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Antropogênese e filosofia indígena: o homem e o animal
Anthropogenesis and indigenous philosophy: the man and the animal
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 405-416, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepção: 03 Março 2021

Aprovação: 11 Maio 2021

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v21i2.2399

Resumo: Promovendo uma releitura de L’aperto: l’uomo e l’animale de Giorgio Agamben, o presente artigo tem a dupla intenção de expor a máquina antropológica que opera clássica e modernamente a antropogênese e de apresentar aspectos da filosofia indígena (a filosofia produzida e expressada por ameríndios brasileiros) que orientam a relação entre o homem e o animal, bem como entre o humano e animalidade, em contraste. Arriscamos empregar a expressão filosofia indígena, conscientes de que ela pode ser mal recebida, embora tenha o texto uma implícita defesa dessa possibilidade. Entre os interlocutores indígenas, visitamos Gersem Baniwa, Daniel Munduruku e Davi Kopenawa, entre outros. Se o contemporâneo está absolutamente presente e cativa a nossa atenção com as luzes e obscuridades, nada pode ser mais contemporâneo do que o esforço de ampliar os nossos horizontes epistemológicos.

Palavras-chave: Giorgio Agamben, Antropogênese, Filosofia indígena, Homem e animal.

Abstract: Promoting another reading of L’aperto: l’uomo e l’animale of Giorgio Agamben, the present article has the double intention to expose the anthropological machine that realizes the classical and modern anthropogenesis and to introduce aspects of indigenous philosophy (the philosophy produced and expressed by Brazilian Amerindians) which influence the relation between man and animal, as well between humankind and animality, in contrast. Taking the risk here of using the expression indigenous philosophy, aware of the hypothesis of being misunderstood, we want to defend the possibility of this use. Between the Brazilians Amerindians, we are going to visit together the writings of Gersem Baniwa, Daniel Munduruku e Davi Kopenawa, among others. If the contemporary is absolutely present at us and captivates our attention with lights and shadows, nothing can be more contemporary then the effort of enlarge our epistemological horizon.

Keywords: Giorgio Agamben, Anthropogenesis, Indigenous philosophy, Man and animal.

No livro que chega até a comunidade acadêmica internacional como uma autobiografia de Giorgio Agamben, publicado aos seus setenta e cinco anos, cifrado pelas imagens de seus ambientes domésticos de trabalho, suas mesas e suas estantes, composto de explicações a partir de imagens, com o pitoresco título Autoritratto nello studio, o autor menciona que desde dezembro de 1979 mantém cadernos nos quais anota pensamentos, observações, notas de leitura, citações, mas também sonhos, encontros e eventos particulares. São cadernos destinados ao exercício criativo e à memória, cadernos destinados às estantes entre a biblioteca, nunca longe demais das mãos que se avizinham para uma consulta ou para outra anotação rápida em caligrafia descuidada. “São parte essencial do meu laboratório de pesquisa e contêm frequentemente o primeiro germe ou os materiais de um livro a vir ou em curso de escrita”, acrescenta o filósofo italiano, “às vezes me aparecem como a parte mais viva e preciosa da minha vida e outras vezes como o seu inerte desperdício” (AGAMBEN, 2017, pp. 72-73). Cadernos cheios de anotações incompletas, podendo ser rasuradas ou desenvolvidas, revelam o pensamento do autor consigo mesmo, aquilo que há de mais íntimo e importante no momento em que escreve. Escritos com maior liberdade, podemos imaginar o autor interrompendo a escrita de um livro ou alguma atividade de viagem ou caseira para se debruçar a eles. Isto explica em parte porque Giorgio Agamben é capaz de escrever livros diversos simultaneamente, com diferentes temas e diferentes problemas filosóficos a serem enfrentados, e porque no seu projeto filosófico mais conhecido, denominado popularmente de Homo sacer, a ordem cronológica das publicações não coincide com a ordem classificatória imposta pelos números de capa. Volumes que devem ser inseridos em fases anteriores do projeto filosófico saem publicados em datas posteriores.

Assim, penso que o livro L’aperto: l’uomo e l’animale foi provavelmente composto a partir de fragmentos escritos em diferentes momentos da vida do autor. Em Autoritratto nello studio, há apenas uma menção ao livro: embora nunca tenha sido integrado ao projeto Homo sacer e tenha sido publicado apenas em 2002, o livro foi escrito no primeiro estúdio de Veneza, onde o filósofo viveu por quase oito anos, lugar onde o projeto principal começou a tomar forma, que viu nascer Quel que resta di Auschwitz em 1998 e, tudo indica, onde foi finalizado Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita, publicado pela primeira vez em 1995 (cf. AGAMBEN, 2017, p. 67). A relação ontológica entre o homem e o animal, que o havia instigado em L’aperto, pouco aparece nas publicações posteriores, levando os seus leitores a crer que a questão foi abandonada ou terminou recebendo menor relevância no conjunto da obra. Em Autoritratto nello studio mesmo, a autobiografia por imagens, pouco notamos alguma maior preocupação com o tema, são poucas as referências a animais ou à relação ontológica entre o homem e o animal. Há todavia uma passagem significativa ao final da narrativa reflexiva na qual Giorgio Agamben procura explicar as razões de conservar desde os anos setenta uma coleção de velhos livros infantis ilustrados. Para além de uma particular inclinação por tudo que se refere à infância, temos notícia do duradouro impacto que o livro O problema da antropogênese, publicado pelo anatomista holandês Lodewijk Bolk em 1926, causou no autor. Na anatomia comparada de Bolk, o homem não se assemelha tanto a um primata adulto, mas a um feto de primata, ou seja, as características corporais dos humanos são comparáveis às características corporais de um feto simiesco tornadas permanentes. Enquanto os macacos conhecem um desenvolvimento somático posterior que os diferencia do estado fetal, desse ponto de vista os homens experimentam um estado fetal que permanece por toda a vida, fato que expressa algum retardo no desenvolvimento e alude ao tempo que a espécie humana leva para produzir um indivíduo adulto (cf. AGAMBEN, 2017, pp. 128-130)2. Nesse sentido, a civilização construída pelo homem seria uma resposta à sua imaturidade corporal, todo o nosso esforço civilizatório viria a suprir a sua defasagem corpórea. O que é ainda mais evidente na infância e na velhice, diga-se de passagem, quando dependemos da assistência de outros até para os menores cuidados, sob pena de não conseguirmos sequer sobreviver. Mais adiante, no mesmo livro autobiográfico, uma outra breve passagem recupera o que fora objeto de L’aperto. Sob o prisma conceitual, desde os gregos, “a separação da vida vegetativa da vida sensitiva e intelectual é a operação que dá fundamento à máquina antropológica do Ocidente, com todas as misérias e os sucessos que isto implica” (AGAMBEN, 2017, p. 143). O conceito de homem é o produto de uma máquina que separa elementos biológicos.

