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Recepção: 02 Abril 2021
Aprovação: 13 Maio 2021
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v21i2.2298
Resumo: Este artigo combina a extraordinária análise por parte de Deleuze de Sexta-feira ou os Limbos do Pacífico, de Michel Tournier, que apresenta um Robinson Crusoé duplo, perverso, em relação ao de Daniel Defoe, com uma análise crítica de concepções como a de ser-no-mundo, resultantes da hermenêutica fenomenológica de Heidegger. O meu ponto é que sem outrem [Autrui], ou o que Deleuze chama a estrutura-outrem [structure Autrui], não é possível ‘interpretar' ser-no-mundo, que, por outras palavras, o que se descompreende sem esta estrutura é justamente uma compreensão pré-ontológica do ser, não se atingindo a facticidade do ser precisamente por se viver, se sofrer, sem outrem, um processo inverso, o de uma ‘desfactização' do próprio fato ou facticidade do ser. Proponho, portanto, uma nova concepção do limite de ser-no-mundo não em termos da morte mas de outrem, do que é perder outrem, a estrutura-outrem, e como esta perda implica a perda de ser-no-mundo, a possibilidade ela mesma de interpretar, de compreender, as suas diferentes estruturas (ser-aí, ser-com, ser-para-a-morte, etc.) O conceito de outrem funciona assim como uma gigante dobra entre ser-no-mundo e o seu avesso ou o que Artaud definiu como ‘o outro lado da existência’, mas também entre a ausência de outrem e a criação de ‘mundos sem outrem', todos eles ‘menores', ‘ilhas desertas', 'plateaus', constituídos na imanência desta ausência, do próprio ‘fora'.
Palavras-chave: Robinson Crusoé, Ser-no-mundo, Fora, Neurose, Psicose, Perversão.
Abstract: This article combines Deleuze’s extraordinary analysis of Michel Tournier’s Friday, where we find the presentation of a duplicated, perverted, version of Robinson Crusoe when compared to Daniel Defoe’s classical version, with a critical analysis of conceptions such as being-in-the-world, stemming from Heidegger’s hermeneutic phenomenology. My point is that without Others [Autrui], or what Deleuze calls the structure-Other [structure Autrui], it is the very possibility of ‘interpreting’ being-in-the-world which is at stake, being a world without Others, the structure-Other, one wherein a pre-ontological comprehension of being is ‘uncomprehended', no longer being it possible to attain a facticity of being precisely insofar as one lives, suffers, without Others, a process of an inverted nature, not so much of the facticity of being but of its ‘defacticization’ (the movement of being-thrown out of and not into the world). I propose, therefore, a new conception of the limit of being-in-the-world not in terms of death but of Others, of what it is to lose Others, the structure-Other, and how this loss implies losing being-in-the-world, the very possibility of interpreting, of comprehending its different structures (being-there, being-with, being-towards-death, etc.). The concept of Others functions then as a giant fold between being-in-the-world and what Artaud called ‘the other side of existence’, but also between the absence of Others and the creation of ‘worlds without Others’, all of which ‘minor’, ‘desert islands’, ‘plateaus’, constituted in the immanence of this absence, of the ‘outside’.
Keywords: Robinson Crusoe, Being-in-the-world, Outside, Neurosis, Psychosis, Perversion.
