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Diferença e oposição: uma controvérsia

Difference and opposition: a controversy

André Dias de Andrade 1
Universidade de São Paulo, Brasil

Diferença e oposição: uma controvérsia

Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 358-375, 2021

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 22 Fevereiro 2021

Aprovação: 09 Maio 2021

Resumo: O trabalho cumpre dois propósitos. Tem como objetivo amplo relativizar a divisão entre o estruturalismo e sua pretensa superação ou prosseguimento, com o pós-estruturalismo. O faz a partir de um procedimento específico: o modo como Saussure desenvolve e antecede teses caras a filosofia da diferença de Deleuze. Inicia pela crítica que Deleuze endereça ao estruturalismo do primeiro como incapaz de apreender tanto a diferenciação quanto a organização das diversas formas de experiência. O foco em Saussure se deve ao fato de que Deleuze considera este um descobridor da diferença no âmbito da linguagem, embora insista em lê-la em termos opositivos e, portanto, negativos. Um “descobridor encobridor”, pode-se dizer, que traz à luz a dinâmica diferencial do sentido e, ao mesmo tempo, encobre-a pela imagem tradicional do pensamento que é subordinada à identidade. Em seguida, ficará claro como esta leitura não considera as verdadeiras posições da filosofia da linguagem elaborada por Saussure e que esta deve em muito ser afastada de alguns dos seus considerados herdeiros e seguidores (consideramos o caso exemplar de Trubetskoy, tal como o fizera o próprio Deleuze noutro sentido). A conclusão é que a teoria do valor voltada ao sistema linguístico antecede a teoria diferencial das faculdades que Deleuze emprega a compreender cada das estruturas de nossa existência.

Palavras-chave: Estruturalismo, Pós-estruturalismo, Saussure, Deleuze, Signo.

Abstract: The work fulfill two purposes. The broad objective is to relativize the division between structuralism and its alleged overcoming or continuation, with post-structuralism. This takes place within a specific procedure: the way in which Saussure develops and precedes importante theses to Deleuze's philosophy of difference. It begins with the critic that Deleuze addresses to the structuralism of the former, as unable to grasp both the differentiation and the organization of the various forms of experience. The focus on Saussure is due to the fact that Deleuze considers him a discoverer of the difference in the realm of language, although he insists on reading it in oppositive and, therefore, negative terms. A “discoverer that covers-up” what he finds, it can be said, that brings to light the differential dynamics of meaning and, at the same time, covers it with the traditional image of thought that is subordinated to identity. Next, it will be clear how this reading does not consider the true positions of the philosophy of language elaborated by Saussure, and that it must be far removed from some of his reputable heirs and followers (we consider the notorious case of Trubetskoy, as Deleuze himself did in another sense). The conclusion is that the theory of value focused on the linguistic system precedes the differential theory of the faculties that Deleuze employs to understand each of the structures of our existence.

Keywords: Structuralism, Post-Structuralism, Saussure, Deleuze, Sign.

Introdução

Partimos de uma possível polêmica entre as noções de “diferença” e de “valor”, tão caras à filosofia e análise estrutural dominantes no século 20. Antes de sua tese, ainda em 1967, Deleuze questiona o que devemos “reconhecer” na abordagem estruturalista. Reconhecer em que consiste o estruturalismo e seus avanços, como fora antes necessário fazer a questão “o que é o existencialismo? ”. Trata-se de uma leitura massiva, que congrega tanto Saussure, Jakobson e Lévi-Strauss, quanto Althusser, Foucault e Lacan, buscando o que pode haver de comum a um movimento tão plural e carente de unidade. Na impossibilidade de responder positivamente a respeito de seu objeto, a estrutura, Deleuze opta então pela pergunta “em que se deve reconhecer o estruturalismo? ” (DELEUZE, 2002, p. 238).

O fracasso anunciado em reunir tantas perspectivas sob uma mesma alcunha provém da dificuldade mesma em se falar de um pensamento dito “estruturalista” ou em propor que a “estrutura” é o objeto comum a uma série de estudos diversos. Ao invés de restituir uma unidade perdida ao movimento é preciso reconhecer primeiramente o inexistência do estruturalismo como teoria unitária. Não obstante, o corpus de tentativas de compreender a linguagem, a subjetividade, a sociedade, dada a diversidade tão heterogênea de pensadores e métodos, permite dizer por onde e quando ele “deve ser reconhecido”.

Deleuze dará sua própria resposta dois anos depois em Lógica do sentido (DELEUZE, 1969, p.88): trata-se da noção de acontecimento, e “os autores que recentemente se acostumou a chamar de estruturalistas não tem outro ponto comum” e “essencial” do que descobrir o caráter contingente ou evencial do sentido (numa possível tradução do événementielle). Para uma leitura massiva a resposta é bastante particular, já que afirmar que o verdadeiro espírito do estruturalismo estaria numa descrição justa do acontecimento, como ele o faz, é retirar, na mesma feita, o seu caráter metodológico que num primeiro momento parecia consolidar todo seu rigor. Como prossegue, isto se deve ao fato de que partindo da estrutura apreendemos apenas um “efeito de superfície e de posição, produzido pela circulação do compartimento vazio nas séries da estrutura” (DELEUZE, 1969, p.88). Um verdadeiro efeito de si mesmo, efeito imanente ou de superfície – que é lido pelo filósofo como acontecimento. À parte essa caracterização muito mais deleuziana do que estruturalista é possível perguntar em que consiste o ganho, visto que a estrutura nada mais revela do que o acontecimento irredutível que, aliás, cada vez mais parece ser o sentido das investigações do próprio Deleuze.

Se uma das descobertas iniciais do estruturalismo é que o indivíduo é sobredeterminado pela estrutura, que a posição sujeito é uma das possíveis a ocuparem a dinâmica das relações do todo, outra que mais interessa a Deleuze é que a estrutura é sobredeterminada pelo acontecimento, que o seu sentido é a da ocorrência irredutível de uma certa configuração, incapaz de ser reproduzida sem se alterar. Assim, o estruturalismo já podia prever o que é uma singularidade pré-individual, a da diferença, como única capaz de ser repetida em todos os arranjos mutáveis de uma estrutura; e tudo o que o método estrutural permitia avançar em termos de rigor e de exatidão, desde a análise social (com Lévi-Strauss) até as matemáticas (com o grupo de Bourbaki), estava na sua descoberta colateral: a da dinâmica pré-individual e evencial de todo sentido.

As lentes utilizadas para um comentário tão parcial quanto filosófico como este podem motivar diversos exames à parte2. O corte que propomos aqui é mais estrito embora igualmente interessado, a fim de retomar um diálogo possível entre esta leitura e teses capitais de Saussure. Obviamente certas recuperações são inevitáveis; mas pode ser que o voo panorâmico a seguir possa ser compensado pelas posições que este ensaio tomará ao longo de seu desenvolvimento.

O acontecimento

Para um teórico do acontecimento o sucesso do estruturalismo está em seu fracasso. Em sua impossibilidade de verter-se em uma filosofia transcendental, pois quando ele descobre a impossibilidade de uma estrutura geral que funcione como arquétipo de todas as outras, bem como a necessidade de se considerar o objeto “estrutura” sempre como um fato e um ponto de vista a respeito da estrutura – ele próprio estrutural –, toda pretensão universalista do método cai sob o jugo de um tipo empirismo que ele descobre contra sua vontade. Certamente que não se volta ao irracional, à impossibilidade do fato dotado de sentido, mas a um empirismo “superior”, “transcendental”, nas palavras do próprio Deleuze (DELEUZE, 1968, p. 80), que reconduz o transcendental a uma filosofia do acontecimento e não da essência. Ele fornece a justa medida e procedência do transcendental a partir dos encontros e dos arranjos estruturais. “O empirismo é o misticismo do conceito, e seu matematismo. Mas ele trata precisamente o conceito como o objeto de um encontro, como um aqui-agora, ou antes como um Erewhon de onde saem, inesgotáveis, os ‘aqui’ e os ‘agora’ sempre novos, distribuídos de outro modo” (DELEUZE, 1968, p. 4). Esta citação se coaduna aquela do ensaio supracitado e publicado no ano anterior à sua tese, onde lemos que “o estruturalismo não é separável de uma nova filosofia transcendental, na qual os lugares prevalecem sobre aquilo que os preenche” (DELEUZE, 2002, p. 244). Assim, o valor assinalável não depende do conteúdo (eu, você, outrem), mas do lugar que se ocupa na estrutura (pai, filho, patrão, empregado etc.), o que permite recolocar a questão do valor no seio da experiência e, nesta feita, fazer do empirismo a justa filosofia transcendental. Numa expressão: apreender o transcendental como acontecimento.