A reflexão filosófica desenvolvida por Giorgio Agamben em L’aperto: l’uomo e l’animale, em uma brochura apartada do projeto filosófico que ocupava os seus dias e estava destinado a se tornar uma espécie de legado consciente, coloca em relevo uma aporia da filosofia tomando como objeto de análise o campo de tensões dialéticas que separam a animalidade e a humanidade do homem, tanto no sentido da necessária máquina antropológica que desde a antiguidade distingue o homem do animal, quanto no sentido crítico e biopolítico do retorno do homem à animalidade. Segundo o filósofo italiano, “as aporias da filosofia do nosso tempo coincidem com as aporias deste corpo irredutivelmente teso e dividido entre a animalidade e a humanidade” (AGAMBEN, 2002, p. 20). Por um lado, o “homo sapiens não é, portanto, nem uma substância nem uma espécie claramente definida; é antes uma máquina ou um artifício para produzir o reconhecimento do humano” (AGAMBEN, 2002, p. 34). Ambas as máquinas, a antiga e a moderna, somente podem funcionar “instituindo no seu centro uma zona de indiferença, na qual deve acontecer [...] a articulação entre o humano e o animal, o homem e o não-homem, o falante e o vivente. [...] o verdadeiramente humano que deve ali advir é apenas o lugar de uma decisão incessantemente atualizada” (AGAMBEN, 2002, p. 43). Para se afirmar na sua humanidade, o homem deve se distinguir da sua animalidade em um sempre novamente demandado processo de antropogênese. A afanada dignidade humana somente pode ser encontrada se a espécie humana for elevada ao topo da escala animal. Por outro lado, na perspectiva em que a animalização do homem é observada criticamente, capitalismo e biopolítica trazem de volta a ameaça da animalidade sobre o homem, do liberalismo universal (american way of life) aos regimes totalitários do século vinte, onde o que resta é a vida nua (cf. AGAMBEN, 2002, pp. 17 e 79). Trata-se assim de uma linha de argumentação que se aproxima do fato da vida biológica ter se tornado o objeto privilegiado do poder político, na acepção de Michel Foucault, bem como do fato do animal laborans, com a redução do homem ao metabolismo que conserva a vida, ter vencido o enredo histórico no qual estamos inseridos, tal como ponderou Hannah Arendt. O filósofo francês é citado expressamente pelo menos duas vezes no texto de Giorgio Agamben (cf. AGAMBEN, 2002, pp. 20 e 23).

Um capítulo interessante de Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita é aquele do homem-lobo. Ancorado na pesquisa do jurista Rudolf von Jhering em O espírito do direito romano, lemos na passagem que a condenação sacer esse de exclusão da comunidade jurídico-política remonta aos fragmentos da vida primitiva dos povos indo-europeus, nos quais a imagem do lobo adquire particular importância. O emblema que configura a invocação do homo sacer para a filosofia de Giorgio Agamben vem carregada da relação entre o homem e o animal, ou entre o homem e a animalidade que está no seu subterrâneo. Aquele que viola a lei é um fora-da-lei, deve reconhecer-se nele uma natureza de fera que remete à condição pré-social. O bandido vive plenamente a sua condição de abandono. O indivíduo que afronta o pacto social não se esqueceu da sua condição primeira de ser lobo do homem, ficou retido naquele estado de natureza que Thomas Hobbes viu preceder ao estado civil. O criminoso é um pária e assim deve ser reconhecido. Presente na antiguidade jurídica germânica e escandinava, mas também na tradição anglo-saxônica e francesa, “aquele que deveria permanecer no inconsciente coletivo como um monstro híbrido entre humano e ferino, dividido entre a selva e a cidade – o lobisomem – é, portanto, na origem a figura daquele que foi banido da comunidade”, a sua vida é “um limiar de indiferença e de passagem entre o animal e o homem” (AGAMBEN, 1995, p. 177). Não é certamente por acaso que qualificamos de animais os nossos criminosos, especialmente os que cometem crimes hediondos longe do sistema financeiro, e nos concebemos o direito não escrito de tratá-los de maneira vil, desafogando em retribuição uma agressividade pré-jurídica. De acordo com o imaginário humano, no vale tudo da natureza ainda não civilizada. Com uma facilidade a toda prova, nossa retórica criminal, bem alimentada pela retórica moral, faz o homem indesejável retornar ao estado de animalidade, sempre que conveniente3.