O que é perder o mundo? Estar nele sem realmente o habitar, estar ‘dentro'? Heidegger (2003, seções 18-39) por exemplo, falava em “ser-no-mundo”, chegando inclusive a considerar estados de espírito específicos, como o do tédio profundo, onde o mundo parece se fechar sobre si próprio, resistir a sua própria abertura enquanto o Aberto, enquanto uma espécie de contorno do próprio humano. Em todo caso, até para Heidegger não é por este horizonte se fechar no tédio que se perde o mundo. Pelo contrário: por mais profunda que seja esta experiência, jamais se perde o ser-no-mundo enquanto clareira, Lichtung, a transcendência de si para si que é o Dasein, a entidade que Heidegger identifica com o humano. Neste sentido, a experiência do tédio só confirma a abertura que é Dasein, só confirma, por outras palavras, o Aberto que é próprio Dasein enquanto ser-no-mundo. Em resposta, não seria preciso mais do que o relato de um psicótico sobre as intensidades vividas num surto para se concluir, em relação a Heidegger e a concepções como a de ser-no-mundo, que é preciso ir mais longe, que são necessárias Novas revelações sobre o ser. Porquê? Antes de mais, por ser-no-mundo nada mais ser, como diz Artaud (2004, p.788) do que uma “ilusão delirante",2 mas também porque, no seu delírio, o que há de ilusório nesta concepção é o fato dela parecer acreditar que ser-no-mundo é uma realidade absoluta, não existindo, no próprio mundo, quem nele inexiste, quem, no mundo, na sua dita ‘mundanidade' e não num além metafísico qualquer, perde o mundo, inexiste no mundo. O que é não-ser-no-mundo? Para Heidegger, ou melhor, do ponto de vista do senso comum, só pode ser a morte. Mas será que o outro lado de ser-no-mundo resume-se à morte? Não poderá o mundo ser perdido em vida e não na morte? Como se existisse um limite interno, imanente, e já não externo, transcendente?
Que limite é este? Propomos pensá-lo nos termos de um conceito que aparece num dos apêndices da Lógica do sentido de Deleuze (2006). Trata-se do conceito de outrem [autrui], que, diga-se, merece no conjunto da filosofia de Deleuze a mesma importância que ele lhe dá nesta obra, enquanto remetido a um apêndice, ou seja, um estatuto marginal. Em todo caso, há neste conceito, que Deleuze trabalha a propósito de Robinson Crusoé, não o de Daniel Defoe mas o de Michel Tournier, uma profunda reflexão sobre o que é perder o mundo estando nele, em vida e não na morte.3 É como se existisse este náufrago em todos os que, de diferentes maneiras, naufragam, se perdem, no mundo, do próprio mundo. O que este outro Robinson nos diz, crucialmente, é que perder o mundo é perder outrem; que perdendo outrem, é o mundo que se perde. O que isto quer dizer? O que é outrem? Como se perde outrem? O que outrem tem que ver com ser-no-mundo? E isto ao ponto de perder outrem ser perder ser-no-mundo?
Segundo a hermenêutica fenomenológica de Heidegger, existe, por um lado, o que ele define (2012, p.67) como uma “compreensão pré-ontológica do ser”, e, por outro, a ‘interpretação’ desta compreensão, que acaba por ser uma ‘auto-interpretação' na medida em que somos nós, enquanto seres, ‘entes’, que compreendemos e interpretamos, desvelando a compreensão que supostamente já possuímos sobre ser-no-mundo.4 É precisamente em relação a esta circularidade hermenêutica que é preciso perguntar: o que acontece quando a interpretação, enquanto dirigida à facticidade do ser, às ‘estruturas' que estruturam a tal compreensão pré-ontológica sobre ser-no-mundo, ‘descompreende’ esta compreensão? Quando longe do desenrolar da facticidade do ser, como se de um fio de algodão se tratasse, o que se ‘interpreta' é a ‘desfactização’ do ser, não o ser-no-mundo, mas o não-ser-no-mundo, a impossibilidade de atingir a dita ‘facticidade do fato de ser’, de realmente viver ‘estruturas' como a do ‘ser-aí', da ‘mundanidade do mundo’, do ‘ser-com’, da ‘unidade velar-desvelar’, do ‘cuidado’, do ‘ser-para-a-morte’, etc.? Note-se que não dizemos que não existe compreensão pré-ontológica, que não se interpreta esta compreensão; o que mantemos é que, mesmo fazendo este percurso, fazendo a consciência debruçar-se sobre uma compreensão primordial ou pré-ontológica do ser, esta interpretação pode descompreender esta compreensão, compreendê-la já não como filósofos como Heidegger supõem que ela seja compreendida, como ser-no-mundo, mas enquanto uma compreensão impossível de ser compreendida, pouco mais do que uma ilusão delirante para quem um ‘estado de espírito', os famosos Stimmung, do tédio, da angústia, etc., nada mais são do que a consciência clara e distinta da impossibilidade de qualquer estado, o abismo de se saber, em vida, que é a própria alma que se dá como perdida. Do ponto de vista desta outra compreensão, que descompreende incompreensívelmente, que critica violentamente o que supostamente se diz compreender, ainda por cima ‘naturalmente’, o próprio ‘ser', o que se compreende é que existe, como diz Artaud (2004, p.124), “o outro lado da existência”,5 o outro lado de ser-no-mundo, o limite interior e não exterior de se viver, sofrer, a destruição desta ‘compreensão natural’, de se estar dentro não do mundo mas de um processo de demolição onde se é atirado para fora e não para dentro do mundo, para um além desta vez interior e não exterior, o fora como duplo avesso, tanto do mundo quanto do seu além.
