser destruídos quando falecem as pessoas, ou seja, quando se tornam membros de outro povo. Assim, mesmo quando há acúmulo, os matihi pë estão aí para serem obliterados, esquecidos, como um lembrete constante de que, por trás da provisória estabilidade dos vivos, a morte, a metamorfose e a ação espectral das imagens estão sempre em ação. Portanto, para que as utupë possam ser lembradas nos sonhos xamânicos e para que se mantenham relações sobrenaturais que, justamente, evitam o desconhecimento dos espíritos, é estritamente necessário que se opere um verdadeiro trabalho de esquecimento dos mortos e de seus bens.
A transposição do termo matihi às mercadorias dos brancos, por sua vez, ocorreu em virtude dos primeiros contatos dos Yanomami com os napë pë: Para Kopenawa, os matihi pë são diferentes dos seres vivos no tocante à sua durabilidade: “os humanos adoecem, envelhecem e morrem com facilidade. Já o metal dos facões, dos machados e das facas fica coberto de ferrugem e sujeira de cupim, mas não desaparece tão depressa!” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 409). Armazenar matihi pë ligados à vida das pessoas após sua morte só serviria para “causar tristeza nos que nos sobrevivem e choram nossa morte” (ibid.). Por isso, “nem bem acabamos de consegui-los e logo os damos a outros que, por sua vez, os querem”, fazendo circular as mercadorias “carregadas pelos convidados de nossas festas reahu ou por outros visitantes” (ibid. p. 410).
“Contrapondo-se a essa ordem da reciprocidade simbólica em que a morte e a destruição de bens alicerçam a troca”, nos diz Albert, “está a ordem do valor e da acumulação da economia privada” (2002, p. 254). Com os brancos, ocorre então o oposto: “entre eles, quando morre um pai, seus filhos pensam, satisfeitos: ‘Vamos dividir as mercadorias e o dinheiro dele e ficar com tudo para nós!’. Os brancos não destroem os bens de seus defuntos, porque seu pensamento é cheio de esquecimento” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 410). Se os matihi pë carregam o “toque do falecido” (ibid.), acumulá-los sem destruí-los ou trocá-los implica em marcar nas mercadorias um rastro de morte, que as acompanharia até o fim; é o que ocorre com as mercadorias dos brancos, que carregam tanto a morte não resolvida dos falecidos humanos, quanto a morte não resolvida dos minérios queimados e a morte potencial de si e dos seus, totalmente ignorada por um desejo de imortalidade consumado no acúmulo de mercadorias (ibid. p. 438).
Na acumulação compulsiva de lembranças dos mortos, os napë pë falham em processar o luto dos seus e, com isso, denegam a própria metamorfose envolvida na morte, esquecendo-se até mesmo da agência dos mortos. É possível vislumbrar isto na impressão de Kopenawa ao ver os restos megalíticos de Averbury, no sul da Inglaterra, espantado ao ver pedras que “são os rastros de Omama, que criou nossos antepassados”, mas também desconsolado ao pensar que “os jovens que, hoje, vão ver essas pedras sem temer a ventania que as cerca parecem perdidos. Seus pais perderam as palavras sobre elas e não podem transmiti-las a eles. Então, ficam olhando para elas longamente, sem reconhecê-las” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 396). Para o xamã, “os fantasmas desses antepassados continuam ali presentes” e, por isso, essas rochas não poderiam ser destruídas porque, caso contrário, “sua lei”, “saber de seus antepassados” e equivalente ao que “as palavras de Omama são para nós”, seria “abolida e esquecida” (ibid. p. 396-7). Esse esquecimento equivale à ignorância da morte, no sentido de ignorância quanto à metamorfose de seus ancestrais, e à sua permanência enquanto outros — visto que, para os Yanomami, morrer é devir-outro, ou melhor, sofrer um “deslocamento ontológico da imagem vital, utupë, de um sujeito” (VALENTIM, 2018, p. 229): “Se as máquinas dos brancos derrubarem essas grandes pedras de Omama [em Averbury], os fantasmas de seus ancestrais ficarão furiosos” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 397, grifo nosso). Destruir essas pedras, artefatos da memória mítica, implicaria em perder “para sempre as medidas”, saber ancestral, e a “maltratar a terra e […] matar uns aos outros” (ibid.) — pois o luto não processado e fetichizado em herança é condição para o esvaziamento da morte e de seus efeitos transformativos.
