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A crítica do universalismo hegeliano em três tempos: Fanon, Dussel e Freire1
Critique of hegel’s universalism by Fanon, Dussel, and Freire
A crítica do universalismo hegeliano em três tempos: Fanon, Dussel e Freire1
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 395-404, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepção: 09 Abril 2021
Aprovação: 16 Maio 2021
Resumo: O objetivo deste ensaio é apresentar a crítica do universalismo hegeliano realizada pelo conceito de zona do não-ser de Franz Fanon, pela zona da exterioridade de Enrique Dussel e pela pedagogia do oprimido de Paulo Freire. A (re)leitura da dialética hegeliana operada pelos três pensadores auxilia na compreensão do substrato do pensamento que orientou a concepção europeia sobre a liberdade inscrita no campo da prática política, localizando-a no tempo e no espaço. Além disso, suas propostas de “descolonização da dialética” renovam a imaginação e a práxis filosófico-política dos países subalternizados pelo contexto das relações de força do mundo moderno/colonial, em busca de outras referências simbólico-epistêmicas necessárias à transformação social da realidade de desigualdades do continente latino-americano. O gesto dos três pensadores abre o texto filosófico ou, mais especificamente, o pensamento hegeliano, a um diálogo infinito, não totalizável, a uma crítica às tentativas de fechamento metafísico e/ou ontológico do conhecimento, a sua universalização.
Palavras-chave: Universalismo, Hegel, Descolonização, Fanon, Dussel, Freire.
Abstract: The purpose of this essay is to present the critique of Hegelian universalism carried out by Franz Fanon’s concept of the zone of non-being, by Enrique Dussel’s zone of the exteriority and by Paulo Freire’s pedagogy of the oppressed. The (re) reading of the Hegelian dialectic operated by the three thinkers helps to understand the substratum of thought that guided the European conception of freedom inscribed in the field of political practice, locating it in time and space. In addition, his proposals for “decolonization of dialectics” renew the imagination and philosophical-political praxis of countries subordinated by the context of power relations in the modern/colonial world, in search of other symbolic-epistemic references necessary for the social transformation of the reality of inequalities of the Latin American continent. The gesture of the three thinkers opens the philosophical text or, more specifically, Hegelian thought, to an infinite, non-totalizable dialogue, to a critique of the metaphysical and/or ontological closure of knowledge, its universalization.
Keywords: Universalism, Hegel, Decolonization, Fanon, Dussel, Freire.
Introdução
A problemática sobre a qual nos debruçamos é crítica do universalismo hegeliano realizada pelo conceito de zona do não-ser de Franz Fanon, pela zona da exterioridade de Enrique Dussel e pela pedagogia do oprimido de Paulo Freire. A apresentação da argumentação se assenta tanto por uma leitura filosófica do pensamento hegeliano operado por três pensadores - diversos em suas questões e heterogêneos em suas respostas - como também por uma leitura assentada na ideia de que, por ser a filosofia um “saber narrativo” (cf. SAID, 2011) e textual, está imbuída do contexto sociocultural que sustenta sua prática. Situar o pensamento filosófico - ou, mais especificamente, o pensamento hegeliano - no plano da cultura, da prática cultural, implica provincializá-lo (cf. CHAKRABARTY, 2000), compreendê-lo como historicamente situado. Trata-se, em outras palavras, de localizá-lo no tempo e no espaço bem como interior das relações de poder sem as quais sua própria inteligibilidade não seria possível. O local a partir do qual o filósofo alemão fala ou escreve é o sistema mundo moderno/colonial e suas relações de força e epistêmicas (DUSSEL, 2012; GROSFOGUEL, 2003; MIGNOLO, 2011).
A “descolonização da dialética” em Fanon, Dussel e Freire revela o substrato do pensamento que orientou tanto a concepção europeia sobre a liberdade inscrita no campo da imaginação e da prática política (provincialização) como também aponta caminhos para a reconstrução da universalidade desde outras bases histórico-sociais (renovação crítica). O gesto dos três pensadores nos ajuda a abrir o pensamento hegeliano a um diálogo infinito, não totalizável, a uma crítica às tentativas de fechamento metafísico e/ou ontológico do conhecimento, sua universalização. Nesse diapasão, a leitura a seguir pretende escapar à compreensão, por vezes, binarizada sobre a descolonização do pensamento e sua territorialização epistêmica, através de uma leitura na qual espectralidade e presenças fantasmagóricas (DERRIDA, 1994) atravessam o texto, afastando qualquer pretensão de uma substancialidade, uma identidade própria.
