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O mundo é o grande espelho da consciência: reflexões sobre as implicações quânticas do idealismo absoluto de Hegel
Sinésio Ferraz Bueno
Sinésio Ferraz Bueno
O mundo é o grande espelho da consciência: reflexões sobre as implicações quânticas do idealismo absoluto de Hegel
The world is the great mirror of consciousness: reflections on the quantum implications of Hegel's absolute idealism
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 258-270, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: No campo de estudos em física quântica, o pensamento de Heisenberg suscita reflexões muito relevantes para uma articulação entre ciência e metafísica, dada a importância atribuída ao sujeito no colapso da superposição entre onda e partícula. Sob uma perspectiva idealista, a importância dada ao sujeito na observação dos fenômenos quânticos pode ser considerada uma etapa do desenvolvimento da consciência no âmbito da fenomenologia do espírito de Hegel. A física quântica, sob uma perspectiva idealista, representa um momento fundamental no reconhecimento e superação dialética dos dualismos produzidos pelo próprio sujeito em sua relação com o mundo.

Palavras-chave:HegelHegel,MetafísicaMetafísica,IdealismoIdealismo,Física quânticaFísica quântica.

Abstract: In the field of quantum physics studies, Heisenberg's thought provokes very relevant reflections for an articulation between science and metaphysics, given the importance attributed to the subject in the collapse of the superposition between wave and particle. From an idealistic perspective, the importance given to the subject in the observation of quantum phenomena can be considered a stage of the development of consciousness within the scope of the phenomenology of Hegel's spirit. Quantum physics, under an idealistic perspective, represents a fundamental moment in the recognition and dialectical overcoming of the dualisms produced by the subject himself in his relationship with the world.

Keywords: Hegel; Metaphysics; Idealism; Quantum physics.

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O mundo é o grande espelho da consciência: reflexões sobre as implicações quânticas do idealismo absoluto de Hegel

The world is the great mirror of consciousness: reflections on the quantum implications of Hegel's absolute idealism

Sinésio Ferraz Bueno1
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 258-270, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 26 Janeiro 2021

Aprovação: 19 Abril 2021

O argumento imaterialista de Berkeley

Embora os pressupostos mecanicistas da ciência ocidental tenham se tornado hegemônicos a ponto de se constituírem como paradigma rigorosamente adequado para a representação da realidade em si mesma, é importante observar que essa supremacia é histórica e pode ser contestada mediante um simples exame de suas pretensões ontológicas. O mecanicismo científico originou-se das profundas transformações que afetaram a relação entre homem e mundo natural, no contexto da Revolução Científica, entre os séculos XVI e XVII. No período demarcado pela publicação das obras máximas de Nicolau Copérnico e Issac Newton, ocorreu a propagação de um novo método para a produção do conhecimento científico, exclusivamente fundamentado na experimentação e observação empírica dos fenômenos naturais, e na autonomia da ciência frente a fé religiosa e aos modos de pensar substancialistas da metafísica. A ciência moderna emergiu nesse contexto histórico como campo autônomo e público de produção e divulgação de conhecimentos fundamentados em pressupostos mecanicistas e empiricamente controlados e afinados com o progresso técnico. Não obstante os pressupostos mecanicistas da ciência moderna terem adquirido hegemonia como paradigma superior para o exame da natureza realidade em si mesma, nem por isso o mecanicismo se manteve imune a contestações filosóficas no nível ontológico.

Ainda no período moderno, a mais desenvolvida crítica das qualidades substanciais da extensão foi realizada por George Berkeley, sendo concentrada na primazia das sensações como fundamento irredutível das ideias. No contexto histórico da filosofia empirista, Berkeley foi o pensador responsável pela mais incisiva contestação da existência de qualidades primárias originalmente emanadas de objetos materiais. Levando às últimas consequências o argumento empirista fundamental da primazia das sensações como base irredutível das ideias, o filósofo britânico apresentou argumento radicalmente desfavorável ao caráter substancial das qualidades primárias como extensão, solidez, peso e movimento. Para Berkeley, a concepção da extensão como ideia geral e universal é passível de contestação, pois tal propriedade jamais pode ser experimentada de maneira independente da percepção empírica de qualquer corpo singular. A ideia da extensão somente faz sentido em sua irredutível conexão a um corpo singular, e isso demonstra a impossibilidade de que ela possa ser uma categoria absoluta que tenha existência primária na matéria em si mesma. Em Três diálogos entre Hilas e Filonous, Berkeley desenvolve de maneira primorosa o argumento da impossibilidade ontológica da extensão como propriedade substancial da matéria:

lembrai-vos de que a matéria pela qual combateis é uma qualquer coisa desconhecida (se é que se lhe pode chamar “qualquer coisa”), de todo despojada de qualidades sensíveis, que não pode ser percepcionada pelos nossos sentidos nem tampouco apreendida pela nossa mente. [...] Conservai pois essa palavra matéria, e aplicai-a aos objetos dos sentidos, se assim vos agrada: contanto que não lhes deis subsistência que se distinga do serem percepcionadas. Por causa de uma simples expressão não irei por certo discutir convosco. Matéria e substância material são palavras introduzidas pelos filósofos; e, usadas das formas como eles as usam, implicam uma espécie de independência, ou de uma subsistência que é algo distinto do serem percepcionadas por uma mente. (BERKELEY, 1980, p. 118).

Conforme argumenta Berkeley, a hipótese materialista recai em petição de princípio, pois a demonstração do pressuposto de que a extensão possa ser uma qualidade substancial independente da percepção humana em si mesma já é dependente da ideia de extensão que é inseparável das percepções. Na obra de Berkeley, este é o argumento decisivo apresentado por Filonous para demonstrar a inseparabilidade irredutível entre a ideia de extensão e a existência da extensão como percepção do espírito: “E pode, Hilas, uma coisa estender-se sem extensão? Ou não está a ideia da extensão necessariamente inclusa na de estender-se?” (1980, p. 69). Nesse sentido, o argumento imaterialista de Berkeley é decisivo para demonstrar a insubstancialidade da pretensão ontológica do mecanicismo em que se baseia a ciência moderna.

Física quântica: complementaridade e incerteza

A contestação exclusivamente idealista da pretensão ontológica do mecanicismo moderno, realizada por Berkeley, encontrou uma inesperada correspondência no campo da pesquisa dos fenômenos ultramicroscópicos da matéria, realizada a partir dos anos 1920. Na área de investigações científicas denominada “física quântica”, uma série de constatações experimentais exaustivamente repetida produziu a mais decisiva contestação do fundamento mecanicista da matéria. O quadro determinista do universo, originado da concepção de que o mundo material é sólido, extenso e constituído por partículas corpusculares e independentes entre si, foi decisivamente abalado pela verificação empírica de que as entidades constituintes do universo quântico apresentam-se em estado de dualidade, podendo se comportar como partículas e também como ondas. A ruptura estabelecida pela física quântica em relação aos parâmetros clássicos postulados por Newton pode ser compreendida mediante a apresentação dos dois mais importantes princípios estabelecidos pelos pesquisadores quânticos: a complementaridade de Niels Bohr e o princípio de incerteza de Werner Heisenberg.

