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O direito internacional e o futuro da cidadania democrática na filosofia de Juergen Habermas
International law and the future of democratic citizenship in the philosophy of Jurgen Habermas
O direito internacional e o futuro da cidadania democrática na filosofia de Juergen Habermas
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 193-310, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepção: 19 Abril 2021
Aprovação: 22 Maio 2021
Resumo: Habermas discute as chances para a instituição de uma cidadania mundial na sociedade contemporânea, marcada pelo multiculturalismo e pelo processo de globalização. Habermas identifica a configuração histórica da constelação pós-nacional, e partir daí tematizada a transição do direito internacional para o direito de cidadãos do mundo, que alinha o conceito de cidadania à ideia de direitos humanos. Habermas analisa a ideia kantiana de estado cosmopolita em que os cidadãos são sujeitos jurídicos de seus respectivos Estados e membros de uma entidade cosmopolita. Kant elabora o conceito de república mundial, que Habermas discorda, mas oferece o exemplo da União Européia para uma discussão sobre a realização de uma ordem internacional justa e pacífica. A partir da orientação kantiana de constituição de uma ordem de cidadania mundial, Habermas discute a conformação e a viabilidade dessa ideia na contemporaneidade. Para Habermas, é possível soletrar a ideia de cidadania cosmopolita. A partir da União Européia, a cooperação entre Estados e cidadãos mostra que se faz necessária uma comunidade cosmopolita em complementação a uma comunidade internacional de Estados.
Palavras-chave: Direito internacional, Cidadania mundial, Direitos humanos.
Abstract: Habermas discusses the chances for the establishment of world citizenship in contemporary society, marked by multiculturalism and the process of globalization. Habermas identifies the historical configuration of the post-national constellation, and from there themed the transition from international law to the law of citizens of the world, which aligns the concept of citizenship to the idea of human rights. Habermas analyzes the Kantian idea of a cosmopolitan state in which citizens are legal subjects of their respective States and members of a cosmopolitan entity. Kant elaborates on the concept of world republic, which Habermas disagrees with, but offers the example of the European Union for a discussion on the realization of a just and peaceful international order. Based on the Kantian orientation of constituting an order of world citizenship, Habermas discusses the conformation and viability of this idea in contemporary times. For Habermas, it is possible to spell out the idea of cosmopolitan citizenship. From the European Union, cooperation between States and citizens shows that a cosmopolitan community is needed to complement an international community of States.
Keywords: International law, World citizenship, Human rights.
A ideia de transformação do direito internacional clássico em direito dos cidadãos do mundo visa a paz entre os países, com uma ordem cosmopolita juridificada. Existe o entendimento de que com base na política dos direitos humanos, uma intervenção militar em um país pode ser entendida como missão de paz. A domesticação do estado de natureza entre os Estados, à luz dos direitos humanos, pode ser interpretada como uma passagem do direito internacional clássico para o direito cosmopolita de uma sociedade de cidadãos do mundo. Segundo Habermas, existem controvérsias quanto à alternativa dos ataques armados. Eles geram danos materiais e sofrimento, e temos um elo de responsabilidade para com eles. Se por um lado o direito internacional clássico protege a soberania dos Estados, por outro lado, limitar o princípio à não intervenção pode ser necessário. Mas a legitimidade de tais procedimentos por meio de uma política dos direitos humanos implica na institucionalização da cidadania cosmopolita.
Segundo David Held e Pietro Manffetone, a base para os direitos humanos é o respeito pela outra pessoa. Respeitar as pessoas como autoridades normativas no reino da moralidade, bem como no terreno da lei e da política é básico, e o respeito implica que toda pessoa tem o direito à justificação no contexto relevante da ação moral ou na ordem política normativa. É o que significa respeitar a dignidade dos seres humanos, um fim em si mesmo, para usar a linguagem kantiana. Não devemos entender os direitos humanos verticalmente, como privilégios concedidos a sujeitos através de regras ou governo. Mas horizontalmente, como diz Habermas, pois são direitos que os membros da sociedade reconhecem, determinam e asseguram. Os direitos humanos não são simplesmente direitos morais, são direitos constituídos num cenário de reciprocidade e generalidade, direitos justificáveis que estabelecem o status das pessoas com igual autoridade normativa, dentro de uma ordem normativa, e protege as pessoas de uma dominação política ou social. São direitos baseados no direito básico de justificação, que nesse contexto significa ser co-autor de todos os direitos justificáveis e deveres aplicáveis a si mesmo (HELD;MANFFETONE, 2016, p. 26-33).
Na obra Sobre a constituição da Europa, de 2011, Habermas diz que a declaração universal dos direitos humanos faz referência à dignidade. Esse é um conceito que entrou em cena desde a antiguidade e adquiriu em Kant sua acepção atual válida. Os direitos humanos surgiram em oposição à arbitrariedade, a opressão e a humilhação. O apelo aos direitos humanos alimenta-se da indignação dos humilhados, pela violação de sua dignidade humana. A garantia dos direitos humanos cria o status de cidadãos, sujeitos de direitos iguais que pretendem ser respeitados em sua dignidade. Independente do conteúdo moral, os direitos humanos possuem a forma de direitos subjetivos positivos e coercitivos que asseguram um espaço de liberdade e de pretensões aos indivíduos. O caráter jurídico dos direitos humanos protege uma dignidade humana que extrai sua conotação de autorrespeito e reconhecimento social do status de cidadania democrática situada no espaço e no tempo. Os direitos humanos adquirem validade positiva de direitos fundamentais primeiro no interior do Estado nacional. Mas, devido a sua pretensão de validade universalista, só pode ser resgatada numa comunidade cosmopolita inclusiva.
No contexto do direito internacional clássico, uma intervenção militar, como a que houve em Kosovo (1998 -1999), com ação punitiva contra a Ioguslávia, a fim de estabelecer regulamentação liberal para a autonomia de Kosovo, dentro da Sérvia, pode ser considerada uma intromissão em assuntos internos de um Estado soberano. Mas sob a premissa da política de direitos humanos, uma intervenção armada deve ser entendida como uma missão para a obtenção da paz. De acordo com essa interpretação ocidental, a guerra de Kosovo poderia significar um salto na passagem do direito clássico das nações para o direito cosmopolita de uma sociedade civil de cidadãos do mundo. Desde 1945 as intervenções humanitárias têm sido realizadas em nome da ONU (HABERMAS, 2003, p. 41).
Habermas destaca a ambivalência que acompanha esses acordos para intervenções humanitárias. Por um lado, as decisões racionais, e por outro lado, as inquietações do coração. Persistem dúvidas quanto a alternativa dos ataques armados. Por detrás de cada bomba que atinge seus alvos e vítimas, “não se percebe apenas um tipo qualquer de contingência de guerra, mas um sofrimento que é necessário debitar na consciência de “nossa” intervenção” (HABERMAS, 2003, p. 42-43).
Cada criança que morre na fuga abala os nossos nervos, pois, apesar das relações de causalidade visíveis, entrelaçam-se agora os elos de responsabilidade. Na miséria da expulsão, as consequências da política brutal de um terrorista de estado formam um novelo junto com os efeitos indiretos de um ataque militar que, ao invés de acabar com sua obra genocida, ainda lhe proporciona mais um pretexto. E é difícil desembaraçar tal novelo (HABERMAS, 2003, p. 44).