A crítica do universalismo hegeliano pela releitura da dialética em Fanon, Dussel e Freire
Entre as décadas de 50 e 70, o pensamento latino-americano produziu críticas muito interessantes ao pensamento hegeliano (HEGEL, 2014), explorando os limites da dialética em contextos não-europeus e no contexto das relações entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos, termos utilizados recorrentemente à época. O interesse pelo pensamento hegeliano no contexto intelectual da época se devia a pensadores como Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Jacques Lacan influenciados pelas leituras de Hegel dos anos de 1930 de Alexandre Kojève (2002). Em seus projetos teórico-políticos, a despeito das diferenças, Frantz Fanon, Enrique Dussel e Paulo Freire – este último em menor grau – se destacaram por dar a ver os momentos não-previstos pela dialética hegeliana, favorecendo uma reconstrução de suas bases e expandindo as possibilidades de vida e de existência para além da compreensão metafísica ocidental da subjetividade cuja normatividade reconhece a pluralidade e a diversidade humanas para hierarquizá-las e dominá-las.
De início, é importante dizer, costuma-se ler a dialética hegeliana como aquela que supõe reciprocidade, circularidade e simetria (CICCARIELLO-MAHER, 2017); no entanto, no contexto das estruturas geopolíticas estabelecidas entre o Norte e o Sul global, as condições de possibilidade do exercício dialético se encontram bloqueadas por conta do processo de colonização e seu correlato fundamental, a racialização. Nas relações Norte e Sul, não há dialética porque as hierarquias raciais instituídas pela Europa moderna em seu domínio e conquista do mundo impede a possibilidade de qualquer movimento não previsto anteriormente por seu quadro teórico-epistêmico metafísico. Nesse ponto, parece haver certa semelhança entre os projetos de Fanon, Dussel e Freire com a “dialética negativa” de Theodor Adorno (2009) pela qual o filósofo alemão tentou sair dos impasses do que, anteriormente, havia identificado, com Max Horkheimer (ADORNO & HORKHEIMER, 1985), de razão instrumental do Ocidente. A tônica naquilo que escapa à totalidade é explorado, explícita ou implicitamente, no pensamento dos três teóricos latino-americanos na exata medida em que a alteridade desponta como aquilo que é necessário ao fazer crítico da totalidade.
A primeira condição para o exercício dialético é “ser”, quer dizer, ainda que o ser decorra da relação instituída pelo par dialético, não sendo anterior a ela, a dialética, ao produzir o ser, também estabelece os limites daquilo que contar como ser. Para Fanon, em “Os condenados da terra” (1968), o negro habita a zona do “não-ser” (GROSFOGUEL, 2012), a zona do colonizado, em contraposição ao colonizador que habita a zona do ser, da palavra plena, o lugar onde as coisas se completam ainda que temporariamente para se fissurar em seguida e se conciliar, posteriormente, num processo contínuo, permanente e fluido de uma totalidade, uma completude perfeita. Quer dizer, enquanto a zona do colonizar implica história, movimento, transformação, a zona do colonizado supõe uma aridez em que nada floresce exceto a animalidade própria do colonizado. Falta aos negros e aos colonizados o atributo definidor de sua humanidade, aquilo que lhe conferiria status ontológico idêntico ao europeu. Nesse sentido, a luta do negro contra o racismo é uma luta para estabelecer uma relação dialógica autêntica, o que faria desaparecer o racismo como a “linha de cor” (DU BOIS, 1999) que impede o movimento dialético, o movimento de circulação da palavra e do sentido.