1) No ano de 1927, em uma conferência apresentada para uma seleta plateia de especialistas em física quântica, Bohr sintetizou o comportamento dualístico verificado nos fenômenos microscópicos, recorrendo à ideia de complementaridade. O princípio de complementaridade formulado por Bohr teve como objetivo apresentar um conceito dotado de universalidade que pudesse explicar a alternância experimentalmente verificada entre o estado de partícula e o estado de onda nos fenômenos quânticos. Sob determinadas condições experimentais, por exemplo, quando os pesquisadores observam a trajetória de um elétron em uma câmara de condensação, ele apresenta o comportamento corpuscular de partícula. Mas sob condições em que não ocorre a observação direta, por exemplo, ao ter sua imagem registrada em uma tela detectora, o elétron adquire formato de onda, comportando-se em um padrão de interferência ondulatória (BOHR, 1995). Em outras palavras, no universo quântico, as entidades (fótons, elétrons, e na verdade todos os demais componentes subatômicos do universo) podem assumir tanto uma configuração corpuscular compatível com a física newtoniana clássica, quanto uma configuração ondulatória completamente incompatível com a solidez material. A dualidade entre onda e partícula justificou a atribuição de qualidades surpreendentes, e por vezes misteriosas aos fenômenos quânticos, por revelar que as entidades subatômicas, em si mesmas, existem em um estado indefinido de superposição entre o formato ondulatório e o formato de partícula. De maneira rigorosamente incompatível e antagônica com o mecanicismo cartesiano e sua qualificação da extensão como propriedade substancial do mundo material, o universo quântico apresenta um estado de complementaridade entre onda e partícula que se conserva, até que, seja em virtude da observação direta da consciência humana (interpretação idealista), seja em função da influência dos instrumentos de medição (interpretação realista), o colapso dessa existência indefinida enseja o formato corpuscular próprio aos objetos macroscópicos. Isso significa que a configuração quântica ou clássica das entidades constituintes do universo é exclusivamente depende de uma intervenção macroscópica, que realiza o colapso da superposição onda/partícula.

2) O estado de superposição quântica representa em termos teóricos a mais radical antítese em relação à estabilidade e previsibilidade newtonianas próprias aos sistemas físicos clássicos. A física clássica é regida por princípios deterministas que permitem prever de maneira precisa a localização e a velocidade dos corpos em momentos específicos do tempo. No âmbito quântico, os esforços de compreensão dedicados à determinação da posição exata de uma partícula esbarram na relação inversamente proporcional entre a precisão da velocidade e da localização no espaço. Assim, quando são empregadas fontes de luz de alta frequência, com o objetivo de visualizar a posição de um elétron, esse recurso técnico provoca o aumento da velocidade da partícula. Por outro lado, com a diminuição da intensidade da luz, deixa de haver interferência na velocidade, mas a visualização é decisivamente comprometida. O insucesso na determinação exata da posição das partículas quânticas levou à constatação de uma relação inversamente proporcional entre velocidade e localização espacial, que é intrínseca a todos os experimentos de observação dos fenômenos quânticos (FREIRE JR. et.al., 2011). A constatação desse obstáculo insuperável para o conhecimento preciso de tais fenômenos levou o cientista Werner Heisenberg à formulação do “princípio de incerteza”, que estabelece não apenas a impossibilidade de determinação precisa da posição e velocidade de uma partícula em um momento determinado, mas principalmente a própria inexistência de uma localização precisa nos moldes clássicos da física newtoniana. O princípio de incerteza de Heisenberg expõe a completa inadequação dos parâmetros de mensuração clássicos para o âmbito quântico, em face do estado irredutível de superposição, que invalida a própria possibilidade de determinação do momento de uma partícula no espaço e no tempo.

A interpenetração entre os princípios de complementaridade de Bohr e de incerteza de Heisenberg está implícita na interpretação geral dos fenômenos quânticos consagrada pela interpretação da Escola de Copenhague. Heisenberg soube traduzir de maneira muito clara o paradoxo enfrentado pelos pesquisadores quânticos, que consiste em valer-se dos conceitos newtonianos clássicos para descrever os experimentos, mas ao mesmo tempo, assumir o completo desajuste de tais conceitos para a descrição dos fenômenos: “é na tensão reinante entre esses dois pontos de partida que se encontra a raiz do caráter estatístico da teoria quântica” (1995, p. 47). Uma primeira consequência imediata da complementaridade e incerteza quântica, dada a imprevisibilidade intrínseca da trajetória das entidades quânticas, são os limites estatísticos e probabilísticos que se impõem para a análise dos fenômenos. Ao contrário dos fenômenos macroscópicos, que se submetem a parâmetros deterministas, os fenômenos quânticos apresentam propriedades contraintuitivas e indeterministas, pois seus resultados se sujeitam somente à incerteza probabilística. Uma segunda consequência, diretamente ligada à imprevisibilidade, diz respeito ao caráter instantâneo e não-local das conexões entre partículas, uma vez que fótons ou elétrons que estejam separados por longas distâncias espaciais, como milhares de quilômetros, podem apresentar sintonia e correspondência exatas em seus movimentos rotacionais, sem que haja transmissão de informação entre eles. A não-localidade é uma propriedade quântica rigorosamente incompatível com a causalidade newtoniana, pois eventos quânticos como o salto de um elétron entre órbitas atômicas distintas podem acontecer de maneira inteiramente espontânea e imprevisível, sem que tais fenômenos possam ser atribuídos a causas locais específicas (SCHRÖDINGER, 1997, p. 30). Uma terceira consequência dos estudos de Copenhague, sendo esta aquela mais diretamente implicada filosoficamente, consiste em uma confrontação direta com a noção de objetividade herdada do paradigma cartesiano-newtoniano. O contexto experimental da física clássica apoiava-se em uma objetividade em sentido forte, inseparável de uma concepção mecanicista de realidade, baseada na existência de objetos estáveis, idênticos a si mesmos e empiricamente delimitados. A física quântica, pelo contrário, postula uma objetividade fraca, pois estuda fenômenos dualísticos, indeterminados e permeados pela não-localidade das conexões. A respeito da objetividade fraca, o pesquisador português Álvaro Balsas sintetizou as implicações filosóficas centrais da nova física: “a mecânica quântica derruba a imagem de um mundo exterior, que se apoiava numa ontologia realista, mecanicista e coisista” (1999, p. 128).