A guerra de Kosovo ilustra uma questão controvertida nos campos da ciência política e da filosofia. O Estado constitucional democrático pode atuar como um domesticador jurídico do poder político, baseado na soberania de sujeitos reconhecidos por um direito internacional. Mas “um estado de “cidadania mundial” coloca essa independência dos Estados nacionais em banho-maria”. Surge a questão acerca da possível tensão entre o universalismo do Iluminismo e o sentido próprio de um poder político que possui impulso à auto-afirmação de uma comunidade particular. Para Habermas, esse é o aguilhão fincado na carne da política dos direitos humanos (HABERMAS, 2003, p. 45).
Os Estados cada vez mais têm que cooperar em resolver problemas globais. Instituições supranacionais, regimes e processos adquirem autoridade cada vez maior em várias áreas, como segurança coletiva. Há o embaçamento de fronteiras que separam a política interna da externa. Para Habermas, o princípio da não intervenção do direito internacional tem como pano de fundo o pessimismo humano e um conceito opaco de política. Nesse sentido, os Estados nacionais, na arena internacional, podem movimentar-se conforme seus interesses, pois aos olhos dos membros participantes, a segurança e a sobrevivência da coletividade constituem valores inegociáveis. Existe a perspectiva de que a auto-afirmação racional estratégica constitui a melhor medida para regular as relações dos atores coletivos. Considerando esse ponto de vista, um intervencionismo político justificado como em nome dos direitos humanos comete um erro conceitual, porque subestima e discrimina uma tendência para a auto-afirmação que em certa medida é natural. (HABERMAS, 2003, p. 45-46).
A motivação que se atribui aos Estados Unidos de garantir e ampliar suas esferas de influência, a motivação atribuída à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) de buscar papel próprio, e a motivação atribuída à Europa, de prevenir-se contra ondas de imigração, não explicam a decisão de iniciar um ataque militar contra algum país. Os sujeitos do direito internacional, devido aos rastros de sangue deixados na história das guerras, levantam a presunção de inocência do direito internacional aos limites do absurdo. Mas a fundação da ONU e sua Declaração Universal dos Direitos Humanos, e a ameaça de sanções contra guerras de agressão, que de certo modo limita o princípio da não-intervenção, foram respostas necessárias e corretas ao holocausto e ao totalitarismo da política (HABERMAS, 2003, p. 47).
Para Habermas, devido à falta de clareza conceitual, existe censura contra uma política moralizadora. A instauração de um estado de cidadania mundial significaria que violações dos direitos humanos não seriam combatidas em primeiro lugar conforme a moral, mas perseguidas como ações criminosas dentro de uma ordem jurídica estatal. As relações internacionais precisam de uma juridificação abrangente e de procedimentos institucionalizados para a solução de conflitos. Tais procedimentos preservam o tratamento jurídico das violações dos direitos humanos e impedem a discriminação moral completa dos “inimigos”. Mesmo sem o poder de um Estado mundial, e sem governo mundial, essa situação, segundo Habermas, pode ser atingida.
Mas é necessário ao menos um conselho de segurança, e a jurisdição coercitiva de um tribunal internacional, além da complementação da assembléia geral dos representantes governamentais por um “segundo nível” de representação de cidadãos do mundo (HABERMAS, 2003, p. 47-48).
Em meio a Estados relativamente regulamentados pela ONU, os Estados Unidos da América assumiram papel de superpotência que mantêm a ordem. Nesse contexto, os direitos humanos servem de orientação moral aos objetivos políticos. Os Estados Unidos e outras nações por vezes atendem a interesses próprios, que podem não condizer com os objetivos normativos declarados (HABERMAS, 2003, p. 49). Carl Schimitt considera a política de defesa dos direitos humanos, nas relações internacionais, um fundamentalismo dos direitos humanos, pois a apropriação de ideais da humanidade é uma ideologia que em parte traveste valores particulares em universais, e os nega aos seus adversários. Aquele que fala em nome da humanidade quer enganar (DURÃO, 2016, p. 390).
Os direitos humanos, além do sentido de orientação moral para a ação política, são tomados como direitos a serem implementados no sentido jurídico. Os direitos humanos, além do conteúdo moral, possuem características estruturais de direitos subjetivos, que tendem a obter validade positiva numa ordem jurídica. Apenas quando os direitos humanos funcionarem do mesmo modo que os direitos fundamentais, nas constituições nacionais, pode-se inferir que os destinatários dos direitos, em nível mundial, são seus autores. Não existe ainda uma situação de total institucionalização da cidadania cosmopolita (HABERMAS, 2003, p. 50).
O filósofo Giesen diz que Habermas, a partir de sua tematização sobre a constelação pós-nacional, elabora um projeto político de transição do direito internacional clássico ao direito cosmopolita. Os atores estatais continuarão a existir, mas os indivíduos serão igualmente admitidos.
Segundo Giesen, Habermas propõe um projeto político apropriado ao contexto contemporâneo mundial, marcado pelos processos pós-nacionais. Com o final da Guerra fria e do confronto ideológico do Leste-Oeste, surgiram tentativas de reconceber o sistema internacional a fim de preencher um vazio teórico. Entre outros conceitos, surge com força o conceito de sociedade civil internacional, um sinônimo de relações internacionais democráticas, associado aos conceitos de “governança global” e “democracia cosmopolita”. Filósofos relevantes promovem essas concepções, e talvez entre eles Jurgen Habermas seja o mais influente filósofo europeu da atualidade. Habermas percebe uma configuração histórica radicalmente nova que ele chama “constelação pós-nacional”. Isso justificaria um projeto político inédito, uma transição para um novo direito cosmopolita. A chave desse direito reside no fato de que ele diz respeito ao estatuto dos sujeitos individuais, embora considerando-os sujeitos coletivos do direito internacional, fundando para eles uma pertença direta à associação de cosmopolitas livres e iguais (GIESEN, 2001, p. 87-89).
Segundo Giesen, os atores estatais continuarão a participar como agentes da vontade coletiva, mas os indivíduos serão igualmente admitidos. A fim de reduzir a um número limitado a diversidade de posições, Habermas recorre à analogia dos processos de decisão internos. Entre cidadãos e o sistema (Estado e mercado) interpõe-se a sociedade civil (sindicatos, igrejas, associações, etc) onde se desenvolve uma luta em favor da proteção do mundo da vida em face do sistema. Uma luta que acontece no espaço público. Segundo Habermas (1998 citado por GIESEN, 2001, p. 90), como essa luta se abre ao horizonte planetário, a mesma dinâmica precisa ser sancionada em âmbito internacional. Na sociedade civil internacional, as ONGs poderiam exprimir uma vontade política exterior à esfera estatal. Essa sociedade encarna a esperança de Habermas na transição para o direito cosmopolita. Sob a batuta de ONGs influentes como O Greenpeace, a Anistia Internacional, as ONGs com as organizações interestatais, são capazes de contribuir para uma “governança mundial” e para o funcionamento de “regimes internacionais e transnacionais” (GIESEN, 2001, p. 90).
Para Anne-Marie Slaughter (1997 citada por GIESEN, 2001, p. 91), a participação institucionalizada de Organizações Não-Governamentais nos conselhos de negociação internacional geraria uma ordem mundial em que a Microsoft, a Igreja Católica e a Anistia Internacional estariam unidas em rede de governança com a União Européia, as Nações Unidas e a Catalunha. Essas estruturas privadas (ONGs, Igrejas, empresas multinacionais) herdaram, devido ao desmantelamento do Estado, algumas de suas funções redistributivas, caritativas, mas sem sufrágio universal. Então seria uma concepção antidemocrática, que estranhamente sairia de Habermas. Ele que elaborou em Facktizitat und Geltung uma teoria segundo a qual a sociedade civil (nacional), no seio do espaço público, estaria destinada a proteger o mundo da vida em face do sistema, podendo aperfeiçoar o sistema de direitos. Nos seus escritos pós-nacionais, a partir de 1992, Habermas simplifica esse quadro conceitual. A sociedade civil (transnacional) passa a ser ela mesma a fonte do direito cosmopolita. Isso modifica o esquema inicial. Por um lado, porque nenhuma mediação é realizada no espaço público propriamente dito, por outro lado, porque os atores da sociedade civil transnacional estão mais desconectados do mundo da vida do que aqueles ativos no âmbito estatal, o que revela um certo elitismo representativo (GIESEN, 2001, p. 91).