É o que, em certa medida, acaba acontecendo aos napë pë, “o povo da mercadoria [matihi thëri pë]”, quando os filhos e netos de seus antepassados “começaram a rejeitar os dizeres de seus antigos como se fossem mentiras e foram aos poucos se esquecendo deles” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 407), reduzindo o mito ao estatuto de um lógos em estado embrionário. “Foi com essas palavras da mercadoria que os brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e a sujar os rios” (ibid.). Sonhando com “seu carro, sua casa, seu dinheiro e todos os seus outros bens — os que já possuem e os que desejam ainda possuir” (ibid. p. 413), os brancos, com seus lucros, suas heranças malditas, disputadas a ferro e fogo, e sua ânsia em ignorar a finitude de si e dos seus, bem como ignorar o “phágos”, predação imagética perenemente atuante por trás detrás de cada lógos, atraem os xawarari pë, que seguem os rastros de suas mercadorias acumuladas e demonstram que, no fim, a metamorfose e a predação continuam sempre operantes. Assim, “como convidados invisíveis”, os xawarari compõem, na mercadoria, um verdadeiro “valor de epidemia xawara [në xawara]” (ibid. p. 368 [664]), o contraponto, oculto por detrás do valor de troca da mercadoria, da fertilidade da floresta. Com a inversão do sentido dos matihi pë e sua circulação globalizada7, os napë pë constituem um verdadeiro tempo da imagem pandêmica do mundo, na transformação do globo em um grande arrazoado homogêneo de mercadorias em meio ao processo de captação do mundo.
Kopenawa explica que os antigos napë pë “conseguiram construir casas de pedra cada vez mais sólidas” e, “satisfeitos”, tiveram “a ideia de desenhar a terra em torno de cada uma delas”, descobrindo assim “a beleza das mercadorias” e pondo-se “a fabricá-las sem parar”, constituindo cidades através da ligação entre as casas por “caminhos emaranhados” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 404-5). Desta feita, esquadrilharam suas terras, as cartografaram em “desenhos de terra” e, para que pudessem tirar vantagem das mercadorias que fabricavam em excesso nas terras, bem como transformar as próprias terras em mercadorias lucrativas, puseram um valor abstrato em cada pedaço de seu território, simbolizado pelas “peles de papel” (ibid. p. 407): “[…] esses desenhos são em seguida colados num livro e aqueles que querem plantar sua comida nesses pedaços têm de devolver seu valor. Assim, os brancos alegam que esses desenhos de terra têm um preço, e é por isso que os trocam por dinheiro” (ibid. p. 327). Essa grilagem, “práxis de captação da orbe” (SLOTERDIJK, 2005, p. 49) recorrente na época da colonização e ainda vigente, legal e ilegalmente, em locais como a fronteira agrícola brasileira, equivale à subversão de um “animismo comunitário” em um “capitalismo imunitário”: neutraliza-se, como um antígeno imunizado, a anima da terra, transformando-a em valor de troca desterritorializado com o qual se mede o valor da terra em cifra monetária para que possa ser revendida a alto custo para exploração agropecuária, minerológica, turística ou especulativa — devolvendo aos povos autóctones “apenas uns poucos pedaços, cercados de garimpos e plantações” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 328).
Tal imunização abstrai o valor da floresta, destacando-o de sua concretude vital e tornando-o dado quantitativo intercambiável, passível de uma especulação financeira que se mostra, no fim, altamente epidêmica, embora aparentemente sem consequências. Além disso, essa imunização termina por obscurecer a própria pessoalidade e agencialidade dos seres da mata, operando o esgotamento vital da floresta. Em outras palavras, transforma-se o animismo em capitalismo, envolvendo a divisão e monetização de terras, a constituição de cidades estratificadas e a consolidação de um saber escrito morto e cumulativo em detrimento do canto xamânico, e tudo isto conduz os brancos ao esvaziamento dos sonhos, à denegação do mito e ao esquecimento das palavras e danças dos espíritos da floresta.
Os espíritos napënapëri querem também preservar a beleza de sua terra-espelho e protegê-la das fumaças de epidemia. Contudo, os brancos de hoje não sabem mais cuidar dela e ignoram essas imagens, que são as de seus antepassados. Isso também me preocupa. No tempo antigo, os brancos as conheciam e as faziam dançar como nós. […] Mas os que nasceram depois deles acabaram criando as cidades. Aí, foram pouco a pouco deixando de ouvir as palavras desses espíritos antigos. Depois, os livros fizeram com que fossem esquecidos e eles por fim as renegaram (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 402).