Parece difícil imaginar o estruturalismo como uma espécie de genealogia involuntária da transcendental. Mas quando Deleuze considera que ele descobre os “efeitos de superfície” como a condição verdadeiramente imanente de todo conhecimento, parece bem disso que se trata. Isto porque em vez da sedutora ideia de encontrar um princípio universal deslocando-se do conteúdo deveras empírico dos fatos para a organização e a forma da estrutura, fora possível ver como todo sentido depende das condições nas quais ele emerge, mas sem jamais sejam elas mesmas maiores do que aquilo que elas condicionam. Sem que elas sejam formalmente ou imediatamente transcendentais, mas apenas num novo mote, que é o do empirismo justamente considerado. Isso é crucial em sua filosofia: como na água de um lago, que se modifica por efeitos que vemos em sua superfície, sem deixar sua condição imanente, o sentido não é nem extrínseco, nem intrínseco, mas estrutural (DELEUZE, 2002, p. 243). Podemos também pensar também em efeitos de linguagem, de óptica, de posição, como se pensa em efeitos de superfície. Eles não se descolam da estrutura da qual emergem, pois dependem da organização, e em si mesmos são elementos não significantes. Não há superfície senão pelos efeitos que vemos nela, mas ela mesma não age como uma causa extrínseca, e sim imanente, da qual o efeito é justamente a medida e o limite do seu sentido.

O estruturalismo surge como a doutrina dos efeitos de superfície. Por isso supera a falsa distinção entre gênese e estrutura, “o estruturalismo parece ser mesmo o único meio pelo qual o método genético pode realizar suas ambições” (DELEUZE, 1968, p. 237), a partir do qual “não se pode opor o genético ao estrutural, nem o tempo à estrutura” (DELEUZE, 2002, p. 252). Bem compreendido, “não há oposição entre estrutura e acontecimento, estrutura e sentido” (DELEUZE, 1968, p. 247), o que traz à tona a verdadeira oposição que se deve enfrentar e explicar em filosofia: aquela entre a i) ideia (na qual se dá simultaneamente a tríplice estrutura-acontecimento-sentido) e sua ii) representação (deslocada das condições imanentes da qual provém). O estruturalismo em sua versão transcendental não seria mais que um exemplo derivado desta oposição, em vez de expressar sua significação própria, capaz de compreender toda sorte de experiência em seu caráter estrutural ou em sua função simbólica; logo, como proveniente de um jogo mais arraigado e obscuro entre forças que permite, em seguida, representa-las sem que jamais se cometa a ilusão de separar o efeito da superfície, o sentido da estrutura e, por sua vez, a gênese da estrutura.

Ora, nada mais justo para desfazer o falso sentido da estrutura; mas também aquilo que lhe retira qualquer ambição universal. É a imagem do pensamento aqui em jogo. Pois o universal passa a ser um efeito dentre outros: efeito de um jogo que se joga a tanto tempo que esquecemos de suas peças, de seus valores e de seus papéis dentro de nossa visão mais arraigada de mundo. Internalizamos as regras e não aquilo que permite jogar com o transcendental e, na mesma feita, subverte-lo – sua condição empírica. O transcendental (re)aparece então aqui como fato, como o acontecimento crucial que retomamos e do qual padecemos até hoje.

Reservas feitas à esta leitura basilar e bastante interessada do estruturalismo, não queremos considerar sua leitura panorâmica, mas apenas aquela que se endereça a Saussure e, principalmente, realizada nos textos deleuzianos de formação. Pois nos parece que Saussure inaugura uma teoria do sentido que subverte à sua maneira a filosofia transcendental. Ele retoma a leitura que Deleuze faz dele e a ultrapassa em suas consequências. Uma leitura que, ademais, é cada vez mais virulenta. Pois passando dos textos formadores – Diferença e Repetição e Lógica do sentido – até a parceria com Guattari – sobretudo em O Anti-Édipo e Mil Platôs – a positividade ainda considerada das teses fundantes do estruturalismo é posta em xeque. Para além daquilo que se pôde “reconhecer” em 1967, passa-se ao descrédito total pela recusa da noção de “significante”, já que ela passa a atuar como origem inesperada de toda transcendência (o significante é “despótico” em sua natureza; cf. DELEUZE; GUATTARI, 1972, p. 245 ss). Nesta crítica o estruturalismo não consegue escapar da sombra da transcendência ao sobrevalorizar a ideia de significante e de relações laterais entre significantes. O significante é sempre despótico, e reintroduz a servidão quando mais parecia nos deixar livres da figura da consciência, como último arauto da falta, da lei e da servidão do inconsciente a uma dimensão transcendente. O que indica uma mudança de opinião com relação aos primeiros textos, mas nos quais é preciso se deter para jogar luz a possível fecundidade da relação entre Deleuze e Saussure. Logo, é preciso partir desta dupla delimitação: da primeira crítica deleuziana, por um lado; do estruturalismo de viés “saussureano”, por outro.

Já dissemos que existe uma noção positiva de diferença em gestação na teoria do valor proposta por Saussure. Assim, seu vínculo a teoria do acontecimento de Deleuze só poderá ser estabelecido pela diferença à qual ambas fazem menção. Seja a diferença “estrutural” ou aquela “evencial”, este parece configurar o ponto de contato entre elas.

Se o pensamento possui uma natureza problemática, como adverte Deleuze, a filosofia consiste em apreender esta origem problemática de toda ideia. E isso porque uma “ideia” é “feita de relações recíprocas entre elementos diferenciais” (DELEUZE, 1968, p. 262), de modo que são tais determinações recíprocas que bastam para determiná-las completamente no ínterim do sistema ou da estrutura, não havendo a necessidade de nenhum elemento terceiro que os apreenda ou lhes estabeleça o valor. Lembremos que o sujeito – assim como o mundo em-si ou a “realidade” – são posições na estrutura e produtos da estrutura, não o contrário. Não há elemento exterior ou totalizante do sistema, a partir do qual o valor de seus elementos possa ser completamente atribuído sem a sua contingência fundamental que se dá nas suas relações de reciprocidade. Também vale lembrar que o sentido da estrutura está em seu acontecimento, não numa essência. Assim, os elementos não são positivos e, então, relacionais, mas positivos porque relacionais. A relação passa a ser um elemento positivo e atributivo do sentido e, dentro disso, da identidade e das posições-sujeito e objeto. Para que não se reintroduza um elemento fora da estrutura, como “negativo”, ao estudar a gênese das ideias, será preciso descer ao terreno das “intensidades”, que funcionam de modo diferencial e nas relações nas quais se encarnam. Elas “insistem”, como Deleuze gosta ele mesmo de insistir, ao invés “existir”, pois seu valor depende das relações nas quais se encarnam, antes que nos objetos ou sujeitos dos quais podem se predicar. Até porque que “diferença de intensidade” constitui uma “tautologia” (DELEUZE, 1968, p. 287) para o estudo das relações, já que a intensidade só pode ser atribuída à pelo menos duas séries de elementos que divergem entre si e, por isso, só insistem e valem por sua diferença.

Nada mais apropriado à vindoura teoria das “multiplicidades puras” de Mil Platôs, e que desde já confessa sua dependência a um modo de organização próprio ao múltiplo (DELEUZE, 1968, p. 236). Uma organização só pode ser considerada de tal maneira se ela prescinde de uma unidade advinda de fora ou que precedesse a estruturação do múltiplo enquanto tal. O múltiplo se organiza, combina e diferencia sem deixar de ser múltiplo; isto é, sem chegar à síntese ou à unidade –mesmo que na sua variante dialética, através do contrário e, no limite, do contraditório. Considerada a partir da sua dimensão intensiva, a diferencial na ideia e na sensibilidade é capaz de cumprir esta exigência3 - e “a disparidade, isto é, a diferença ou intensidade(diferença de intensidade) é a razão suficiente do fenômeno, a condição do que aparece” (DELEUZE, 1968, p. 287). Caberia perguntar se o valor diferencial dos signos, descoberto pela linguística estrutural, coaduna-se a estes preceitos ou se ele apenas funciona reintroduzindo o negativo ou alguma propriedade exterior à estrutura e ao múltiplo enquanto tal.