Objetividade forte e objetividade fraca

As implicações filosóficas das pesquisas em física quântica em princípio parecem consistir na contestação da ontologia materialista consagrada pela ciência positivista e pelos demais materialismos do século XIX. Entretanto, antes mesmo das pesquisas quânticas, o trabalho teórico de Albert Einstein já havia se encarregado de implodir a existência da matéria como núcleo substancialista da realidade. A concepção atomística e corpuscular do mundo material, foi substituída, na teoria da relatividade, pelo conceito de matéria como uma quantidade significativamente elevada de concentração de energia em um espaço limitado. O mecanicismo cartesiano dá lugar, nessa nova teoria, à existência do campo eletromagnético como estrutura fundamental da realidade. Em outras palavras,

não podemos hoje imaginar o conjunto físico arquitetado sobre o conceito de matéria, como sucedeu aos físicos do século XIX. [...] A teoria da relatividade diz-nos que a matéria representa vastas quantidades de energia e que a energia representa matéria. [...] Podemos, portanto, dizer: matéria é onde a concentração de energia é grande; campo, onde a concentração é pequena. Mas, se este é o caso, então as diferenças entre matéria e energia são quantitativas, não qualitativas. Não faz sentido considerar matéria e campo como duas qualidades diferentes entre si. Não podemos imaginar uma linha definida que distintamente separe matéria e campo (EINSTEIN-INFELD, s/d, p. 215).

A identificação qualitativa entre matéria e energia implica conceber a extensão não mais em termos cartesianos, como substância dotada de comprimento, largura e profundidade, mas sim como medida da intensidade e concentração de energia em um dado campo eletromagnético. Essa nova forma de conceber a extensão já não é substrato do realismo mecanicista que caracterizava a física newtoniana, pois não se constitui como fundamento ontológico do mundo material. Dessa forma, o problema filosófico implicado na física quântica diz respeito a uma disputa especulativa que pode ser simplificadamente traduzida como oposição entre os partidários de um realismo não mecanicista, que permanece atrelado aos parâmetros de uma objetividade em sentido forte, e os partidários de um idealismo, relacionado à objetividade em sentido fraco. O critério que delimita a disputa entre realistas e idealistas está relacionado ao papel da consciência humana na cadeia de observação dos fenômenos quânticos, principalmente no que diz respeito ao fator que efetivamente determina o colapso da superposição entre onda e partícula. Quando se considera que o estado original de superposição é colapsado pelos instrumentos de medida, consistindo em um fenômeno da realidade em si mesma, em sua passagem do universo quântico para o universo clássico, configura-se uma posição realista, partidária de uma objetividade forte, que pressupõe a existência de uma realidade física que é completamente independente da ação observadora da consciência humana. Quando, ao contrário, se considera que a superposição é colapsada pela consciência do sujeito observador, que produz a configuração corpuscular peculiar ao universo macroscópico, tem-se uma posição idealista, para a qual é o sujeito observador que estabelece a passagem do quântico ao clássico. Não é objetivo do presente artigo a exposição das diversas perspectivas assumidas pelos pesquisadores realistas em sua oposição ao idealismo subjetivista que preconiza a primazia da consciência na transição do quântico ao clássico. A esse respeito, nos limitaremos a expor o caráter inconclusivo dessa disputa:

apesar do idealismo quântico estar menos difundido que nos anos 30, a marcha aparentemente triunfal do objetivismo nos anos 60 e 70 tropeçou novamente no problema do colapso, e nos anos 90 vimos um certo ressurgimento das tendências idealistas. Hoje em dia existem várias interpretações da Teoria Quântica que conseguiram eliminar o sujeito da descrição física do mundo, no entanto tais interpretações têm problemas teóricos que dificultam sua aceitação mais ampla na comunidade científica (PESSOA JR., 2001, p. 193).

Mediante uma breve e resumida abordagem da teoria quântica, é possível compreender que à sua radical incompatibilidade com o paradigma clássico de filiação cartesiana-newtoniana, corresponde igualmente a contestação da objetividade forte, correspondente da existência de uma realidade inteiramente independente da consciência humana. Heisenberg foi o físico que desenvolveu argumentos consistentes no sentido de explorar as principais implicações das pesquisas quânticas no sentido de opor-se aos parâmetros da objetividade forte. O núcleo de seu pensamento no campo especulativo pode ser esclarecido na análise das implicações filosóficas da transferência de um elétron entre órbitas atômicas, acontecimento denominado “salto quântico”. Esse evento subatômico ilustra de maneira perfeita a inadequação das leis físicas newtonianas no âmbito quântico, pois a transferência do elétron entre órbitas atômicas não se realiza como transporte de uma partícula entre dois pontos determinados no espaço e no tempo, a uma velocidade determinada e verificável. As coordenadas espaciais e temporais da mecânica clássica são completamente invalidadas na análise do salto quântico, pois não faz nenhum sentido afirmar que o elétron deixou de estar em um ponto x, em um momento x’, para se deslocar a um ponto y, em um momento y’. Heisenberg expressa a incongruência entre o mecanicismo clássico e os fenômenos quânticos de maneira precisa:

se, portanto, o físico for solicitado a apresentar uma descrição do que realmente acontece em suas experiências, as palavras “descrição”, “realmente” e “acontece” podem somente se referir a suas acepções da vida diária ou, então, da física clássica. [...] Exigir-se que se “descreva o que ocorre” em um processo quântico, entre duas observações sucessivas, é uma contradição in adejcto pois a palavra “descrever” diz respeito ao uso de conceitos clássicos, enquanto, por outro lado, esses conceitos perdem sua validade no intervalo entre as observações; eles só se aplicam no momento da observação (1995, p. 110).

