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Causalidade kantiana e leis científicas contingentes
Irio Vieira Coutinho Abreu Gomes
Irio Vieira Coutinho Abreu Gomes
Causalidade kantiana e leis científicas contingentes
Kantian causality and contingency on scientific laws
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 417-432, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: A causalidade diz respeito à ligação entre dois eventos em que um causa o outro. Essa ligação deve ser necessária e permanente, ou seja, o primeiro evento causa o segundo sempre e irrevogavelmente. Suspeitas quanto à validade do princípio de causalidade são recorrentes em filosofia, parecendo estar nas investigações de David Hume sua melhor crítica. Contudo a causalidade se põe como essencial e inevitável na formulação de inúmeras leis científicas. Por sua vez, essas leis, desde as críticas da epistemologia do século XX, são tidas por contingentes ou revisáveis. Nossa questão é: como compatibilizar a contingencialidade das leis científicas com a necessidade da causalidade kantiana? Para tanto faremos o seguinte: 1) Analisaremos a vinculação entre tempo e a relação de causa e efeito para a compreensão de Kant da causalidade; 2) mostraremos como se dá a diferença e relação de dependência entre a causalidade kantiana e as leis causais físicas; 3) finalmente nos encontraremos com o sentido kantiano da necessidade e revisibilidade das leis físicas.

Palavras-chave:CausalidadeCausalidade,KantKant,FísicaFísica,RevisibilidadeRevisibilidade.

Abstract: Causality refers to the connection between two events in which one causes the other. This connection must be necessary and permanent, in other words, the first event causes the second always and irrevocably. Doubts about the validity of the causal principle are recurrent in philosophy, and David Hume’s enquiries seem to have the best critique on the subject. Nonetheless, causality is seen as essential and inevitable in the formulation of countless scientific laws. However, since the critiques of 20th century epistemology, these laws have been considered contingent or revisable. Our question is: how to make the contingency of scientific laws compatible with the need for Kantian causality? To this purpose, we will do the following: 1) we will analyse the link between time and the cause and effect relationship to access Kant’s understanding of causality; 2) we will show how the difference and dependency relationship between Kantian causality and causal physical laws occur; 3) we will finally meet with the Kantian sense of the necessity and revisability of physical laws.

Keywords: Causality, Kant, Physics, Revisability.

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Causalidade kantiana e leis científicas contingentes

Kantian causality and contingency on scientific laws

Irio Vieira Coutinho Abreu Gomes1
Universidade Estadual da Paraíba, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 21, núm. 2, pp. 417-432, 2021
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepção: 15 Março 2021

Aprovação: 12 Maio 2021

1.Temporalidade e Causalidade Kantiana

Kant inicia sua justificativa da causalidade afirmando que ligamos percepções no tempo. Suponha que, em determinado momento, largo uma caneta que seguro e, no momento seguinte, a caneta cai. Essa ligação do primeiro evento com o segundo é atribuída à imaginação. A “síntese da imaginação representa a conexão” (WATKINS, 2005, p.208), ou seja, a imaginação situa um evento antes do outro, porém ela poderia fazê-lo de maneira inversa e nos informar que o cair da caneta seria anterior ao largar da mesma caneta, isso indica que nossa percepção do evento é algo subjetivo. É preciso que essa ordem temporal seja determinada e saibamos que evento antecede e que evento sucede e isso de maneira necessária. A ordem temporal dos eventos, situando o “largar da caneta” anteriormente ao “cair da caneta”, deve envolver uma relação necessária, o que invoca um conceito puro do entendimento, nesse caso a causalidade. É em função da lei de causalidade que se torna possível o conhecimento empírico dos fenômenos e podemos ter certeza do antecedente e do sucedente; é a causalidade que possibilita a experiência. Em uma primeira vista a causalidade kantiana parece uma maneira de organizar percepções, conferindo locais determinados para cada percepto no tempo; o largar da caneta, na ordem do tempo, é anterior ao cair da caneta. Até aí parece não haver complicações com a tese de Kant. De fato, eventos sucessivos são bastante comuns em nosso cotidiano2, um acontecimento que sucede o outro é sempre identificado por todos. No entanto, Kant (c.f. B238-9) quer um pouco mais com seu princípio de causalidade. Na doutrina kantiana da causalidade, o antecedente precede de maneira necessária o consequente, não existindo a possibilidade da operação inversa.

Kant nos fornece não apenas uma regra de ligação de eventos sucessivos arbitrária, e sim que o evento precedente contém a “condição para uma regra” pela qual o sucessivo deverá segui-lo sempre e necessariamente. Como destaca Kemp Smith (1992, p.375: “É uma lei necessária do tempo que nós posamos avançar para o sucedente apenas através do precedente. Cada momento do tempo é condição indispensável para a existência do que o seguirá”. Além disso, o caminho inverso de partir do acontecido gerar o antecedente é impossível, pois a “causalidade” é via de mão única3. Essa regra que leva do antecedente para o sucedente é o que garante que as ligações de percepções tenham um status mais elevado. Essa necessidade na ordem de apreensão é resumida por Strawson conforme segue: “qualquer sucessão de percepções é uma percepção de uma mudança objetiva, apenas se a ordem dessas percepções for necessária; mas a ordem de percepções é necessária, apenas se a mudança é necessária, isto é, causalmente determinada” (STRAWSON, 1966, p.138). Não admitir uma regra que nos leve ao consequente a partir do antecedente é dizer que apreensões seguem-se umas às outras de maneira puramente subjetiva: não saberíamos se com certeza A segue B e não B que segue A. Se não pudermos determinar essa ordem temporal de eventos, tampouco poderemos também adquirir um conhecimento do objeto. A objetividade da síntese é conquistada com dois elementos: uma síntese subjetiva e uma regra de discriminação entre antecedente e sucedente (causalidade).

Para Kant o conceito de causalidade não pode ser extraído, como queria Hume4 (2004), da experiência, já que a experiência não implica necessidade e o princípio de causalidade kantiano sim. A estratégia de Kant pode ser esboçada como contendo três pontos. O primeiro: somos conscientes de que eventos se sucedem no tempo. Segundo: somos conscientes de que essa sucessão é irreversível, portanto é necessariamente numa certa ordem que ela ocorre e não pode ocorrer na ordem contrária. Terceiro: o caráter de necessidade da ordem abre espaço para a introdução de um elemento que não seja devedor da experiência, pois essa não tem suporte para endossar a necessidade por conta que os dados da experiência trabalham sempre no campo da contingência.

Consequentemente, a afirmação que há uma ordem temporal dos dados presentes no evento estudado, deve ser referendada a partir de uma função do entendimento, a qual nada deve à experiência. A característica de necessidade da causalidade é vislumbrada, nesse contexto da segunda analogia, da irreversibilidade do tempo: é necessário que um evento suceda outro e o inverso não ocorra para que possamos conhecer um objeto. Caso, durante todo o tempo, essa ordem dos fenômenos fosse invertida, não poderíamos afirmar coisa alguma. Ora, se a ordem temporal é determinada e necessária, não pode ser algo derivado da experiência e sim algo que é fundamento da experiência.

Strawson entende essa necessária ordem temporal denominando-a de “argumento de irreversibilidade”. Para ele o intuito de Kant seria o de estabelecer um critério para conseguir saber da diferença entre nossa consciência de eventos sucessivos e nossa consciência de eventos coexistentes. Segundo Strawson:

qualquer uso que devamos fazer na experiência do conceito de um evento objetivo, depende do nosso uso implícito da noção de uma ordem necessária de percepções relevantes. Similarmente, nosso conhecimento, através de percepções, da coexistência das coisas, depende implicitamente do reconhecimento de uma indiferente-ordem de percepções relevantes (STRAWSON, 1966, p.136).