A luta pela produção de um mundo em que caibam muitos mundos supõe a tomada da palavra pelo negro, a palavra como potência política de afecção e de transformação de si mesmo, de homens e mulheres na construção de ações conjuntas e coletivas, de sua atuação sobre o mundo. A tomada de palavra implica uma relação de força cuja direção serve de destruição das estruturas simbólico-coloniais pelas quais a vida foi capturada em benefício da desigualdade econômica e epistêmica. A violência pré-dialética fanoniana visa a forçar a entrada do negro nessa espécie de substância humana monopolizada pelos europeus desde 1492 em sua conquista do mundo. O questionamento da “linha de cor” que impede o movimento da palavra e do sentido implica o ultrapassamento dos territórios simbólicos instituídos pela modernidade colonial/imperial (MIGNOLO, 2011). No entanto, é bom dizer, a entrada na dialética não implica assimilação, mas um “humanismo radical” (NESBITT, 2013) em que as condições de simetria, reciprocidade e reconhecimento tornam possível o movimento de transformação, já que a verdade deixa de ser privilégio ou monopólio deste ou daquele ser para ser situada na relacionalidade compartilhada. A ultrapassagem da linha de cor supõe a criação de novos conceitos, a superação da dialética fracassada (GORDON, 2003), visto que tal processo é material e simbólico-epistêmico em suas implicações mútuas.
Entender que a primeira condição para o exercício dialético é “ser” remete imediatamente ao conceito hegeliano de reconhecimento, pois, para Hegel, um ser só o é, na medida em que é reconhecido por outro. “Pele negra, máscaras brancas” de Fanon (2008) é um exemplo de como a ausência de reconhecimento do negro no contexto do mundo colonial o destitui de sua humanidade, relegando-o a uma esfera sub-humana. A racialização do não-europeu operado pelo pensamento hegeliano relega as formulações onto-epistêmicas não conformadas ao Iluminismo à zona do não-ser, pois, conforme sabemos, Hegel (2010) diz, em sua “Filosofia da história”, que os negros africanos ainda estão em estágio da natureza, quer dizer, ainda não atingiram o status de seres plenos e humanos, seres de palavra. O branco não quer o reconhecimento do negro, não deseja o reconhecimento de seres sub-humanos, deseja o reconhecimento dos seus pares igualmente brancos. Dos negros querem o trabalho, a capacidade de seus corpos de produzir riqueza e, quando enxergam nas produções culturais negras algo de valioso, opera um processo de branqueamento como modo de manter a ilusão de superioridade necessária ao controle do outro subjugado.
O pensamento fanoniano da zona do não-ser encontra inúmeros pontos de contato com a crítica da totalidade europeia e da exterioridade realizada por Enrique Dussel em seu projeto por uma filosofia da libertação. Dussel parte da crítica de Emmanuel Lévinas (1990) sobre a totalidade europeia como a construção de uma retórica sobre si mesma como universal, superior, e o Outro, como particular, inferior. Quando Lévinas diz que a filosofia primeira é a ética, e não a ontologia, pretende destacar a filosofia europeia como um projeto de negação da alteridade. Na tradição filosófica ocidental, o Outro só é reconhecido em sua semelhança ou diferença em relação ao padrão europeu tido como universal não-marcado. Trata-se de um pensamento do Mesmo cuja normatividade não deixa espaço para se pensar o ser, noção colonizada pela cegueira dos valores das sociedades europeias. Há, portanto, na metafísica ocidental um gesto inaugural de violência contra o Outro (DERRIDA, 2005). Os estudos de Cheik Anta Diop (1974), por exemplo, inauguraram o interesse pelos elementos afro-asiáticos da filosofia grega antiga, colocando por terra a presunção europeia de originalidade como seu traço distintivo ontológico.
Em Dussel, a América Latina representaria este Outro instituído pelo centro imperial, pelo domínio territorial e epistêmico. Não há como fazer filosofia sem conhecer as condições de possibilidade do próprio exercício filosófico, sem ter no horizonte a historicidade pela qual a inteligibilidade do que é dito e por quem é dito se constitui. A ética é a filosofia primeira porque, em seu projeto, pensa o ser humano como essencialmente relacional. O ser não existe senão por suas relações com outros seres sem os quais sua própria “substancialidade” não existiria. A crítica de Dussel incide precisamente sobre a dialética que, por ser dialogia e intersubjetividade, creu escapar dos problemas do mesmo por uma suposta valorização da diferença, do movimento, da transformação e da liberdade. Há um devir na dialética, mas este se encontra dominado por suas suposições excludentes.