Contudo, se a condição do homem é aspirar à plena humanidade (cf. LYOTARD, 1989, p. 12), o mais provável é que ao final, “no último dia, as relações entre os animais e os homens se comporão em uma nova forma e o homem mesmo se reconciliará com a sua natureza animal” (AGAMBEN, 2002, p. 11). Seria notável se considerássemos que a natureza animal está no nosso futuro e não no nosso passado, como comumente o fazemos, sem que a perspectiva adquira qualquer tom pejorativo, qualquer descida na escala biológica. A questão tem uma aguda implicação na ontologia, e o homem acostumou-se a compreender-se ontologicamente na sua diferença de estatuto e de hierarquia com o mundo animal. Ainda sob a atmosfera da analítica fenomenológica do Dasein de Sein und Zeit, em um curso de inverno sobre os conceitos fundamentais da metafísica iniciado em 1929, Martin Heidegger se propõe a interrogar a origem e o sentido daquela abertura que se produziu no vivente com o ser humano. De acordo com a leitura do filósofo italiano, mais uma vez o propósito é considerar a estrutura fundamental do Dasein, agora em comparação ao animal, que é inicialmente definido como pobre de mundo (cf. AGAMBEN, 2002, pp. 52-53). Onde o problema é definir a fronteira, a separação e a proximidade entre o animal e o homem, a luta irresolúvel entre o desvelamento e o velamento do mundo humano é a luta intestina entre o homem e o animal (cf. AGAMBEN, 2002, p. 72)4. Cuida-se de um pertinente problema filosófico que deve receber o tratamento adequado. Com o olhar fixo na herança heideggeriana, mas talvez também contra essa mesma herança, Giorgio Agamben lança a hipótese de que o homem, enquanto pastor do ser, pode apropriar-se do seu próprio ocultamento e de sua própria animalidade, retirando-a de seus esconderijos e declinando-a do destino de ser um objeto de domínio, para ser pensada como tal, animalidade, puro abandono (cf. AGAMBEN, 2002, p. 82). Transcrevo abaixo uma passagem transparente, na qual estão presentes em alusão episódica as noções de máquina (ou dispositivo) e inoperosidade, cujo teor guarda sobretudo um chamado à suspensão sabática do que separa homem e animal.

Na nossa cultura, o homem [...] sempre foi o resultado de uma divisão e, ao mesmo tempo, de uma articulação entre o animal e o humano, na qual um dos dois termos da operação era também o que estava em jogo. Tornar inoperante a máquina que governa a nossa concepção do homem significará assim não procurar novas – mais eficazes ou mais autênticas – articulações, mas antes mostrar o vazio central, o hiato que separa – no homem – o homem e o animal, arriscando-se neste vazio: suspensão da suspensão, shabbat tanto do animal quanto do homem (AGAMBEN, 2002, p. 94)5.

Mediante duas atualizações em textos publicados mais de dez anos depois e após de L’uso dei corpi, último livro do projeto Homo sacer, mostrando que o tema ainda deve ser objeto de análise, o filósofo italiano realiza em Il fuoco e il racconto e Creazione e anarchia novas abordagens do problema. Na antropogênese, “o processo está sempre em curso, porque o homem não cessa de se tornar humano e de restar inumano, de entrar e sair da humanidade” (AGAMBEN, 2014, p. 23). Mais uma vez se referindo ao curso sobre os conceitos fundamentais da metafísica de Martin Heidegger, o filósofo italiano observará que “o problema filosófico do curso é aquele do limite – isto é, simultaneamente, da separação extrema e da vertiginosa proximidade – entre o animal e o homem” (AGAMBEN, 2017, pp. 83-84). O mundo está em transformação. Nós os habitantes do século vinte e um somos espectadores privilegiados da vertiginosa velocidade na qual muda a condição humana. O homem de plástico que hoje circula pelo planeta, depois de viver a idade da pedra, da prata, do ferro e do ouro, crê ainda em alguma essência do homem separada do animal e do vegetal, que a terra passiva está à nossa disposição recursal e que “o ‘gênero humano’ seria o único a ter-se libertado parcialmente da sua animalidade” (MBEMBE, 2017, p. 28). O que não estamos ainda em condições de saber é se essa essência do homem, essa humanidade evoluída, nos colocará em outro mundo no qual a escravidão humana é a forma geral, ou antes chegará a catástrofe ambiental, outra pandemia fatal ou o domínio independente da inteligência artificial.

A tese principal de L’aperto: l’uomo e l’animale é expressa no pequeno capítulo intitulado antropogênese. Em resumo, a antropogênese é a permanente operação metafísico-política que define a superação da condição animal pelo homem, que pretende definir o que é o humano. Em detalhes, é o resultado da cesura no interior do homem, bem como da articulação, entre o humano e o animal. Se antropogênese é também uma operação política, isso se deve ao fato de compreender decisões, informadas e interessadas bem entendido, sobre a vida humana, demonstrando uma vez mais que a política que conhecemos é originalmente biopolítica. Se a antropogênese gera diferentes resultados a depender das modulações dos jogos de poder que a regulam, ou contaminam a existência, cumpre situar o homem em posição tática vantajosa. Cada vez, sempre que acionada a maquinaria antropológica. Trata-se de um campo de tensões. Estabelecido o campo de tensões entre a animalidade e a humanidade, poderia o homem ocidental ser capaz de se mover com maior tranquilidade nesse campo, absorver a tensão e converter o seu sentido. Nossa ansiedade, porém, conhece o campo de tensões como um mal a ser evitado.

Encontramos uma descrição explicativa da máquina antropológica por Benedito Nunes, ainda que o professor paraense confie aos gregos alguma resistência na separação que viria a ser consolidada séculos mais tarde. Reproduzo a seguir.