Para os Yanomami, no entanto, este valor abstrato não se compara ao verdadeiro valor de fertilidade da floresta, sendo apenas um eco distorcido e esvaziado deste último e, no fundo, sua inversão absoluta, como valor epidêmico causador de morte:
[…] a terra é mais sólida do que nossa vida e […] não morre. […] ela nos faz comer e viver. Não é o ouro, nem as mercadorias, que faz crescer as plantas que nos alimentam e que engordam as presas que caçamos! Por isso digo que o valor de nossa floresta é muito alto e muito pesado. Todas as mercadorias dos brancos jamais serão suficientes em troca de todas as suas árvores, frutos, animais e peixes. As peles de papel de seu dinheiro nunca bastarão para compensar o valor de suas árvores queimadas, de seu solo ressequido e de suas águas emporcalhadas. Nada disso poderá ressarcir o valor dos jacarés mortos e dos queixadas desaparecidos. Os rios são caros demais e nada pode pagar o valor dos animais de caça. Tudo o que cresce e se desloca na floresta ou sob as águas e também todos os xapiri e os humanos têm um valor importante demais para todas as mercadorias e o dinheiro dos brancos. Nada é forte o bastante para poder restituir o valor da floresta doente. Nenhuma mercadoria poderá comprar todos os Yanomami devorados pelas fumaças de epidemia. Nenhum dinheiro poderá devolver aos espíritos o valor de seus pais mortos! […] O sopro de nossa vida vale muito mais! (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 354-5, grifos nossos).
A superioridade de valor da floresta e de seus agentes não é uma superioridade quantitativa, como se bastasse chegar no valor ideal para que a floresta pudesse realmente ser “comprada”, como uma mercadoria qualquer. Tal superioridade se deve muito mais à impossibilidade constitutiva de a floresta, como tal, ser reduzida a um valor de uso ou de troca sem que ela se torne outra, ou seja, sem que adoeça, dado que sua redução em valor monetário implica a transformação do valor de fertilidade em valor de epidemia. Se fosse possível falar da floresta como um “objeto de troca”, no entanto, isso só poderia ocorrer como uma troca de valor de fertilidade por valor de fertilidade, isto é, de valor de vida por valor de vida — o que, de certa forma, ocorre na própria estrutura metamórfica da floresta, com seu fluxo constante de trocas anímicas e transformações estruturais imanentes. Trocar o valor de fertilidade da floresta por valor monetário, anima por capital, pessoas por mercadorias implica necessariamente em trocar vida pela morte, valor de fertilidade por valor epidêmico.
“Nossos maiores amavam suas próprias palavras. […] Suas mentes não estavam fixadas noutro lugar. Os dizeres dos brancos não tinham se intrometido entre eles” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 226). Lógos contra lógos, a asserção de Kopenawa a respeito dos antigos Yanomami explicita duas formas de manifestação da palavra e a influência negativa que as “palavras demais [que] nos vêm das cidades” introduz sobre o lógos dos indígenas e sobre “a floresta”, que “perdeu seu silêncio” (ibid.) — palavras estas que muitas vezes são de catequização, o que faz com que não seja “nada surpreendente”, como aponta Albert, “que Teosi (Deus) seja assim associado às doenças dos brancos, que surgiram na floresta ao mesmo tempo que suas palavras (teosi thë ã, as ‘palavras de Deus’)”, ao ponto de, “nas altas terras do território yanomami no Brasil, teosi a wai (a ‘doença-epidemia de Deus’)” ser “às vezes sinônimo de xawara a wai (‘doença epidêmica’)” (ibid. p. 647)8. Com a “língua de fantasma” dos napë pë (ibid. p. 227), associada muitas vezes a suas epidemias, e sua fala emaranhada, que “parece mesmo o zumbido dos zangões” (ibid. p. 233), as palavras dos Yanomami acabam se tornando “esfumaçadas, confusas” (ibid. p. 227) e sua “mente fica o tempo todo centrada nas mercadorias” (ibid. p. 226). Esse lógos fantasmático, epidêmico e centrado em mimos de consumo que substituem o lógos espectral ou imagético dos xapiri pë como vetor amoroso9, é o que leva tantos jovens a tentar “imitar os forasteiros que encontram” (ibid. p. 227), conduzindo-os “para longe da floresta” (ibid.), rumo ao esquecimento diante das palavras dos seres que a habitam.