Dussel entende o método dialético como “a expansão dominadora da totalidade desde si” (1986, p. 196). Por outro lado, o método analético “é a passagem ao justo crescimento da totalidade desde o outro para servi-lo criativamente” (1986, p. 196). A filosofia da libertação se propõe superar a europeidade do pensamento, revelando o outro latino-americano em sua potência criadora e transformadora das relações de desigualdades econômicas, mas também epistêmicas. É interessante notar como Dussel opera um giro no falologocentrismo europeu cuja tendência é valorizar a fala elaborada discursivamente em detrimento da escuta, tarefa tida como essencialmente passiva de ter os orifícios dos órgãos auditivos penetrados pelo som. Ouvir é uma tarefa ativa assim como o é o óvulo que facilita ou dificulta a entrada do espermatozoide na fecundação. Esta linguagem demasiadamente particular usada para descrever a relação entre fala e escuta pode soar estranha a Dussel, mas certamente fará sentido para aqueles que, como nós, entendem que a libertação também implica uma erótica, a superação dos binarismos pelos quais o privilégio da fala e do sentido é dado ao homem. As distinções entre masculino e feminino e todos os discursos filosóficos ocidentais sobre a diferença sexual carregam a marca de uma colonização do feminino tido como o outro do pensamento. Não sem razão, o discurso dusseliano também problematizará a estrutura patriarcal do pensamento.
Nesse sentido, ouvir implica um fazer, um saber-ouvir “a voz que vem de mais além, do alto (aná-), da exterioridade da dominação” (DUSSEL, 1986, p. 199). Saber se o subalterno pode ou não falar é condição necessária, mas não suficiente para dar conta da luta pela libertação, pois o problema permanece no sentido de que, sem um ouvir, sem um saber-ouvir, a palavra se tornará morta. Ouvir é estar às bordas do sentido, como disse Jean-Luc Nancy (2015). Colocar-se nessa exterioridade para não incorrer nos erros da metafísica ocidental que supõe objetivá-lo através de sua parafernália epistêmica é uma operação de desconstrução do privilégio dada à fala que ainda permanece em alguns debates sobre os “lugares da fala” e nos de geolocalização do discurso. Situar o sentido às margens é um gesto – e também um risco – que busca escapar às concepções que inflam o próprio sentido com fronteiras limitantes e limitadoras dos desdobramentos de seu devir, de suas fugas.
O Outro deixa de ser descrito como um ser ontologicamente inferior porque lhe faltam atributos ontológicos para ser pensado em sua positividade. Por primeira vez, a América Latina será descrita por aquilo que pode oferecer ao pensamento filosófico dito ocidental, já que, segundo Hegel (2010), a América Latina é impotente tanto no plano físico como no espiritual. Não se trata, obviamente, de pensar a América Latina nos termos do que europeu espera, mas de desvelar os mecanismos pelos quais o esperado constitui numa negação do Outro. O excluído não é apenas um ser cujo movimento deveria ser o de se assimilar para se tornar ontologicamente completo, mas é ele mesmo portador daquilo que permite dar a ver a conformação de uma determinada visão de mundo responsável por sua exclusão. O reconhecimento da exclusão se torna fundamental para solapar o identitarismo totalizador da dialética hegeliana, descolonizado seus saberes considerados inferiores pela episteme imperial cuja jurisdição soberana instituída pela força e pelo mando é monopolizada como forma de garantir a perpetuação de seu domínio.
A zona de exterioridade funciona como um exterior constitutivo, uma espécie de exclusão includente. A presença do Outro não-europeu se justifica pela publicização de si como autossuficiente, como palavra plena. É interessante notar que a questão da exterioridade ou do “exterior constitutivo” aparece, de distintas formas, em pensadores contemporâneos como Jacques Derrida (2005) em sua discussão sobre o “suplemento”, em Judith Butler com a noção de abjeto (2003) ou, ainda, em Giorgio Agamben (2010) na noção do direito como fundado numa extralegalidade. A exterioridade tal como pensada por Dussel serve para criticar as ontologias totalizadoras num processo de ultrapassamento constante por uma fuga não prevista pelos próprios termos definidos como tais. A exterioridade torna possível pensar uma cosmopolítica nos termos de Isabelle Stengers (2018), como negociação cujos termos não estão dados ou estabelecidos a priori. A cosmopolítica não é uma doutrina, o momento final de uma dialética superior, para os conflitos e dilemas humanos, o que torna possível o questionamento das hierarquias pelas quais a horizontalidade é constantemente negada.