Com isso, Strawson nos abre caminho para uma real distinção entre consciência objetiva e consciência subjetiva na ordem do tempo, a qual nos ajuda a compreender como uma relação causal se apresenta5. A consciência subjetiva é aquela que depende de nosso arbítrio, ou seja, os dados empíricos da sequência são por mim escolhidos consoante minha vontade de maneira completamente livre. Já a consciência objetiva nos obriga a uma determinada e necessária sequência dos eventos, donde não há lugar para que escolhamos a ordem dos dados empíricos.

Kant explica o que venha a ser a apreensão subjetiva através de seu exemplo da apreensão de uma casa. A apreensão sucessiva de uma casa (c.f. CRP, A190) não nos faz pensar que haja qualquer sucessão necessária no que apreendemos, podemos apreender a casa de cima para baixo, de baixo para cima, da esquerda para a direita, nas diversas direções que preferirmos6. Ainda admitimos que, provavelmente, duas pessoas farão apreensões de diferentes maneiras, e no final das contas afirmam ser a mesma casa; e concordam que apreenderam a mesma coisa. Por sua vez, a sucessão objetiva tem características opostas como no exemplo de Kant (c.f. CRP, A192): quando vemos um barco descer um rio, observamos o barco primeiro em cima depois na parte de baixo do rio, não sendo possível uma percepção inversa. O poder que tínhamos no exemplo da casa, não mais é possível aqui. Se na apreensão de uma casa conseguíamos mudanças na ordem de apreensão e duas ou mais pessoas, certamente, fariam apreensões diferentes da mesma casa, e apesar das diferentes apreensões, reconhecem ser a mesma casa; o exemplo do barco nos impede essa diversificação da apreensão. Para mim a apreensão se dará sempre da mesma maneira e, além disso, todos que presenciarem tal evento terão uma mesma sequência de percepções. Portanto, há diferenças fortes entre esses dois tipos de apreensão e é trivial que somos capazes de diferenciar uma da outra. Como toda nossa apreensão é sucessiva, a importância da distinção esboçada aqui reside em entendermos o que torna a apreensão subjetiva diferente da apreensão objetiva7.

Em síntese, as apreensões possuem duas diferenças. A primeira é que a apreensão subjetiva é individualizada, a saber, vale sempre pra mim e não necessariamente para o outro; já a apreensão objetiva vale sempre para todos. A segunda é que na apreensão subjetiva possuímos a faculdade de arbitrar a ordem da apreensão, enquanto que na objetiva isso é impossível. Dessas duas diferenças reputamos a primeira como bem mais influente na caracterização do princípio de causalidade que a segunda. A segunda nos fala que conseguimos escolher a ordem de apreensão, donde, se duas pessoas escolhem ordens diferentes e reconhecem que se trata do mesmo objeto a apreensão é chamada subjetiva. Por outro lado, poderíamos imaginar uma situação limite8 na qual diversas pessoas fizessem uma apreensão coincidente na mesma ordem do mesmo objeto. Acontecendo isso, alguém poderia afirmar que a apreensão não é subjetiva e sim objetiva. O problema aqui de classificar o evento como uma apreensão objetiva é que sempre há a possibilidade da apreensão ocorrer numa outra ordem. Coisa que é vedada ao primeiro argumento, a apreensão objetiva deve valer sempre para todos; temos a consciência que o evento só pode ocorrer em dada ordem e não em outra. A universalidade da apreensão objetiva reside exatamente em sua validade universal, a saber, é válida para todos os seres humanos9. Considerando tudo isso, a apreensão objetiva tem de estar submetida a algo independente da vontade de cada um e que ao mesmo tempo todos devam se sujeitar, ou seja, ela é submetida a uma regra (c.f. SMITH, 1992, p.369).

Daí afirmamos que toda a apreensão submetida a uma regra é objetiva, enquanto que a independência de regras caracteriza a apreensão subjetiva10. E de que regra falamos? Precisamos de uma regra que conceda necessidade e universalidade à apreensão, como as apreensões são sucessivas a única regra que confere universalidade a elas é o princípio de causalidade. Aqui encontramos uma maneira de entender o erro de Hume quanto à causalidade. Hume entende as relações causais como descobertas por simples comparação de sequências dadas, o que ele não percebeu é que algumas sequências dependem de nós (subjetivas) e outras não (objetivas). Toda apreensão é sequencial, o que a teoria causal de Hume não explica é a necessidade da sequência de algumas apreensões. A chave da questão é uma reflexão sobre o tempo.

A análise do princípio de causalidade feita por Kant é construída a partir da concepção, segundo a qual, afirma-se haver uma inseparável ligação entre tempo e “sequências causais”. Seu princípio de causalidade, não pode ser compreendido como uma mera “sequência causal”, porque essas não precisam ser relacionadas a uma intuição, tendo todo o seu sentido interpretativo esgotado enquanto uma relação puramente lógica; por outro lado, o princípio de causalidade de Kant, como mostraremos, tem um claro comprometimento com o tempo. Dito isso, devemos optar por uma das duas concepções de causalidade: ou ficamos com a causalidade puramente lógica (concepção logicista) ou com a causalidade temporal (concepção kantiana). Para nós, a importância dessa escolha, reside primordialmente, em que ela nos conduzirá por caminhos diferentes em epistemologia. Uma causalidade entendida como uma regra puramente lógica, sem nenhuma relação com a intuição pura, seria uma causalidade que não “tocaria” o mundo fenomênico. Pois, os dados empíricos constitutivos desse mundo são a nós apresentados através da intuição pura; como a causalidade, para o logicista, não tem relação com o tempo, isso acabaria acarretando dúvidas se os enunciados científicos causais se refeririam ao mundo fenomênico que se apresenta no tempo.

Para pensar a causalidade por um viés puramente lógico, faremos um esboço do argumento de Gordon Brittan. Brittan interpreta a causalidade kantiana como não devedora do tempo, para tanto, coloca-se a seguinte tarefa: encontrar um critério não-temporal para determinar quando um evento E1 é anterior ou posterior a um outro evento E2. Esse critério, segundo Brittan, para discriminar a posição de eventos sucessivos, necessitará do conceito de causalidade, contudo, a menção a um tempo subjacente a essa causalidade não pode ser feita. A receita dele para defender sua não temporalidade da relação de causalidade entre os eventos E1 e E2 é a seguinte:

Para dizer que E1 é a causa de E2 ou que E2 é o efeito de E1 é necessário apenas recorrer a observação de pequenas variações em E1 associadas com pequenas variações em E2, ao passo que, pequenas variações em E2 não são associadas com variações correspondentes em E1. (BRITTAN, 1978, p.172)

São tomados por nós dois eventos, E1 e E2, e queremos provar que E1 é a causa de E2, para tanto, não podemos recorrer ao auxílio de um cronômetro. De acordo com a ideia acima, teremos de fazer, pelo menos, duas vezes o mesmo experimento. Na primeira vez através do experimento definiremos os eventos, saberemos quem são E1 e E2. Na segunda vez, descobriremos que E1 é causa de E2 e, portanto, E2 é o efeito de E1. Imaginemos então, que já realizamos o primeiro experimento, seja ele qual for, e estamos conscientes dos elementos da experiência; sabemos quem é E1 e E2. Para o segundo experimento, alteramos algumas características, tanto de E1 quanto de E2. Como E1 causa E2 e não o contrário, as modificações que fizermos em E1 influenciarão a disposição final de E2, após o experimento perceberemos diferenças em E2. Consequentemente, a relação causal entre E1 e E2 estaria explicada sem nenhuma apelação temporal.