Longe de implicar uma forma de solipsismo imunitário contra a palavra alheia, a crítica tecida por Kopenawa visa exaltar a memória da multiplicidade de palavras alheias que habitam a floresta, e desdobra-se na ideia de que o pensamento, para os Yanomami, se compõe sempre de palavras de fora, palavras espectrais, cuja tessitura é mantida coesa por ação da memória xamânica. Embora aberto à alteridade, o discurso de Kopenawa se dirige contra o lógos napë porque esse tipo de linguagem fantasmática, no sentido mesmo da transformação da imagem ou do espectro em fantasia e fetiche mercadológico, visa justamente a denegação da alteridade, expressa pelo xamã pelo termo “esquecimento”. Um exemplo mais concreto desse esquecimento aparece quando Kopenawa descreve sua iniciação ao xamanismo e suas visões sobre a relação mercantil do branco com a terra:
Tornado fantasma, no tempo do sonho ou sob efeito da yãkoana, eu costumava ver os brancos retalhando nossa terra, como fazem com a deles. Isso me deixava muito aflito e logo a imagem de Omama chegava a mim. […] Omama não quis, no entanto, que o mesmo ocorresse com nossa floresta. Disse aos ancestrais dos brancos, quando os criou: “A terra das gentes da floresta não será desenhada. Permanecerá inteira. De outro modo, eles não poderão mais abrir nela suas roças ou caçar como quiserem e acabarão todos morrendo. Vocês podem dividir a terra que dei a vocês, mas fiquem longe da deles!”. Apesar dessas antigas palavras, o pensamento dos brancos permanece cheio de esquecimento. Eles não sabem sonhar e não sabem como fazer dançar as imagens de seus antepassados. Se as escutassem, elas os impediriam de invadir nossa terra. Seus chefes, ao contrário, não param de dizer: “Somos poderosos! Somos donos de toda a floresta. Que morram seus habitantes! Estão morando nela à toa, num solo que nos pertence!” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 327-8, grifos nossos).
O “tempo do sonho”, donde advém “as palavras que escutamos […] e que preferimos, pois são nossas mesmo” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 390), é o plano espectral ou mítico invocado pelo xamã no momento que ele faz “dançar as imagens de seus antepassados”, de Omama, que criou a floresta atual como tal, e das utupë tornadas xapiri pë dos ancestrais animais yarori, antepassados que, contudo, sempre estão presentes em virtualidade na sociocosmologia yanomami. O esquecimento, aqui, se vincula diretamente à incapacidade onírica, como na peste da insônia de Macondo, e, considerando que o sonho “é a via régia do conhecimento dos fundamentos invisíveis do mundo” (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p. 103), implica assim a incapacidade em agenciar e em se agenciar com o tempo do sonho, o tempo invisível, mas xamanisticamente supervisível, que corre paralelamente ao tempo da atualidade e irrompe sobre ela, desarranjando os arranjos estabelecidos. “Quando dormem, [os brancos] só veem no sonho o que os cerca durante o dia. Eles não sabem sonhar de verdade, pois os espíritos não levam sua imagem durante o sono” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 460).
Tal incapacidade marca a condição de “constitutiva e monstruosa ‘fantasmagoria’” (VALENTIM, 2018, p. 185) dos napë pë, marcada pelo sonho narcísico (“só sonham com eles mesmos”) como “incapacidade de discernir a humanidade secreta dos existentes não-humanos” e pela “avareza ‘fetichista’ tão ridícula quanto incurável” (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p. 103) que insiste em “ignorar a morte” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 390), ou seja, o devir-outro. Tais características culminam na régia impossibilidade de sonhar e de fugir à condição de “fantasma”, “isolados pela Grande Divisão” dos Modernos (VALENTIM, 2018, p. 255): se, nos olhares dos xapiri pë, “já somos fantasmas, porque, ao contrário deles, somos fracos e morremos com facilidade” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 111), os brancos são sumamente “fantasmáticos” porque, tentando ignorar a morte com seu lógos imunitário e cumulativo e com sua “fixação […] na relação de propriedade e na forma-mercadoria” (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2017, p. 103), “denegam o seu [próprio] ser-imagem, a sua existência por outrem, em suma, a sua própria sobrenatureza”, em uma espécie de “anti-sobrenatureza” (VALENTIM, 2018, p. 255) que termina por colocá-los quase irreversivelmente na própria condição de espectro que queriam denegar de princípio. Nada muito diferente do que podemos vislumbrar se considerarmos o que Gilles Deleuze diz a respeito da “ideia extraordinária sobre o sonho” do cineasta Vincente Minelli, a saber, de que o sonho “diz respeito sobretudo àqueles que não sonham” e de que, nisso, há sempre um perigo envolvido, dado que “cada um de nós é mais ou menos vítima do sonho dos outros” (DELEUZE, 2016, p. 338, grifo nosso).