Dussel (1996) denuncia o mito hegeliano da modernidade, sobretudo, quando Hegel viu nos povos germânicos o espírito do que chamou de Novo Mundo. Na ficção hegeliana, os povos germânicos eram a representação do Espírito Absoluto, a realização mais bem acabada da liberdade. Hegel não reconhece o “ego conquiro” teorizado por Dussel como a condição de seu “ego cogito”, repudiando o papel do extermínio, da exploração e da violência contra os povos conquistados para manter sua ilusão da modernidade europeia como autopoieses, a pressuposição de que a civilização europeia é ela própria o motor de sua história numa autorreferência narcísica. Quando Dussel (2012) retoma a história de vida de Rigoberta Menchú, o faz para evidenciar como a história dessa mulher guatemalteca, indígena, maia, camponesa, de raça morena, mantém certa relação de exterioridade com a modernidade. Se a alteridade é aquilo que não está previsto pela totalidade, todo e qualquer conhecimento que temos dela é limitado. Aliás, o reconhecimento dessa limitação coincide com a crítica de Freire à arrogância como uma forma ilusória de completude. A consciência pode perceber um conjunto de vítimas, de excluídos e de afetados, mas nunca a totalidade, pois toda percepção da exclusão é parcial e temporária. Desse ponto de vista, pode-se ler o pensamento dusseliano como uma reflexão sobre a geolocalização dos discursos e do conhecimento, uma provincialização de certas suposições das teorias europeias.
O “humanismo radical” de Fanon como uma crítica ao racionalismo hegeliano e seu componente racista/colonizador não-reconhecido introduz uma ideia de “universalismo concreto”, pois sua construção passa pela assunção da experiência do colonizado embora não se mantenha numa “ideologia do experiencialismo”, a ideologia de que apenas a experiência autoriza a fala. As reflexões de Jean-Luc Nancy (2008), suas discussões sobre ser singular/plural, a ideia de um “ser-em-comum”, acenam para as possibilidades da reconstrução do universalismo desde bases outras, não-cristãs. O projeto fanoniano coincide com o dusseliano, já que se propõem refletir sobre as possibilidades do universal no contexto de homens e mulheres plurais situados historicamente com seus corpos que trazem memórias e fazem história. A crítica à racionalidade socialista implícita ao projeto fanoniano e dusseliano não implica o descarte desse projeto, mas o seu questionamento, sobretudo, no tocante às semelhanças que o projeto socialista guarda com a racionalidade liberal por se tratar de dois projetos construídos dentro da gramática da modernidade eurocentrada.
O projeto humanista europeu sofreu inúmeras críticas ao longo da história. Jean-Paul Sartre e Frantz Fanon contribuíram para evidenciar as cumplicidades do humanismo com o racismo. O humanismo crítico de Achille Mbembe (2010) segue como uma reflexão importante para a descolonização do humanismo. As perspectivas anti-humanistas dos anos de 1960 e o decreto das sucessivas mortes - morte do homem, do autor, da história etc. -, ou, ainda, a crítica da metafísica da subjetividade em Martin Heidegger e Jacques Derrida, por exemplo, são momentos da crítica ao “essencialismo humanista” e seus enclausuramentos narcisistas. Se, por um lado, a crítica de Heidegger ao humanismo se tornou indefensável para alguns dado seu envolvimento político com o nazismo, o caso de Derrida é emblemático de um pensador francês, ou melhor, franco-argelino, a, desde o início de sua trajetória intelectual, denunciar a “mitologia branca”, sua visão etnocêntrica implícita nas pressuposições sobre fala e escrita. Não sem razão alguns críticos como Robert Young (1990), por exemplo, enxergaram em Derrida um pensador “proto-pós-colonial” cujos desdobramentos ainda necessários foram realizados por pensadores como Gayatri Spivak e Homi Bhabha. Ainda sobre Derrida (2016), convém dizer que, em seu “Monolinguismo do outro”, ao dizer que toda cultura é colonial, lançou as bases para se pensar a descolonização como um processo nunca acabado, mas sempre por-vir. Nisso talvez Derrida e Dussel estariam de comum acordo.