Quando o darwinismo colocou-nos no topo da evolução, abrindo-nos a segunda ferida narcísica, depois daquela que Copérnico nos infringira, o pensamento filosófico moderno já havia separado o homem do animal. Homem e animal se tornariam cada vez mais estranhos entre si quanto mais se consolidasse, a partir do século XVII, na filosofia cartesiana, a identidade entre pensamento e consciência. Com efeito, Descartes efetuaria, depois da demonização cristã do animal, o primeiro corte moderno entre este e o homem, aproximados na Antiguidade por meio da noção de alma, tanto em Platão quanto em Aristóteles, que reconhecia uma alma sensitiva, uma alma racional e uma alma vegetativa (NUNES, 2011, p. 200).

O texto pertence a uma conferência intitulada O animal e o primitivo: os outros de nossa cultura, proferida em seminário realizado na Amazônia em 2005. Aquém da compreensão de parentesco presente na cultura ameríndia, os indígenas e os animais conservam sina comum cifrada pela cultura da civilização. Estranhos aos olhos de quem vê, são colocados de lado, esquecidos, desprezados. Enquanto príncipe da cultura, o homem branco gostaria de se livrar de outros que o ameaçam com a simples presença questionadora, algo que pode estar inclusive dentro dele.

Dado que as raízes de nossa cultura são greco-latinas, há que destacar a presença desses que ficam à margem dela, o animal e o primitivo. A noção que me parece ser um elemento de ligação entre ambos é a de “bárbaro”, tal como os gregos a usavam: aquele considerado estranho à cultura grega ou à sua área de influência [...] Com o animal, as relações são, sobretudo, transversais, ou seja, o animal é considerado o oposto do homem mas ao mesmo tempo uma espécie de simbolização do próprio homem. Na acepção comum, simboliza o que o homem teria de mais baixo, de mais instintivo, de mais rústico ou rude na sua existência. Por isso mesmo o animal para nós é o grande outro da nossa cultura (NUNES, 2011, p. 109).

Com efeito, no processo de colonização do continente americano, mas também no movimento imperialista contra o continente africano séculos adiante, houve sempre a identificação perniciosa entre o habitante primitivo e o animal, reduzidos ao denominador comum do que é selvagem. Os habitantes das terras coloniais não são sujeitos ou cidadãos com os quais se deve negociar, mesmo na posição de inimigos. Qualquer escambo que tenha lugar nessa ambiência tem como único objetivo vencer resistências para possibilitar a aproximação, impedir a violência contra os invasores. Aliás, eles estão fora de qualquer possibilidade de mútua compreensão, não pertencem à mesma natureza humana. “O fato de ser possível subjugar de modo absolutamente ilegal deriva da negação racista de qualquer vínculo comum entre o conquistador e o nativo. Aos olhos do conquistador, a vida selvagem é só outra forma de vida animal” (MBEMBE, 2017, p. 127, grifos do original). Haveria aí um receio de que o habitante primitivo agisse como parte da natureza, de modo imprevisível e irracional, sem a mediação moral do homem europeu educado, medo de que ele agisse com toda a pujança que encerram os instintos na sua forma básica animal6. Como resultado, temos a favor da colonização um complexo de argumentos aceitáveis que operam na sua justificação. “O mundo colonial era um mundo com uma alucinante capacidade de se adaptar à destruição dos seus objetos – incluindo dos indígenas” (MBEMBE, 2017, p. 77). Nessa terra de ninguém, à espera de ser descoberta e explorada, os perigos a serem evitados pelos colonizadores eram aqueles que poderiam eventualmente atacar, como antes de atracarem eram temidas as intempéries do mar ou seus mistérios subaquáticos. Animais e indígenas compartilham de um mesmo destino para a cultura do homem branco: ou são a muito custo assimilados, para perderem o que possuem de mais animalesco, ou são condenados à extinção.

Não parece haver na cultura indígena ameríndia uma máquina antropológica que hierarquize os homens em relação aos animais, nem que torne decisiva a conceituação do que é o homem em contraste à sua animalidade, nem há o gesto de animalizar para tornar a vida nua. No pensamento ameríndio, que aqui arriscamos denominar de filosofia indígena7, reafirmando mesmo que minoritariamente que o que denominamos de filosofia é uma experiência partilhada e comunicável, a distinção entre o homem e o animal não cumpre a mesma função que ocupa no mundo ocidentalizado. Precisamos assim escutar vozes indígenas que procuram atualmente nos comunicar outra ontologia (algumas delas tendo cursado a licenciatura em filosofia em nossas universidades). São vozes muito vivas, que temos a sorte de escutar no idioma português. São vozes que se tornaram lideranças indígenas, nesse movimento que, uma boa notícia, não para de crescer e adquirir respeito no país. Gersem dos Santos Luciano Baniwa, por exemplo, no livro que traz o pedagógico título O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, publicado com o selo da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), traz comentários esclarecedores.

Os povos indígenas têm conservado a visão comunitária e sagrada da natureza. Por isso, as montanhas, os lagos, os rios, as pedras, as florestas, os animais e as árvores têm um alto significado. Os acidentes geográficos e os fenômenos naturais são personificados e foram criadas em torno deles narrativas orais e escritas. Território é condição para a vida dos povos indígenas, não somente no sentido de um bem material ou fator de produção, mas como o ambiente em que se desenvolvem todas as formas de vida. Território, portanto, é o conjunto de seres, espíritos, bens, valores, conhecimentos, tradições que garantem a possibilidade e o sentido da vida individual e coletiva (BANIWA, 2006, p. 101).