Assim, quando Kopenawa diz que os brancos esquecem das palavras dos xapiri pë, está apontando para a denegação de toda possibilidade de discurso de outrem como condição de manutenção de suas próprias mercadorias e heranças — denegação que já se mostra no próprio baluarte do humanismo literário, a saber, a escrita em papel (SLOTERDIJK, 2014, p. 58), visto que o próprio papel não é outra coisa que “pele das árvores [huu tihi sikɨ]” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 455) ou “pele de floresta [urihi sikɨ]” (ibid. p. 456), resultado de uma captura das próprias árvores da floresta. Abertos à possibilidade de devir-outro, possibilidade, como vimos até então, perigosa, mas fundamental para a homeostase cosmológica, os xamãs se recusam ao “devir-branco” (VALENTIM, 2018, p. 180), “extinção do devir” ou “limite negativo do outrar-se” (ibid. p. 182), porque esta metamorfose específica, como “modo de tornar-se outro que humano [yanomae thëpë]” (ibid. p. 181), incorre no fim de toda e qualquer metamorfose e, por isso, no fim da vida mesma — exceto se os napë pë passarem, eles mesmos, por um duplo devir com os Yanomami que os tire dessa condição, momento em que “devir-branco” deixa de ser um movimento autoimune do próprio devir: “[…] só poderemos nos tornar brancos no dia em que eles mesmos se transformarem em Yanomami” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 75).
“Se nada soubéssemos dos xapiri, do mesmo modo nada conheceríamos da floresta, e seríamos tão desmemoriados quanto os brancos. Não pensaríamos em defendê-la” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 330, grifos nossos). Como via de acesso epistemológica (“se nada soubéssemos”) ao fundo espectral e como condição de práxis política (“não pensaríamos em defendê-la”), os xapiri pë dão a conhecer pelo que cantam e pelo que mostram ao xamã ao “beber” do pó de yãkoana em conjunto com ele: “é através de suas palavras que sou capaz de compreender todas as coisas da floresta. […] Só os xapiri nos tornam realmente sabidos, porque quando dançam para nós suas imagens ampliam nosso pensamento” (ibid. p. 332-3, grifos nossos). Trata-se, portanto, de uma memória onírica, proporcionada por uma experiência sobrenatural direta com as utupë: os xapiri pë e Omama são lembrados por suas palavras, por suas imagéticas, mas também pelas metamorfoses que operam sobre a imagem do xamã, lembrete de que a predação e a metamorfose estão sempre no fundo mítico-espectral do verso cotidiano.
Aqui, encontramos novamente a equivocidade do esquecimento e da memória. Os brancos se esquecem do phágos de fundo e o denegam, pois, incapazes de vê-lo, só conseguem saber das “linhas de palavras que vêm de sua própria mente”, estudar “apenas seu próprio pensamento” e conhecer somente “o que já está dentro deles mesmos”, ignorando “os dizeres distantes de outras gentes e lugares” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 455) e recorrendo somente a relatos: “não veem nem ouvem eles mesmos as imagens dos seres do primeiro tempo, por isso não podem conhecê-las de fato” (ibid. p. 459). Dessa forma, e tendo em vista que “suas mentes são muito esquecidas” (ibid. p. 457), os brancos têm de recorrer à mnemotécnica escrita para preservar a memória histórica10, e guardam apenas a lembrança reiterada do lógos que os cinde do extra-humano (cf. AGAMBEN, 2002, p. 126), lembrança que termina por diluir a linguagem em pura redundância, aniquilando-a.
Ao virar “fantasmas com a yãkoana para ir muito longe, contemplar a imagem dos seres no tempo dos sonhos” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 458) sob o efeito da yãkoana “ao invés de reduzi-las a alinhamentos tortuosos” (ibid. p. 457), vinculando-se assim já de início à multiplicidade espectral como sua própria condição de possibilidade, a lembrança xamânica, por sua vez, impede que o fundo fágico seja denegado e, ao mesmo tempo, que irrompa incondicionalmente sobre o lógos, anulando qualquer possibilidade de atualização. Essa memória se produz a partir de um “apoderamento” do xamã pelos espíritos xamânicos: “com o pó que sopram em nossas narinas, nossos xamãs mais velhos nos dão o sopro de vida de seus espíritos e este se apodera de nós” (ibid. p. 459). Albert explica que o verbo traduzido por “apoderar”, em Yanomami, é “ɨra-, [verbo] que entra na composição de expressões como wai ɨra, ‘contaminar (doença)’, thë ɨra, ‘assimilar (uma língua)’ e pihi ɨra, literalmente ‘(pensamento) contaminar’, ‘apaixonar-se’” (ibid. p. 678). A lembrança xamânica, assim, nada mais é que uma contaminação, uma inoculação amorosa de espectros ou imagens que injeta o lógos dos xapiri pë como vacina contra o iminente perigo limite da metamorfose e do contágio desenfreados envolvido nesse regime cosmológico: com a ingestão do pó da yãkoana e a intrusão dos espíritos xamânicos, “seus cantos penetram em nós e vão se tornando cada vez mais numerosos. […] Sem a palavra dos xapiri, não teríamos nenhum conhecimento e não poderíamos dizer coisa alguma” (ibid. p. 459).