O salto quântico corresponde a um evento subatômico que contém as mais significativas implicações para uma autêntica implosão da objetividade forte, pois trata-se de um acontecimento que não pode ser circunscrito às coordenadas do espaço e do tempo. O pesquisador Vinícius Carvalho da Silva expõe os aspectos paradoxais próprios ao fenômeno: “o verbo ser se aplica ao elétron durante o salto quântico? Mas, se o ‘ser’ dos objetos físicos é ‘ser no espaço-tempo’, e se durante o salto quântico o elétron não está em espaço algum, se durante o salto quântico o tempo do elétron é tempo nenhum, então, onde está, ou o que é, o ‘ser’ do elétron, neste caso?” (SILVA, 2011, p. 110). Perante a interferência decisiva da observação pelo sujeito humano para o colapso do estado de superposição entre onda e partícula, e igualmente diante da impossibilidade radical de compreensão dos fenômenos quânticos mediante as categorias de espaço e de tempo, Heisenberg mostrou-se claramente próximo a uma interpretação idealista. O físico dedicou-se a explorar as afinidades entre física quântica e metafísica, não deixando de explicitar sua visão crítica em relação aos partidários do realismo clássico: “a ontologia do materialismo repousava na ilusão de que o sentido da existência, a ‘realidade’ direta, do Universo que nos cerca, pudesse ser extrapolado para o domínio atômico. Essa extrapolação mostrou-se, todavia, impossível” (1995, p. 110). A tensão entre o mecanicismo clássico e os paradoxos quânticos foi desenvolvida por Heisenberg mediante uma fundamentação teórica baseada na metafísica de Aristóteles, mais precisamente, pelo apelo à diferença entre a realidade entendida como potência, ou capacidade virtual da coisa para concretizar sua essência, e a realidade entendida como ato, ou forma plena e atual que corresponde à realização de uma causa final relativa às potencialidades aprisionadas no objeto. A constatação da existência do princípio de incerteza nos fenômenos quânticos, vale dizer, a incongruência insuperável entre o mundo clássico do observador humano, e o mundo quântico dos fenômenos subatômicos, levou Heisenberg a explorar a distância entre potência e ato como qualidade intrínseca à realidade em si mesma. A incerteza quântica impõe que a localização de uma determinada entidade no tempo e no espaço é sempre necessariamente probabilística, estando correlacionada com expectativas estatísticas acerca das regiões e momentos em que dado fenômeno poderá ser circunscrito. Para o físico, a aplicação dos conceitos clássicos aos fenômenos quânticos é forçada a se contentar com uma concepção de objetividade que somente pode ser adequadamente expressa em termos metafísicos:

talvez se possa chamá-la de tendência ou possibilidade objetiva, uma potencialidade, a potentia no sentido da filosofia aristotélica. De fato, eu pessoalmente acredito que a linguagem que os físicos efetivamente utilizam, ao falar sobre fenômenos atômicos, sugere em suas mentes algo semelhante ao conceito de potentia. E os físicos, assim, foram gradualmente se habituando a falar, por exemplo, de órbitas eletrônicas, não como uma “realidade”, mas sim como uma potentia. [...] Nas experimentações com fenômenos atômicos, temos que lidar com coisas e fatos, com fenômenos que são tão reais quanto aqueles da vida quotidiana. Mas os próprios átomos e partículas elementares não exibem o mesmo tipo de realidade: eles dão lugar a um universo de potencialidades ou possibilidades ao invés de um mundo coisas e fatos (1995, p. 136-140).

A teoria da relatividade de Einstein, em conjunto com os trabalhos de Bohr e Heisenberg, estabeleceu uma contestação cientificamente consistente da ontologia materialista que desde o século XVI alicerçou a ciência moderna. Especificamente em referência a Bohr e Heisenberg, a alternância experimentalmente verificada entre o estado de onda e o estado de partícula, assim como a antítese de tal superposição em relação à estabilidade e previsibilidade postuladas pela física newtoniana, representaram uma autêntica implosão das referências clássicas do mecanicismo. No período posterior à segunda guerra, diversos trabalhos teóricos no campo científico dedicaram-se à contestação da interpretação idealista do universo quântico, baseadas no questionamento do papel decisivo da observação humana, mediante a primazia dos aparelhos de medição (PESSOA JR., 2001). O aspecto problemático da posição idealista, explorado pelos defensores da ontologia materialista, residiu no aspecto irredutível do aparato técnico de medição nos experimentos quânticos. Ainda que o estado corpuscular pareça resultar da interferência ocasionada pela observação humana, sempre será possível explicar a superposição como efeito provocado pelos instrumentos de medição. Mas a “reação objetivista” ao idealismo de Copenhagen, esbarrou em um obstáculo aparentemente intransponível que desde os anos 1960 enfraqueceu essa posição teórica. Trata-se da impossibilidade de estabelecer com precisão as fronteiras entre o universo mecanicista e o universo das entidades quânticas. “O ponto essencial é que o cientista vive em um mundo ‘clássico’, ao passo que seu objeto de estudo são partículas microscópicas que habitam um mundo ‘quântico’” (PESSOA JR., 2001, p. 160). Uma vez assumido o pressuposto de que a superposição quântica é somente um efeito da interferência dos aparelhos de medição, posição destinada a salvar a objetividade forte, permaneceu intacta uma questão insolúvel: “no entanto, restava o problema de como ‘caracterizar’ uma medição: que estágio da medição seria responsável pelo colapso do estado quântico?” (PESSOA JR., 2001, p. 173). Em outras palavras, todos os esforços direcionados para a reabilitação da posição clássica do objetivismo científico esbarram no aspecto ineliminável da presença humana na cadeia de observação. A reabilitação dos pressupostos positivistas da ciência é forçada, além disso, a enfrentar um problema metafisicamente insuperável, pois as tentativas de redução do colapso da superposição quântica a uma equiparação forçada da observação humana ao procedimento técnico da medição (“observar é medir”) adotam a extensão (mesmo que despida das propriedades mecanicistas cartesianas) como qualidade ontológica, negligenciando o fato de que é justamente o caráter substancial da extensão que deveria ser demonstrado pelos partidários da objetividade forte. É essa impossibilidade lógica que autoriza a posição idealista de Heisenberg, que sob esse ponto de vista, se destacou como o grande cientista da história a reconhecer a validade do pensamento metafísico para explicar a natureza do ser, contrariando a concepção positivista de correspondência exata entre os dados científicos e a realidade. O idealismo de Heisenberg, conceitualmente fundamentado em uma posição aristotélica, posicionou a teoria quântica em um patamar alinhado com os postulados especulativos de Berkeley, contrários à qualificação da extensão como fundamento ontológico da realidade. Porém, as implicações mais profundas de seu princípio de incerteza somente podem ser compreendidas quando se acompanha a história do idealismo filosófico, de Kant até Hegel.

Da coisa-em-si kantiana ao conceito hegeliano

Quando se assume a posição idealista de Heisenberg, é possível afirmar que o elemento mais impactante implícito nas pesquisas da física quântica está no fato de que tanto a complementaridade onda/partícula quanto a incerteza subjacente à determinação espacial e à velocidade das entidades quânticas, são fenômenos decisivamente relacionados ao papel fundante da realidade exercido pelo sujeito humano. Se a observação humana é o fator que estrutura a existência do mundo material, pois é ela que ocasiona o colapso da superposição quântica, isso significa que nada pode ser afirmado acerca da existência das entidades quânticas em si mesmas, independentemente da observação humana. Nesse sentido, o conceito filosófico que parece mais adequado para dar conta da possível existência de uma “sopa cósmica” desprovida de forma definida, é o conceito kantiano de coisa-em-si. Como se sabe, para Kant, o conhecimento universal e necessário da ciência é inteiramente tributário das categorias transcendentais da sensibilidade e do entendimento que são próprias ao sujeito cognoscente. O fenômeno em si mesmo é irredutivelmente inacessível ao conhecimento humano, pois o próprio ato de conhecer pressupõe a mobilização das categorias a priori do sujeito. Por outro lado, embora as pesquisas no campo quântico pareçam consistir em uma involuntária demonstração da distância insuperável entre fenômeno e númeno postulada por Kant, ao mesmo tempo não se pode ignorar o papel polêmico suscitado na filosofia posterior a Kant pelo conceito de coisa-em-si.