Para entendermos melhor a receita de Brittan, tomemos dois exemplos extraídos por ele mesmo da obra de Reichenbach, The Philosophy of Space and Time. São exemplos tais que desvencilham a causalidade da temporalidade. O primeiro é uma experiência em que um raio de luz é mandado de A para B. Se colocarmos um par de óculos vermelhos no meio do caminho, a luz em B estará vermelha. Fazendo o caminho contrário, a luz não estará vermelha em A. No segundo, uma pedra é atirada de A para B. Se riscarmos a pedra com um giz em A, quando chegar em B a marca persiste. Marcando a pedra apenas em B, ela não estará colorida em A. Ambos os exemplos nos parecem fecundos para atender a receita acima. No caso dos óculos, a apresentação da luz vermelha em B, quando tomamos o caminho de A para B, demonstra que A ocorre antes de B e que B não pode ocorrer anteriormente a A, porque o “vermelho” visto em B não é percebido em A. O mesmo diagnóstico atribuímos ao exemplo do giz, uma modificação no primeiro evento (riscar a pedra em A) pode ser notada no segundo evento (a pedra está riscada em B); enquanto que o contrário (a pedra riscada em B) não é verdadeiro para A.

Por outro lado, nos parece, que os exemplos que não podem desprezar a participação do tempo em seus acontecimentos. Há a passagem do tempo tanto no caso do raio de luz, quanto na pedra que é lançada. Além disso, é nossa consciência da passagem do tempo que nos torna capazes de dizer que a pedra sai de A e chega em B, ou mesmo o contrário; o critério da marcação com giz, sem o tempo, não nos torna conscientes de que o “risco” foi feito em A e não em B. Necessitamos presenciar o experimento, e todo experimento só ocorre no tempo, para saber que elemento é causa e qual é efeito. Tanto para o exemplo dos óculos quanto para o do giz, ou qualquer outro desse tipo, em que a modificação de um estado (A) é identificada em outro estado (B), a própria modificação só se efetiva no tempo.

Numa outra tentativa de expor a ordem dos eventos identificando o que causa o que; Brittan escreve que é preciso “dizer que há uma lei ou, numa terminologia kantiana regra, que tomada conjuntamente com uma descrição de E1, autoriza-nos a inferir uma descrição de E2” (BRITTAN, 1978, p.173). Essa nova formulação tem um recurso que a torna mais eficiente que a primeira. Aqui não há a limitação de julgamentos baseados em observações dos eventos A e B, que são modificados. O problema era que a própria observação dos eventos era feita no tempo, o qual se queria dispensar. Agora, Brittan apela para uma regra inferencial que nos torna aptos a descrever o segundo evento a partir do primeiro; ou seja, Brittan entende que é suficiente estabelecer uma relação, tal que, o primeiro elemento A, devidamente discriminado, mais a regra de causalidade, nos daria o elemento B. Apesar das vantagens quanto a primeira formulação, notamos dois problemas na tese de Brittan. A causalidade kantiana, conforme ele entende, nos indica que de certa forma o elemento B poderia ser deduzido do elemento A. Além disso, sua argumentação não parece suficiente para eliminar o tempo; e ainda assim, caso fosse, não nos parece kantiana.

Talvez Brittan, em seu argumento, tenha esquecido que o princípio de causalidade é um princípio sintético (CRP, B 761). Enquanto tal, um tratamento estritamente lógico não pode ser feito, porque proposições sintéticas estão sempre atreladas a uma intuição, seja uma intuição pura (juízos sintéticos a priori) ou empírica (juízos sintéticos a posteriori). O princípio de causalidade reclama, no âmbito de sua possibilidade, uma “determinação temporal”, no caso aqui, um modo próprio de ser do tempo denominado sucessividade. O atrelamento da causalidade ao tempo, para Kant, é algo radical e encontra-se no terreno da possibilidade de tal princípio; para afirmarmos com convicção que “tudo o que acontece tem sua causa”, devemos abandonar o campo da dedução estritamente lógica e recorrer à intuição do tempo. Isso prova que o princípio de causalidade não é conhecível apenas por “simples conceitos”, ou seja, logicamente11.

Que na causalidade o sucedente segue o antecedente e que no precedente está a condição para o sucedente é certo, mas isso nada tem a ver com uma relação puramente lógica. Sem o tempo, a própria causalidade não teria sentido. Na dissertação de 1770, Kant diz que não entende “o que significa a palavrinha após senão por um conceito já prévio de tempo” (KANT, 2005, p.247-48). Poderíamos usar o mesmo argumento para indicar que as palavras antecedente e sucedente não teriam sentido sem uma compreensão pressuposta de tempo. Quando alguém diz “A antecede B”, o que é dito só faz sentido se entendo o que significa anteceder. Porém, só posso entender o que significa anteceder, porque minha mente possui a propriedade de organizar as intuições empíricas A e B, de tal maneira que a minha percepção de A “antecede” minha percepção de B. Contudo, esse “anteceder” só é possível, por essa capacidade de organização mental chamada tempo12.

2. Princípio de Causalidade Kantiano e as Leis Causais Físicas

São muitas as leis causais ou leis com o formato da causalidade na ciência. Leis causais são encontradas quando o cientista observa padrões no mundo natural, deparando-se com eventos que se sucedem uns aos outros. Dependendo do interesse de sua pesquisa, pode o cientista formular uma lei de causalidade. Por outro lado, a própria história da ciência vem mostrando que algumas explicações tomadas por causas de eventos, no decorrer do desenvolvimento das ciências, são substituídas por outras causas que explicariam melhor o evento em questão. Dentro desse contexto, no qual a causalidade das leis científicas é extraída da experiência e as respostas da ciência ao mundo têm sua validade vencida, haveria sentido em falar de uma “causalidade” kantiana?

O princípio de causalidade em Kant é bem geral dizendo apenas que todo o ocorrido deve necessariamente ter uma causa, portanto: “O que em cada caso especial a causa deve ser, pode apenas empiricamente ser descoberto, e que qualquer evento selecionado seja realmente a causa nunca pode ser absolutamente certo” (SMITH, 1992, p.364). Isso torna o princípio de causalidade menos poderoso do que pensávamos, pois ele mesmo não nos dá a causa do evento, pelo menos de maneira completa, acabada e irrevisável. Não há raciocínio algum que nos diga, por simples conceitos, qual a causa de um evento. Só a experiência é capaz disso, e como se não bastasse só sabermos da causa pela experiência, nunca saberemos plenamente que a causa seja única ou mesmo se não possa ser outra. Partindo disso, conforme fazemos mais experiências, investigamos mais, estudamos mais determinado evento, podemos, empiricamente, encontrar outras causas para ele. A grande propriedade da “causalidade” kantiana é que só por conta dela podemos ir atrás das causas. Mudar as causas de um evento não tem nada a ver com a validez ou mudança do princípio de causalidade.

Para Otfried Höffe (2005, p.131): “Na discussão filosófica e epistemológica mais recente distingue-se entre leis causais, que são determinadas espécies de leis físicas, e o princípio de causalidade, segundo o qual todo acontecimento tem uma causa”. Essa distinção deve ser clara, leis causais são as leis da ciência positiva, enquanto que o princípio de causalidade tem o papel de indicar que qualquer mudança para ocorrer necessita de uma causa. Suas funções também são diferentes, a ciência estabelece leis causais para afirmar a respeito do mundo empírico; já o princípio de causalidade torna possíveis essas representações. A própria reflexão sobre a atividade científica é secundária e condicionada pelos processos transcendentais que geram as experiências conscientes comuns. Há aqui um nítido afastamento do “princípio de causalidade” kantiano e da “causalidade das leis físicas”. A categoria de causalidade pode ser entendida como um endosso a uma sequência de eventos objetiva, enquanto que uma lei física causal uma aplicação do princípio de causalidade ao mundo fenomênico.

O princípio geral de causalidade proporciona a experiência, não essa ou aquela experiência, mas qualquer experiência, isso é uma primeira etapa, etapa que precede a experiência. Uma lei causal científica não é um desenvolvimento ou uma consequência do princípio de causalidade e sim uma aplicação do principio da causalidade ao mundo empírico, etapa que sucede à experiência. Bem, há aqui um problema: leis causais científicas, embora não sejam um desdobramento do princípio de causalidade, só se formulam a partir dele. Como as leis causais científicas são formuladas após a experiência, têm sua necessidade comprometida; posto que são a posteriori. Em contrapartida, o princípio de causalidade visa a uma sequência de eventos de maneira necessária. Em poucas palavras, leis científicas causais são contingentes, o princípio de causalidade é necessário, consequentemente parece haver aqui uma grande contradição. Kantianamente, toda proposição científica, deve ser produzida a partir dos princípios do entendimento. Em conformidade com isso, proposições com a forma de causalidade são as mais populares. É difícil pensar uma relação causal, que é necessária, gerando uma proposição científica contingente, e isso nos parece ainda mais complicado na filosofia kantiana, na qual o status de ciência adquirido pela física é conquistado a duras penas. Defendemos que o princípio de causalidade de Kant contribui para a formulação de enunciados científicos contingentes.