A controvérsia

Fato é que o valor diferencial entra na linguística através da fonologia. A diferenciação entre fonemas permite construir palavras que, por sua vez, diferenciam-se em seu significado conservando sempre o valor relativo ao sistema do qual emergem e habitam. Não é por acaso que o significante é tido como “imagem acústica” por Saussure, pois é o som que se diferencia e, junto disso, se relaciona com o significado como “conceito” ou “imagem mental”. Sejam duas massas amorfas, como atenta o linguista, a do ar em contato com uma napa d'água (SAUSSURE, 1995, p. 56): sem deixarem de ser duas, no entanto, elas variam conjuntamente e as modificações na camada significante imprimem modificações na camada significativa. O som e seu significado estão numa relação de determinação recíproca, a partir da qual é possível estender tal reciprocidade à ideia de signo, como a entidade global formada de imagem acústica e conceito, significante e significado (SAUSSURE, 1995, p. 98). Esta determinação recíproca e não absoluta obrigado a colocar o sentido da linguagem no seu uso, já que em sua operação mais básica ela constitui um sistema constituir no qual cada um de seus elementos adquirem sentido em vista do todo e pelas suas mútuas diferenciações, podendo somente então ser pensados e expressos como “termos” (como entidades discretas, passíveis de serem consideradas isoladamente; como verbetes de dicionário, com um significado preciso).

É porque o sistema fonemático se diferencia que ele chega às palavras e, daí, ao seu sentido, de modo que a determinação de um signo depende de seu contexto de uso e de sua posição no ínterim do sistema. “Homem” perante “mulher”, perante “humanidade”, perante “animal”, perante “mundo”, não significa da mesma maneira, pois depende da articulação com os termos que lhe outorgará, a cada vez, o sentido preciso. Assim cada palavra tem um sentido, mas o obtém pela relação com as outras, de modo que este sentido também significa aquilo que ele “não significa”, como parte constitutiva dele mesmo. Este é o valor imediatamente diferencial que cada signo obtém. Ele “é” ou vale” por sua diferença.

Deleuze reconhece estes ganhos da linguística estrutural: “o caráter de multiplicidade”, de “problemático” do sistema linguístico; também do caráter “inconsciente, não atual, virtual, dos elementos e das relações”, bem como a “diferenciação” que ele envolve, “a complementaridade do sentido com a estrutura, da gênese com a estrutura” (DELEUZE, 1968, p. 263). Na ideia linguística ocorre a união de duas outras que lhe são bastante caras: a relação entre virtual e atual, bem como a gênese diferencial do sentido. De modo que diferença não seria um caractere justaposto ao sistema, mas sua especificidade, o que faz dela o princípio afirmativo da ideia de estruturação.

Contudo este ganho em certa medida se perde na interpretação que alguns linguistas fazem da natureza (ou ausência dela) diferencial do signo linguístico, porquanto tendem a pensá-la de maneira opositiva, isto é, como se o sentido de um termo fosse a negação do outro e, no limite, de todos os outros no ínterim de um mesmo sistema ou idioma. O que recoloca o estruturalismo naquela imagem tradicional do pensamento, limitada a compreender a diferença em termos derivados e negativos, como oposição, dessemelhança, contrariedade e contradição. Neste caso os fonemas que forma a língua só se diferenciam e se relacionam em termos ainda negativos, pois um deles possui um grau de identidade consigo mesmo – um som extensivo, poderíamos dizer, bem distinto daquela origem intensiva das sensações que já assinalamos – ou, de modo simples, seria “ele mesmo”, idêntico a si para, somente em seguida, “ser diferente” e opor-se aos outros.

Questão muito mais do que “terminológica”, segundo Deleuze, já que resguarda o principal: “trata-se de saber se é possível se contentar em pluralizar a oposição, ou sobredeterminar a contradição, distribuir-lhes em figuras diversas que conservam ainda e apesar de tudo a forma do negativo” (DELEUZE, 1968, p. 263). Expliquemos.

É inútil multiplicar as oposições, tão complexas quanto imagináveis desde o sistema fonemático do balbucio na criança até os grandes idiomas falados, se conservamos o princípio de identidade para explicar desde a aquisição da língua até o modo como ela passa a ter sentido. O caso aqui é exemplar na medida em que este pressuposto se disfarça sob a cativante forma da oposição dialética ou estrutural. Noutras palavras: o estruturalismo descobre (a diferença) e encobre (com a oposição) seu ganho. Resta uma diversidade sem conexão, diversidade identitária que, verdade seja dita, é uma contradictio in adjecto, já que não é possível partir de múltiplos “unos” – o uno é por definição “único”. Deve-se reverter o ponto de partida, pois uma vez diversificadas as oposições, elas já não podem ter um mesmo ponto de partida. “Nos parece que o pluralismo é um pensamento mais perigoso e mais cativante: não se esmigalha sem reverter” (DELEUZE, 1968, p. 263), e sem reverter seu ponto de partida identitário. Pois a observação de oposições já no balbucio e, fora da linguagem, em todo domínio físico, orgânico e social (cf. DELEUZE, 1968, p. 238-242), leva a uma “descoberta mais profunda, aquela da diferença, que denuncia o negativo e a oposição como aparências em relação ao campo problemático de uma multiplicidade positiva” (DELEUZE, 1968, p. 263-4).

Deleuze crê encontrar nas descrições de Saussure e de alguns de seus supostos epígonos esta reticência quanto à diferença seja afirmativa das relações mais basilares de sentido na língua, desde fonemas e morfemas. Quando Saussure afirma seu Cours de Linguistique Générale que “na língua só existem diferenças” e complementa que tais diferenças são “sem termos positivos” (SAUSURE, 1995, p. 166) e “eternamente negativas”, Deleuze vê aí o signo da imagem tradicional do pensamento que, mesmo após chegar perto de um novo princípio capaz de quebrá-la, segue firme ao readequar as descobertas no velho e tradicional primado do mesmo.

Mas, analisemos mais detidamente a crítica de Deleuze, pois não é apenas de diferença de diferença que se trata, mas de uma diferença que seja positiva. Lendo estas passagens do Cours podemos pensar que os termos da língua não são positivos, visto que precederiam ou escapariam ao que inicialmente se afirmou, que “na língua só existem diferenças”, isto é, puras diferenças sem termos. O problema estaria mais em afirmar dizer que elas são “eternamente negativas”, visto que tal qualificação parece recolocar pela porta dos fundos aquilo que havia sido interditado e enxotado pela porta da frente; a famigerada identidade. Ora, diferenças negativas são justamente aquelas em que um termo nega o outro para se afirmar num outro sentido; que depende de si mesmo, de sua precedência, para então negar o outro e, através disso, afirmar-se na relação. Nada mais dialético e, julga Deleuze, menos diferencial. Ora, se a afirmação sucede à negação, a diferença que se estabelece é opositiva e então derivada; opositiva como não-positiva. A oposição não nos ensina nada sobre “a natureza disto que se limita a se opor” (DELEUZE, 1968, p.265), visto que repousa no caráter secundário dos termos em relação e, dito de outro modo, num modo de relação que é, ela mesma, secundária.

Curioso é que a última parte da citação criticada – sobre diferenças que seriam “eternamente negativas” não está na antiga edição de Bally, Séchehaye e Ridlinger (de 1916), nem na atualizada por Engler (em 1989) que, aliás, não poderia ter sido citada por Deleuze nesta época. O que lemos nestas páginas é a consideração bastante inaugural do sistema de diferenças como baseado em princípios completamente avessos à identidade ou à substancialidade de um sentido. Tanto é que Saussure sabe que sua declaração inicial – na língua só existem diferenças – tende a ser compreendida de modo conservador, como supondo “termos positivos entre os quais ela se estabelece” (SAUSSURE, 1995, p. 166). Mas não se trata disso, e nada precede o sistema linguístico a não ser a “série de diferenças de sons combinada com uma série de diferenças de ideias” (SAUSSURE, 1995, p. 166), que correspondem as duas metades abstratas do signo e culminam como um “sistema de valores” (este sim possui um lugar para a oposição, que ainda será preciso considerarmos). Logo, diferenças fônicas, sem sons numericamente distintos e com valor preciso; diferenças ideais, sem pensamentos numericamente distintos e idênticos ou claros para si mesmos. Nada mais que diferenças, na adoção de um princípio de diferenciação (1995, p. 167) onde “é a diferença que faz a unidade, assim como é ela que faz o valor e a unidade” (SAUSSURE, 1995, p. 168).