É preciso, portanto, distinguir uma outra ‘hermenêutica', se quiserem, que até fazendo o que Heidegger pretende, que é interpretar o que já se compreende pré-ontologicamente, o ser, acaba por desviar (involuntariamente) do fim proposto, passando a ‘ler' muito mais a desfactização do ser do que a sua facticidade. Há um canibalismo que não é o de outros corpos humanos, ou até dos diferentes seres que os habitam, mas do próprio humano, de Dasein enquanto ser-no-mundo. Talvez seja este um dos principais vetores do pensamento contemporâneo, enquanto projeto de descolonização do pensamento em geral, o de fazer de ser-no-mundo uma espécie de banquete antropofágico, a condição real para a criação de modos de vida, de existência, de ‘mundos', no outro lado de ser-no-mundo. O que tem outrem, Robinson, o náufrago, que ver com este outro lado, com uma ‘hermenêutica' que descompreende, que apreende ser-no-mundo como uma ilusão delirante? Digamos que há muitas maneiras de naufragar, de descompreender, sendo provavelmente o caso mais exemplar o do dito psicótico. Mas se tivéssemos de escolher, nem que seja experimentalmente, um conceito para o próprio naufrágio, um conceito, ainda que geral, que nos ajude a perceber um pouco o que é descompreender ser-no-mundo, exercer uma interpretação de outra ordem, que ‘interpreta’ um processo de demolição, o de perder o mundo, a alma, o ser, de passar para o outro lado, o de não-ser-no-mundo, este conceito é o de outrem. Que seja um náufrago, perdido do mundo numa ilha deserta, a revelar-nos este conceito, talvez até nem venha como uma grande surpresa, desde que não façamos dele o que Defoe faz com o seu Robinson. É toda uma outra aventura que Tournier nos oferece. Nela Robinson não só perde verdadeiramente o mundo na ilha deserta, ele pensa esta perda, revelando-se, como nos mostra Deleuze, um filósofo, o criador de um conceito extraordinário, ainda por explorar, o de outrem.6 Ele descobre que, sem outrem, perde-se a compreensão pré-ontológica do ser, a espécie de lumen naturale que Heidegger e tantos outros atribuem, de uma maneira ou de outra, ao humano.7 Mas ele também descobre que esta ausência, a ilha deserta, pode ela mesma ser afirmada, criada como estrutura alternativa, que, se concepções como a de ser-no-mundo são absurdamente, intoleravelmente, totalitariamente, repressivas ao outro lado da existência, que pode ser também nos termos deste outro lado, de não-ser-no-mundo, que se relança o próprio conceito de ‘mundo' sobre novas bases, sobre bases constituídas pelo fora, a ausência de outrem, enquanto verdadeiro limite de ser-no-mundo, enquanto limite que este ‘ser' - que ainda por cima tem o descaramento de se dar por ‘esquecido' - faz de tudo para reprimir, nadificar, especialmente com a ‘razão psiquiátrica' que inventou.