O postulado kantiano de uma incognoscibilidade da realidade em si mesma é justamente um dos pontos de partida pelo qual se pode compreender a reviravolta conceitual representada pelo sistema filosófico de Hegel. Para o filósofo, a antinomia kantiana entre fenômeno e númeno não representa o limite intransponível para a consciência humana, uma vez que essa suposta limitação é ela mesma um produto posto pela consciência, que deve ser reconhecido e superado. A contradição entre as formas transcendentais da sensibilidade e as categorias do entendimento, por um lado, e uma coisa-em-si supostamente incognoscível, por outro lado, expressa, na verdade, a própria estrutura ontológica negativa da realidade. Para Hegel, é da natureza das coisas em si mesmas que elas se mostrem inadequadas a seus conceitos, pois estes não são pura e simplesmente instrumentos lógicos formais que buscam representar uma realidade inacessível ao pensamento, mas, pelo contrário, os conceitos produzem a própria estrutura necessária e racional da realidade.

O deslocamento operado pela filosofia de Hegel no que se refere ao dualismo entre o conceito e as coisas reais, que leva a compreender a própria realidade como realização necessária e racional do ser, está relacionada com uma concepção filosoficamente magistral acerca do estatuto do sujeito racional. A concepção hegeliana de sujeito inscreve a subjetividade em seu duplo sentido, finito e infinito, em um movimento de realização necessária de potencialidades que subverte a concepção tradicional da substância do ser, que é então concebido como negatividade essencial, e não mais simplesmente como um produto fixo, idêntico a si mesmo e independente do pensamento. A concepção da realidade como um conjunto de coisas materiais dadas, idênticas a si mesmas e independentes do espírito, cuja contestação já havia sido realizada por Berkeley, é conduzida a um patamar superior no sistema filosófico de Hegel, por meio da substância negativa do sujeito: “a substância viva é o ser, que na verdade é sujeito, ou – o que significa o mesmo – que é na verdade efetivo, mas só na medida em que é o movimento do por-a-si-mesmo, ou a mediação consigo mesmo do tornar-se outro” (HEGEL, 2002, p. 35). A negatividade é conteúdo necessário de um desenvolvimento teleológico da consciência de si, ao qual é imanente a totalidade: “o verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se implementa através de seu desenvolvimento” (HEGEL, 2002, p. 36). Dessa forma, se a realidade deve ser compreendida como totalidade realizada pelo movimento negativo do sujeito, os conceitos lógicos não são simples instrumentos formais como concebe a lógica tradicional, mas sim expressão da atividade do sujeito, e, portanto, a forma verdadeira da realidade. Por esse motivo, para Hegel, a atividade racional do sujeito, corporificada pelo conceito, é ideia absoluta que se realiza por meio do enfrentamento de suas próprias contradições. O conceito não é simples invólucro formal do pensamento, mas sim a alma do mundo, diante do qual “todo o resto é erro, turvação, opinião, esforço, arbítrio e perecibilidade; unicamente a ideia absoluta é ser, vida imperecível, verdade que se sabe, e é toda a verdade” (HEGEL, 2018, p. 313). O conceito “é não apenas a força suprema, ou, antes, a força única e absoluta da razão, e sim também seu impulso supremo e único para, através de si mesmo, encontrar e conhecer a si mesmo em tudo” (HEGEL, 2018, p. 316).

O interior das coisas e sua instabilidade fenomênica

Conforme abordamos na primeira parte deste artigo, a contestação idealista do mecanicismo moderno empreendida por Berkeley baseou-se na impossibilidade de que a extensão cartesiana possa ser concebida como fundamento substancial do mundo material. Para Berkeley, a existência de corpos materiais deve ser compreendida como ilusão derivada das percepções sensíveis, pois estas são hipostasiadas como realidade material independente dos sentidos humanos. Sob a compreensão filosófica de Hegel, a extensão como propriedade substancial do mundo pode ser compreendida igualmente em termos idealistas, como produto de uma abstração em que o espírito se demonstra incapaz de reconhecer sua própria atividade de produção da realidade. Sob uma interpretação hegeliana, o dualismo cartesiano e sua concepção de uma realidade material mecanicisticamente organizada já é resultado da alienação do espírito, pois este passa a conceber a existência de um mundo de coisas materiais existentes em si mesmas e independentes da atividade criadora da consciência. Tal concepção de um mundo de coisas extensas e subsistentes em si mesmas constitui em termos hegelianos uma objetividade morta e alienada, que é expressão da renúncia da consciência a reconhecer a si mesma em um mundo que é produto de sua atividade infinita e criadora. A extensão cartesiana é exterioridade abstrata da atividade do espírito, constituindo-se como momento a ser reconhecido e superado pela consciência de si. A ilusão ontológica do materialismo é etapa de desenvolvimento do itinerário fenomenológico da consciência de si, a ser reconhecido e superado na direção de sua autorealização e autocompreensão.

A implosão do mecanicismo clássico representada pela física quântica constitui-se como momento qualitativamente essencial no trajeto da consciência de si, e é ao mesmo tempo uma etapa prevista pelo sistema filosófico de Hegel. O dualismo entre onda e partícula representa a mais exemplar explicitação do movimento dialético da consciência de si, e é importante considerar que a configuração dessa dialética foi antecipada em termos notavelmente precisos por Hegel, pouco mais de um século antes que os físicos da Escola de Copenhagen revolucionassem a ciência ocidental. No terceiro capítulo da Fenomenologia do Espírito, o filósofo expõe o movimento tautológico do entendimento, que ao se defrontar com as contradições da percepção em um universal incondicionado, reluta em reconhecer que a dimensão supostamente incognoscível do fenômeno é posicionada pela própria consciência. O objetivo visado por Hegel consiste em desfazer os equívocos da consciência representados pelo dualismo puro e simples entre um sujeito cognoscente e um objeto de conhecimento, quando estes são pensados como polos independentes e rigidamente separados um em relação ao outro. O verdadeiro deve então ser pensado não como uma substância empiricamente delimitada, supostamente subsistente ao universo de fatos e dados conhecidos, mas sim como sujeito que põe a si mesmo. Para percorrer as etapas de sua autoconsciência, a consciência deve superar tanto o momento da certeza sensível, que corresponde à delimitação empirista que compreende o conhecimento como relação entre um sujeito passivo e um objeto dotado de uma suposta verdade intrínseca a suas qualidades primárias, quanto o momento kantiano da revolução copernicana, em que o sujeito assume posição nuclear na produção do conhecimento, por deter as categorias de inteligibilidade que permitem o conhecimento do objeto.