Porque então uma crítica tão rápida? Visto do prisma de Deleuze não seria possível levar a termo o que se afirmar nestas passagens fundamentais do Cours, que a língua é feita somente de diferenças. Pois se este fosse o caso seriam as diferenças que a povoariam de modo afirmativo e, num segundo momento, poderiam culminar em termos que então se opõem de modo negativo. Isto, de fato não é dito por Saussure, que parece ler a diferença que constitui os signos junto da negatividade que caracteriza a ausência ou falta de sentido que eles receberiam isoladamente. A indecisão permanece... tem razão de ser e mesmo provém de uma grande dificuldade hermenêutica com relação a Saussure. Depende da leitura de um texto tão fragmentário e polêmico quanto o do Cours e talvez aí resida uma fonte do mal entendido.

Seguindo Trubetskoy, que além do comentário do Cours desenvolve novos princípios estruturais para distinguir entre fonética e fonologia, o saldo da crítica de Deleuze parece se justificar mais facilmente, já que Trubetskoy sustenta que a diferença pressupõe a oposição. Ora, já vimos que partindo da língua como sistema de oposições “traímos a natureza do jogo da linguagem” (DELEUZE, 1968, p. 264), pois somos obrigados a reintroduzir um princípio transcendente, seja o negativo, a consciência ou a representação que seja capaz de apreender a cada momento tais oposições. Dito de outro modo: Deleuze partindo da oposição pressupomos termos que se opõem. Isto torna a sua relação secundária e, logo, dependente de uma apreensão para que apareça enquanto tal. Se, pelo contrário, a relação fosse primeira deixaria de ser opositiva e de articular termos pré-estabelecidos. É esta a astúcia de um conceito de diferença que não se baseie na identidade; determinar reciprocamente e completamente o sentido de algo sem partir da identidade ou presumi-la ao seu término. A oposição é apenas “um” de seus desdobramentos. Quando consideramos diferenças neste sentido renovado, já auscultado pela filosofia da linguagem e linguística de Saussure, não pressupomos termos que seriam diferenciados, mas diferenças (fônicas e ideais) que produziriam termos. Neste caso a língua seria formada por puras diferenças e não por termos, fonemas, palavras ou enunciados que, somente então, se diferenciam. “A língua” seria “uma álgebra que só possuiria termos complexos” (SAUSSURE, 1995, p. 168).

Partindo de “baixo” ou do mais “ínfimo” na linguagem. Se não é a consciência que coloca sentido nas palavras, mas a sua organização própria diferencial, “dentro” das palavras os fonemas também não possuem sentido por si mesmos, mas em sua micro diferenciação já crucial na passagem entre balbucio e fala. Num tom mais elogioso que àquele que adota com relação à Trubetskoy, Deleuze escreve:

Do mesmo modo que Jakobson define um fonema zero que não possui nenhum valor determinado, mas que se opõe à ausência de fonema e não ao fonema, o não-sentido não possui nenhum sentido particular, mas se opõe à ausência de sentido, e não ao sentido que ele produz em excesso, sem jamais ter com seu produto a relação simples de exclusão à qual se gostaria de reduzi-los. (LS, 89)

Mesmo antes, o fonema depende dos morfemas como menores unidade linguísticas dotadas de sentido; e, se conseguimos provar que até estes pequenos fragmentos de linguagem se organizam de maneira diferencial, talvez seja possível descer a uma noção positiva de diferença que permita, em seguida, ascender até suas formas mais complexas e macroestruturais com a palavra, a linguagem e mesmo o pensamento. Os morfemas como prefixos, radicais e sufixos possuem “limiares diferenciais” (DELEUZE, 1968, p. 265) que permitem construir palavras, e entre esses limiares diferenciais não há um núcleo duro, de modo que a “unidade mínima” não é identificável. Ela é uma pura diferença entre sinais, grafos, sons etc. Assim, todos os morfemas, fonemas e palavras bem formadas coexistem e cada um deles expressa todos os outros por diferenciação e na sua diferenciação.

Mas isto só se torna possível após compreender a inadequação entre diferença e oposição. É G. Guillaume então quem daria o devido prosseguimento à linguística estrutural: “A substituição de um princípio de posição diferencial àquele de oposição distintiva é o aporte fundamental da obra de Guillaume” (DELEUZE, 1968, p. 265). O que só ocorre se a linguística não parte da fonologia, o que aproxima a sua crítica daquela da Gramatologia de Derrida. A voz, ao contrário da inscrição, conserva o primado da identidade e do mesmo, visto que ela tem como modelo a voz interior, como solilóquio que visa a coincidência consigo mesmo, entre signo e pensamento, antes de ser pronunciado no mundo e ter pretensão à verdade intersubjetiva. Esta crítica é endereçada tanto a Saussure na Gramatologia quanto a Husserl em A voz e o fenômeno, e em ambos os casos se trata de partir da ideia de logos filosófico como propriedade primeira da “voz”, o que a fonologia repete à sua maneira4. Ela é, portanto, brutal5. O traço, grama (gramme) ou grafema, ao contrário da voz, depende de seu acontecimento, numa dinâmica contingencial que impede de considerá-lo puramente do ponto de vista do sentido. É impossível reduzir os aspectos indiciais da linguagem, a ocasião da sua escrita, de sua inscrição num sujeito falante e, daí, da sua fala. Esta diferença não expressa e não exprimível na letra “a” da différance contribui, pelo contrário, necessariamente para o sentido. E é esta diferença, mutatis mutandis, que está na gênese da estrutura linguística e de outras estruturas para Deleuze, que também ao seu modo já via no estruturalismo um modo tímido, como vimos, de espalhar “a boa nova: o sentido nunca é princípio ou origem, ele é produzido” (LS, p.89-90).

Assim, pensar que a morfologia da língua é mais fundamental que a fonologia pode acompanhar a reversão filosófica entre partir da identidade, chegando apenas a uma diferença derivada na oposição, e partir da diferença, chegando a uma posição afirmativa a respeito da variação linguística e do fato linguístico, já que a morfologia “introduz valores problemáticos que determinam a seleção significativa dos fonemas” (DELEUZE, 1968, p. 265). Isso significaria que a língua não é formada por posições significativas entre seus termos, em seguida, por oposições, negações, discordâncias parciais a respeito destes termos já compreendidos. A morfologia permitirá pensar que a formação das palavras e a dinâmica relacional que permite agrupá-las e, daí, escrever e falar, é feita sem a necessidade de um núcleo duro que permita o acordo ou desacordo quanto ao sentido, visto que a própria formação das palavras não pressupõe este “mesmo” ou esta “referência” com a qual os falantes devem imediatamente concordar. Por isso a ênfase na estrutura linguística, e na sua renitência em ser pensada até o limite pelo início do estruturalismo: porque ela descobre a diferença nas mínimas formações de sentido. Que para negar não é preciso partir da identidade do ser, mas de sua diferença consigo mesmo.

A negação na língua francesa (ne...pas) serve de recurso didático, sendo que o primeiro “não” do NE é aquele da diferença, enquanto o segundo do “PAS” seria o da negação. A primeira negação posiciona afirmativamente a diferença e depois nega opositivamente a partir dela. Em suma: ela diferencia e, só então, opõe. Afirma e, só então, nega. Seria uma ilusão considerar este quadro de modo inverso, tal como fez, por exemplo Trubetskoy, pois a negação “se divide em NE problemático e PAS negativo, como em duas instâncias que diferem em natureza, e da qual a segunda só atrai a primeira ao traí-la” (DELEUZE, 1968, p. 266). Seria considerar a condição (diferença) do ponto de vista do condicionado (negação/oposição).

Resta saber o quanto estas considerações incidem sobremaneira crítica incidem mesmo sobre o Cours e sobre as leituras que se fizeram a partir dele, sobretudo aquelas que reformam ou reformulam algumas de suas posições. Questão que já respondemos pela negativa: tais leituras passam ao largo de Saussure e, mais do que isso, poderiam ser criadas e repetidas em seus próprios escritos e preleções. Primeiro consideremos o pretenso prosseguimento das teses estruturalistas, com o caso privilegiado na crítica deleuziana.