A estrutura-outrem
Na sua análise da fantástica aventura de Robinson, Deleuze distingue duas concepções do mundo, uma que inclui outrem, o que define por “estrutura-outrem”, outra que não. O que é a estrutura-outrem? A análise de Deleuze é extraordinariamente bela, ela reorienta radicalmente o antigo problema filosófico sobre o campo perceptivo, o que pergunta se as categorias que lhe aplicamos são imanentes, no sentido de lhe pertencerem inerentemente, ou se, pelo contrário, se referem a sínteses subjetivas exercidas por um sujeito. Segundo Deleuze (2006, p.318), Robinson mostra que a dualidade é de outra natureza inteiramente, já não entre um campo perceptivo monista, que envolve o sujeito, e o dualista, onde o sujeito se impõe sobre o campo, mas “entre os efeitos da estrutura-outrem no campo perceptivo e os efeitos da sua ausência (o que seria a percepção se não houvesse outrem)”. Que efeitos são estes? Tudo depende de uma inversão simples mas formidável: a que aborda o campo perceptivo a partir de outrem, não de como o sujeito se dá o campo, ou de como o próprio campo se dá ao sujeito, mas a partir de um terceiro eixo, de como o campo perceptivo do sujeito é dado a partir de outrem. É o grosso das teorias filosóficas da percepção que reduzem o outro ao ponto de vista do sujeito, ora tratando-o como um objeto particular, ora como outro sujeito, ou até, em Sartre (Ser e nada), como sujeito que o meu olhar torna um objeto, que o seu por sua vez também me objetifica. Assim, se o problema é o de pensar como se estrutura o campo perceptivo do sujeito a partir de outrem, dos efeitos de outrem sobre este campo, o eixo central não será o da relação sujeito-objeto, seja lá qual for a ênfase que se quiser dar, do objeto ao sujeito ou do sujeito ao objeto, mas o da relação que o próprio sujeito estabelece com este fundo, outrem, com o que o campo perceptivo do sujeito pressupõe no seu conjunto (pré-conscientemente) em relação a outrem. A inversão, portanto, é radical: como se estrutura o campo perceptivo do sujeito se não privilegiamos a relação objetal? Se é nos termos da relação com outrem, dos seus efeitos sobre a percepção do sujeito, que se pensa a estruturação do seu campo perceptivo, as categorias que lhe aplicamos?
A estrutura-outrem refere-se, portanto, à maneira em que categorias como forma-função, profundidade-comprimento, centro-borda, estados transitivos-partes substantivas, etc., elaboradas pela psicologia moderna para explicar o funcionamento do campo perceptivo, são condicionadas por outrem, pela maneira em que o campo perceptivo do sujeito pressupõe outrem. Que pressupostos são estes? Antes mais, o pressuposto de que o escuro é relativo, que o que não aparece no meu campo perceptivo aparece no de outrem, não existindo, portanto, noite que seja absoluta. “Outrem relativiza o não-sabido, o não-percebido, pois introduz o signo do não-percebido no que percebo, determinando-me a apreender o que não percebo como perceptível a outrem” (DELEUZE, 2016, p.315). Assim, se existe a parte do objeto que não vejo, ou se sinto que os objetos atrás de mim estão de alguma maneira ligados aos que vejo à minha frente, é por pressupor que são visíveis a outrem, que ainda que não os veja num dado momento, se os sinto ligados aos que vejo é por assumir que são vistos por outrem. É como se existisse um “rumor benevolente” no mundo, que se refere ao fundo da minha percepção, a como pressuponho outrem, o conjunto das percepções dos outros, em relação ao que vejo, toco, etc.8 Neste sentido, se não existe nada que apareça no meu campo perceptivo que não pertença também ao de outrem, posso assumir que o raio de possibilidades, de percepções possíveis, é também informado por outrem. É como se se garantisse que o possível, o que é possível a um sujeito ver, tocar, jamais transcende outrem, sendo precisamente esta a benevolência do rumor, a de garantir que não há nada que aparece no campo perceptivo que não tenha potencialmente sido vivido por outra pessoa, por outrem. Trata-se, portanto, de uma familiaridade de outra ordem, que não incide sobre como geralmente é pensada, em termos de reconhecimento motor, ou seja, sobre como nos familiarizamos com certos espaços através de movimentos corporais, como quando, por exemplo, não preciso de ligar a luz à noite para buscar um copo de água. Através de outrem, o sentimento de familiaridade é de outra natureza, resulta do que pressuponho sobre outrem em relação ao conjunto de possibilidades envolvidos no meu campo perceptivo, a familiaridade profunda onde assumo que o que aparece no meu campo perceptivo jamais surge de um profundo absoluto, de uma noite absoluta. É até por isso que Deleuze insiste (2006, p.315) que “quando nos queixamos da maldade dos outros esquecemos esta outra maldade mais temível ainda, a que teriam as coisas se não houvesse outrem". É que pode ser frustrante, de fato, sentir que “é sempre por outrem que passa o meu desejo e que o meu desejo recebe um objeto", que “não desejo nada que não seja visto, pensado, possuído por um outrem possível" (Ibid). Em todo caso, a questão é a de saber se estamos realmente preparados para a maldade de outra ordem, a da ilha deserta, onde não existe outrem, o rumor benevolente que outrem murmura, para delimitar o contorno do próprio possível, e isto ao ponto de determinar a natureza do meu desejo antes até de eu o viver.