O pensamento de Paulo Freire também se construiu a partir de uma leitura atenta ao contexto latino-americano, à “dramaticidade da hora atual”, evitando uma mera importação de teorias. O interesse pelo contexto histórico se justifica porque o homem não é um produto acabado da história, mas um processo de humanização ou de desumanização a depender das estruturas sociais pelas quais se constitui. Freire acentua o caráter essencialmente relacional do homem, sua dependência aos padrões culturais que lhe oferecem o substrato de sua constituição e de sua transcendência em relação àquele padrão. Tal compreensão fará Freire dizer que ninguém educa ninguém, pois, para ele, os homens se educam em comunhão (FREIRE, 2011, p. 71). Não há para Freire um sujeito ontologicamente completo que oferta ao outro as regras para alcançar tal completude. Nesse ponto, Freire e Dussel se encontram. Colocar a educação, processo pelo qual homens transformam outros homens, no horizonte da comunalidade implica pensá-la a partir de sua simetria, ou melhor, de um desejo de simetria. A simetria não implica a recusa de reconhecer que os homens ocupam ou possam ocupar lugares diferentes que impliquem inclusive algum nível de hierarquia, mas tomar como ponto de partida a ideia segundo a qual todos os seres humanos são radicalmente iguais no sentido de que todos trazem em sua natureza o ímpeto de sua própria realização.
Para George Ciccariello-Maher (2017, p. 54), a dialética hegeliana não começa nem com senhores nem com escravos, pois enxerga nela uma descrição de uma autoconsciência simples em busca de uma autoconsciência mais elevada, autônoma e autossuficiente. Nesta chave de leitura, pode-se dizer que, ainda que Hegel seja reconhecido como um pensador da historicidade, seu pensamento parece preso a um individualismo pequeno-burguês no sentido de ver a consciência como uma mônada isolada, muito próxima do monologismo cartesiano contra o qual costumeiramente é dito se opor. Essa visão de Hegel serve de contraponto para a leitura de Paulo Freire forjada até então, pois Freire está fundando um pensamento calcado numa relação simétrica, no reconhecimento do outro como portador de algo a aprender, mas também a ensinar. Ou melhor, num desejo de simetria que só é possível se determinadas condições sócio-históricas estiverem dadas. A simetria só será garantida se o diálogo estiver suficientemente democratizado para que todos possam tomar a palavra e fazê-la circular o mais livremente possível.
A pedagogia freiriana não é um conjunto de regras a serem seguidas, mas o vislumbre de um conjunto de condições que precisam estar garantidas para que a vocação ontológica humana para “ser mais” possa se realizar. Há aí, portanto, um ponto de corte muito importante em relação à tradição hegeliana, já que não supõe uma teleologia redentora cujo destino é sempre o progresso. As relações entre homens e mulheres podem levar à realização da natureza humana, esta vocação para “ser mais”, mas também pode levar à barbárie e à desumanização. Quando Freire propõe os “temas geradores”, por exemplo, está propondo algumas condições para que a educação, atividade essencialmente coletiva, se torne um processo em que a libertação possa se realizar, pois observou estruturas dominadoras negadoras da pluralidade e da liberdade humanas. Tal concepção reafirma a educação como um processo diretivo, mas não doutrinário; a diretividade está em assumir que o ato pedagógico não está voltado para a realização da lógica do mercado capitalista (neo)liberal, mas para a autorreflexão pela qual homens e mulheres podem se autodeterminar e se colocarem como sujeitos políticos da história que ajudam a tecer.
O pensamento crítico não é uma lição a ser aprendida ou decorada, repetida ou depositada, pois não diz respeito à reprodução do já existente. A alfabetização envolve uma leitura do mundo anterior à palavra escrita cujo horizonte dialético impulsiona seu exercício crítico. A educação realiza a vocação humana para “ser mais”, conforme já posto, pois, para Freire, a liberdade está no ser, e não no ter, como ocorrem nas sociedades liberal-capitalistas. A propósito de Freire, Dussel (2012, p. 435, grifo do autor) escreverá: “a ação pedagógica se efetua no horizonte dialógico intersubjetivo comunitário mediante a transformação real das estruturas que oprimem o educando”. Na abordagem freiriana, a dialética é um método pelo qual a humanização do homem como homem se torna factível. Trata-se de uma dialética afinada às exigências do tempo presente, à já referida “dramaticidade da hora atual”, uma vez que está comprometida com uma leitura atenta da desumanização pela qual seres humanos haviam submetidos por outros homens. A educação é um ato político no qual homens e mulheres plurais se envolvem para conjuntamente fazer escolhas que impactam a todos como um todo e a todos individualmente.