Michael Friedman, em seu ensaio Leis Causais e os Fundamentos da Ciência Natural, rejeita nossa hipótese. Ele inicia o ensaio adjetivando a exposição de Kant da doutrina da causalidade como “impressionante” e “evasiva”. Ela seria impressionante por ser, talvez, a melhor concepção de causalidade já montada. Evasiva por permitir dubiedades em sua interpretação. A mais popular, por certo, nos permite perguntar usando a terminologia de Friedman: é possível separar leis causais particulares do princípio de causalidade universal?13. A resposta de Friedman é não. Friedman vai defender a causalidade num sentido forte quando afirma: “assim, se o acontecimento A causa o acontecimento B, sabemos que essa relação é universal: acontecimentos do mesmo gênero que A necessariamente são seguidos, ou resultam, em acontecimentos do mesmo gênero B” (FRIEDMAN, 2009, p.200). Ora, nessa direção, como apenas a experiência, ela mesma, não tem condições de garantir a universalidade de qualquer juízo causal, a relação A causa B deve fundar-se no entendimento; o que leva Friedman a defender uma fundamentação a priori do juízo. Após o juízo devidamente fundamentado, no caso aqui pela causalidade, estaríamos qualificados a afirmar de maneira universal a consecutividade entre A e B, para Friedman, podemos afirmar seguramente que “todos os acontecimentos do tipo A são necessariamente seguidos por acontecimentos do tipo B”14 (FRIEDMAN, 2009, p.201). Na interpretação de Friedman, a lei de causalidade não é apenas uma regra para a pesquisa empírica cujos conteúdos são sempre contingentes. Para ele, há a exigência de que os próprios conteúdos se repitam, ou seja, o conteúdo A mais a regra gera o conteúdo B sempre. Chamamos sua interpretação de determinista e vamos contestá-la15.

Seguindo Hanna (2005) dividimos os juízos sintéticos a priori em juízos sintéticos a priori transcendentais (JSAT) e juízos sintéticos a priori científicos (JSAC). Os primeiros são os princípios do entendimento, enquanto que os segundos constituem as próprias proposições da ciência. Há fatores que aproximam e fatores que afastam a ambos. A grande diferença entre eles é que os JSAC são proposições bem formadas com um limite de aplicação empírica específico, a saber, o objeto da teoria particular da ciência que se trabalha. Por exemplo, quando em medicina se fala de mensuração da pressão arterial, aborda-se a quantificação de um certo fenômeno no corpo humano. Diversamente os JSAT não buscam uma aplicação específica a determinado fenômeno, e sim fornecer as condições a priori de conformidade do entendimento com o objeto, em outras palavras, os princípios tornam possíveis as enunciações científicas.

No que aproxima esses juízos o próprio Kant (CRP, B 198) revela que: “todas as leis da natureza se encontram, sem distinção, submetidas a princípios superiores do entendimento, pois elas não fazem mais senão aplicá-los a casos particulares do fenômeno”. Então é certa a relação de dependência entre enunciados científicos e princípios do entendimento. Contudo é importante saber com Loparic (2002, p.254), que essa relação: “não é a de implicação lógica, pois os princípios do entendimento não são em absoluto premissas para deduzir leis empíricas”. Quando Loparic diz que as leis secundárias (JSAC) não são derivadas das leis originais (JSAT), podemos citar o fato de as primeiras possuírem um comércio com a experiência e as segundas serem totalmente a priori. Logo, não dá pra derivar algo relacionado à experiência de algo independente dessa mesma experiência. Tomando essa mesma linha de raciocínio, Eduardo Barra (2004, p.327) nos explica que: “é preciso ter presente que as leis empíricas não podem ser completamente derivadas das leis a priori, visto que são relativas a fenômenos empiricamente determinados (cf. CRP, A127-8 e B165)”, por outro lado, parece inegável que as leis secundárias (JSAC) só são possíveis por conta das leis originárias (JSAT). Essas servem como guias para encontrar, em minha investigação empírica, as regras secundárias. Na analítica dos princípios, Kant trata de uma distinção dentro dos princípios do entendimento (JSAT) entre princípios matemáticos e dinâmicos. Essa diferença em seus princípios do entendimento implica que Kant encara as certezas de diferentes áreas com diferentes status. Hanna (c.f. 2005, p.344) põe isso em termos de que as verdades matemáticas são fortemente necessárias, enquanto que as leis causais na natureza são fracamente necessárias.

Isso é assim porque os princípios da física são formados com dados fornecidos a posteriori, como por exemplo, os conceitos de mudança e resistência. A questão não é bem de grau, mas de natureza da certeza mesmo. A matemática é montada construindo de maneira imediata seus objetos na intuição pura, como as condições da intuição pura são necessárias à matemática, essa é também necessária num sentido forte. O caso da física é diferente: os princípios de sua possibilidade são os dinâmicos (as analogias da experiência) lidando com a existência (contingente) de objetos das intuições empíricas. Se as intuições empíricas têm parte nos enunciados da física, fica evidente sua contingencialidade16. Em resumo, poucos duvidaram da certeza da matemática, enquanto que a física sempre sofreu de uma certa desconfiança por causa de seu comércio com a experiência.

Kant não nega esse comércio com a experiência e mesmo assim responde de maneira positiva sobre a certeza dos princípios dinâmicos. Nem os princípios matemáticos são princípios da matemática nem os princípios dinâmicos são princípios da física. São apenas princípios que possibilitam ambas as ciências. A física procede a partir do existente, que é a matéria (física newtoniana). Como as condições de existência para objetos são contingentes, a física não possui uma certeza tão grande quanto a matemática. Não há física mecânica sem o conceito de mudança, e é impossível de se falar desse conceito sem antes ter dele experiência. Portanto, o conceito de mudança é um conceito a posteriori, e os princípios do entendimento em sua aplicação a esses existentes, “extrai” deles suas condições primeiras; aquilo que seria invariável dada a factualidade da existência. Que o conceito de mudança seja encontrado após a experiência é fato, do mesmo modo, para haver uma mudança necessitamos de uma causa. Consequentemente, nossa análise sobre a mudança de movimento na ciência física não pode prescindir da causalidade que serve como controle necessário ao falarmos da contingencialidade das mudanças. Não podemos saber a priori nem sobre mudanças, nem como se darão as mudanças. Dado qualquer movimento, é impossível para nós, sem o auxílio da experiência, saber onde ele acaba, quais serão os próximos passos, ou ainda, onde será a mudança de direção. No entanto, sabemos anteriormente a qualquer mudança no movimento que ela só ocorrerá se houver um motivo, uma causa.

3. Necessidade e Revisibilidade das Leis Físicas em Kant

A causalidade só se aplica a objetos da experiência que são contingentes. Isso implica que a união de duas percepções dadas hoje, sua sequência, não necessariamente há de se repetir amanhã, como nos ensinou Hume17. E quando Kant afirma que “não se pode passar dum objeto e da sua existência, para a existência do outro.... através de simples conceitos” (CRP, B 264), concorda com ele; precisamos perguntar: se a causalidade não é segura em inferências futuras de que serve?