E ainda:

Com a integração profunda e harmônica com a natureza, os índios sentem-se parte da natureza e não são nela estranhos. Por isso, em seus mitos, seres humanos e outros seres vivos convivem e se relacionam. Intuíram o que a ciência empírica descobriu: que todos formamos uma cadeia única e sagrada de vida, por isso, a atitude de respeito em relação à natureza. Tudo é vivo e tudo vem carregado de valor, de espírito e de mensagens sobre os segredos da vida que os homens precisam decifrar para viver (BANIWA, 2006, p. 102).

O literato indígena Daniel Munduruku, nascido na floresta que fica ao longo da bacia do rio Tapajós, explica em O banquete dos Deuses: conversa sobre a origem e a cultura brasileira que uma pedra, uma árvore, um rio, um ser humano, o fogo, a água, o vento, a terra, os demais seres vivos, todos são espíritos e fazem parte da trama da vida, são familiares que dividem o mesmo destino. Se na história da criação da humanidade, cada povo precisa distanciar-se do mundo animal para se encontrar como povo, para criar uma cultura comunitária e um modo de vida, não há distanciamento que cause rupturas nessa trama, tudo permanece interconectado (cf. MUNDURUKU, 2009, pp. 27-33 e 36). Todavia, desde o instante em que o homem compreendeu-se soberano, “no momento em que o ser humano colocou-se acima das outras coisas criadas, ele decretou seu desligamento da teia da vida” (MUNDURUKU, 2019, pp. 42-43). Várias das histórias contadas pelo autor ilustram outro modo de se relacionar com animais e os apresentam como fonte de saber. Na narrativa O karaíba: uma história do pré-Brasil, são figuras humanas e animais que confidenciam ao protagonista Perna Solta em seu ciclo de elevação os segredos do universo e tudo o que estava escrito através das coisas criadas (cf. MUNDURUKU, 2018, p. 18). Em Sabedoria das águas, é o gavião-real que porta a sabedoria ao guerreiro Koru, que lhe apresenta o caminho de vida e de morte, é a onça branca que guia a ele e à sua mulher Maíra para o fundo das águas do rio Tapajós (cf. MUNDURUKU, 2004, pp. 27-29).

Entre os Kaxinawá, conhecidos na literatura etnográfica, assim como a imensa maioria dos povos Pano, como um povo que se define na relação com o outro, a partícula nawa é usada para designar tanto homens de outra cultura, incluindo-se aí grupos indígenas vizinhos, quanto animais. Se for comum encontrar entre os povos indígenas em geral a concepção de que o encontro com o diferente, consubstanciado particularmente na situação do estrangeiro, é uma oportunidade de transcendência e transformação permanente, esse povo tem especial predileção pelas ocasiões de defrontação com a corporeidade e a espiritualidade de animais e plantas. Dado que é ainda mais atraente se observarmos que “humanos estão no caminho de se tornarem outros e este processo, para as sociedades araweté e kaxinawa, será somente completado depois da morte” (LAGROU, 2002, p. 33). Tornar-se outro consiste em dinâmica elementar para essas comunidades indígenas que habitam as áreas ribeirinhas do Acre, acostumados ao longo de sua história com migrações que cruzam em ambos os sentidos as fronteiras brasileiras e peruanas. “A ontologia kaxinawa considera a alteridade como uma dificuldade, em última instância fatal, um inescapável e insolúvel paradoxo: o único modo de concebê-la é tornar-se, a si próprio, ‘outro’” (LAGROU, 2002, p. 33). Uma dificuldade, bem entendido, que coincide com a vida humana, um caminho irresistível que define o modo de ser humano na terra.

Não é certamente aleatório que muitos mitos de origem presentes entre os povos indígenas no país tragam ancestrais animais, compreendidos em sua presença não apenas como uma imagem simbólica ou representativa. O povo amazônico Mawé, conhecido como povo do guaraná, com um nome que designa papagaio falante, surge da interação entre uma mulher, uma árvore, um rio e um buraco na terra, sendo precedido de vários animais que nascem como irmãos do mesmo útero da terra antes do primeiro homem (cf. YAMÃ, 2001, pp. 20-23). O primeiro homem se chama Mary-Aipók, homem verdadeiro, porque os outros ou eram falsos bichos humanos ou eram humanos também, sendo abençoados e amaldiçoados e recebendo afazeres no mundo conforme suas aparências. Em outro mito de criação, o primeiro ser vivo criado, depois da existência do sol e da lua, é uma cobra-grande fêmea, que dará origem com o seu corpo ao mundo que conhecemos e a todos os demais seres da natureza (cf. YAMÃ, 2001, pp. 10-13). Daniel Munduruku escreve em um livro biográfico e pedagógico que “Deus sonhou o ser humano como quem sonha os bichos da floresta” (MUNDURUKU, 2019, p. 38). Entre os Marubo, são muitos os cantos de narração e os mitos permanentes de criação que identificam povos e animais, assim como pessoas e animais, todos igualmente matéria da terra, rememorando um tempo no qual homens e animais ainda não se distinguiam (cf. CESARINO, 2013, p. 207) e a favor do qual operam as cosmologias xamanísticas, que dentro do que ficou conhecido como perspectivismo ameríndio, sustentam que “a distinção entre humanos e animais não se dá por uma cisão ontológica irreversível (humanos possuem a cultura, animais estão restritos à natureza, tal como na metafísica moderna)” (CESARINO, 2013, p. 220). Além disso, outro fator que merece destaque é que os povos da floresta compartilham com os animais a ética da caça: não se mata mais do que se pode comer (cf. CESARINO, 2013, p. 159), são caçados seres livres que não estão em cativeiro e que serão tombados na medida da necessidade de alimentação do grupo caçador e de suas famílias, bem diverso do que nos ensinaram as culturas civilizadas ocidental e oriental.