O caso Trubetskoy

É possível argumentar que Trubetskoy não retomava ou aprofundava Saussure, mas mesmo se contrapunha a ele, e é irônico que no mesmo parágrafo em que critica Trubetskoy para se afastar de Saussure, Deleuze tenha cunhado o termo “disparation” (DELEUZE, 1968, p. 72), porque já dissemos que é um disparate que o reaproximará de Saussure. A tese de Patrick Sériot (Structure and The Whole, 2014) é exemplar quanto a isto. Nela percebemos que o círculo de Praga não seria crucialmente influenciado por Saussure como a historiografia a respeito da linguística nos leva a crer. Que Trubetskoy só faz parte deste legado e o “estende” por um erro de interpretação. E que, por fim, Trubetskoy deixa mesmo escrito o quanto repudiava as aproximações que faziam dele e de Jakobson com relação a Saussure. Enquanto a maior parte dos livros de história da linguística apresentam Jakobson e Trubetskoy como filhos de Saussure – e Deleuze parece incorrer no mesmo erro – toda outra interpretação pode ser estabelecida quando se remete às fontes desta (falta de) relação. A diferença é mesmo conceitual, e não apenas histórica ou pessoal, porque mesmo reconhecendo o impacto do Cours, a morfofonologia de Trubetskoy chega mesmo a se opor à fonologia e à semiologia desenvolvida pós-Saussure.

Importa aqui notar que a noção de oposição não está no cerne da noção de signo saussureana, e que neste caso talvez ela nem mesmo seja proveniente de uma leitura negativista dele, tal como poderíamos pensar a partir da crítica de Deleuze. Tratar-se-ia de outra teoria, e a diferença tematizada por Saussure não leva necessariamente a interpretação que Deleuze lhe impunha; talvez nem mesmo levou a ela, quando se resgata a relativa independência entre o trabalho de Saussure e o círculo de Praga.

Cabe citar apenas pequenos casos. Trubetskoy não retoma o recorte sincrônico do presente e a continuidade diacrônica da história de Saussure, mas chega a considerar esta divisão “inadmissível” (SÉRIOT, 2014, p. 44). Ora para isso a própria noção de signo não é exatamente a mesma, e chega a ser avessa:

Saussure era fundamentalmente antissubstancialista; sua noção de valor e sua definição negativa das unidades levaram ao que se tornaria mais tarde a noção de modelo. No pensamento saussureano a linguagem (langue) é uma abstração, potencial, um objeto virtual feito de relações opositivas. Para Trubetskoy e Jakobson, por outro lado, os fenômenos existiam; mais uma vez, eles preexistiam à toda a investigação a respeito deles. A ideia de que todas as coisas estão ligadas é mais relevante para pensar o todo (One-and-the-Whole) do que a ideia de valor. [...] O mal-entendido não poderia ser maior: Saussure e saussureanos, russos de Praga, simplesmente não estavam falando da mesma coisa (SÉRIOT, 2014, p. 249-250).

Uns seriam nominalistas, outros realistas, e é de se supor se esta manutenção do “real” e de sua unicidade não contribui para pensar a diferença em termos derivados e negativos - como totalidade que opera por oposições. Enquanto para Saussure, mesmo quando pensamos a totalidade do sistema não nos subtraímos à dinâmica diferencial e perspectivista que enceta o seu valor. O ponto de vista sobre a língua não deixa de ser um ponto de vista da língua, ou, se quisermos, um ponto de vista como todo outro. Diferencial como os outros e aberto como os outros. De modo que Saussure mantém sua atitude antissubstancialista intocada: “Nunca se penetrará o suficiente nesta verdade, porque todos os erros de nossa terminologia, todas nossas maneiras incorretas de designar as coisas da língua provêm desta suposição involuntária de que haveria uma substância no fenômeno linguístico” (SAUSSURE, 1995, p. 169).

Talvez por isso a perspectiva de uns leve a considerar a diferença como oposição, de maneira negativa, enquanto a do curso de Saussure permite considerar essa diferença como intensiva e de maneira afirmativa. Pois como mostra Sériot ideia de “todo” proveniente da teoria russa e eslava é distinta da ideia de “sistema” tal como presente na linguística europeia. Trubetskoy parte da consideração da totalidade, heuristicamente descoberta e formalmente recuperada, porque ontologicamente garantida, de modo que os “fonemas no pensamento de Trubetskoy [...] eram ainda mais substanciais do que estritamente relacionais” (SÉRIOT, 2014, p. 251). Saussure considera o ponto de vista a fim de compreender todo valor a partir dele – seja a realidade, a interioridade do sujeito que fala e pensa, a exterioridade de um mundo perceptivo, etc. E é de se pensar que partindo da estrutura chegamos a uma relação opositiva entre termos dados em totalidade, enquanto partindo do sistema encontramos uma relação diferencial mais basilar que a oposição. Por isso a diferença suposta na língua é afirmativa e não negativa, já que não parte do todo como fator genético nem se orienta ao todo como seu telos6. Fica claro que o sistema está mais próximo da multiplicidade sem unidade e sem síntese absoluta, a uma “organização apropriada ao múltiplo” (DELEUZE, 1968, p. 236) e à ideia como relação diferencial, enquanto a estrutura é a negação levada à suas últimas consequências, como esquema de oposições capaz de ser totalizado.

Assim, a leitura holista e negativista de Trubetskoy não expressa a teses de Saussure e nem se refere ao estruturalismo tal como preparado por este. É de se pensar que a filosofia da linguagem daí decorrente faça o mesmo e, com sorte, nos abra o campo para outro resgate das teses de Saussure. É pelo menos o que Maniglier defende em se comentário (e nisso, discordaria de Sériot a respeito da ausência de uma ontologia – apenas que ela é uma ontologia das multiplicidades e não da totalidade): “Os signos não são associações entre duas coisas já dadas, mas coisas duplas, eternamente duplas" (MANIGLIER, 2006, 26). Quando Saussure diz que o signo é uma entidade puramente negativa, está pensando menos que ele depende dos outros signos de maneira opositiva para obter o seu significado, e mais no fato de que ele possui uma positividade própria e que depende de sua natureza diferencial. A língua não faz mais do que retirar “pacotes de diferenças sensíveis”, e a determinação da imagem acústica, de um som mínimo que seja, decorre já desta diferença sensível que não pode ser subsumida ao passar para à linguagem propriamente dita. Então Saussure conserva um princípio diferencial no seu pensamento desde o fonema até o signo bem formado. Depurado de seu falso sucessor, o que retorno com Saussure?

A teoria do valor

Segundo Maniglier a questão primeira do estruturalismo não é de método, como já se tentou reduzí-la, nem da unidade metodológica de sua aplicação em diferentes campos de saber, mas uma questão de delimitação ontológica. Trata-se de saber como a partir ir da continuidade sonora se delimitam sons e, a partir daí, signos. No limite trata-se de saber o que é um fato – pode-se esmo dizer, um acontecimento – e circunscrever este problema inaugural a Saussure, o que permitia de imediato suspeitar de suas pretensões ontológicas.

Assim podemos compreender que as viagens do método estrutural puderam se ver acompanhadas por projetos filosóficos que renovavam as questões ontológicas, tais como, com toda a evidência, aqueles de Deleuze e Derrida, mas também, mais secretamente, de Althusser ou de Foucault, em torno de teses estranhas como aquela que que propunha entidades constituídas unicamente de diferenças. De nada serve então opor, como se fez com tanta complacência, um bom estruturalismo, que se contenta em formular um método para as ciências sociais, e o mau estruturalismo que dele arranja pretexto para lançar diante de um mundo espantado teses ontológicas estrondosas (MANIGLIER, 2006, p.17-18)7.

Convém recuperar algumas teses de Saussure a partir de seus leitores mais atentos, visto que as edições de seu curso, embora repletas de ensinamentos, são carentes de um núcleo de sustentação e nos deixam uma imagem indireta do que seriam os princípios de um autor que jamais utilizou neste conjunto de preleções o termo “estrutura”, e sim o de “sistema”. Encontrar Saussure já se mostrou uma tarefa impossível, não obstante a impossibilidade desta busca seja diametralmente oposta à riqueza daquilo que foi deixado a pensar pelo professor, não apenas à variedade de alunos presentes nos cursos, junto daqueles que recolheram suas notas e buscaram lhes dar uma aparência de unidade, mas sobretudo pela fertilidade muitas vezes esquecida destes ensinamentos legados a nós mediante um labirinto de ouvintes, intérpretes e até, como veremos, seguidores “fictícios” (como é o caso de Trubetskoy, privilegiado na crítica de Deleuze). Não propomos saída alguma, pois já se sabe bem que o labirinto não possui saída e que é impossível encontrar Saussure, mas apenas refazer os pontos principais de uma filosofia da linguagem e de uma ontologia que se esboçavam a partir das pistas deixadas.