Com outrem, o campo perceptivo do sujeito envolve, portanto, toda uma série de virtualidades, de signos, que dão profundidade ao campo, um fundo, mas que podem, também, atualizar-se. Que atualização é esta? É nos seus termos que Deleuze dá mais um passo, o segundo: é que para além de se definir como um fundo, outrem também é expresso.9 Mais, é expresso no campo perceptivo do sujeito, ou seja, é ao próprio sujeito que esta expressão é dada. Como opera a expressão de outrem enquanto fundo, rumor benevolente que povoa o mundo? Através de signos. Signos são emitidos pelas pessoas, objetos e matérias que aparecem no campo perceptivo do sujeito. Estes signos formam diferentes sistemas que, por sua vez, compõem mundos distintos. Proust e os signos é exemplar a este respeito. “A Recherche”, diz Deleuze (2003, p.4), “apresenta-se como a exploração dos diferentes mundos de signos, que se organizam em círculos e se cruzam em certos pontos". A novidade da leitura de Deleuze assenta precisamente na sua insistência de que a unidade e “surpreendente pluralismo" da Recherche não consiste nem na memória nem na verdade, mas nos signos, na “aprendizagem” que envolvem.10 A busca pela verdade, o papel da memória, especialmente a involuntária, supõem signos, os mundos por eles constituídos, e isto ao ponto de fazerem da Recherche uma obra “voltada para o futuro e não para o passado", onde a procura pela verdade se faz através da interpretação, decifração e explicação de signos (Ibid, p.4). Segundo Deleuze, a Recherche organiza-se em torno de quatro mundos distintos de signos, o da mundanidade, do amor, do sensível e da arte. É na medida em que existe um desenvolvimento de um mundo a outro, com os signos do mundo da arte ou das essências a prevalecer como destino da Recherche, da ‘aprendizagem’, que são estes mundos, a maneira em que estabelecem uma relação com a verdade e o tempo, que orientam a busca e não o contrário. Em todo caso, não é este o momento de aprofundarmos a belíssima leitura de Deleuze. O que nos interessa é a contribuição de Robinson, o aspecto que ele parece acrescentar ao que Deleuze já explicita em Proust e os signos: este aspecto é outrem, o que Robinson acrescenta é justamente a relação dos diferentes mundos que os signos formam com o fundo constituído por outrem. Ou seja, há os signos e os mundos por eles formados, mas existe também o fundo que eles expressam, que diferenciam na medida em que o atualizam neste ou naquele sistema de signos, neste ou naquele ‘mundo’ (há mundos e mundos para além dos da Recherche, o do médico com os signos da doença, o do marceneiro com os signos da madeira, etc.). Do ponto de vista deste fundo, de outrem, cada um destes mundos de signos é, para o sujeito, a expressão de um mundo possível. Assim, se Deleuze (2006, p.317) faz referência a Proust na análise ao Robinson de Tournier, “ao mundo possível chamado Albertine”, é porque este mundo, Albertine, compõe sistemas de signos que exprimem “a praia ou a arrebentação”, e que é só realmente através do amor e do ciúme que são decifrados. Mas Albertine não é outrem: outrem é o fundo que se expressa nos signos que Albertine emite, nos mundos possíveis que ela expressa. São os signos, os mundos formados por eles, que atualizam outrem, que exprimem outrem como expressão de um mundo possível.