Podemos falar de causalidade no sentido de uma causalidade passada, presente e futura. Como a causalidade é uma maneira de sintetizar (juntar) apreensões podemos partir do que temos (presente) e buscar os eventos antecedentes, caminhando para trás numa trilha de causalidade regressiva (passada), trazendo a tona objetos passados. Fazendo o mesmo processo para frente, uma causalidade progressiva (futura) e assim podemos falar de objetos futuros:

Objetos locais, presentes, da intuição são recebidos por meio da síntese da apreensão. Objetos imediatamente passados são passíveis de serem intuídos diretamente por meio da síntese da reprodução. E objetos empíricos espacialmente distantes ou mesmo objetos empíricos temporalmente futuros são passíveis de serem indiretamente intuídos por meio da mediação de regras causais para a síntese progressiva de percepções (HANNA, 2005, p.305).

Essa intuição de objetos futuros pretendida pela causalidade é uma relação apenas possível e não pode ser entendida como efetiva. A doutrina da causalidade de Kant não tem como objetivo tratar de afirmações apodíticas sobre eventos futuros, como parecem querer as demais doutrinas causais de outros pensadores. Kant não está preocupado em saber se o “Sol vai nascer amanhã”. A tarefa da causalidade é falar da experiência possível18. A existência deve ser buscada na experiência, e não prevista na causalidade. A regra de causalidade não é constitutiva como uma analogia matemática, mas é apenas regulativa. Numa analogia matemática construímos o quarto objeto a partir dos outros três.

2-----8

3-----x

O resultado é inevitavelmente x = 12. Nas analogias da experiência nada é construído, porque não podemos construir existências, e é com as existências na intuição empírica que elas trabalham. Pelos três primeiros termos de uma analogia temos a priori a relação com um quarto, mas não ele mesmo (c.f. CRP, B 222). O que seja o quarto membro só a experiência nos diz. O problema da indução pode ser compreendido como a aceitação que, para o homem, experiências passadas não garantem experiências futuras. Pensar a partir desse problema levou alguns como Hume19 a duvidar do princípio de causalidade enquanto conceito independente da experiência. No entanto, a interpretação kantiana desse princípio nos fornece dois resultados positivos: um é que sem a causalidade não poderíamos ter experiências objetivas, afirmar que uma sequência ocorre numa direção e não em outra; o outro resultado é que a causalidade tem a função de uma regra eficaz na ciência empírica para formularmos leis causais científicas.

Esses dois resultados nos parecem bastante satisfatórios para defender o princípio de causalidade à moda kantiana. Contudo, se olharmos mais de perto, existem elementos desses resultados que parecem se contradizer, vamos a eles. O primeiro fala de sequências objetivas, ou seja, necessárias. O segundo que a causalidade não permite predizer objetos, mas apenas apontar o caminho para os encontrar; o que nos leva a entender a causalidade como uma ferramenta para uma eterna busca na experiência. Não há garantias que sempre encontraremos o mesmo elemento. Ora, dito isso, as leis científicas que encontramos com a ajuda do princípio de causalidade, tal como o interpretamos; devem, portanto, ser leis que, em certo sentido, não comportam uma necessidade estrita. Poderíamos objetar que a falta de necessidade do segundo resultado não pode comprometer o resultado mesmo, por ser um caractere (a necessidade) próprio do primeiro; ou seja, a necessidade é característica de sequências objetivas e não das leis causais científicas. Mas, aí teríamos de pagar o preço de defender uma causalidade fraquíssima sem qualquer rastro de necessidade, quando abordássemos sua utilidade para a construção de leis causais científicas. Não parece ser o melhor caminho. Esses resultados não devem se contrapor, para tanto vamos defender que a propriedade da necessidade se faz presente tanto quando estudamos a causalidade para defender sequências objetivas de eventos, quanto em nossa construção de leis causais científicas. Porém, se a necessidade não pode mais ser aquela sobre eventos futuros, conforme discutimos mais acima, o que nos resta? Iniciemos por entender de que necessidade Kant fala.

Para Kant, a necessidade pode ser hipotética ou absoluta. Necessidade hipotética deve-se a um conhecimento a priori relativamente, necessidade absoluta, conhecimento a priori absolutamente. O conhecimento a priori da existência de maneira relativa é um conhecimento independente da experiência, porém seu princípio é conhecido por experiência. Como aplicamos isso a uma cadeia causal? Suponha-se que por uma relação de causalidade, A cause B. Pela regra que A causa B, sabemos a priori, independente de experiências, que de A alcançaremos B. Isso atenderia à necessidade hipotética, conhecimento da existência relativamente. Afinal não precisaremos de novas experiências para saber que B segue A, a relação causal estabelecida nos fornece a resposta. Como isso é possível? Pelo conhecimento, via experiência, proporcionado pela relação causal. Não podemos dispensar a experiência para sabermos de B, de sua existência. Quando entendemos a relação AB como uma relação causal, tomamos ciência da realidade de B a priori, o que nos leva a dizer que a relação causal AB é necessária. Note-se necessária apenas relativamente, uma necessidade hipotética. E a necessidade absoluta? A necessidade absoluta seria o conhecimento da existência de maneira absolutamente a priori, nesse caso o contributo da experiência será nulo, o que para Kant é impossível. Para Kant, a realidade tem uma dívida com a percepção sensorial. A maneira como se dá a representação do real é sensorial e isso o entendimento não tem condições de abarcar. “A necessidade absoluta é, portanto, totalmente impossível de se conhecer, embora entendamos sua possibilidade. Daí resulta que o conhecimento da necessidade é conhecimento hipotético” (KANT, 2002, p.65). É essa a confusão feita quando se fala de necessidade.

A necessidade em Kant não pode ser absoluta como quer a tradição, que para defendê-la acaba por apelar a soluções complicadas, como a harmonia leibiniziana; o Deus de Descartes ou acaba por entrega-se ao ceticismo de Hume. É verdade que ao aceitarmos a necessidade como hipotética, automaticamente o alcance do sintético a priori torna-se bem limitado, conforme Hanna (2005, p.354): “a necessidade sintética a priori é ... restringida pela constituição sensorial das criaturas de mentes como a nossa. É necessidade para seres humanos, e não para deuses (HANNA, 2005, p.354). O ponto do argumento de Hanna é que Kant faz uma teoria do conhecimento para seres humanos e apenas para eles, não é como a moral que se estende a qualquer ser racional. Toda a abordagem de Kant sobre “o que podemos conhecer?” tem como alvo apenas nós, seres humanos. Logo, quando Kant quer falar de necessidade, fala de necessidade para seres finitos que não têm intuição do futuro. A necessidade absoluta, única necessidade que se pensa quando se fala de necessidade, não é humana. Uma restrição que temos de reconhecer é a espacialidade e a temporalidade20. Nada que se apresenta no espaço e tempo necessariamente se apresentará no futuro, como todos os juízos sintéticos a priori precisam do espaço e do tempo para sua formulação, sua necessidade deve ser limitadada, ou seja, necessidade hipotética e não absoluta.

Se os princípios do entendimento fossem regras meramente lógicas como queria Gordon Brittan, poderíamos ser assertivos quanto ao futuro, porém tais princípios necessitam das intuições puras a priori, o que limita seu campo de aplicação. Seguindo isso, afirmamos que o requisito de necessidade absoluta como critério para aceitar o princípio de causalidade é uma falta de indulgência com a maneira humana de conhecer21. Kant está preocupado com o homem e é apenas sobre a intelecção desse é que pode falar. Desvendar a intelecção de quem ou do que não é humano, não é tarefa humana.

Mas a necessidade hipotética tem um preço, o da aceitação de mudança de enunciados na ciência. É bem estranho acreditar que Kant aceitaria a tese da revisibilidade de enunciados científicos, uma vertente da epistemologia do século XX. Para Kant, somos capazes usando dos conceitos do entendimento, de estabelecer princípios certos “não diretamente por conceitos, mas indiretamente, pela relação desses conceitos a algo totalmente contingente, a saber, a experiência possível” (CRP, B 765). Então, as categorias, em comércio com a experiência, dão-nos princípios corretos, porém contingentes. As leis da natureza, por se fazerem de acordo com essa parceria entre categorias e experiência, são certas e contingentes. Aliar certeza e contingência, apesar de difícil, faz sentido se aceitamos a tese segundo a qual a única necessidade possível ao homem em seu fazer científico é a hipotética. A investigação empírica nos fornece uma maior quantidade de percepções de uma determinada ocorrência, aumentando nosso conhecimento dessa ocorrência. Isso, qualquer empirista defenderia e aceitaria. Contudo, o que motiva Kant é: “sair a priori do conceito que temos e alargar nosso conhecimento (CRP, B 792-3)”. Um caminho de realização é o entendimento puro.