Tome-se, primeiramente a célebre definição de signo como entidade dupla, formada de significante e de significado. O primeiro foi formulado como “imagem acústica”, enquanto o segundo como “conceito” (1995, pp. 97-100). Contra a ideia imediata de uma linguística baseada somente na fala – e na fala interna, no pensamento e no solilóquio, como denuncia Derrida – é possível notar que Saussure parte, de fato, de uma preocupação a respeito de como o material heterogêneo da sensibilidade fora capaz de se tornar “linguagem”, seja falada ou escrita; em como o múltiplo culmina na ideia de signo ou de sinal, que possui um valor preciso, mas que não deixa estar plantado na esteira da sensibilidade sonora e do imaginário conceitual. Os sons brutos são então a origem diferencial daquilo que Saussure nomeia de imagem acústica e de momento significante do signo. Como sensível, não é e nem precisa possuir uma unidade estática em face de sua origem desde já heterogênea, o som da vogal “a”, digamos, pois ela não mais é que um conjunto em constante mutação dos sons que ouvimos num determinado lugar e numa determinada época. O significante “a” não se refere a um som preciso, ouvido num determinado momento ou lugar, mas desde já a um conjunto de diferenças sonoras. Vale lembrar que Saussure assinala que a “linearidade” (SAUSSURE, 1995, p. 103) do significante é uma “característica primordial” (SAUSSURE, 1995, p. 100), mas que não nos deve enganar e supor que ele é a favor da constância dos sons, em detrimento de sua variação. Pelo contrário, é a variação ininterrupta ou, simplesmente, a inconstância dos sons ouvidos que é capaz de dar ensejo a caracteres diferenciais (o “a” na série de sons) e alçar o comparativismo a um tipo de filosofia bastante original. Aprendemos que a definição de signo é menos a defesa de uma unidade mínima do que a constatação de sua dependência com relação ao múltiplo insuperável da experiência sensível. A vogal a tem como significante a imagem acústica “a”, que só o linguista compreende, mas que por sua vez é o produto entrópico de uma diferenciação inesgotável de sons sempre distintos uns com relação aos outros, e que o falante vive por sua vez. Por isso, a gênese diferencial em Saussure é já uma maneira de repensar diferencialmente toda questão de gênese. Não apenas da linguagem, mas de todo valor assinalável.

[A língua] é um sistema baseado na oposição psíquica destas impressões acústicas, assim como uma tapeçaria é uma obra de arte produzida pela oposição visual entre fios de cores diversas; ora, o que importa na análise é o jogo dessas oposições, não os procedimentos pelos quais as cores foram obtidas. (SAUSSURE, 1995, p. 56).

Com relação ao significado, definido como “conceito”, ele também deve ser considerado numa esteira distinta do conceitualismo usual – como organização e anulação dos dessemelhantes em prol de um significado mais ou menos estável. Basta dizer que o conceito como contraparte inextrincável da imagem acústica de modo algum lhe sobredetermina, mas depende de sua variação sensível e heterogênea e, mais do que isso, herda esta dinâmica diferencial no seio de si mesmo. Saussure chega mesmo a propor nos Escritos de Linguística Geral uma dinâmica diferencial para a semântica, isto é, para o âmbito o significado. Assim como os sons considerados em si mesmos são apenas diferenças entre sons, também as ideias não teriam nada de positivo, mas seriam fruto de uma diferença entre ideias. Tome-se o caso da significação “sol” levantada pelo autor, que prima pela escolha de um objeto que é tido como único e, não obstante, revela sua significação meramente diferencial:

[...] pode parecer que o sol representa uma ideia perfeitamente positiva, precisa e determinada, tanto quanto a palavra lua. Não obstante, quando Diógenes diz a Alexandre “retira-se de meu sol”, já não há nada no sol exceto a oposição com a ideia de sombra; e a própria ideia de sombra não é mais que a negação combinada com a da luz, noite perfeita, penumbra, etc., unida à negação da coisa iluminada em relação com o espaço obscurecido, etc. (SAUSSURE, 2004, p. 76).

Essas considerações sobre a dupla face do signo devem servir para dar novo fôlego as proposições de que “na língua só existem diferenças”, “sem termos positivos” (SAUSSURE, 1995, p. 166) e resgatá-las da crítica que Deleuze lhe endereça. O que o estruturalismo mostra, primeiro na linguística e depois em outras áreas do saber, é que nossa experiência só pode ser compreendida a partir de seres duplos e instáveis como os signos. Não porque a linguagem não existe e é um construto teórico. Mas porque ela existe, porque signos surgem, mas sem que designem alguma existência necessária para além dela e deles – e a querela é ontológica, a respeito de que tipo de realidade a estrutura invoca, e nisso Bouquet e Maniglier têm toda razão. Pois não precisamos designar coisa alguma fora do sistema primeiro porque “se uma palavra não evoca a ideia de um objeto material, não há absolutamente nada que possa precisar seu sentido que não seja pela via negativa” (SAUSSURE, 2004, p. 76), mas também porque no sensível não precisamos concordar com ideia alguma, já que a pura diferenciação entre significante e significado engendra o signo. De fato, “a linguística trabalha então sobre este terreno limítrofe onde os elementos das duas ordens se combinam” e “esta combinação produz uma forma, não uma substância” (SAUSSURE, 1995, p.157); “a língua é uma forma e não uma substância” (p. 169).

Esta posição por excelência antissubstancialista coloca um elo renovado entre todas estas vertentes, agora diferenciais, de nossa vida: saindo do uno, encontramos uma multiplicidade capaz de organizar a si mesma sem a necessidade princípio superior ou exterior. Cabe retirar todo o peso filosófico desta advertência presente nos Écrits:

parece que é possível afirmar e chamar a atenção: jamais estaremos suficientemente convencidos da Essência puramente negativa, puramente diferencial, de cada um dos elementos da linguagem aos quais atribuímos precipitadamente uma existência; não há nenhum, de nenhuma ordem, que possua esta suposta existência, ainda que admito que talvez nos vejamos obrigados a reconhecer que sem esta ficção a mente se encontraria realmente incapaz de dominar semelhante soma de diferenças, sem encontrar em parte alguma e em nenhum momento um ponto de referência positivo e firme. (ELG, 2004, p. 67).

Para que o vanguardismo destas teses seja absorvido devemos considerar o signo em sua concretude, após significante e significado, presente na teoria do valor linguístico. A teoria do valor é o núcleo de sustentação da nova imagem do signo como entidade ao mesmo tempo dupla, formada de significante e significado que não se confundem, e una, pois estas duas pretensas partes jamais se separam nesta entidade concreta e global que é o signo. A noção de valor depende ainda de outra “característica primordial” do signo, da qual dissemos que a outra é a “linearidade” do significante, que é aqui a arbitrariedade do signo.

É preciso retomar o sentido desta tese. Pois a arbitrariedade não se refere à relação entre significante e significado, que a massa amorfa e confusa de sons imediatamente se relacione com a massa amorfa e confusa de ideias, pois elas variam conjuntamente, como a pressão atmosférica e a água, ou como o verso e o reverso de uma folha de papel (SAUSSURE, 1995, p. 156-157). Antes, é arbitrário que “tal” som ou palavra se relacione com “tal” ideia ou conceito e não que um som se envolva a um sentido. Como na imagem evocada, a palavra /ar/ com o conceito de “ar”, a sequência de sons que formam /água/ com o conceito, e assim por diante. Assim, “o signo linguístico é arbitrário” (1995, p. 100) na medida em que o valor, que é a relação entre som e conceito é puramente arbitrário. E ela necessita disso para que não seja estabelecida por outro princípio que a diferenciação intralinguística. Ou seja, se ela não for alçada à “característica primordial” sua arbitrariedade seria relativa a outro princípio. Ou seja, se a relação entre significante e significado não fosse arbitrária, no caso do vocábulo /sol/ e da sequência de sons “s-o-l”, que significam tanto o “astro”, quanto a “luz” ou mesmo “centro da vida” etc. mediante o contexto, o uso e o idioma, seria preciso explicar de outro modo como ela se dá no funcionamento da língua. O que obrigaria a trazer entidades de fora do sistema ou da estrutura para dar conta da relação.