No capítulo da Fenomenologia do Espírito, intitulado Força e entendimento, a consciência superou dialeticamente as etapas anteriores, da certeza sensível e da percepção, concebendo o objeto como universal incondicionado. Nessa nova etapa do desenvolvimento da consciência, os dois momentos próprios à percepção, a unidade do objeto, e seu oposto dialético, que é a multiplicidade de suas propriedades sensíveis, são entendidos como movimentos objetivos em que a diversidade das matérias independentes transita para a unidade, e esta, por sua vez se desdobra na multiplicidade. O universal incondicionado é o movimento entre o ser-para-si, que é unidade do objeto, e o ser-para-outro, que são as propriedades sensíveis materializadas. Essa passagem, que se dá como expansão e contração de uma universalidade incondicionada, é denominada “força”, termo pelo qual Hegel busca expressar o caráter evanescente de algo cujo ser consiste em vir-a-ser e desaparecer, no movimento entre ser-para-si e ser-para-outro (CHAGAS, 2010). Os dois momentos da força parecem distintos, mas são inseparáveis, constituindo uma unidade evanescente, que, embora permaneça a mesma em meio a seus movimentos, apresenta uma existência fenomênica que se manifesta e desaparece. A força, entendida como conjunto de movimentos que expressam a existência do objeto, é concebida como Interior do objeto, conceito que na presente reflexão apresenta um duplo significado. Por um lado, o Interior, ou o fundo das coisas, representa a dimensão mais extrema e remota da realidade, sendo o conceito hegeliano que substitui a coisa-em-si incognoscível apontada por Kant na esfera metafenomênica. Por outro lado, o Interior, sendo a esfera evanescente marcada pela manifestação e pelo desaparecimento, é também o conceito da fenomenologia do espírito que apresenta a maior correspondência possível com a existência indefinida de superposição quântica entre o formato ondulatório e o estado de partícula. Esse interior metafenomênico da realidade equivale ao estado de invalidação das leis físicas newtonianas, evidenciando a tensão entre o mecanicismo clássico e os paradoxos quânticos.

Para Hegel, “a grande astúcia é que as coisas sejam como são, não se tem de ir além delas, mas tomá-las simplesmente em sua fenomenalidade, em vez de pô-las como coisas-em-si” (HYPPOLITE, 1999, p. 140). Por isso, o Interior das coisas, embora não possa ser capturado pelas coordenadas da razão, nem por isso deve ser kantianamente reduzido a uma esfera incognoscível, na medida em que o Interior não é simplesmente vazio, pois é mediado pelo fenômeno. O Interior é esfera suprasensível cuja evanescência se exterioriza pela mediação fenomênica e adquire inteligibilidade racional na expressão matemática das leis físicas. A instabilidade fenomênica do Interior encontra correspondência racional como “mundo calmo das leis”, esfera inteligível que traduz a diferença constante entre o manifestar e o desaparecer como unidade que permanece idêntica a si mesma. É importante assinalar que nesse complexo desenvolvimento conceitual, Hegel soube expressar a inadequação estrutural das fórmulas abstratas da física de Newton perante a diversidade qualitativa que é própria ao Interior da realidade. A inadequação dos parâmetros da física clássica para o conhecimento dos fenômenos quânticos, que até os dias atuais suscita os maiores esforços teóricos no campo da física de partículas, foi surpreendentemente antecipada mediante reflexões puramente especulativas que se mostraram adequadas para expressar a tensão entre os parâmetros mecanicistas da física newtoniana e o Interior das coisas:

para atingir a unidade, será preciso, portanto, renunciar à diferença enquanto verdadeira diferença qualitativa, ou ainda, para não perder essa diferença, renunciar à realidade? Aqui, encontramo-nos no coração do problema da identidade e da realidade fenomênica; a solução de Hegel, porém, não consiste em opor sempre os dois termos, mas em buscar sua união numa relação dialética que é, para ele, ‘o conceito absoluto’, ou a infinidade (HYPPOLITE, 1999, p. 143).

O mundo é espelho da consciência

Quando Heisenberg expressa como princípio de incerteza a antítese insuperável entre a estabilidade e previsibilidade newtonianas e a indeterminação radical dos fenômenos quânticos, seu reconhecimento dos limites intransponíveis do conhecimento científico representou uma atualização da dialética hegeliana entre identidade conceitual e realidade fenomênica. Ao passo que desde os anos 1920 os físicos teóricos se esforçam em contornar o problema do colapso quântico ocasionado pela observação da consciência humana, buscando salvaguardar os parâmetros da objetividade forte que fundamentavam a ciência clássica, Heisenberg soube reconhecer que a única maneira de compreender os “mistérios quânticos” consiste em recorrer a conceitos metafísicos. Mas embora o físico tenha procurado compreender a realidade quântica por meio de categorias aristotélicas, é o sistema filosófico de Hegel que proporciona o mais pleno e adequado entendimento sobre os desafios postos pela física quântica. O que para grandes físicos do século XX pareceu assombroso e paradoxal, consistiu somente na expressão da contradição dialética entre o reducionismo inerente ao conceito, que busca expressar a diferença por meio da unidade, e a pluralidade irredutível do Interior das coisas. A inadequação dos parâmetros clássicos newtonianos para a compreensão do universo quântico veio apenas explicitar um descompasso entre as leis do entendimento e a realidade, que já havia sido analisado por Hegel muito tempo antes da constatação dos paradoxos quânticos. Tal inadequação pode ser explicada pelo movimento tautológico do entendimento, que consiste na enunciação constante de um reino calmo de leis universais que busca representar a diferença existente no Interior das coisas, mas consegue apenas realizar o contrário desse objetivo. Trata-se de “um explicar que não somente nada explica, como também é tão claro que, ao fazer intenção de dizer algo diferente do que já foi dito, antes nada diz, mas apenas repete o mesmo” (HEGEL, 2002, p. 124).