Kant entende com Hume que, sem a experiência, nada possuímos que aumente nosso conceito. O problema aqui, também com Hume, é quanto à afirmação de que podemos formular juízos que se estendam a priori ao futuro. Isso é fundado na não necessidade de determinação de uma existência por via da causalidade. A causalidade não fala das coisas. Para resolver a questão, Kant (CRP, B 794) toma a causalidade não como uma causalidade nas coisas, mas, diferentemente, como uma lei de articulação entre coisas. Causalidade então, não diz respeito a previsões e sim à regra de como o dado deve se apresentar, não o dado mesmo (esse é contributo do exterior), mas o modo como os dados deveram se dispor. Quando ocorre uma mudança, algo que não era passa a ser, o que sei a priori é da necessidade de uma ocorrência prévia para tanto. Sei disso porque mudanças não se dão por acaso, não para nós humanos. A crítica de Hume era a de que não se poderia inferir da causa o efeito, ou o contrário, sem o auxílio da experiência. Entre ele e Kant, há concordância quanto a esse ponto. Para Kant, saber o que seja a causa ou o que seja o efeito, só é possível por via de experiência. Kant, para não se entregar ao ceticismo, porém, apresenta uma causalidade não mais atrelada às coisas, mas relativa a elas. Em resumo, é tarefa do entendimento saber que há uma causa porque há um efeito, esse é todo o alcance do princípio de causalidade. A experiência é então convidada a dizer quem é a causa e quem é o efeito. Segundo Kant (CRP, B 794): “Hume concluiu falsamente, da contingência de nossa ação de determinar segundo a lei, a contingência da própria lei”. Mas, o que é contingente é o que determinamos, não a lei que determina. As funções do entendimento simplesmente antecipam a experiência, permanecendo incapazes de dar seu resultado.

Consequentemente, se os enunciados da ciência fossem enunciados derivados logicamente dos princípios do entendimento, leis físicas causais seriam derivadas do princípio de causalidade, e, portanto, leis imutáveis. Todavia, mostramos que enunciados científicos causais contam, sem dúvida, com o apoio do princípio de causalidade, mas são impossíveis sem a experiência. Como a experiência é contingente, enunciados científicos são contingentes, seguindo isso, mutáveis22. Conforme dissemos acima, há dois tipos de verdades sintéticas necessárias. Uma é de necessidade forte (matemáticas e princípios transcendentais) e a outra uma necessidade fraca (leis causais da natureza). Isso é assim porque as leis da natureza se dirigem às coisas físicas. Elas são “dependentes da existência do tipo especial de matéria que encontramos no mundo real: a matéria inerte” (HANNA, 2005, p.375). O pressuposto da existência da matéria inerte real é o grande fator de contingencialidade das leis físicas, essa matéria poderia não existir ou se apresentar de maneira diferente para nós. Assim “uma propriedade verdadeira é sintética se e somente se é consistentemente negável” (HANNA, 2005, p.336). Isso coloca Kant diretamente em contato com a refutabilidade popperiana e a tese unânime de que enunciados científicos são revisáveis.