A peste da insônia de Cem anos de solidão, diferentemente do contágio xamânico, causa um embaralhamento do pensamento. Com esse embaralhamento, os planos da vigília e do sono se tornam indiferentes, e os doentes, “sonhando acordados”, passam a estar em um constante “estado de alucinada lucidez”, em que “não só viam as imagens de seus próprios sonhos, senão que viam as imagens sonhadas uns dos outros […] como se a casa estivesse cheia de visitantes” (MÁRQUEZ, 2012, p. 29). Ver esses visitantes, espectros, em estado de vigília é indicativo ou de um estado de devir xamânico, ou de um mau encontro, pois é necessária uma metamorfose corporal para que a visibilidade de espectros seja possível, e isto é um forte indício de que se está morrendo. A morte constante proporcionada pela peste da insônia é análoga à metamorfose infinita que constitui a imortalidade da utupë — sua “superabundância de ser” (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p. 334), que se traduz em devir infinito e indiscernível —, e se essa imortalidade não tiver seu contraponto mortal, a própria morte perde o sentido: onde não há qualquer estabilidade momentânea que caracteriza a condição cotidiana, tudo é espectro o tempo todo, e não há qualquer parâmetro para a metamorfose. Essa é uma das razões pelas quais “os espíritos receiam que os brancos devastem todas as suas árvores e seus rios” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 330): sem a morte, como o plano de atualização de perspectivas provisórias, a própria espectralidade ou imaginalidade, potencial metamórfico por excelência e zona de indiscernibilidade mítica, se perde numa indiferenciação absoluta.
Essa consequência peremptoriamente fatal, já anunciada por Visitación, é, contudo, lenta, precedida por um estado de perda da linguagem muito semelhante ao estado pelo qual passam os imortais do conto homônimo de Jorge L. Borges, trogloditas que “carecem o comércio da palavra” (BORGES, 2017, p. 133) porque carecem da própria possibilidade da morte, que “faz preciosos e patéticos aos homens” em sua “condição de fantasma” na qual “tudo […] tem o valor do irrecuperável e do aleatório” (ibid. p. 141): “entre os Imortais, ao contrário, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam, sem princípio visível, ou o fiel presságio de outros que no futuro o repetirão vertiginosamente. Não há nada que não esteja como que perdido entre infatigáveis espelhos” (ibid.). No mundo dos Imortais do conto, não há mais a alteridade mortal com a qual eles podem se medir e, portanto, só há ecos indiferenciados deles próprios, “metamorfoseados” constantemente em si mesmos. Como os Imortais de Borges, os acometidos da peste de Márquez também perdem paulatinamente o lógos porque perdem a própria morte, replicada sem cessar ao ponto da indiferenciação.
“Os brancos”, para Kopenawa, “talvez pensem que pararíamos de defender nossa floresta caso nos dessem montanhas de mercadoria. Estão enganados. Desejar suas coisas tanto quanto eles só serviria para emaranhar nosso pensamento. Perderíamos nossas próprias palavras e isso nos levaria à morte” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 354, grifo nosso). Novamente, temos aqui a equivocidade da memória: os brancos, como os trogloditas imortais do conto borgeano, se lembram demais, mas apenas dos próprios ecos, refletidos em espelhos planos que também refletem apenas sua própria imagem. Quanto à linguagem, é só a duras penas que Argos, troglodita que acompanha o protagonista do conto e que, mais tarde, se revela Homero, balbucia “com mansa admiração, como se descobrisse uma coisa perdida e esquecida há muito tempo […]: ‘Argos, cão de Ulisses’” (BORGES, 2017, p. 138-9).