Segundo Giesen, a transição política para o direito cosmopolita deve dar forma a uma nebulosa governança mundial. As normas do direito internacional público clássico devem ser substituídas gradativamente por normas de comportamento aplicáveis em escala mundial. Não devemos esquecer que a soberania representa também a proteção dos Estados fracos em relação aos mais fortes. Poderia ser aplicada força militar, em caso de violação dos direitos humanos, sob o amparo de uma ONU reformada. Com isso seria justificada a violação ao direito internacional, e haveria uma antecipação do direito cosmopolita futuro (GIESEN, 2001, p. 92).
Negar o direito internacional vigente, sem um sistema novo instituído, é um exercício perigoso. A passagem de um ao outro ameaça dissolver a diferença entre moral e direito, e autoriza desvios. Como o direito de intervenção internacional é sempre do mais forte sobre o mais fraco, Giesen pergunta quem ousaria intervir militarmente nos Estados Unidos ou na China. Além disso, para Giesen, falta a Habermas uma tematização acerca de uma reestruturação da ordem distributiva mundial (GIESEN, 2001, p. 92).
Habermas (1996 citado por GIESEN, 2001, p.93) pensa numa solução de contraponto aos efeitos nefastos da globalização. Para ele, a globalização das trocas, da comunicação, da produção econômica, da transferência de tecnologias e armamento, também os riscos ecológicos e militares, põe-nos diante de problemas que não podem ser resolvidos no quadro do Estado-nação, nem através de acordos entre Estados soberanos. Na Europa, na América do Norte, e na Ásia, formam-se organizações supra-estatais - regimes continentais que poderiam fornecer a base para um sistema de Nações Unidas, que hoje se apresenta muito ineficiente (GIESEN, 2001, p. 93).
Giesen investiga qual a visão ideológica por trás dessa construção política. Habermas se deixou enredar na trama de escritos contemporâneos sobre a democracia cosmopolita ou pós-nacional. Há um esforço heróico em salvar no âmbito internacional a pouca capacidade de regulação política que tenha resistido (GIESEN, 2001, p. 94).
Habermas identifica a formação histórica da constelação pós-nacional. Kant elabora o esboço de um estado cosmopolita, e Habermas atualiza essa discussão. Kant tem em vista a manutenção da paz. A ideia de um estado cosmopolita transfere a positivação dos direitos humanos e da cidadania da esfera nacional à internacional. Então Kant pensa na reformulação do direito internacional clássico, enquanto direito de Estados, em um direito cosmopolita, enquanto direito de indivíduos. Para Habermas, Kant não concebeu a transição do direito internacional clássico para o direito cosmopolita de modo suficientemente abstrato, ele adotou de forma estreita a ideia de uma república mundial. Mas Habermas identifica premissas subjacentes ao argumento e pensa numa alternativa conceitual à república mundial kantiana.
Na obra A Paz Perpétua, de 1795, Kant diz que a federação da paz é uma realidade exequível. Essa federação se propõe a manter e garantir a paz de um Estado e também dos outros Estados federados, o que conduz à paz perpétua. Um povo forte e ilustrado pode formar uma república, que pode ser o centro da associação federativa, para que todos os Estados se reúnam à sua volta e assegurem a liberdade dos Estados conforme o direito das gentes2, estendendo-se sempre, mediante uniões (KANT, 1900, p. 135).
Segundo Kant, os homens entregam sua liberdade selvagem (sem lei) para formar um Estado de povos. Há um avanço no estabelecimento de uma comunidade de povos na terra. Quando direitos são violados em uma parte da terra, isso pode ser sentido também em outras partes. A ideia de um direito cosmopolita, que não é nenhuma representação extravagante do direito, pode ser entendida como um complemento necessário, de código não escrito, seja do direito político, como do direito das gentes, num direito público da humanidade, e com isso um complemento da paz perpétua (KANT, 1900, p. 140).
De acordo com Kant, existe o direito à propriedade, mas originariamente todos têm direito a um lugar na terra. A natureza providenciou que os homens possam viver na terra. As guerras levaram os homens a lugares inóspitos a serem povoados. Por meio da guerra, da caça, da agricultura, do comércio, os povos estabeleceram relações pacíficas. Partes afastadas do mundo podem estabelecer relações pacíficas, e o gênero humano pode se aproximar de uma constituição cosmopolita. O direito cosmopolita é um direito a estar presente e manter contato com outras pessoas e estados. Sob o direito cosmopolita, o estrangeiro não deve ser tratado com hostilidade devido à sua chegada em território de outro povo. Quando uma pessoa busca refúgio e é recusada, isso pode levar à sua morte. O Estado deve admitir o estrangeiro até que melhore a circunstância no exterior. Mas o estrangeiro pode ser rejeitado se ameaça causar dano a esse Estado (KANT, 1900, p. 137-144).
Kant parece antecipar os direitos dos refugiados, incluindo o direito à não expulsão, elaborado no século XX. Muitos comentadores não aceitam esse argumento, porque o fenômeno da crise dos refugiados é recente. Na Europa do século XVIII havia poucos que tinham que fugir da guerra, da intolerância religiosa, e da opressão política. A Prússia admitiu refugiados, mas foi uma estratégia para aumentar a população na época (KLEINGELD, 2013, p. 77).
Segundo Kleingeld, para Kant, o direito internacional se refere a um direito entre estados. Sob o direito cosmopolita, os indivíduos e estados se relacionam com o exterior, numa influência mútua, e os cidadãos são considerados cidadãos de um estado universal. Kant menciona “cidadãos do mundo”, na sua obra Metafísica dos Costumes, como aqueles que possuem direitos cosmopolitas. Os cidadãos têm igual status sob o direito cosmopolita, que determina princípios normativos para a sua interação com estados estrangeiros, mesmo com diferentes filiações a Estados, e independente de tratados entre estados (KLEINGELD, 2013, p. 75).
O direito internacional teve sua concepção ampliada, quando passou a envolver direitos de refugiados e apátridas. Mas faz sentido demarcar essa parte do sistema legal que Kant indica com a categoria direito cosmopolita, que diz respeito à interação que atravessa fronteiras (KLEINGELD, 2013, p. 75).
Segundo Habermas, “o mundo dominado por Estados nacionais encontra-se numa transição para uma constelação pós-nacional da sociedade mundial”. Kant deu um passo decisivo para além do direito internacional, restrito aos Estados, com o esboço de um “estado cosmopolita” (ancorado no direito cosmopolita). Mas o projeto kantiano de uma ordem cosmopolita é polêmico (HABERMAS, 2006, 117).
Idealistas kantianos e os realistas Schimittianos discutem os limites da regulamentação jurídica de relações internacionais. A essa discussão se sobrepõe na atualidade um conflito maior. O projeto de uma nova ordem mundial liberal perseguido por mentores intelectuais dos Estados Unidos levanta a questão acerca da regulamentação jurídica das relações internacionais, se seria substituída por uma eticização da política mundial determinada pela superpotência. Segundo Habermas, o governo dos Estados Unidos, na ocasião da guerra contra o Iraque, em março de 2003, ignorou a organização mundial para dar prioridade aos próprios interesses nacionais. Para a continuidade do projeto kantiano, os EUA deveriam assumir realmente o papel de precursores no caminho de evolução do direito internacional no sentido de um “estado cosmopolita” (HABERMAS, 2006, 117-119).