Material suplementar
Referências
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Friedman, M.: Leis Causais e os Fundamentos da Ciência Natural, p.241-42, em Kant/Paul Guyer (org); tradução Cassiano Terra Rodrigues.- Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2009. (Coleção Companions & Companios).
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HUME, DAVID: Investigação Acerca do Entendimento Humano. Trad.: Anoar Aiex. Coleção: Os Pensadores Nova Cultural, 2004
KANT, IMMANUEL: Crítica da Razão Pura, Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
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Wittgenstein, Ludwig: Investigações Filosóficas. São Paulo: Vozes, 2017.
Notas
Notas
2 Béatrice Longuenesse nos oferece uma interpretação da segunda analogia da experiência de Kant, a partir da qual, Kant teria como um dos fins para o estudo dessa analogia, uma preocupação com respeito “aos objetos comuns de nossa experiência diária”. Segundo ela, Paul Guyer entende o argumento de Kant na mesma linha. (cf. Longuenesse, B.: Kant on the Human Standpoint (Modern European Philosophy), p. 146, Cambridge: Cambridge University Press, 2009)
3 Essa impossibilidade de inversão é pautada na impossibilidade de inversão no tempo, coisa explícita na física como na segunda lei da termodinâmica, a qual rege a direção em que os eventos naturais acontecem. A segunda lei da termodinâmica aborda uma direção preferencial para os eventos, não desprezando, mas afirmando como probabilisticamente inviável a direção contrária. Acreditamos que seja assim porque há sempre a possibilidade lógica do contrário, com Kant: “o que é fisicamente necessário pode ser logicamente contingente. Por exemplo, é fisicamente necessário que todos os corpos caiam, mas isso se encontra apenas na coisa e logicamente é apenas contingente (Kant, I. The Dohna-Wundlacken Logic. Ak.xxiv.727)”. A termodinâmica tenta explicar por que um evento ocorre numa direção e não em outra. Apesar de alguns teóricos em física defenderem que é possível uma volta no tempo, tal evento nunca foi verificado.
4 Derrubar o argumento de Hume era particularmente importante para Kant, não apenas por conta do princípio de causalidade mesmo, mas toda a metafísica restante seria prejudicada com a crítica humeana. Na leitura de Kant, Hume não duvidara da praticidade e utilidade do princípio de causalidade no conhecimento do mundo natural; mas se o princípio de causalidade era independente da experiência (a priori) e se poderia ser usado além da experiência. Kant concorda que o princípio de causalidade deva ter apenas um emprego imanente, não podendo se estender além da experiência. Contudo, insiste que a ligação de causa e efeito e, mais ainda, toda a metafísica são realizações próprias do entendimento. Kant diz descobrir que “o conceito de conexão de causa e efeito estava longe de ser o único mediante o qual o entendimento concebe a priori relações das coisas, antes pelo contrário, a metafísica é toda a partir dele constituída. Procurei assegurar-me do seu número e como, segundo o meu desejo, o consegui a partir de um único princípio, passei à dedução desses conceitos, seguro agora que eles não derivam da experiência, como Hume cuidara, nas do entendimento puro” (c.f. Kant, I. Prolegômenos a Toda Metafísica Futura que Queira Apresentar-se Como Ciência: A 14, trad. Artur Morão. Lisboa: edições 70, 2003).
5 Vale a pena deixar claro que esse argumento de comparação entre sequências subjetivas e objetivas tem por fim provar a efetividade do princípio de causalidade e não que o princípio mesmo dele derive. Nesse ponto Friedman argumenta que “Kant não está tentando derivar a existência de leis causais gerais ou uniformidades, em absoluto; seu interesse, antes, é dá uma interpretação da determinação absoluta enquanto tal: explicar o que distingue determinadas sequências objetivas de acontecimentos da sucessão de percepções meramente subjetiva e indeterminada”. Caso não fosse assim, uma acusação de “non sequitor”, poderia contra Kant ser construída (c.f. Friedman M.: Leis Causais e os Fundamentos da Ciência Natural, p.210, em Kant/Paul Guyer (org); tradução Cassiano Terra Rodrigues.- Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2009. (Coleção Companions & Companios)).
6 Esse argumento é rejeitado por Steven Bayne. Para ele pode acontecer o caso que em certas circunstâncias de percepção haja a “impossibilidade física para mim de ter minhas percepções em qualquer outra direção”. No caso aqui, isso impediria que a percepção, por exemplo, do topo ao chão da casa ocorresse, se antes tivesse ocorrido a percepção inversa; e, portanto, a percepção numa ordem qualquer seria inviabilizada. Com isso, Bayne sentencia: “a tese de Kant sobre o exemplo da casa é errada” (c.f. Bayne S. Kant on Causation: on the Fivefold Routes to the Principle of Causation, p. 102, State University of New York Press, Albany, 2007). A dificuldade em aceitar a tese de Bayne é que ela parece apelar para a hipótese de que poderíamos existir com faculdades diferentes. De fato, é possível que fossemos seres constituídos com sentidos outros que não nossos cinco sentidos, ou que possuíssemos uma intuição diferente da nossa. É possível, como quer Bayne, que por algum motivo tudo o que percebemos à nossa esquerda, por exemplo, não fosse percebido. Porém, não é assim que somos. Somo seres constituídos com um determinado aparato cognitivo compartilhado por todos que podemos classificar como humanos. Kant não está preocupado em como o ser humano conheceria se fosse um ser com faculdades diferentes e nem como seres não humanos conhecem. Kant não faz teoria do conhecimento para seres diferentes dos seres humanos que somos.
7 Friedman também compartilha dessa interpretação, para ele nossa distinção entre apreensão subjetiva e apreensão objetiva só é possível por via de uma “subsunção de nossas percepções a um conceito a priori do entendimento”, no caso presente esse conceito é o de causalidade (c.f. Friedman M.: Leis Causais e os Fundamentos da Ciência Natural, p.210, em Kant/Paul Guyer (org); tradução Cassiano Terra Rodrigues.- Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2009. (Coleção Companions & Companios)).
8 Steven Bayne argumenta dessa maneira. Veja nossa nota sobre esse comentador mais acima.
9 Acreditamos que uma razoável maneira de entender a objetividade kantiana é aliá-la com a universalidade. Universal é simplesmente o que é válido para todos os seres humanos. Caso todos afirmem um mesmo juízo relativo a qualquer coisa, esse juízo é objetivo. Essa concepção está atrelada a uma espécie de “razão comunitária” kantiana. Em B 766-7 Kant define as decisões da razão como não sendo outra coisa senão o “acordo de cidadãos livres, cada um dos quais deve poder exprimir as suas reservas e mesmo exercer o seu veto sem impedimentos”.
10 Essa interpretação também é referendada por Paul Guyer. Para ele só somos capazes de confirmar nossa crença que uma mudança objetiva ocorreu ou está ocorrendo, porque podemos asseverar que essa mudança ocorre “sob” uma lei causal. (cf. Guyer, P. Kant and the Claims of Knowledge, p.252, Cambridge: Cambridge University Press, 1987). Para Buchdahl, Kant busca provar que nossa percepção de uma sucessão objetiva pressupõe um conceito geral de “conecção causal”. Essa conexão nos habilita a pensar a sucessão, de uma certa forma, como uma a sucessão “forçada” (constrained) pela regra causal. Seguindo isso a sucessão, para Buchdahl, receberia a classificação de objetiva e não meramente subjetiva ou arbitrária. Veja Buchdahl, G. Metaphysics and the Philosophy of Science, p.651-2, edited by R.S. Woolhouse, Kluwer Academic Publishers, 1988.
11 Não estamos aqui defendendo que o princípio de causalidade, para Kant, não tenha dívidas com a lógica. O próprio Kant o encontra a partir de uma das formas dos juízos. Segundo Kant, no conceito de causa “é-me primeiro fornecida pela lógica a forma de um juízo condicional em geral, isto é, um conhecimento dado para utilizar como princípio e o outro como consequência” (Prolegômenos A 100). O nosso estudo apenas visa reforçar a tese, kantiana, da importância da intuição. Kant nos parece radical em sua defesa do tempo como intuição, desde a Dissertação Inaugural, ao afirmar que o próprio princípio de contradição dele necessita. Cito Kant: “Pois A e não-A não se contradizem a não ser que sejam pensados simultaneamente (isto é, ao mesmo tempo), mas um após o outro (em tempos diversos) podem convir-lhe” (c.f. Kant, I: Forma e Princípios do mundo sensível e do mundo inteligível, p.252 em Escritos pré-críticos/Immanuel Kant. Tradução: Paulo R. Licht dos Santos, Unesp, São Paulo, 2005).
12 Essa maneira de explicar o tempo enquanto uma ação própria da mente de organização das impressões exteriores, não nega nem completa a ideia de tempo enquanto intuição pura a priori; e talvez até ajude a explicá-la. O tempo, para Kant, não pode se originar dos sentidos, na verdade os sentidos mesmos devem supô-lo. Para tanto, Kant precisa descompromissar completamente o tempo das coisas sensíveis, isso ocorre quando Kant coloca as coisas sensíveis como coisas que sempre nos aparecem no tempo. Esse aparecer no tempo das coisas sensíveis, contudo, faz com que essas coisas se apresentem segundo as determinações temporais, ou seja, podemos dizer, que o tempo mesmo, “coordena” essas aparências. Parece-nos ser essa a compreensão do próprio Kant ao afirmar: “o tempo não é algo objetivo e real, nem substância nem acidente, nem relação, mas é condição subjetiva, necessária pela natureza da mente humana, para coordenar entre si, segundo uma lei determinada, qualquer sensível, e é intuição pura” (c.f. Kant, I: Forma e Princípios do mundo sensível e do mundo inteligível, p.250 em Escritos pré-críticos/Immanuel Kant. Tradução: Paulo R. Licht dos Santos, Unesp, São Paulo, 2005). Nesse sentido nos parece correto entender o tempo como essa propriedade mental de organização da exterioridade.
13 A fim de ajustar os termos, Friedman chama “leis causais particulares” o que denominamos “enunciados científicos”, e o seu “princípio de causalidade universal é nosso “princípio de causalidade de Kant”.
14 Algumas passagens da CRP são escolhidas pelo comentador para defender sua interpretação determinista, seriam elas: B 162-3, B 237-8, B 247-8, B- 249.