De acordo com a etnografia Wari’, concernente a grupo amazônico meridional, a realidade planetária mais profunda é expressa pelos xamãs, que possuem um corpo humano e outro animal, e pelo fato de que a humanidade inclui diversos animais, como o jaguar e a anta, que são gente como nós (cf. VILAÇA, 2000, pp. 58 e 59). A aldeia, cercada pela floresta ou pelos demais ecossistemas que tão diversamente circundam as poucas comunidades indígenas que restam no território nacional, expressa um lugar de passagem para homens e animais, mais do que isso, expressa a condição de fronteira entre a humanidade e a animalidade dos que por ela transitam. O que poderia causar espanto é recebido com naturalidade nessa cosmologia.

Se os animais são potencialmente humanos, os Wari’ são potencialmente presas, de modo que a humanidade não é algo inerente, mas uma posição pela qual se deve lutar todo o tempo. Tudo se passa como se essa lógica sofisticada de predação em mão-dupla tivesse como finalidade principal uma reflexão profunda sobre a humanidade. Os Wari’ experimentam uma situação constantemente instável, arriscando-se a viver sempre na fronteira entre o humano e o não-humano, como se de outro modo, se não soubessem o que é ser karawa [não-humanos], não pudessem experimentar o que é realmente ser humano (VILAÇA, 2000, p. 64).

Uma referência incontornável e atual no contexto do debate que se estabelece nessas linhas é A queda do céu de Davi Kopenawa e do antropólogo francês Bruce Albert. Fruto de um contato de quatro décadas e com uma mediação intercultural que procura respeitar ao máximo a voz do autor principal, inclusive nas cuidadosas traduções, esse livro que é um documento diplomático, como disse Eduardo Viveiros de Castro no seu profundo prefácio, um tratado político e um compêndio de filosofia indígena, um exemplar do xamanismo como “continuação da política pelos mesmos meios” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 39). Abundante em conhecimento e experiências, profuso em temas e mensagens direcionadas ao mundo dos brancos, como não poderia deixar de ser, o livro toca na antropogênese, na formação do homem enquanto humano, na relação com os animais e demais seres da floresta. A cosmologia yanomami expressa sem receios a íntima afinidade entre ancestrais que se metamorfoseavam na fronteira entre animais e humanos, os espíritos imagens de animais ancestrais que hoje constituem uma força dançante das florestas, conhecidos como xapiri, e os animais de caça que às vezes riem dos humanos e de sua inconsciência (cf. KOPENAWA; ALBERT, 2015, pp. 81-128). Na narrativa de Davi Kopenawa, os espíritos da floresta, espíritos animais e espíritos humanos interagem e atravessam os caminhos uns dos outros com uma circularidade na qual é difícil distingui-los com o olhar do branco.

Os animais são como os humanos. Nós ficamos satisfeitos quando nossas roças se enchem de cachos de bananas e de pupunhas; eles ficam felizes quando há muitos frutos nas árvores da floresta. Estes são o alimento deles assim como aqueles são os nossos, pois os animais que caçamos são os fantasmas de nossos ancestrais transformados em caça no primeiro tempo. Uma parte desses antepassados foi arremessada no mundo subterrâneo quando o céu desabou. Outra ficou na floresta, na qual nós também viemos a ser criados, e virou caça. Damos a eles o nome de caça, mas o fato é que somos todos humanos (KOPENAWA; ALBERT, 2015, pp. 214-215).

Entre os Yanomami, mas também entre outros povos tradicionais da floresta, são os mais velhos que têm a responsabilidade de ensinar e exortar os mais novos a seguirem os seus caminhos, que mais do que expressarem um caminho próprio, manifestam um modo de vida compartilhado e que vale perpetuar. São comuns as rodas de conversas e histórias que acontecem antes da alvorada ou no início da noite, com a reunião de todos os mais jovens. Quando se está novo demais, não se pode falar em público como quem dá lições, um discurso mais jovem não será escutado ou será caçoado pelos demais. Toda fala dirigida à comunidade, mesmo que contenha uma mensagem verdadeira, ainda que contenha uma palavra de conciliação ou seja uma palavra dura contra os comedores de terra (garimpeiros, fazendeiros e madeireiros que destroem a floresta deixando atrás de si um enorme rastro de morte e dor), deve ser fruto de uma maturação que demora anos e ser o efeito do acolhimento de um espírito animal.

Para ser capaz de proferir discursos em hereamuu com firmeza, é preciso conseguir a imagem do gavião kãokãoma, que tem uma voz potente. Chamamo-la Kãomari. É ela que dá vigor às palavras de nossas exortações. Desce em nós por conta própria, não é preciso ser xamã. Então deixamos que se instale em nosso peito, onde permanece invisível. Ela indica à nossa garganta como falar bem. Faz surgir nela as palavras, umas depois das outras, sem que se misturem ou percam sua força. Permite-nos estender em todas as direções as palavras de um pensamento ágil. Com ela, nossa língua fica firme, não falha e não fica ressecada (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 381).