Os brancos, como os Imortais de Borges, têm palavras demais, memórias demais, mas, por consequência disso, falta-lhes carne e imagem, phágos e espectros — associação que Albert Camus, em seu romance A peste (1947), descreve como uma “desencarnação [décharnement]”, condição que faz com que o atrofiamento da memória seja efeito do atrofiamento da capacidade de conjecturar imagens. Enquanto “no começo da peste, lembravam-se muito bem do ente perdido e lamentavam a perda”, retendo ainda “memória, mas uma imaginação insuficiente”, quando chegava o “segundo estágio da peste, eles perdiam também a memória. Não que eles houvessem esquecido esse rosto, mas, o que dava no mesmo, ele havia perdido sua carne [chair]”, tornando-se “sombras das coisas amadas”, fadadas a “tornar-se ainda mais desencarnadas ao perderem até as cores ínfimas que a recordação conservava” (ibid. p. 166-7). Da perda do lógos, vem logo a perda do phágos, quando nem as fantasias fantasmáticas mantêm mais sua consistência própria.
Os pestilentos de Macondo, por sua vez, necessitam de uma verdadeira mnemotecnia para que possam sobreviver com o esquecimento do lógos que a insônia proporciona: “foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los durante vários meses de evasões da memória” (MÁRQUEZ, 2012, p. 30), fórmula que consistia em marcar cada objeto com uma etiqueta, contendo seu nome e, contando com a possibilidade de que “poderia chegar o dia em que se reconheceriam as coisas por suas inscrições, mas não se recordaria sua utilidade” (ibid.), com uma descrição. O atrofiamento da memória os fazia, assim, “viver em uma realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras, mas que fugiria irremediavelmente quando esquecessem os valores da letra escrita” (ibid.).
O esquecimento do próprio lógos surge, então, vinculado à rememoração exaustiva deste mesmo lógos, como numa crise autoimune. Contudo, há uma variável fundamental em jogo; afinal, a peste da insônia é, também, a peste da falta do sueño. A autoimunidade do lógos, que termina por sua dissolução completa, é resultado de uma falta paradoxal de phágos, de contágio, que, proporcionada por um contágio último e exterior à própria cosmologia yanomami (o “devir-branco”, o “anti-devir”, a peste da insônia), impede qualquer possibilidade de lógos, porque não há mais contínuo imaginal donde constituir perspectivas e discursos. Os Imortais de Borges não têm fala por causa da ausência de finitude, isto é, de devir, e não o contrário; os pestilentos de Márquez, por sua vez, não têm fala por causa da ausência de sonho, condição de articulação do cotidiano com o plano mítico das imagens. O contágio, e com ele, a possibilidade de contágio desenfreado que o xamanismo busca evitar, é denegado de início; é essa mesma denegação, porém, que termina por transformar o lógos em redundância pura e por aniquilar os xamãs, fazendo com que o phágos soçobre sobre o lógos entrópico e que também se dissolva em entropia. O fim do mundo pandêmico, derivado do fim dos xamãs, não é, portanto, obra interna à cosmologia yanomami, com seus sonhos espectrais, mas externa: são os napë pë que trazem consigo a peste.
Em meio à pandemia do Novo Coronavírus, muitos evocaram a lembrança do livro O Terceiro Reich dos sonhos, da jornalista judia Charlotte Beradt (1968), que coletou sonhos vivenciados por pessoas, judias ou não, sob o regime nazista alemão, coleta na qual era comum que Beradt ouvisse os seguintes dizeres dos entrevistados: “sonhei que era proibido sonhar, mas ainda assim eu sonhei [but I did anyway]” (ibid. p. 10). Como uma hipertrofia da imunidade, o nazi-fascismo alemão tentava neutralizar não só judeus, negros, ciganos e homossexuais, mas também os sonhos de seus habitantes, “parasitas” ou “arianos”; mas esses sonhos, como todo espectro, sempre escapam, sobretudo no momento de colapso imunitário — esse foi o caso do nazismo, tem sido o caso da pandemia e, muito provavelmente, será o caso do colapso ambiental, como tem ocorrido a povos indígenas como os Yanomami ou os Wayúu desde seus primeiros contatos com as pestes dos brancos.