Habermas diz que “a filosofia pode tentar elucidar, à luz da constelação existente e das normas válidas, alguns aspectos relativos a conceitos básicos do desenvolvimento do direito como um todo. Somente assim pode contribuir para a discussão sobre o futuro do projeto kantiano”. Habermas visa separar a ideia de um estado cosmopolita de sua imbricação conceitual com a figura concreta de uma república mundial (HABERMAS, 2006, p. 119).
No direito internacional clássico os Estados nacionais gozam de independência factual, podem agir autonomamente e seguem interesses nacionais. Podem formar coalizão com quem quiserem, com base no potencial de ameaça militar. O direito internacional estabelece regras e define qualificações para participação na coalizão. Um Estado soberano precisa controlar as fronteiras, manter a ordem, e não pode interferir nos assuntos internos dos outros Estados. “A igualdade de soberania é adquirida ao preço do reconhecimento da guerra como mecanismo de resolução de conflito”. A eficácia do direito depende da vontade soberana das partes que estabelecem acordos (HABERMAS, 2006, p. 120-121).
Para Schimitti (1979 citado por DURÃO, 2016, p. 382), a política demanda a possibilidade real de instauração do conflito. Em um mundo totalmente pacífico, sem chance de combate, não haveria a relação amigo/inimigo, e consequentemente não haveria política. Como a política exige a possibilidade real do inimigo, então deve haver sempre a pluralidade de estados. Mas caso os diferentes povos da Terra fossem reunidos em um império mundial que conseguisse exercer o monopólio da violência legal e afastasse até mesmo a possibilidade de guerra, não haveria mais a relação amigo/inimigo. Continuaria a existir uma civilização, uma cultura, etc., mas a política deixaria de existir (DURÃO, 2016, p. 382).
Segundo Habermas, para Kant, um mandamento da razão é a eliminação da guerra. A razão prática faz valer o veto da moral em relação a matar e a ser morto. Segundo Kant, o direito não é apenas um meio para manter a paz entre Estados, ele compreende a paz entre as nações enquanto paz jurídica. Kant insiste na correlação conceitual entre direito e manutenção da paz. Para Kant, a pacificação jurídica da sociedade não remonta à troca pragmática da obediência ao direito pela garantia de proteção do Estado. O direito cosmopolita não é desejável apenas por ter como consequência a paz, mas enquanto mandamento da razão prática. Para Kant, a instauração da paz duradoura constitui o fim último da doutrina do direito. A ideia de uma comunidade pacífica, mesmo que não amigável, é um princípio do direito, não apenas mandamento da moral. “O estado cosmopolita é o estado de paz permanente” (HABERMAS, 2006, p. 123).
Para Kant, o estabelecimento de uma constituição dos cidadãos depende do problema da relação externa do Estado conforme a lei. “Com a constituição cidadã, o direito internacional, que regula a relação entre Estados, precisa ser substituído pela constituição de uma comunidade de Estados”. Assim os Estados e seus cidadãos estabelecem uma relação conforme a lei. Segundo Kant, a liberdade de cada um, em conformidade com as exigências da lei, existe junto com a liberdade de todos os outros segundo uma lei universal. Para Kant, assim como Rousseau, as leis possuem uma universalidade pragmática, não apenas semântica, quando realizadas por meio de discussão e com publicidade, num procedimento includente de representantes do povo. A formação da opinião e da vontade dos envolvidos previne o despotismo das leis impostas pela autoridade. Do mesmo modo, as leis da comunidade internacional atenderão igualmente os interesses dos Estados quando expressarem a vontade unida, por meio de um procedimento includente (HABERMAS, 2006, p. 124-125).
Para concretizar a ideia de constituição cosmopolita, Kant segue a analogia com uma constituição cidadã, no sentido de um “Estado universal dos povos”. Kant se inspira nos atos revolucionários de seu tempo, que culminaram numa constituição. Nesse sentido, segundo Habermas, “só é possível imaginar uma comunidade internacional constituída como um republicanismo de todos os Estados, ou república mundial” (HABERMAS, 2006, p. 125).
Na ideia de um Estado cosmopolita, a positivação dos direitos humanos e da cidadania é transferida da esfera nacional para a internacional, pois os direitos humanos e a cidadania devem envolver relações internacionais. Segundo Kant, para tanto, se faz necessária uma reformulação do direito internacional clássico em direito cosmopolita, ou seja, direito de Estados em direito de indivíduos. Os cidadãos são sujeitos jurídicos de seus respectivos Estados, e também membros de uma entidade cosmopolita sob um dirigente. Os Estados soberanos que se unem em um corpo estatal podem tornar seus cidadãos de Estado em cidadãos cosmopolitas. “A estatização das relações internacionais significa que o direito penetra e transforma inteiramente o poder político, mesmo nas relações externas do Estado”. Segundo Habermas, Kant elabora a ideia de uma constitucionalização plena do direito internacional sob a forma de uma república mundial. Ele introduz concepção fraca de uma liga dos povos, e coloca sua esperança numa associação espontânea entre Estados pacifistas, que permanecem soberanos (HABERMAS, 2006, p. 126-127).
O projeto de liga dos povos está associado a ideia de uma federação de repúblicas que comerciam, repudiam guerras, e são moralmente obrigadas a submeter conflitos a um tribunal internacional de arbitragem. Com tal projeto de congresso permanente de Estados, Kant sustenta a ideia de um estado cosmopolita. Ele coloca sua esperança em três fatores: na natureza pacífica das repúblicas, na força pacificadora do livre comércio, e na função crítica de uma esfera pública mundial emergente (HABERMAS, 2006, p. 127-128).
Para Habermas, a ideia kantiana de desenvolvimento dos Estados de direito internacional em direção ao direito cosmopolita, não foi concebida de um modo suficientemente abstrato. Kant adotou de forma estreita a ideia de uma república mundial, ou Estado de povos, que diante da divisão assimétrica de poder e da complexidade de uma sociedade mundial, só poderia ser uma ideia ridicularizada. Habermas identifica que Kant considera “Estados” não apenas conforme conceitos jurídicos individualistas, enquanto associação de cidadãos livres e iguais, mas do ponto de vista ético-político, enquanto Estados nacionais, comunidades com mesma língua, religião e forma de vida. O povo perderia a sua autonomia se o Estado perdesse a soberania. Há uma contradição. Os cidadãos de uma república mundial teriam que pagar pela garantia de paz e liberdade, com a perda da liberdade enquanto membros de um povo organizado em Estado nacional (HABERMAS, 2006, p. 129-130).
Mas há uma premissa subjacente ao argumento. Kant baseia-se no exemplo da república francesa e na soberania estatal indivisível em termos de dogma. No Estado constitucional todo poder emana do povo. Mas o povo não governa diretamente, apenas através de órgãos especiais da legislação, do poder executivo e da jurisdição. O modelo dos Estados Unidos teria contribuído para Kant discernir melhor uma concepção de soberania popular e compreender que os povos de Estados independentes, que limitam sua soberania tendo em vista um governo federal, não precisam abrir mão de sua identidade cultural. Essa concepção não elimina totalmente a dúvida em relação a possibilidade de povos unirem-se em uma república mundial. Algo como um temor de uma normalização pode estar ligado ao entendimento de que numa sociedade mundial complexa, o direito e a lei só podem realizar-se com base num despotismo desalmado. Como alternativa à dominação mundial de um único governante, Kant parece buscar a saída na liga dos povos (HABERMAS, 2006, p. 130-131).