Sem receios de perder-se na animalidade que não é diversa como pintam os habitantes da cidade, os povos indígenas em geral demonstram um copioso respeito pelos animais que circulam na superfície terrestre tal qual os seres humanos o fazem. Se há uma grande variação entre as diferentes culturas que definem os povos no país (seria ignorância supor simplesmente que todos os povos indígenas são iguais e expressam a mesma compreensão de mundo), um traço que parece ser comum é a ausência de uma maquinaria que separa definitivamente homem e animal para produzir o humano, ou para animalizá-lo em tratamento biopolítico arrasador. Não depende o indígena da definição do que é o humano em confronto com o que é animal, não há nessas culturas uma obsessão com a dignidade da pessoa humana que primeiramente eleve o espécime humano e lance os animais em uma zona obscura de exploração, para depois, em segundo lugar, destacar entre os humanos aqueles que são mais dignos entre outros8. A reconciliação com a natureza animal e o shabbat apenas mencionados por Giorgio Agamben que se interpõem como faina futura traduzem um passo inexistente para os povos indígenas, uma vez que a ruptura ontológica para eles nunca se consumou. O que se projeta como um caminho de redenção e salvação da catástrofe para as civilizações humanas traduz a permanência, a resistência, dos povos indígenas que duram por séculos de perigos e ameaças.

Não apenas para reverter o esquecimento dos povos indígenas e para dar visibilidade ao que permanece invisível entre nós, como é o corpo da mulher negra (cf. MBEMBE, 2017, pp. 229-230), precisamos considerar com maior largueza a cultura e a filosofia indígena. Reparar e reabilitar são gestos absolutamente necessários. Uma nova ecologia determinará o futuro da humanidade, seja ela qual for. Tornar-se homem indígena, ou aprender com os indígenas e com os animais, pode ser uma alternativa9. Aparte inocências ou sentimentalismos, escutar com seriedade filosofias originárias está na ordem do dia. Se o contemporâneo está absolutamente presente e cativa a nossa atenção com as luzes e obscuridades, nada pode ser mais contemporâneo do que ampliar os nossos horizontes epistemológicos. Essa intuição está patente na literatura carioca de Alberto Mussa, com a qual concluímos estas linhas. Depois de apresentar a familiaridade dos caraíbas, feiticeiros da floresta, e dos tuxauas, caciques guerreiros, com as onças (esses últimos, para contar as mortes de inimigos e demarcar os seus feitos, desenhava o corpo com espessas cicatrizes cavadas com dente de cotia e pó de urucum, indicando a natureza felina), escreve o autor uma reflexão transversal, como se tivesse incluído uma nota de rodapé no corpo do texto, vindo a se tornar maior que o próprio texto.

Não sei se o leitor sente como eu a grandeza dessa sabedoria. Ao terem a onça como meta, como objetivo ontológico, os antigos tupis afirmam que a condição humana não é hierarquicamente superior, no ordenamento natural; que não são os homens a realização suprema do criador do universo; que não somos, que estamos longe de ser melhores que qualquer animal (MUSSA, 2016, pp. 176-177).

Referências

AGAMBEN, G. Autoritratto nello studio, Milano: nottetempo, 2017.

AGAMBEN, G. L’aperto: l’uomo e l’animale, Torino: Bollati Boringhieri, 2002.

AGAMBEN, G. Il fuoco e il racconto, Milano: nottetempo, 2014.

AGAMBEN, G. Creazione e anarchia: l’opera nell’età della religione capitalista, Vicenza: Neri Pozza, 2017.

AGAMBEN, G. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita, Torino: Piccola Biblioteca Einaudi, 1995.

AGAMBEN, G. Nudità, Roma: nottetempo, 2009.

BANIWA, G. S. L. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, Coleção Educação para Todos, Série Vias dos Saberes nº 01, Brasília: MEC, UNESCO, LACED/Museu Nacional, 2006.

CESARINO, P. N. Quando a Terra deixou de falar: cantos da mitologia marubo, São Paulo: Editora 34, 2013.

HEIDEGGER, M. Ser e tempo, tradução revisada de Márcia Sá Cavalcante Schuback, Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015.

KOPENAWA, D.; ALBERT, B. A queda do céu: palavras de uma xamã yanomami, tradução de Beatriz Perrone-Moisés, São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

LAGROU, E. M. O que nos diz a arte Kaxinawa sobre a relação entre identidade e alteridade?, Mana: Estudos de Antropologia Social, v. 08, nº 01, Rio de Janeiro (UFRJ), 2002, pp. 29-61.

LYOTARD, J. F. O inumano: considerações sobre o tempo, tradução de Ana Cristina Seabra e Elisabete Alexandre, Lisboa: Estampa, 1989.

MBEMBE, A. Políticas da inimizade, tradução de Marta Lança, Lisboa: Antígona, 2017.

MUNDURUKU, D. O banquete dos Deuses: conversa sobre a origem e a cultura brasileira, São Paulo: Global, 2009.

MUNDURUKU, D. Das coisas que aprendi: ensaios sobre o bem-viver, Lorena: DM Projetos Especiais, 2019.

MUNDURUKU, D. O karaíba: uma história do pré-Brasil, São Paulo: Melhoramentos, 2018.

MUNDURUKU, D. Sabedoria das águas, São Paulo: Global, 2004.

MUSSA, A. A primeira história do mundo, Rio de Janeiro: Record, 2016.

NASCIMENTO, D. A. Umbrais de Giorgio Agamben: para onde nos conduz o homo sacer?, São Paulo: LiberArs, 2014.

NASCIMENTO, D. A. Em torno de Giorgio Agamben: sobre a política que não se vê, São Paulo: LiberArs, 2018.

NOGUEIRA, R. Introdução à filosofia a partir da história e culturas dos povos indígenas, Revista Interinstitucional Artes de Educar, vol. 1, nº 3, Rio de Janeiro, out 2015 – jan 2016, pp. 394-407.

NUNES, B. O animal e o primitivo: os outros de nossa cultura, Novos Cadernos NAEA, v. 14, nº 01, Belém (UFPA), jun. 2011, pp. 109-205.