Arbitrário significa também que o signo é imotivado, que nem mesmo o sujeito falante tem poder sobre esta relação mais geral que relaciona som e sentido, e da qual ele apenas recolhe os resultados históricos e sistemáticos. “A coletividade é necessária para estabelecer valores dos quais a única razão de ser está no uso e no consentimento geral; o indivíduo sozinho é incapaz de fixá-los” (SAUSSURE, 1995, p. 157). O valor estrutural e diferencial não é o produto de algum princípio exterior ao sistema e ao jogo de diferenças entre seus elementos. Eles nada são em si mesmos, e só passam a valer por suas diferenças. É possível notar que esta teoria do valor é o arquétipo da teoria diferencial das faculdades em Diferença e Repetição. Pois além de acarretar a unidade problemática do valor ano cerne do sistema linguístico, assim como ocorrera para Deleuze com a Ideia, ela funciona junto do princípio de arbitrariedade para demonstrar que o valor se dá em suas transformações (e não apesar delas).

É por isso que o valor possui uma definição negativa e uma natureza diferencial, pois nele “arbitrário e diferencial são duas qualidades correlativas” (SAUSSURE, 1995, p. 163). Ele não é o significado do signo, pois este é apenas uma de suas duas metades, mas aquilo que se passa entre estas duas metades. Ora, isto leva a uma atribuição necessariamente dupla do valor: ele não está apenas na intersecção entre imagem acústica e conceito, que forma o signo, mas na relação que o signo possui com todos os outros no ínterim do sistema. Podemos notar que o valor é interior ao signo, pois depende da relação entre significante e significado, e exterior ao signo, pois depende da relação dos signos uns com os outros. E esta instância paradoxal do valor deve nos mostrar que ele é ao mesmo tempo i) relacional e ii) singular; que ele se assemelha à termos que podem substituí-lo (uma moeda de um real pode ser substituída por duas moedas de 50 centavos sem ter seu valor alterado) e é dessemelhante a outros que lhe constituem (uma moeda de um real pode ser substituída por um pão). O mesmo se verifica quando se considera o valor do significante, como fruto de relações puramente diferenciais, sem termo positivo algum: “em sua essência ele não é de modo algum fônico, ele é incorporal, constituído não por sua substância material, mas unicamente pelas diferenças que separam sua imagem acústica de todas as outras” (1995, p. 164).

Existem duas diferenciações na teoria do valor aí em operação. As primeiras diferenças sensíveis podem ser aproximadas das diferenças “diferençadas” que fala Deleuze, enquanto a sua determinação em termos positivos pode ser considerada como diferenças “diferenciadas”, partindo da sua distinção entre différentiation e différenciation. O próprio escreve sobre a estrutura, que “como virtualidade devemos dizer que ela é ainda indiferenciada, ainda que ela seja inteira e completamente diferençada” (2002, p. 251). Pensando na linguística, a relação que pode e deve ser feita é a de que todos os signos passam também por dois níveis de organização, próximos da distinção deleuziana, pois se, de um lado, todos os fonemas coexistem no nível virtual diferençado e ainda indiferenciado, por outro, eles também sempre se diferenciam ao aparecem junto dos signos que os encarnam, já numa dinâmica total de significante e significado, no nível da língua atual, em ato, em operação. A língua é uma entidade múltipla por natureza por que nela a continuidade indiscriminada (indiferenciada, mas diferençada) de sons e sentidos se dá junto da divergência (diferenciada) de valores. Esta aproximação com Deleuze é de nossa conta, mas encontra ressonâncias, no que se deve Saussure, na tese contundente de Maniglier quando escreve que os termos são sempre comparáveis segundo pelo menos “dois registros de diferenças heterogêneas” (MANIGLIER, 2006, p. 26), tanto na diferenciação no nível do significante e do significado, quanto naquela dos signos entre si. Podemos pensar a primeira como um sistema de distinções (entre sons, entre significados), diferencial em sentido basilar (différential), enquanto o segundo como um sistema de equivalências (entre sons e significados), diferencial em sentido derivado (différencial). Assim, para pensar o sistema é preciso partir da diferença e não da semelhança, de valências distintivas antes que de equivalências, já que estas só se conquistam ao preço da diferenciação primeira entre sons e sentidos.

Assim, o valor depende daquilo que o diferencia e ao mesmo tempo é afirmativo: o significado da palavra “ovelha” é o mesmo que o das palavras “sheep” e “mouton”, mas seu valor não (SAUSSSURE, 1995, p. 160). Elas têm o mesmo significado, mas não o mesmo valor, porque a relação do signo “sheep” com outros no inglês não é a mesma que “ovelha” com outros no português. É a totalidade que confere o valor da diferença, e ela é no limite intraduzível, incomparável. Como no francês se distingue rios com os termos fleuve e rivière, usados de acordo com o sentido do rio, e no inglês se distingue rios com os termos river e stream, usados de acordo com o tamanho do rio (num exemplo emprestado de GADET, 1987, p. 34). Logo, pensamos que a relação de cada um dos sistemas de diferenciações não precisa ser “traduzido” no outro ou, ainda, que não é preciso pensar um terceiro termo (a referência) com a qual as duplas river/stream e fleuve/rivière mais ou menos se adequam. A coisa em-si, seja a água ou o próprio rio, não compete para o modo como os signos organizam seu valor, seja interiormente, na relação entre imagem acústica e conceito, ou exteriormente, na relação com outros signos do mesmo sistema. Segundo Saussure o protogermânico não tem palavra e forma própria para o futuro (1995, p. 161). Se dizemos que ele fala do futuro com palavras do presente, a partir do presente, colocamos já um termo estranho ao seu sistema de sentido. Não é assim que ele pensa, fala e atribui sentido; seria procurar o equivalente em protogermânico para o nosso português. Simplesmente nosso “presente” (assim como nosso “futuro”) não precisa ser o “mesmo” para, ainda assim possuir sentido. Ele não precisa possuir o mesmo valor para, ainda assim, possuir um valor determinado.

A teoria do valor corretamente compreendida é então uma nova concepção do sentido, que parte da diferença e não da identidade, e da relação de sentido, que não é de correspondência, mas de equivalência estrutural. Um pensamento diferencial que reformula as relações entre o necessário e o contingente. Se o valor de um termo “é determinado pelo que o circunda”, não se trata de uma realidade subsistente, mas dos outros termos e recortes que se impõem ao sujeito que habita aquele sistema de linguagem específico; já que “nem mesmo da palavra ‘sol’ é possível fixar imediatamente o valor sem considerar o que há em volta dele; há línguas nas quais é impossível dizer ‘sentar-se ao sol’” (SAUSSURE, 1995, p. 160-161), utilizando mais uma vez um exemplo já citado dos Escritos e que Saussure julga bastante contundente. Talvez porque trazer à tona a natureza relativa do signo “sol” instaure uma verdadeiro eclipse nas clássicas teorias do sentido. De modo que “na língua, como em todo sistema semiológico, o que distingue um signo é tudo o que lhe constitui. É a diferença que faz a característica, como ela faz o valor e a unidade” (1995, p. 168; grifos nossos).

Considerações finais

O problema para Deleuze com a noção de diferença oriunda da estrutura é que ela não se basta e, via de regra, invoca um princípio unificador responsável pela articulação de seus elementos. A negatividade e a oposição são alguns dos atratores deste princípio transcendental que acomete a filosofia ocidental. Mas já demonstramos como a estrutura não necessita de um centro para operar, para obter a estruturalidade a partir da qual é compreendida. Ela só necessita da estruturalidade que, corretamente compreendida, já a liberta da velha imagem referencial do pensamento. E o faz porque é revela a verdadeira diferença que ali, como queria Deleuze, gênese e estrutura. A diferença responsável por si mesma.