Kant encontra a ideia de república ou governo mundial por meio de uma analogia. Outrora os indivíduos uniram-se em uma coletividade na forma de Estado, sacrificando sua liberdade natural, assim também os Estados, sacrificando sua soberania, podem convergir numa república cosmopolita. Entretanto, essa analogia é enganosa. Os cidadãos já percorreram grande caminho de formação das liberdades garantidas juridicamente. Haveria risco se admitissem restrição do poder estatal que garante o estado de direito. O currículo a ser percorrido pelos estados e cidadãos, na transição do direito internacional clássico para um estado cosmopolita, não é análogo, mas complementar ao currículo que os cidadãos de Estado de direito democrático concluíram no processo de legalização do poder estatal (HABERMAS, 2006, p. 131-132).
De acordo com Kleingeld, Kant considera o Estado, idealmente concebido, como república, ou seja, a união de indivíduos sob leis comuns. Os indivíduos deixaram sua liberdade selvagem e sem lei, para encontrar uma liberdade na dependência das leis. No entanto, quando os Estados saem do estado internacional de natureza, existe uma restrição normativa sobre as formas como eles podem fazê-lo. Essa restrição é a autonomia política dos povos envolvidos, que compõem os estados, que idealmente concebidos, garantem suas esferas de liberdade. Coagir um povo para um Estado de Estados seria contrário à idéia básica do povo como uma união política autodeterminada e auto-legislativa (KLEINGELD, 2013, p. 54).
O conceito kantiano de República Mundial está sujeito a interpretações. Segundo Kleingeld, Anacharsis Cloots (1755-94), um ilustre jacobino que viveu na França, argumentou que a tradição do contrato social deveria defender o cosmopolitismo de um Estado mundial. Cloots defendeu o estabelecimento de uma república dos indivíduos unidos no mundo. Com base na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do cidadão, de 1789, e nas ideias centrais da teoria dos contratos sociais, para Cloots, a única teoria política consistente exige apenas um Estado, uma república mundial, em que todos os indivíduos são cidadãos, ou seja, há uma cidadania mundial (KLEINGELD, 2013, p. 40).
Kant menciona, na Paz Perpétua, um “Estado de povos” ou “República mundial” como uma ideia da razão. Mas esse termo não se refere a uma república universal clootsiana, que substitui todos os Estados existentes. Isso é claro pelo fato de que Kant não argumenta que os Estados devem se dissolver, mas que eles devem se unir numa república mundial. Eles devem renunciar à soberania externa, deixando o estado internacional de natureza (sem leis em comum), e submeterem-se às leis públicas desta instituição internacional, a república mundial. O termo “povos” no “Estado dos povos” (Völkerstaat), refere-se ao que Kant chama de “povos como Estados”, isto é, povos no sentido político de um grupo de indivíduos que estão unidos sob leis comuns, e então formam um Estado. “Povos” pode, portanto, ser usado de forma intercambiável com “Estados” e não se refere a uma nação no sentido nacionalista. O “Estado dos povos” pode ser usado como sinônimo de “Estado dos Estados”. Isso também está implícito na observação de Kant na Metafísica das Costumes, onde ele afirma ser o “direito dos povos3” (Völkerrecht) enganador e que o “direito dos Estados” (Staatenrecht) seria mais apropriado. Em outras palavras, o “Estado dos povos” ou “República mundial”, é um Estado federativo de Estados (KLEINGELD, 2013, p. 50).
Entretanto, Kant, defende o estabelecimento de uma liga voluntária de povos sem aplicação coerciva da lei. Comentadores afirmam que este argumento é um movimento não-kantiano. Kant argumenta, no ensaio em 1793, “Sobre a expressão corrente” que a idéia de um Estado de Estados é boa em teoria, mas irrealista na prática. Contra esta leitura padrão, Kleingeld gostaria de mostrar que a importância dos Estados quererem se unir a um Estado federativo de povos pode e deve ser interpretada de maneira diferente. Dado os outros compromissos teóricos de Kant, especialmente o seu compromisso com a autonomia política dos povos envolvidos, os Estados que não desejam se unir realmente constituem uma boa razão para ele defender o estabelecimento de uma liga voluntária (KLEINGELD, 2013, p. 51).
Kant não afirma que os Estados nunca querem se unir a uma república mundial federativa. Uma liga, em vez de um Estado de povos, é necessária para deixar o estado de natureza e se mover para a paz (para deter a belicosidade). Kant apresenta uma visão sobre como iniciar a saída do estado internacional de natureza, mas ele não diz que devemos rejeitar a ideia de uma república mundial como tal (KLEINGELD, 2013, p. 51).
Na verdade, Kant defende o Estado dos Estados como um ideal final, em passagens muitas vezes ignoradas. Na Paz Perpétua, ele expressa a esperança de que possa haver entre partes diferentes do mundo relações mútuas. Relações essas que podem tornar-se publicamente lícitas e contribuir para tornar a humanidade cada vez mais próxima de uma constituição cosmopolita. Segundo Kant, o direito exige uma constituição interna do Estado conforme princípios do direito, e a união deste Estado com outros estados, vizinhos ou distantes, tendo em vista uma solução de conflitos (KLEINGELD, 2013, p. 52).
Kant também diz, na Metafísica dos Costumes, que antes que os Estados deixem o estado de natureza, todos os direitos internacionais são provisórios e que o direito internacional pode chegar a deter e estabelecer uma verdadeira paz perpétua apenas em uma “união universal de Estados” [Staatenverein] (análogo a um povo se tornar Estado), um corpo que Kant aqui também chama de “Estado de povos” (Völkerstaat). Ele escreve que este ideal nunca será alcançado completamente, mas que pode e deve ser aproximado. Em outras palavras, o Estado federativo dos povos permanece como ideal (KLEINGELD, 2013, p. 52).
Quando Kant defende uma liga de Estados, há uma preocupação de que se um Estado de Estados for estabelecido por coasão aos Estados quanto à sua união, seria violada a autonomia política dos cidadãos dos Estados membros. Realmente, a verdade e a paz durável exigem que os Estados formem um Estado federativo de povos, em analogia aos indivíduos que formam um Estado, mas Kant nega que a maneira como esse objetivo deve ser alcançado é análoga à coação dos cidadãos, uns aos outros, para a formação de um Estado de povos. Isso justifica a sua ideia em começar com uma liga voluntária, embora seu objetivo final continue sendo uma "República mundial" federativa (KLEINGELD, 2013, p. 58).
Com base na teoria kantiana, pode-se imaginar uma constituição política destituída de caráter estatal, considerando a sociedade mundial descentralizada, e como sistema multidimensional. Uma organização mundial poderia cumprir, num plano supranacional, as funções vitais da garantia de paz e da política de direitos humanos, sem precisar tornar-se uma república mundial. No plano transnacional, grandes atores capazes de agir globalmente tratariam problemas de política interna mundial, como economia, ecologia, em conferências e sistemas de negociações constantes. No momento, exceto nos EUA, faltam atores adequados para negociação representativa. Nas diversas regiões do mundo, Estados nacionais teriam que se unir em regimes continentais, como a União Européia, para agir na política externa (HABERMAS, 2006, p.138-139).