VILAÇA, A. O que significa tornar-se o outro? Xamanismo e contato interétnico na Amazônia, Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 15, nº 44, outubro/2000, pp. 56-72.

YAMÃ, Y. Puratiğ: o remo sagrado, Coleção Memórias Ancestrais: povo Satarê Mawé, São Paulo: Peirópolis, 2001.

Notas

2 É incrível que no trecho citado, com a influência benjaminiana que teve, não tenha o autor observado, ao associar livros infantis e ancestralidade animal, que os animais são seres mágicos para as crianças. A mágica contida nos livros infantis reproduz o encanto com a diversidade animal. Para os adultos, excetuando-se quando são companhias insubstituíveis, são os animais estorvos, objetos de ostentação ou de lucro. Todo o encanto original está perdido para os adultos no ambiente civilizatório.
3 Histórias infantis recuperam a imagem do lobo como o perigo e o vilão. Como aquele que está na floresta ou no caminho, fora da cidade, para a chapeuzinho vermelho, como aquele que quer devorar e destrói propriedades para os três porquinhos. Desde cedo, ensinamos nossas crianças a temer o homem-lobo. Para evitar a tentação de sair de madrugada, está o lobisomem à espreita a partir da meia noite. Apenas mais tarde essas imagens ganham insinuações sexuais, nelas também o homem-lobo vai dar fluxo à sua potência animal, com fantasias que extrapolam a moralidade sexual familiar.
4 Cito uma interessante entrevista sobre o tema: “de origens religiosas e filosóficas, o conceito de mundo é um dos mais importantes na tradição ocidental, pois ele estabelece os limites que separam a humanidade dos demais viventes. Mundo, em sentido ocidental, é o espaço-tempo em que transcorre a vida humana. A influência desse conceito em costumes, leis, estruturas comunitárias e políticas é imensurável. Tomem-se, por exemplo, a moral, o direito e a cidade: o que seriam delas, tais como as conhecemos até hoje, se a diferença entre humanidade e não-humanidade não fosse pensada como uma barreira, mas como uma passagem? Essas instituições seriam sem dúvida totalmente outras, se os animais não-humanos fossem considerados como verdadeiros agentes, co-constituintes do nosso mundo. Isso alteraria profundamente o mundo em que vivemos desde nossa legislação até nosso regime alimentar” (VALENTIM, 2018).
5 Em outra ocasião, no livro Nudità, o filósofo relaciona alimentação, festa, sábado e inoperosidade, a partir de recortes ancestrais de festas motivadas por uma fome de boi, para tutelar uma proximidade promíscua entre o animal e o homem. O nutrimento festivo seria a imagem dessa aproximação (cf. AGAMBEN, 2009, pp. 147-154).
6 Notar como ainda hoje educamos as nossas crianças com desenhos e filmes que associam animais a monstros. São crocodilos, tubarões e gorilas a imagem da fúria monstruosa, ao lado de outros monstros plantados em suas imaginações. A reboque, estão os indígenas guerreiros e ignorantes.
7 Arriscamos empregar a expressão filosofia indígena, conscientes de que ela pode ser mal recebida. Para tanto, teremos que lidar com uma ampliação do que comumente compreendemos por filosofia no ambiente acadêmico, na medida em que “os estudos a respeito das interseções entre filosofia, educação, história e culturas indígenas parecem não ocupar lugar de destaque nas pesquisas acadêmicas contemporâneas quando a área de conhecimento e interesses de estudos está vinculada à filosofia”, sendo necessário promover uma “perspectiva alargada de filosofia” (NOGUEIRA, 2016, p. 394). Ou seja, “primeiro, desfazer a noção restrita da filosofia como uma atividade grega. Em segundo lugar, incluir a produção indígena no cenário filosófico” (NOGUEIRA, 2016, p. 400). Por filosofia indígena propomos então, sem desmerecer o que fora produzido no circuito eurocêntrico e em diálogo com a tradição grega do pensamento ocidental, permitir-nos compreender a filosofia como atividade espiritual, visão de mundo e intensidade do pensamento, ambas também presentes em culturas que foram colocadas à margem das referências epistemológicas hegemônicas. Indícios cada vez mais evidentes, forjados especialmente por esforços interdisciplinares e decoloniais, demonstram que a comunidade acadêmica filosófica tem se aberto a outras influências e tradições. Entre 2019 e 2020, um projeto de pesquisa com o mesmo título desde texto, coordenado pelo autor, recebeu uma bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
8 Sobre esse duplo corte, é possível conjecturar com Lévi-Strauss, que a filosofia predominante contribua sobremaneira para conceber a si mesma, “especialmente em seu desenvolvimento moderno, como o ‘mito da dignidade exclusiva da natureza humana’, entendendo que esse mito exprime fundamentalmente um ‘amor-próprio’. Tal afeto narcísico desencadeia, segundo ele, o especismo e o racismo que caracterizam o ‘ciclo maldito’ da modernidade, a separar os humanos dos outros animais e segregar os humanos entre si” (VALENTIM, 2018).
9 Conceber de outro modo a relação com a nossa natureza terrestre, aprender com a cultura indígena, por que não? Quanto à política e ao modo de organizar o convívio humano, a observância da maneira de conduzir pequenas comunidades, amazônicas especialmente, pode nos auxiliar a conceber comunidades políticas outras, ensinar diante da tarefa de solucionar impasses (cf. NASCIMENTO, 2018, pp. 63-75).

Autor notes

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas – SP, Brasil. Professor Associado do Instituto de Ciências da Sociedade da Universidade Federal Fluminense (UFF), Macaé – RJ, Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória – ES, Brasil.


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