Para Christian Dunker, os mais de trezentos sonhos coletados pela jornalista “funcionaram como uma espécie de sismógrafo social”, capaz de “antecipar acontecimentos e práticas vindouras: campos de concentração, censura, deportações, extermínio de pessoas” (DUNKER, 2020a). Um artigo do The New Yorker prévio à pandemia, de novembro de 2019, assinalou que uma psicanalista de Boston, Frances Lang, “tem notado uma inquietação generalizada que se seguiu à eleição de Trump” (JUCHAU, 2019). O mesmo tem ocorrido, segundo Dunker, no Brasil de Jair Bolsonaro, com sua necropolítica com força de lei, suas milícias aparelhadas, sua conivência com o desmonte institucional e a destruição socioambiental e sua atuação ativa na disseminação de Covid-19, incentivando a população à desobedecer quarentenas e utilizar medicamentos danosos ao fígado e sem qualquer comprovação científica de eficácia: “vários destes elementos já estavam aparecendo nos sonhos de nossos pacientes antes da chegada da crise da epidemia de covid-19”, embora, com a pandemia, “seus sonhos se tornaram mais intensos, longos e marcantes” (DUNKER, 2020a)11. Isso porque ambos os países, Brasil e Estados Unidos, foram os primeiros países a chegar ao número de 1 milhão de casos da doença (PRUDENCIANO, 2020), fenômeno, aliás, diretamente interligado à presença de líderes neofascistas no poder.
Os sonhos articulam uma política que atravessa ortogonalmente dilemas como biopolítica-tanatopolítica e biopolítica-necropolítica, apontando para horizontes possíveis de articulação política e cosmopolítica. Sidarta Ribeiro aponta que se, por um lado, Artemidoro e Macróbio, eruditos coletores de sonho da Grécia e de Roma antigas, atribuíam às palavras somnium e oneirós a capacidade profética, preditiva (RIBEIRO, 2019, p. 275-311), os indígenas norte-americanos do povo Ojibwe utilizam o “coletor de sonhos”, ou asabikeshiinh (“aranha”), artefato “que consiste em uma rede amarrada num aro de salgueiro, decorada com penas, sementes e outros objetos mágicos”, para “capturar, tal qual teia de aranha, qualquer força maligna que possa causar pesadelos” (ibid. p. 320). Nesse sentido, “os sonhos podem ser lidos como uma sismografia do futuro” (DUNKER, 2020a), sismografia que projeta consigo outra forma de política, uma “política do sonho” ou uma “oniropolítica, que não é proveniente nem da consciência calculista de custos e benefícios, nem do humanismo consagrado e fetichista sobre o valor da vida” (DUNKER, 2020b, p. 135), “redefinição de nossas formas de desejar” ou “restauração de nossa capacidade de sonhar, de olhar para o lado e de coabitar várias temporalidades contraditórias” (DUNKER, 2019) — afinal, como diz Kopenawa, “para nós [Yanomami], a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou” (KOPENAWA & ALBERT, 2015, p. 390).
Em um momento de crise pandêmica e de emergência climática e contra a neutralização onírica, os sonhos dos “antropófagos” desenham tanto a projeção da catástrofe global que se anuncia, quanto sua profilaxia cosmopolítica, injetando o delírio espectral enquanto tal como possibilidade de cura, no sentido em que Nietzsche atribuía ao Zaratustra a inoculação da loucura. Se Orfeu, mito do poeta, da linguagem e da transformação de tudo em humano, canta hinos a Eurídice que, no fim, não são senão sobre si mesmo e se ele caminha sob efeito da peste da insônia, tal qual a dos Buendía-Iguarán, cuja peste é constituída fundamentalmente por seus próprios anticorpos imunitários, é necessário nos perguntar como Orfeu pode voltar a sonhar para além de si mesmo, se livrando da vertigem da vigília constante. Caso contrário, seu lógos pode colapsar sob seu próprio peso, fechado para qualquer contágio espectral, qualquer “in-fectio e a-fectio”, qualquer “infecção como intrusão de um objeto estrangeiro e estranho” e qualquer “afecção como nossa capacidade de se deixar afetar pelo outro e pela diferença solidária” (DUNKER, 2020b, p. 135). Assim, é preciso ir para além de qualquer biopolítica securitária e de sua contraparte necropolítica intrínseca, em direção a uma oniro-, imago- ou espectropolítica, como a que ensaiam os xamãs antropófagos em seus sonhos, se valendo do phágos canibal como seu cenário principal. Para isso, nos é necessário compreender por que os pesadelos escatológicos xamânicos sobre o cataclisma final ou a “queda do céu” nos concernem e de que forma somos nós, os “brancos”, os principais vetores de tais pesadelos. O que significa, enfim, dizer que “o capitalismo é pandêmico” e que “nós [neste caso, os povos “antropófagos”] somos os anticorpos” (INDIGENOUS ACTION, 2020) diante da queda do céu?