A formação de compromisso entre as superpotências, para tratar de problemas de política interna mundial, serve para ilustrar uma alternativa conceitual à república mundial. Numa organização mundial, a ideia de uma política interna mundial, sem governo mundial, pode impor a paz e implementar os direitos humanos. Isso indica que “república mundial” ou “Estado dos povos” não representam as únicas instituições nas quais o projeto kantiano pode tomar forma. “O Estado constitucional ampliado globalmente não é o único a satisfazer as condições abstratas de um estado cosmopolita” (HABERMAS, 2006, p. 139).
De acordo com Habermas, a constitucionalização do direito internacional “só poderá satisfazer as condições de legitimação de um “estado cosmopolita” quando, seja no âmbito da ONU, ou em sistemas de negociação transnacional, houver respaldo em processos de formação da opinião e da vontade”. Processos que são institucionalizados em Estados constitucionais de direito, que possuem disposições jurídicas para inclusão equitativa dos cidadãos no processo legislador. Nas constituições supranacionais, onde não há essas disposições, existe o risco da afirmação hegemônica dos interesses dominantes sob o véu de leis apartidárias. Grandes potências atenderão às expectativas de cooperação e de justiça, num plano transnacional, com mais facilidade, ao se perceberem como membros de uma comunidade de Estados, e assim forem vistas pelas esferas públicas nacionais nas quais têm de se legitimar (HABERMAS, 2006, p. 145).
Segundo Zolo, embora exigente do ponto de vista normativo, Habermas não constrói seu cosmopolitismo como um projeto de algum modo alternativo às práticas internacionais dominantes na atualidade, ele o apresenta como um desenvolvimento natural dessas práticas (ZOLO, 2005, p. 58).
A estrutura hierárquica e não liberal das Nações Unidas é interpretada por Habermas como uma nova forma de pacifismo kantiano. Habermas baseia-se na realização de uma ordem internacional justa e pacífica, sendo necessário confiar no altruísmo das políticas internacionais das grandes potências. Este é um ponto de vista controvertido e pouco respaldado pela história política do nosso século e também pouco compatível com a filosofia política e a filosofia do direito habermasiana. Conforme Habermas, a estrutura cosmopolita do mundo deve ser concebida como uma expansão da instância da soberania popular, que está na base do Estado democrático de direito. É difícil entender como essa expansão pode se realizar a partir de instituições como as Nações Unidas. Além disso, é pouco realista pensar a tutela das liberdades fundamentais como garantidas em âmbito internacional, a favor dos cidadãos de um Estado, se essa tutela não for garantida por instituições democráticas internas (ZOLO, 2005, p. 59).
De acordo com Zolo, a ideia de Habermas segundo a qual os sujeitos do direito internacional não são os Estados, mas os indivíduos, enquanto pessoas morais, é uma ideia inicialmente proposta por Kant. Mas Habermas radicaliza a proposta kantiana ao sustentar a tese de uma subjetividade internacional dos indivíduos que exclui a mediação dos Estados nacionais, inclusive na forma federalista proposta por Kant. A dificuldade parece residir na relação entre o individualismo democrático radical, dessa formulação do direito cosmopolita, e a apologia das instituições internacionais atuais, realizada por Habermas (ZOLO, 2005, p. 60).
Habermas, segundo Zolo, tem simpatia pelos fenômenos da globalização econômica e comunicativa, fenômenos que são interpretados como aspectos de um processo evolutivo de secularização e modernização, que é universal e não pode ser detido. Para Habermas, parece que a modernidade impôs modelos de racionalidade para todas as civilizações. E, apesar dos desequilíbrios e desigualdades, a modernidade possui vantagens. Ela gera uma esfera pública mundial e, a longo prazo, uma democracia transnacional (ZOLO, 2005, p. 61-62).
O cosmopolitismo e o pacifismo habermasiano parecem inspirados na ideia de uma ordem política que visa a paz universal, a justiça distributiva, o desenvolvimento econômico, a proteção internacional dos direitos, o equilíbrio ecológico. Hedley Bull levantou a hipótese de que em nível internacional é preferível apostar numa ordem política mínima, protegida por poderes limitados e pouco intervencionistas, com respeito à autonomia e integridade das diversas culturas (ZOLO, 2005, p.63).
Em situações de elevada complexidade e de turbulência das variáveis ambientais, é menos arriscado conviver com um certo grau de desordem, em lugar de impor iluministicamente uma ordem perfeita (ZOLO, 2005, p.64).
Habermas afirma que podemos considerar a orientação kantiana de uma constituição de cidadania mundial, mas para isso são necessários contornos abstratos. A garantia de paz, assegurada pelo direito constitucional é legitimada pelos cidadãos. Na filosofia kantiana, o direito internacional (direito de Estados), passa a ser entendido como “direito de cidadãos do mundo”, mas Kant mantém a ideia de república mundial, rejeitada por ser utópica. Na sociedade contemporânea, os cidadãos do Estado são também membros de uma sociedade mundial. Ao lado dos cidadãos, os Estados nacionais formariam o segundo sujeito constituinte da comunidade mundial. Para Habermas, a União Européia, integrada em nível de organização supranacional, pactuada internamente, é o melhor exemplo para lidar com os desafios da complexa sociedade. No âmbito europeu, o cidadão deve formar seu juízo e decidir politicamente como cidadão da União ou como membro de um Estado.
Com a ampliação cosmopolita do direito, surge a pergunta acerca da cidadania cosmopolita, se os cidadãos e estados podem se auto legislar e de que modo. Se os cidadãos pertencem a um estado universal da humanidade, de alguma forma todos teriam que co-legislar o direito cosmopolita. Isso não fica claro na teoria kantiana (KLEINGELD, 2013, p. 86).
Com um apelo à história recente é possível perceber que tais direitos cada vez mais são codificados e reconhecidos. Muitos dos requisitos do direito cosmopolita, identificados por Kant, foram de fato adotados explicitamente em documentos e instituições jurídicas internacionais.
O direito dos povos à autodeterminação, conforme articulado na Carta das Nações Unidas e em resoluções da Assembléia Geral da ONU, proíbe a conquista colonial e a ocupação de territórios de outros povos. Além disso, o status dos indivíduos "como pessoas" (e não apenas como sujeitos de estados particulares) foi fortalecido de forma significativa, especialmente, mas não apenas através do direito dos direitos humanos. Um exemplo proeminente é a Convenção de Genebra, de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados e ao Protocolo de 1967, que declara os direitos dos refugiados, incluindo o direito a não repulsão (KLEINGELD, 2013, p. 88).
Em relação à cidadania cosmopolita, na teoria de Kant, os estados são aqueles que entram em acordos sobre direito cosmopolita e que aprovam as leis que afetam os direitos cosmopolitas dos indivíduos. Em repúblicas, no sentido kantiano, os indivíduos co-legislam indiretamente, elegendo representantes. Aqueles que determinam as leis são representantes eleitos e responsáveis perante seus eleitores. Assim, os cidadãos individuais podem, ao mesmo tempo, ser concebidos como cidadãos mundiais que co-legislam indiretamente, através de representantes que participam da formação e administração de instituições a nível global (KLEINGELD, 2013, p. 90).
Além disso, os indivíduos podem exercer a cidadania cosmopolita através da participação em uma rede global de esferas públicas sobrepostas e organizações internacionais. Kant vê uma estreita ligação entre o exercício da cidadania e a participação na deliberação pública. Hoje, os meios de comunicação mais avançados fornecem as condições materiais para uma esfera pública global. Existe uma interação política, científica e cultural em todo o mundo, desde grupos de internet até conferências em grande escala, como das Nações Unidas. Isso também faz parte da cidadania mundial, na medida em que diz respeito à deliberação sobre questões de preocupação global e sobre a forma adequada de institucionalizar a regulamentação a nível global (KLEINGELD, 2013, p. 90).