O diálogo proposto por Freire não é uma conversa, mas uma práxis no sentido de que comportam ação e reflexão. A ação sem reflexão se torna ativismo, a reprodução mecânica de ações desprovidas de sentido; a reflexão sem ação se torna verbalismo, palavras vazias. O diálogo é o movimento pelo qual o homem se historiciza e, ao fazê-lo, se torna uma historicidade pura, fazendo da mudança contínua e perpétua seu atributo ontológico definidor. A educação bancária é a negação deste movimento, já privilegia a memorização mecânica de conteúdos, a repetição desprovida do substrato doador de sentido à vida. Depositar conteúdos no educando é tratá-lo como objeto, desumanizá-lo a favor de uma educação tecnicista voltada para a lógica do mercado. A ruptura com a educação bancária implica uma ética do cuidado, tratar o outro como sujeito, um ser de abertura e de possibilidade. O cuidado implica ouvir, escutar, uma escuta atenta e reconhecedora do outro como um ser separado de mim, com desejos, vontades, pensamentos, sonhos próprios. O escutar, atitude geralmente considerada passiva, é um ato ativo produtor de sentido, pois não há educação sem escuta do educando. Na tradição fenomenológico-existencialista, o cuidado é entendido como um modo de ser/estar no mundo, próprio aos seres humanos, já que, como projeto, se lança em um futuro, afirmando sua incompletude.
Por essa razão, a libertação não vem sem a ausência de certo “medo à liberdade” (FREIRE, 1997), pois implica a ruptura com a “consciência ingênua” que oferece a tranquilidade e a segurança das certezas. Ao romper com as explicações fatalistas, a crítica gera ansiedade, retirando do mundo visões mistificadores que o constroem como uma realidade estática e, como consequência, situando-a como uma realidade que pode e deve ser transformada. Em outras palavras, o mundo não é, mas está sendo. O “estar sendo” implica a abertura à alteridade, ruptura com a totalidade. Ao trazer o debate do medo para a discussão sobre a libertação, Freire fala da importância dos sentimentos e da emoções no processo de transformação da realidade. A transformação requer a canalização de determinados sentimentos como parte do movimento de mudança.
Considerações finais
O debate latino-americano enraizado na busca por libertação e na descolonização epistêmica representada aqui por Fanon, Dussel e Freire revela a importância da reelaboração do universalismo a partir da concretude histórica, do ponto de vista de quem foi e é submetido a um processo de desumanização. Diferentemente do universalismo abstrato cuja compreensão não abarca os processos pelos quais a dialética humanização/desumanização opera, o ponto de partida é a história de homens e mulheres em seu cotidiano de dominação, violência e exploração. Com isso, Fanon, Dussel e Freire não apenas produziram reflexões muito importantes para a reconstrução da dialética hegeliana como também deu a ver os limites do substrato que orientou a concepção europeia sobre a liberdade, sua práxis teórica e política. Embora não tenha pretendido imprimir qualquer ideia de unidade entre os pensadores aqui elencados, suas obras parecem convergir no sentido de que recuperação das formulações onto-epistêmicas não conformadas ao Iluminismo como o “tribunal da razão” é uma das estratégias fundamentais para a construção de um pensamento em sintonia com os desafios históricos de uma determinada época.
A leitura proposta acima só faz sentido se lermos o texto filosófico como um gesto não programado, uma interrupção na cadeia de interpretações (con)sagradas, um “lance de dados” cujo resultado é marcado, em alguma medida, pela incerteza e pela imprevisibilidade. Perguntar sobre a possibilidade de fala do subalterno (SPIVAK, 2010) como fizeram, ainda que de forma não totalmente explícita, Fanon, Dussel e Freire, é uma oportunidade para compreender os limites e alcances do universalismo europeu, tornando o conhecimento localizado (HARAWAY, 1995), demasiadamente localizado. Deixa-se de entender a parcialidade como aquilo que inviabiliza o conhecimento verdadeiro para situá-la como condição à uma leitura não totalizável, que não supõe fechamento ou unidade. Isso certamente fere a imagem do pensamento ocidental como aquele que transcende os rastros da particularidade e o situa no trans-historicidade do universal, mas, certamente, abre horizontes que permitem inscrever certos homens e mulheres no movimento da história e da política.
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Notas
Autor notes