15 O problema da empresa de Friedman é que ela já fora rejeitada por grande parte dos estudiosos da filosofia de Kant no séc. XX. Ele próprio se refere a esses comentadores e coloca: “de acordo com a opinião praticamente unânime desses comentadores, temos de distinguir nitidamente o princípio de causalidade da segunda analogia - a saber, o princípio de que todo acontecimento B tem uma causal A - de leis causais particulares; instanciações particulares da afirmação de que todos os acontecimentos do tipo A, são seguidos por acontecimentos do tipo B” (p.202). Friedman lembra das interpretações de Paton, Beck e Buchdahl, como exemplos opostos a seu estudo. Para Paton, regularidade é diferente de repetibilidade para o princípio causal, à Beck atribui a distinção entre “cada-evento-uma-causa” de “mesma-causa-mesmo-efeito”. Beck entende que enquanto Hume duvida de ambos, Kant apenas tentaria salvar o primeiro na analítica transcendental. Essa interpretação é corroborada e bem trabalhada por Buchdahl em “Dynamic of Reason” V-VII. Para o estudo dos argumentos de Paton e Beck, Friedman indica Kant’s Metaphysic of Experience e A Prussian Hume and a Scottish Kant, respectivamente. (c.f. Friedman M.: Leis Causais e os Fundamentos da Ciência Natural, p.203).
16 Não para Friedman. A tese da contingencialidade tem por background a separabilidade entre o princípio geral da causalidade (segunda analogia da experiência) e as leis causais particulares (leis científicas), separação essa que Friedman não admite por completo. A tese da separabilidade nos permite afirmar que as leis científicas são contingentes, porque seu conteúdo possível é contingente. Nossa leitura do artigo de Friedman não nos leva a afirmar que ele queira desconstruir a separabilidade aqui defendida, ele próprio reconhece a potência do argumento; segundo o qual o princípio causal universal deve ser distinguido das leis causais particulares, afinal é essa a interpretação da grande maioria dos especialistas. O que motiva Friedman, ao que nos parece, é que a tese da separabilidade não esgotaria muito do que Kant afirmou sobre a causalidade (c.f. A-198/ B-243-4 e A227-8/ B279-280). Adotar a tese de Friedman poderia levar alguém a afirmar que se o conteúdo das leis científicas é necessário deve, em algum sentido, possuir características a priori. Mas, Friedmam assume que Kant não queria dizer que leis causais particulares são conhecidas a priori. Isso parece evidenciar-se quando nos explica que “Kant restringe explicitamente a ideia de uma prescrição a priori por parte do entendimento às leis ‘puras ou universais’ da natureza em geral: todas as leis mais particulares são conhecidas apenas com base na experiência” (c.f. p.206). Ele reconhece que na Analítica Transcendental Kant faz uma forte separação entre leis transcendentais e empíricas. Por outro lado, entende que Kant “da mesma maneira, [é] muito explícito na sua alegação de que leis empíricas particulares são de certa forma possibilitadas – estão baseadas ou são determinadas - por princípios transcendentais” (p.213). Tudo bem que as leis particulares precisem da causalidade para sua formulação, porque possuem a forma da causalidade. Em contrapartida, o contributo empírico existente nessas leis particulares, as tornam absolutamente contingentes (c.f. Friedman M.: Leis Causais e os Fundamentos da Ciência Natural, p.206 a 213, em Kant/Paul Guyer (org); tradução Cassiano Terra Rodrigues.- Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2009. (Coleção Companions & Companios)).
17 Há dúvidas se Kanta realmente queria resolver a questão de Hume. Isso está em: Guyer, P. Knowledge, reason, and taste: Kant’s response to Hume, p. 75, Princeton: Princeton University Press, 2008. Friedman não compartilhe da posição de Guyer; em determinado aspecto. Para Friedman assumir sua concepção do que sejam leis causais particulares (leis científicas), deve, de certa maneira, assumir o problema da indução como resolvido por Kant. Isso parece explícito quando afirma que: “leis causais particulares, para Kant, têm um tipo especial de natureza mista: elas resultam de uma concepção de regularidades ou uniformidades observadas indutivamente com o conceito (e o princípio) a priori da causalidade”. Concordamos com o que ele chama de “natureza mista”, a questão é o que ele quer fazer com isso. Para Friedman quando as leis causais particulares são apenas regularidades observadas, elas são contingentes e a posteriori; porém, no momento em que tais regularidades são postas sob o princípio de causalidade, elas ganham o status de necessárias. Ora, tomando a direção apontada por ele, se leis causais particulares são necessárias, o problema da indução deve ser tomado como resolvido. Consequentemente, teremos de assumir que a repetibilidade dos conteúdos das leis causais particulares é algo necessário e, para complicar ainda mais a situação, segundo Friedman: “em certo sentido, até mesmo a priori” (c.f. . Friedman M.: Leis Causais e os Fundamentos da Ciência Natural, p.216, em Kant/Paul Guyer (org); tradução Cassiano Terra Rodrigues.- Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2009. (Coleção Companions & Companios). Friedman tem então de resolver duas questões: como leis empíricas podem ser, “em certo sentido”, a priori? E, o que autoriza a aplicação da categoria de causalidade a uma repetição de eventos e não a outra? Ele próprio resume a questão, perguntando da seguinte maneira: “como princípios transcendentais injetam necessidade em leis empíricas da natureza de modo a lhes assegurar uma condição mais do que meramente indutiva?” (c.f. 218). A questão será discutida a partir de uma reflexão não publicada (R 5414, 18:176) de Kant, escrita entre 1776 e 1780. Nessa reflexão, Kant faz uma comparação usando uma analogia entre as leis de Kepler e de Newton, as quais têm por objeto o movimento planetário. As leis de Kepler figuram como uma coleta de percepções e a Gravitação Universal de Newton como uma lei necessária. Não tivemos acesso a essa “reflexão” de Kant. Contudo, indicamos o artigo aqui citado, desse exímio especialista na filosofia da ciência de Kant, principalmente para os estudiosos da interpretação de Kant da Gravitação Universal de Newton, e os defensores de uma causalidade determinista para a filosofia kantiana.
18 Acreditamos que isso pode ser relacionado com a análise kantiana do princípio de razão suficiente de Leibniz. Não que Kant o rejeitasse, no entanto, busca fazer dele um uso mais cuidadoso. Para Kant “a relação de consequência com o princípio é relação de subordinação, e as coisas que se encontram em tal relação constituem uma série”. A reforma kantiana do princípio de causalidade, onde não mais falamos das coisas, mas da possibilidade de experiência das coisas, tem aqui um lugar especial ao lado da contingência. Ainda com Kant: “Portanto essa relação do princípio com a consequência é princípio da série, e não vale senão para o contingente”. Portanto, a ideia de contingência pode e deve ser invocada numa série. Mesmo na contingência a série se dá, e parece que num certo sentido, só no contingente (c.f. Kant, I. Realidade e existência: lições de metafísica: Introdução e ontologia, p. 58, 1 ed, trad. Adaury Fiorotti; introdução, tradução e notas da edição italiana Armando Rigobello. São Paulo. Paulus. 2002).
19 Nesse ponto em particular, Paul Guyer levanta dois aspectos da crítica de Hume. A primeira no sentido lógico, ao afirma que para Hume causa e efeito: “ são logicamente distintas e consequentemente separáveis uma da outra”. A segunda a de que a repetição passada de impressões de “duas espécies de objetos ou eventos não pode implicar em matéria de “razão””, a partir da qual devamos acreditar na repetição de tais eventos posteriormente. (cf. Guyer, P. Knowledge, reason, and taste: Kant’s response to Hume, p. 80, Princeton: Princeton University Press, 2008)
20 Isso nada tem que ver com qualquer forma de psicologismo, mas apenas uma afirmação a respeito da possibilidade de representar conteúdos, com os quais se formulam enunciados com sentido. Olhar Strawson, The Bounds of Sense p. 140-6. London: Methuen & Co. 1966.
21 Esse é um ponto onde se pede um certo “aquietamento” filosófico. Para o Wittgenstein das Investigações Filosóficas: “a clareza que almejamos é na verdade clareza completa. Mas isso simplesmente significa que os problemas filosóficos deveriam desaparecer completamente. A verdadeira descoberta é aquela que me torna capaz de parar de fazer filosofia quando me apraz. Aquela que traz paz à filosofia, de tal forma que ela não é atormentada por questões que colocam a própria filosofia em questão” (IF – 133). A proposta de Kant é de um conhecimento possível para seres humanos, de um conceito de necessidade para humanos. Querer algo além disso, como talvez resolver o “gênio maligno” de Descartes, é querer uma “clareza completa” que nunca dá descanso à filosofia. E por que não dá descanso à filosofia? Porque a “clareza completa” não é humana e sim divina. Creio que é por isso que Descartes resolve seu gênio com um outro gênio; a questão não pode ser resolvida pela cognição humana, gerando uma filosofia que questiona ao homem o que para ele não se põe, elabora questões filosóficas que “colocam a própria filosofia em questão”.
22 Segundo a interpretação de Hanna, até sentenças analíticas são mutáveis, quanto mais as sintéticas. O conceito analítico de lápis, por exemplo, indicaria qual a essência conceitual do que seja lápis. Conforme Hanna (2005, p.198): “uma decomposição de um conceito pode legitimamente refletir qualquer parte de sua essência conceitual, no sentido de estar suficientemente articulada para os propósitos teóricos do pensador”. Deve-se encontrar as partes constitutivas do que seja lápis. Como seres finitos não encontramos todas essas partes, mas segundo Hanna, o próprio Kant não nos obriga a tanto, legando aos propósitos do investigador o acabamento da análise. Hanna indica a referência(VL ak. xxiv 916).
Autor notes
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife – PE, Brasil. Professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Campina grande – PB, Brasil.
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