Segundo Habermas, as chances para a promoção de um estado de cidadania mundial, cosmopolita, não são piores do que em 1945, após a catástrofe da 2ª Guerra Mundial. Não que as atuais chances sejam boas. O projeto kantiano entrou na agenda política duzentos anos após sua confecção, isto é, no momento em que foi criada a Liga das Nações4. A ideia de uma ordem de cidadania mundial só assumiu forma institucional quando da fundação das Nações Unidas. Desde o início dos anos 90 as Nações Unidas têm importante peso político e expressão, em meio às controvérsias sobre política mundial (HABERMAS, 2007, p. 348).
Kant abandona a representação republicana segundo a qual a soberania interna do povo reflete-se na soberania externa do Estado. Uma autodeterminação dos cidadãos que se reflete numa auto-afirmação diplomática, e até militar, da própria forma de vida. Para Kant, a força de vontade democrática enraizada no etos de um povo, que constitui poder, não significa um confinamento da força racional do poder de uma constituição democrática a um Estado nacional. Os princípios constitucionais de um Estado nacional têm sentido universalista, que aponta para além das fronteiras nacionais (HABERMAS, 2007, p. 350).
O cruzamento da ideia de paz com a ideia de estado de liberdades garantidas juridicamente, e o “desligamento da autodeterminação democrática interna de uma autodeterminação belicista voltada para o exterior”, abre caminho para projetar a constituição cidadã (engendrada pela Revolução Francesa e Americana, na época de Kant) do plano nacional ao plano global. Isso abre espaço para o conceito de constitucionalização dos direitos das gentes. Uma inovação que reside principalmente na reformulação do direito internacional, tido como um direito de Estados, em “direito de cidadãos do mundo”. Os cidadãos do Estado nacional agora são também membros de uma sociedade mundial organizada politicamente (HABERMAS, 2007, p. 350).
A constitucionalização dos direitos das nações Kant entende como traslado de relações internacionais para relações intra-estatais. Ele mantém a ideia de uma república mundial, mesmo quando dá passo rumo a um Estado de povos. Kant propõe como sucedâneo uma federação de povos, concepção de associação voluntária de Estados desejosos de paz, que para Habermas parece fraca (HABERMAS, 2007, p. 351).
Segundo Habermas, Kant representa a situação de uma cidadania mundial através da figura institucional de um Estado devido a uma dificuldade conceitual, ante o entrelaçamento complexo das organizações internacionais. O republicanismo na França mostra força racionalizadora da juridificação do poder político, apoiado na vontade popular. O contrato social de Rousseau, sugere a unidade do Estado e da constituição, já que ambos procedem da vontade do povo. Kant está situado nessa tradição, ele “passa por alto uma tradição constitucional concorrente que desconhece tal entrelaçamento conceitual entre Estado e constituição”. Na representação liberal, a constituição não pode ter nenhuma função de constituição da dominação, ela tem apenas uma função de limitação do poder. Desde o início da modernidade toma corpo a limitação e o balanceamento dos poderes dominantes, da nobreza, do clero, e das cidades. O liberalismo elabora essa ideia no sentido de uma divisão de poderes do Estado de direito. Uma constituição política assim torna possível uma distinção conceitual entre constituição, poder do Estado e cidadania (HABERMAS, 2007, p. 352).
Uma constituição do tipo liberal abre a perspectiva conceitual de uma constitucionalização não-estatal do direito das gentes na figura de uma sociedade mundial sem governo mundial, organizada de forma política (HABERMAS, 2007, p. 353).
Com a passagem do direito das gentes, centrado em Estados, para o direito de “cidadãos do mundo” o espaço de ação dos atores estatais é circunscrito, sem que a característica de sujeitos de uma ordem jurídica que abarca o mundo seja marginalizada pelos “sujeitos individuais do direito de cidadãos do mundo”. Estados estruturados de forma republicana podem continuar sendo, ao lado dos “cidadãos do mundo”, sujeitos de uma constituição mundial sem núcleo estatal (HABERMAS, 2007, p. 354).
A institucionalização do direito das gentes é um processo interpretado como portado por Estados nacionais e uniões de Estados regionais. Esse processo é impulsionado por contratos e organizações internacionais, e por outro lado, como reação aos impulsos sistêmicos e aos efeitos colaterais indesejados. Uma mistura de agir intencional e espontaneidade que pode ser percebida no exemplo da globalização econômica, que é resultado da vontade política, e na construção e reconstrução de um regime econômico global que representa uma resposta à necessidade de regulação e de coordenação, gerada pela globalização. Quando o controle político se liga ao crescimento sistêmico, faz supor a necessidade de graus de constitucionalização. Para Habermas, a União Européia é o melhor exemplo na atualidade. Mas ainda não se sabe se a União Européia vai se desenvolver no sentido de um Estado de nacionalidades, estruturado de modo federalista, ou se continuará com uma integração no nível de uma organização supranacional, pactuada internacionalmente, sem assumir qualidades estatais (HABERMAS, 2007, p. 354-355).
Para Habermas, a ideia kantiana de uma situação de cidadania cosmopolita antevê a realidade, mas já mantém algum contato com ela. Habermas entende a sociedade mundial como um sistema de vários níveis, estruturado politicamente, que poderia viabilizar uma política interna mundial, principalmente nas áreas da economia e de meio ambiente. Na sociedade de “cidadãos do mundo”, constitucionalizada, a arena supranacional é ocupada por apenas um ator. A comunidade internacional projeta sua figura institucional numa organização mundial, que poderia agir em campos políticos, sem assumir caráter estatal (HABERMAS, 2007, p. 359).
A Organização das Nações Unidas preenche duas funções fundamentais que consistem em preservar a segurança internacional e implementar os direitos humanos globalmente, mas não tem autonomia para determinar ou ampliar suas próprias competências. Sua iminente reforma não deve visar apenas fortalecer instituições nucleares, mas desentrelaçar um emaranhado de organizações que a compõem (HABERMAS, 2007, p. 359-360).
Para Habermas, numa organização mundial, a formação da opinião e da vontade deve estar conectada aos fluxos de comunicação dos parlamentos nacionais, estar aberta à participação de Organizações Não-Governamentais, e exposta à observação de uma esfera pública mundial. Porém, mesmo uma organização mundial reformada compõe-se de Estados nacionais, não de cidadãos do mundo. Atores coletivos não podem se dissolver, mediante o direito internacional das gentes. Se a organização mundial pretende portar um pacifismo legal, precisa estar apoiada em centros de poder organizados na forma de Estados. Então os Estados continuam sendo, ao lado dos indivíduos, sujeitos de um “direito de povos” transmutado em “direito de cidadãos do mundo”. Assim, a comunidade internacional pode proporcionar a proteção dos direitos fundamentais, mesmo se isso consistir em uma posição contra o seu próprio governo (HABERMAS, 2007, p. 360).
Por meio dos pactos dos direitos humanos, os cidadãos do mundo contam com uma proteção que vai além dos direitos fundamentais liberais e políticos, ela se estende às condições de vida materiais autorizadas. Os sobrecarregados e sofredores do mundo podem fazer uso fático dos direitos garantidos formalmente (HABERMAS, 2007, p. 361).