Para que se possa entender o impacto das pesquisas quânticas no âmbito mais amplo da ciência, assim como a relevância do pensamento de Hegel para essa compreensão, o diálogo travado entre Heisenberg e a filósofa Grete Hermann, em meados da década de 1930, é paradigmático. Baseando-se na filosofia kantiana, Hermann defendeu a irredutibilidade da relação de causa e efeito para qualquer estudo de natureza científica. Mas as pesquisas quânticas haviam revelado justamente que não existe relação de causalidade em vários fenômenos atômicos, pois é impossível explicar por que um átomo específico se desintegra em um certo momento e não em outro, ou por que ele emite um elétron em uma determinada direção e não em outra. Diante dessa enunciação da incerteza quântica, Hermann argumentou que o próprio conhecimento dos fenômenos quânticos estaria incompleto, razão pela qual os pesquisadores deveriam insistir na pesquisa da relação de causalidade até então ignorada. Heisenberg argumentou que os fenômenos atômicos são situações observacionais que não podem ser correlacionadas a uma causalidade no espaço e no tempo, escapando ao determinismo clássico, motivo pelo qual o conhecimento de tais fenômenos é completo, mesmo que seja incapaz de estabelecer relações unívocas de causa e efeito. A resposta dada por Hermann é eloquente no sentido de esclarecer a crise paradigmática estabelecida pela física quântica:

mas isso é terrível – disse Grete Hermann. - Por um lado, o senhor alega que seu conhecimento do átomo de Rádio B é incompleto, pois não sabe dizer quando e em que direção o elétron será emitido; por outro lado, está me dizendo que seu conhecimento é completo, porque, se houvesse outros determinantes, vocês cairiam em contradição com outros experimentos. Mas é impossível que nosso conhecimento seja completo e incompleto ao mesmo tempo. Tudo isso é um perfeito absurdo (HEISENBERG, 1996, p. 142).

Entre os físicos quânticos, Heisenberg foi, portanto, um pensador que compreendeu com notável sensatez filosófica a impossibilidade de extrapolação do realismo clássico newtoniano para a análise dos fenômenos subatômicos. Perante a relutância dos partidários da objetividade forte em reconhecer a implicação direta da consciência humana na produção da realidade corpuscular que caracteriza o mundo macroscópico de coisas e objetos materiais, Heisenberg compreendeu que esse é um domínio epistemologicamente pertencente ao campo da filosofia, e portanto inacessível aos argumentos científicos, uma vez que é a extensão em si mesma que se constitui como objeto de reflexão. Ao reconhecer a incerteza irredutível imanente ao salto quântico como expressão de uma potência aristotélica, Heisenberg enunciou os limites irredutíveis do ofício da ciência positivista, dada a incapacidade desta de extrapolar o domínio da manipulação de dados e fatos experimentais dotados de previsibilidade. Em termos hegelianos, quando a ciência é forçada a reconhecer que o próprio desenvolvimento do método experimental gestado nos primórdios da era moderna se mostra rigorosamente inadequado para compreensão da realidade quântica, é importante entender esse fato como momento essencial da autoconsciência do espírito. O esgotamento do paradigma mecanicista da ciência moderna deve ser compreendido como obstáculo produzido pela própria consciência em seu trajeto de conhecimento de um mundo que é posto e manifestado por ela mesma, no processo de realização de si como veículo do Absoluto.

O que ao olhar do cientista parece ser a oposição irredutível entre dois mundos, um deles clássico e submetido à previsibilidade newtoniana, e outro quântico e regido pela complementaridade e incerteza, na verdade é um mundo apenas, que parece ter existência invertida apenas ao olhar desatento da consciência. Se a diferença entre o Interior das coisas e o entendimento é reconhecida em um primeiro momento, porém é imediatamente suprimida pelo movimento tautológico da razão, quando se realiza essa singela constatação, a experiência de conhecimento do mundo se depara com a infinidade do conceito absoluto. A oposição entre o determinismo newtoniano e a indeterminação quântica não deveria ser pretexto para uma visão artificialmente dualista entre dois patamares supostamente inconciliáveis da realidade, pois constitui-se simplesmente como dois diferentes posicionamentos da consciência, a serem reconhecidos como tais. A inadequação estrutural entre o Interior da realidade e a fórmula conceitual do entendimento, é exposta por Hegel como descoberta de que a estrutura do objeto de conhecimento e a própria consciência do sujeito cognoscente são perfeitamente coincidentes. A tautologia do entendimento revela que o sujeito encontra a si mesmo quando pretende conhecer o mundo:

levanta-se pois, essa cortina sobre o interior e dá-se o olhar do interior para dentro do interior: o olhar do homônimo não-diferente que a si mesmo se repele, e se põe como interior diferente; mas para o qual também se dá, imediatamente, a não-diferenciação dos dois – a consciência de si. Fica patente que por trás da assim chamada cortina, que deve cobrir o interior, nada há para ver; a não ser que nós entremos lá dentro – tanto para ver como para que haja algo ali que possa ser visto” (HEGEL, 2002, p. 132).

Essa passagem bem conhecida da Fenomenologia do Espírito contém a chave filosófica para a mais lúcida compreensão dos chamados mistérios quânticos, aqui sintetizados mediante uma breve exposição dos princípios de complementaridade e de incerteza. Se o Interior das coisas é diferença suprasensível que é dissolvida ao ser subsumida pelo calmo reino das leis universais, isso significa que Hegel expôs, com referência ao próprio paradigma mecanicista da física clássica, uma inadequação estrutural entre o Interior das coisas e o entendimento, que posteriormente seria descoberta pelos físicos quânticos em suas investigações sobre o universo microscópico. Para conhecer o mundo, o entendimento não possui outro recurso que não seja o colapso das diferenças que são postas e imediatamente suprimidas pela própria consciência. Por esse motivo, Hegel denomina como “infinitude” ou “conceito absoluto” ao momento decisivo em que a consciência de si compreendeu seu próprio movimento: “essência simples da vida, a alma do mundo, o sangue universal que onipresente não é perturbado nem interrompido por nenhuma diferença, mas que é antes todas as diferenças” (HEGEL, 2002, p. 129). Quando os físicos quânticos constataram que a consciência apresenta a qualidade de colapsar o estado de superposição entre onda e partícula, produzindo o formato corpuscular próprio aos objetos macroscópicos, eles na verdade não estavam diante de nenhum mistério próprio à relação entre o mundo e consciência, pois se tratava da simples qualidade do espírito de pôr as condições de sua própria existência.