Tal é o “princípio fundamental da semiologia”: “na língua não existem signos nem significações, mas DIFERENÇAS de signos e DIFERENÇAS de significações; as quais 1º só existem graças às outras (nos dois sentidos) e são então inseparáveis e solidárias; mas 2º nunca chegam a se corresponder diretamente” (SAUSSURE, 2004, 72)

Saussure não enxergou na gramática comparativa uma nova dimensão sobre a multiplicidade dos sons e das palavras, de modo a contornar a sua diversidade. Antes disso, defende que a multiplicidade se multiplica indefinidamente, pois ocorre por diferenciação, em ao menos dois níveis, e redescobre o múltiplo em sua faceta mais problemática. Como se a hybris que precede o logos não fosse por este superado, nem para ser superada, mas justamente o que torna possível uma nova ideia de sentido. A hybris se generaliza e dar conta dela significa remontar a algumas intuições bastante difíceis, embora cruciais, das quais Saussure constitui um exemplo bastante privilegiado por exemplo esta: “a suposição tradicional de que a palavra possui uma significação absoluta que se aplica um objeto determinado; é esta presunção que combatemos" (SAUSSURE, 2004, p. 77).

Os textos falam por si só. Resta saber se a ontologia das multiplicidades ainda permite uma tal reaproximação e ajuste de contas entre Deleuze e o estruturalismo, uma vez e estabelecida toda a sua significação no bojo de uma teoria do valor como baseada na diferença e não na identidade ou na oposição. Pois explicitamente as críticas só tenderão a ser radicalizar, quando junto de Guattari recusam deliberada a noção de significante.

Apesar do texto, ou de algumas de suas passagens críticas, vimos que a distância entre Saussure e Deleuze é menor e menos opositiva do que imaginávamos. Antes ela funda uma divergência positiva, e é o disparate que permite relacioná-los naquilo que dizem de mais fecundo. A diferença genética e vinculante entre os signos que formam a vida da linguagem e da subjetividade.

Uma síntese pelo disparate, ou uma divergência acolhida em ambas as teorias. Como dar valor ao heterogêneo, como chegar à ideia e sua comunicação a partir da diferença? Duas questões que nos salvam do risco de permanecer no mesmo, e dizer o mesmo.

Referências

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MANIGLIER, Patrice. La vie énigmatique des signes. Saussure et la naissance du structuralisme. Paris: Éditions Léo Scheer, 2006.

Merleau-Ponty, M. “Sur la phénoménologie du langage”. In: Signes. Paris: Gallimard, 1960.

SAFATLE, Vladimir. “Linguagem e negação: sobre as relações entre pragmática e ontologia em Hegel”. Em: Dois Pontos. Curitiba, São Carlos, vol. 3, n. 1, p.109-146, abril, 2006.

SALES, Alessandro Carvalho. “Deleuze e A lógica do sentido: o problema da estrutura”. In: TRANS/FORM/AÇÃO: REVISTA DE FILOSOFIA. v. 29 n. 2 (2006)

SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de linguistique Générale. Payot 1995.

SAUSSURE, Ferdinand de. Escritos sobre linguística general. Barcelona: Editorial Gedisa, 2004.

SÉRIOT, Patrick. Structure and the whole. East, West and non-darwinian biology in the origins of structural linguistics. Boston: Walter de Gruyter, 2014.

Notas

2 Indicamos o completo trabalho de SALES, 2011
3 E ao dizer que o empirismo transcendental é uma espécie de descoberta involuntário do estruturalismo, também precisamos partir da devida advertência de que esta estrutura é povoada de intensidades. Aí está aberto o caminho segundo o qual empirismo se torna transcendental, “quando nós aprendemos diretamente no sensível o que somente pode ser sentido, o ser mesmo do sensível: a diferença, a diferença de potencial, a diferença de intensidade como razão do diverso qualitativo” (DELEUZE, 1968, p. 80).
4 “A ciência linguística determina a linguagem - seu campo de objetividade - em última instância e na simplicidade irredutível de sua essência, como a unidade de phonè, glossa e logos” (DERRIDA, 1967a, p. 43), concebendo a linguagem imediatamente como o encontro possível entre som e sentido (o que Saussure denominava significante e significado). A escritura inexiste como sentido, a não que ela procure captar o som, como escrita fonética: “Este fato da escritura fonética é massivo, verdadeiro, e comanda toda nossa cultura e toda nossa ciência; e não é certamente um fato entre outros” (DERRIDA, 1967a, p. 46). Para Derrida o único modo da linguagem surgir como “ser” e, assim, ser objeto de uma ciência fechada como a linguística é pressupô-la como unidade entre e sentido e som, pensamento e voz, o que teria sido feito por autores tão distintos quanto Saussure e Husserl.
5 A pretensa unidade da região “consciência”, assim como da “língua”, são artifícios que demandam a exclusão da exterioridade, dos aspectos indiciais não-conscientes e da escritura em si mesma. Ou seja, do grafo e da diferença contida no “a” impronunciável da différance. É possível cruzar as críticas para constatar que elas são basicamente as mesmas. No capítulo sobre a linguística geral da Gramatologia lemos que “a ‘imagem acústica’, o aparecer estruturado do som, a ‘matéria sensível’, vivida e informada pela diferença o que Husserl chamaria da estrutura hyle/morphè, distinta de toda realidade mundana, Saussure chama de ‘imagem psíquica’” (1967a, p. 93). Já no livro sobre Husserl escreve que este “elemento cuja fenomenalidade não tem a forma da mundanidade” é justamente a voz. “A voz é o nome deste elemento. A voz se ouve. Os signos fônicos (as ‘imagens acústicas’ no sentido de Saussure, a voz fenomenológica) são ‘ouvidos’ pelo sujeito que os profere na proximidade absoluta de seu presente” (DERRIDA, 1967b, p. 85). Estas remissões bastam para mostrar que os teóricos da diferença – também chamados pós-estruturalistas – encontram-na “fora” e não “dentro” daquilo que julgamos ver ou ouvir (perceber, de modo geral) como dotado de sentido. Nos limites do sentido, as teorias do sujeito e da forma devem ser superadas conjuntamente. Feita esta aproximação, cabe ainda uma reserva: o problema para Derrida está na face imediatamente fônica da linguagem, que percorre Saussure e seus sucessores sob a alcunha de logocentrismo, enquanto para Deleuze repousa caráter opositivo dos elementos da linguagem, na conservação da imagem tradicional do pensamento. Não obstante, muitas outras reservas podem ser feitas à parte (e a partir) desta.
6 E aí o contraponto com a aproximação que Safatle faz entre Saussure e Hegel se nuança. Um termo é animado pelo seu contrário, denominado seu negativo, e todo sentido ocorre através de uma sequência de negações: haja sensação, existe um si da sensação, um objeto, conceito, um sujeito, outro sujeito, e assim por diante. Da mesma maneira, algo qualquer, seja o “amarelo” é função da extrema negação de todas as outras cores, “azul”, “verde”, etc. e, portanto, uma reafirmação sub-reptícia da identidade – “é a oposição que permite, inicialmente, a estruturação de processos de identificação”. E prossegue dizendo que “podemos afirmar que, tanto para Saussure quanto para Hegel” (SAFATLE, 2006, p. 129), a identidade consiste num conjunto de traços diferenciais. Posição que o próprio Deleuze endossaria – “segundo Hegel, a coisa difere de si mesma porque ela, primeiramente, difere de tudo o que ela não é, de tal maneira que a diferença vai até à contradição” (DELEUZE 2002, p. 58) – e mesmo a propósito da leitura opositivista e negativa de Saussure. Não é a que endossamos aqui, contudo, neste resgate do que consideramos ser ao sentido da diferença (e de modo derivado, da oposição) na sua concepção de linguagem. O valor linguístico está mais próximo da diferença do que da negação, pois aquela não precisa ser operada junto da ideia de infinito, tal como esta. Assim, não parece que as primeiras intuições de Saussure possam ser encontradas na dialética, mas, paradoxalmente, numa filosofia que pensa como a diferença opera a si mesma sem totalidade e sem unidade. Numa repetição da diferença eu encontramos, também, em Deleuze.
7 Simon Bouquet já propunha uma intenção semelhante por trás dos textos multifacetados que compuseram os cursos de Saussure publicados. Ao contrário das posições em torno de uma linguística estrita (podemos pensar em Françoise Gadet com seu Saussure: une science du langue e Émile Benveniste a longo dos seus Problemas de Linguística geral de modo contundente), Bouquet escreve que a tendência epistemológica de delimitar as proposições e o conteúdo do Cours poderiam recalcar “uma outra dimensão do pensamento saussureano, aquela de uma filosofia do espírito” (BOUQUET, 1997, p. 122).

Autor notes

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), São Carlos – SP, Brasil. Pós-doutorado em Filosofia na Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil. Bolsista FAPESP - processo nº 2019/21515-5.
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