Na sua obra Sobre a constituição da Europa, elaborada em 2011, Habermas reitera seus argumentos acerca dos dois modos de participação dos cidadãos na formação de uma comunidade política superior. Eles têm papel como cidadãos da União, e como membros da população de um Estado. A constituição da União Européia se sustenta num pilar coletivo, mas preserva também um caráter individualista. A União, como outras ordens jurídicas modernas, se baseia nos direitos subjetivos dos cidadãos. Seria mais conseqüente reconhecer como o outro sujeito do processo constituinte o próprio povo, e não os Estados membros (HABERMAS, 2012, p. 72).
São as mesmas pessoas que participam no processo constituinte simultaneamente nos papéis de cidadãos da União e dos Estados membros. Os cidadãos constituintes precisam estar conscientes de que nos dois caminhos de legitimação percorridos pelo Parlamento e pelo Conselho adota-se alguma perspectiva de justiça, ou a do cidadão europeu, ou a de um membro do Estado nacional. A orientação ao bem comum que há num Estado nacional, no âmbito europeu se transforma numa generalização de interesses particulares exclusivos de um povo, que pode entrar em conflito com a generalização de interesses em comum a toda Europa e capaz de atender às expectativas dos cidadãos da União. Assim, ambos os papéis do sujeito constituinte ganham significado institucional. No âmbito europeu, o cidadão deve formar seu juízo e decidir politicamente como cidadão da União ou também como membro de um Estado (HABERMAS, 2012, p. 73-74).
Para Habermas, “uma Assembléia Geral de representantes dos cidadãos e dos Estados asseguraria que as perspectivas concorrentes sobre a justiça fossem levadas em consideração pelos cidadãos do mundo, por um lado, e pelos cidadãos do Estado, por outro lado, alcançando equilíbrio”. Os cidadãos do mundo exigem igualdade distributiva e de tratamento. Os cidadãos dos Estados reclamam pela conservação de suas liberdades e conservação do modelo de Estado de bem estar social. “O Parlamento mundial teria que considerar ambas as perspectivas, sobretudo como intérprete da Carta das Nações Unidas, capaz de aperfeiçoar questões jurídicas” (HABERMAS, 2012, p. 95-96).
Ao lado de suas competências no interior da estrutura organizacional das Nações Unidas (sobretudo na constituição e no controle do Conselho de Segurança e das Cortes globais), uma Assembléia Geral renovada teria a tarefa de criar padrões obrigatórios mínimos para a criação da Carta, dos pactos dos direitos humanos e do direito das gentes (HABERMAS, 2012, p. 96).
Estes são instrumentos, para entre outras coisas, formar base da política dos direitos humanos, auxiliar no comprometimento dos Estados nacionais com a concretização dos direitos fundamentais, impor limites normativos às decisões de política interna mundial no âmbito transnacional (HABERMAS, 2012, p. 96).
Para Habermas, a afirmação dos direitos humanos e da democracia, no plano internacional, só é possível através da atualização do projeto cosmopolita kantiano de constitucionalização do direito internacional (SOUSA, 2016, p.158).
O discurso pacifico de legitimação da democracia e dos direitos humanos gera desconfiança ao ser conduzido pelo poder ocidental. Quando a opinião pública é dominada pela ideologia dominante, através da mídia, o sujeito é um mero consumidor, e não real participante do jogo político. Com isso é impossível um ponto de vista moral intersubjetivamente válido, com caráter universalista. A neutralidade do ponto de vista moral, em Habermas, parece a expressão de um etnocentrismo ou eurocentrismo disfarçado em valores universalistas (SOUSA, 2016, p. 159).
Para Sousa, o projeto cosmopolita habermasiano é idealista, porque apesar da análise acurada da realidade contemporânea, acaba por descambar num dever ser inatingível no momento histórico presente. É também um projeto ideológico, na medida em que justifica o uso da força internacional em nome da defesa dos direitos humanos, e da democracia, disfarçando os reais interesses das potências internacionais no jogo político (SOUSA, 2016, p. 160).
Habermas defende um sistema de governo global em vários níveis. Um parlamento mundial, a ampliação da estrutura jurídica mundial e a reorganização do Conselho de Segurança. Propostas que não parecem viáveis no sentido da construção de uma democracia mundial. A proposta de Habermas carrega consigo o status quo do poder ocidental imperial no âmbito internacional. Com a institucionalização de um direito cosmopolita, o mundo parece dominado pelas potências capitalistas que impõem seus interesses aos Estados nacionais mais fracos, através de consenso forjado entre elas. O projeto de Habermas converte a globalização no melhor caminho para a unidade do gênero humano, para a realização da paz e da justiça universal. Contudo, temos uma crescente concentração do poder político internacional num grupo de grandes potências lideradas pelos Estados Unidos, os países divididos em pobres e ricos, guerras praticadas pelas grandes potências, e alteração do equilíbrio ecológico do planeta (SOUSA, 2016, p. 163).
Na contemporaneidade, a teoria kantiana acerca da cidadania mundial se reflete nas grandes redes de comunicação mundial, onde cada vez mais assuntos internacionais são debatidos. Kant identifica a ligação do exercício da cidadania com a participação na deliberação pública. A filosofia de Kant sempre esteve voltada para a paz mundial. Para Habermas, podemos considerar a ideia kantiana de cidadania mundial, mas são necessários contornos abstratos. Segundo Kant, a paz é garantida pela constituição, que por sua vez é legitimada pelos cidadãos. Mas os princípios da constituição têm sentido universalista, ou seja, vão além das fronteiras nacionais. As operações de cruzamento da ideia de paz abrem caminho para projetar a constituição cidadã no plano global. Com isso há uma reformulação do direito internacional que passa a ser entendido como “direito de cidadãos do mundo”. Mas Kant afirma a ideia de uma república mundial, uma concepção fraca de associação de Estados desejosos de paz, segundo Habermas.
O direito das gentes, centrado em Estados, é impulsionado por contratos e organizações internacionais, mas também como reação aos impulsos sistêmicos, principalmente da globalização econômica. Para Habermas, a União Européia é o melhor exemplo para o controle político ligado ao crescimento sistêmico. A proibição de intervenções é inerente ao direito das gentes. O Estado deve conservar a forma de vida e identidade da coletividade política. Na sociedade mundial interdependente se faz necessária a cooperação de outros Estados para garantir a segurança e bem estar social. A comunidade internacional pode transferir a uma organização mundial o poder de impor sansões, sem conferir a ela o monopólio global do poder. As Nações Unidas têm função de preservar a segurança nacional e implementar a política dos direitos humanos. O poder de decisão quanto a intervenções militares é cedido ao Conselho de Segurança.
Para Habermas, é possível soletrar a ideia de cidadania cosmopolita. A sociedade mundial poderia viabilizar uma política interna mundial, especialmente nos planos econômico e de meio ambiente. A formação da opinião e da vontade, da organização mundial, deve ser ligada aos fluxos de comunicação dos parlamentos nacionais, estar aberta à participação de ONGs, e exposta à observação de uma esfera pública mundial. Mas a organização mundial precisa estar apoiada em centros de poder organizados na forma de estados. Os Estados continuam sendo, ao lado dos indivíduos, sujeitos de um “direito dos povos” transmutado em “direito de cidadãos do mundo”.
Segundo Habermas, há dois modos de participação dos cidadãos na formação de uma comunidade política superior. Eles têm papel de cidadãos da União, e de membros da população de um Estado. A constituição democrática da sociedade mundial exige a constituição de uma comunidade de cidadãos do mundo. A cooperação entre Estados e cidadãos, desenvolvida a partir da União Européia, mostra que se faz necessária uma comunidade cosmopolita em complementação a uma comunidade internacional de Estados. Não haveria uma república mundial, mas uma associação supraestatal formada por cidadãos e Estados.
Referências
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Notas
Autor notes