Considerações finais

O significado impactante da física quântica em relação aos parâmetros clássicos pode ser devidamente aquilatado diante do novo significado de objetividade que passou a ser pressuposto no âmbito das pesquisas atômicas. Em contraste com a “objetividade forte”, determinista e mecanicista da física clássica, os pesquisadores quânticos foram obrigados a se contentar com uma “objetividade fraca”, permeada pelo princípio de incerteza e pela causalidade probabilística. É justamente no tocante ao conceito de objetividade que o sistema filosófico de Hegel apresenta sua mais importante implicação no campo da física quântica. Na Fenomenologia do Espírito, conforme abordamos, a própria física newtoniana sempre esteve comprometida pela inadequação estrutural entre a fórmula abstrata, - o “reino calmo das leis” - e a diversidade qualitativa dos fenômenos físicos. A causalidade mecânica e determinista própria à física clássica em si mesma nunca deixou de ocultar a tautologia intrínseca ao entendimento, e nesse sentido ela já era uma objetividade tão “fraca” quanto aquela posteriormente atribuída à física quântica. As pesquisas atômicas vieram somente explicitar que a tautologia do entendimento, em seu explicar que nada explica, não representa um deficit a ser desesperadamente superado, pois ela expõe a qualidade universalmente incondicionada do espírito de pôr a si mesmo como consciência conhecedora do mundo. Em vez de um “realismo físico coisista” (BALSAS, 1999, p. 148), constituído por propriedades mecânicas e determinadas, a física quântica explicitou a infinidade do conceito absoluto que sempre esteve presente por trás da cortina que encobria o Interior das coisas.

No início do período moderno, o pensamento de Berkeley apresentou o mérito de deslocar a extensão desde seu estatuto cartesiano de fundamento ontológico da objetividade forte, para a condição subjetiva de simples percepção produzida pelo espírito. No século XX, a teoria da relatividade de Einstein retirou a extensão de sua condição ontológica de fundamento da objetividade forte, pois sendo a matéria exclusivamente identificada à energia, desde então a própria extensão passou a ser entendida como intensidade de energia do campo eletromagnético. Pouco tempo depois, a física quântica encarregou-se de abalar decisivamente os fundamentos deterministas e mecanicistas da realidade, desde que Bohr e Heisenberg elevaram o indeterminismo à condição de fundamento irredutível da realidade subatômica. Dada a formulação de princípios idealistas que alçaram a consciência à condição de fundamento da existência em si mesma da realidade objetiva macroscópica, aos cientistas que permaneceram agarrados à objetividade forte e determinista da física clássica, não restou outra opção que não fosse atribuir aos instrumentos de medição o papel central na delimitação entre o quântico e o clássico. Por outro lado, desde a abordagem idealista do sistema filosófico de Hegel, é possível compreender que já no tocante à física newtoniana, a chamada objetividade forte nada mais era que simples expressão tautológica do entendimento, quando este procura expressar, por meio de abstrações matemáticas, o movimento irredutivelmente evanescente que é próprio aos fenômenos físicos. A inadequação estrutural entre o Interior das coisas e sua expressão abstrata por meio do “reino calmo das leis”, desvela a atividade racional do sujeito, expressa pela negatividade do conceito, como a alma do mundo, que é a forma verdadeira da realidade em si mesma. Dessa forma, nos termos postulados pela ciência, o indeterminismo e a incerteza que caracterizam a chamada objetividade fraca sempre esteve presente desde a formulação da física newtoniana, não se constituindo como deficit peculiar somente ao conhecimento dos fenômenos quânticos.

Na medida em que Heisenberg não se limitou a enunciar o princípio de incerteza como fundamento conceitual da esfera subatômica, mas também reconheceu a primazia da metafísica sobre a ciência física para o conhecimento do ser, seu pensamento inaugurou uma etapa muito importante no trajeto da autoconsciência do espírito, estabelecendo uma ruptura frente às tendências hegemônicas de instrumentalização da razão. Desde o início do período moderno, o processo histórico de secularização inaugurado pela Revolução Científica impôs a supremacia dos valores utilitários imediatos em detrimento da reflexão acerca da conexão entre o desenvolvimento da ciência e o finalismo metafísico. A própria razão, e juntamente com ela, a reflexão filosófica, foi rebaixada a uma condição secundária e inteiramente depreciada como órgão especulativo capaz de avaliar a harmonia entre os objetivos visados pelo conhecimento e a racionalidade universal do espírito. Max Horkheimer estabeleceu com precisão as consequências da transformação da razão em instrumento meramente formal do pensamento: “a razão como um órgão de percepção da verdadeira natureza da realidade e de determinação dos princípios orientadores de nossas vidas passou a ser encarada como obsoleta. Especulação é sinônimo de metafísica, e metafísica sinônimo de mitologia e superstição” (2015, p. 26). É no contexto moderno de “eclipse da razão”, vale dizer, de supremacia de seus aspectos instrumentais em detrimento de sua propriedade teleológica, que podemos compreender da maneira mais ampla possível os esforços “realistas” de preservação da objetividade forte frente ao “idealismo” representado pela valorização da consciência como fundamento da objetividade do mundo. O mais importante aspecto teórico subjacente aos estudos quânticos “idealistas” consiste em conceber que a objetividade forte, que atualmente se constitui como a última tábua de salvação dos partidários do realismo, sempre foi uma ilusão da consciência, inteiramente alheia àquilo que Hegel enunciou como núcleo irredutível da experiência negativa da consciência no tempo: “o espírito só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto” (HEGEL, 2002, p. 44). Em sentido antagônico ao esforço teórico de salvação da objetividade forte protagonizado pelos teóricos “realistas”, a consciência de si somente se realiza como potência espiritual no enfrentamento da negatividade: “ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que converte o negativo em ser” (HEGEL, 2002, p. 44). Se o sujeito é a substância verdadeira, que põe a si mesmo e se constitui ele próprio na mediação que a ciência moderna insiste em localizar em um mundo externo supostamente subsistente e independente da atividade do espírito, sua autoconsciência exige o enfrentamento de sua irredutível negatividade:

agora parece haver necessidade do contrário: o sentido está tão enraizado no que é terreno, que se faz mister uma força igual para erguê-lo dali. O espírito se mostra tão pobre que parece aspirar, para seu reconforto, ao mísero sentimento do divino em geral. - como um viajante no deserto anseia por uma gota d’água. Pela insignificância daquilo com que o espírito se satisfaz, pode-se medir a importância do que perdeu” (HEGEL, 2002, p. 29).

Material suplementar
Referências
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LEHNER, Christoph. O realismo de Einstein e sua crítica da mecânica quântica. In: FREIRE JR., Olival.; PESSOA JR., Osvaldo. BROMBERG, Joan. (orgs.). Teoria quântica: estudos históricos e implicações culturais. Campina Grande, EDUEPB, 2011.
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SILVA, Vinícius O antirealismo na filosofia da física de Werner Heisenberg: da potentia aristotélica ao formalismo puro. Griot – Revista de filosofia. Amargosa, v. 3, n. 1, junho/2011.
SCHRÖDINGER, Erwin. O que é vida? São Paulo, Editora da Unesp, 1997.
Notas
Autor notes
1 Doutor em História e Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil. Professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Marília – SP, Brasil.
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