Podemos dar outro passo, o último, na determinação dos efeitos de outrem, de um mundo que inclui outrem. Com o primeiro, vimos que o efeito de outrem é relativizar a própria profundidade, fazer com que jamais se apresente como profundidade absoluta mas fundo mediado por outrem. Com o segundo, analisamos como outrem se expressa no campo perceptivo do sujeito através de mundos possíveis, dos diferentes mundos formados pelos signos emitidos pelas pessoas, objetos e matérias que aparecem ao sujeito. Mais uma vez, por mais que falemos de um mundo possível chamado Albertine, não são pessoas, objetos ou matérias que formam mundos, mas os signos por eles emitidos, que os extravasam precisamente por expressarem mundos, por atualizarem (e diferenciarem) o possível genérico informado por outrem em mundos possíveis. Qual o último passo, o terceiro efeito de outrem? É com ele que voltamos às teorias filosóficas da percepção. É que se existe algo que elas pressupõem é justamente a coincidência não só espacial mas também temporal do sujeito e do objeto. Como não seriam coincidentes se partilho com os objetos à minha volta o mesmo espaço, o mesmo tempo, o que vivo neste momento, o presente? Mas será realmente assim? Será que a minha consciência coincide temporalmente com o que me rodeia? Lendo o Robinson de Tournier, Deleuze dirá que não, que não coincidem. Mais, que se não coincidem é precisamente por serem temporalmente distintos, pelo o que me rodeia, enquanto expressão de um mundo possível, não coincidir temporalmente com a minha consciência. Porquê? Porque se existem mundos possíveis que se expressam através de signos no meu campo perceptivo, terei de ser, eu mesmo, na minha consciência, um mundo passado em relação a eles, e eles, em relação a mim, à minha consciência, mundos por vir, futuros. Por outras palavras, se é outrem que estes mundos expressam, então “outrem é um mundo possível, [e] eu sou um mundo passado”, sendo “o erro das teorias do conhecimento”, que se formam a partir das de percepção, “o de postular a contemporaneidade do sujeito e do objeto" sem se aperceberem que “um não se constitui a não ser pelo aniquilamento do outro” (DELEUZE, 2006, p.320).11
Podemos agora inverter os passos, começar com o último para concluir com a concepção de outrem enquanto estrutura. Do ponto de vista do último efeito, outrem revela que o sujeito e o objeto não coincidem no tempo. Se é capaz de o revelar é precisamente por condicionar a distinção entre sujeito e objeto, por nos revelar que, pelo menos imediatamente, a consciência que o sujeito tem do objeto é do mundo possível que expressa, de outrem, sendo esta consciência sempre passada em relação ao mundo que é expresso. Mas do ponto de vista do segundo efeito, que garante a expressão de outrem no campo perceptivo do sujeito, o que se torna evidente é que, até de um ponto de vista espacial, não existe coincidência. Porquê? Porque enquanto expressão de um mundo possível, o próprio objeto envolve uma profundidade, um fundo ou sombra, que o sujeito, na tal aprendizagem que Deleuze atribui à Recherche, vai aprofundando, interpretando e decifrando como um ‘egiptólogo’. Deste ponto de vista, a espacialidade do campo perceptivo é ampliada na direção deste fundo (tanto em termos de largura como de profundidade propriamente dita), e isto ao ponto das categorias que a psicologia moderna lhe aplica, de forma-fundo, centro-borda, etc., serem agora inseparáveis dos mundos possíveis compostos por outrem. Existe um mundo possível temporalmente distinto do mundo que me é interno, sendo à medida em que me lanço para aprender estes mundos, que interpreto e decifro o próprio espaço, que lhe aplico diferentes categorias. E se, por fim, por me encontrar numa ilha deserta, e refletir, como Robinson, sobre outrem, chegando à conclusão que o seu efeito principal é o de relativizar o escuro, a noite, então concluirei, como ele, que outrem é uma estrutura, que vai desde o fundo até aos signos, do rumor benevolente até à expressão de um mundo possível, levando-me, ainda que não seja mais do que um mero náufrago, a considerações sobre a natureza da percepção e do próprio conhecimento, que questionam o que lhes parece ser inegável, a coincidência tanto espacial como temporal da consciência e do seu objeto, mas que a mim, enquanto náufrago, estão longe de saber o verdadeiro horror que é fazer sujeito e objeto coincidirem, que é viver sem o anacronismo benevolente que o rumor de outrem garante.
Sem-fundo
O que é perder outrem? A estrutura através da qual o mundo nos é dado? Em resposta, Deleuze propõe uma matriz clínica na análise da aventura de Robinson. Ele distingue três momentos, um neurótico, outro psicótico e o final, perverso. O momento neurótico se refere a uma maneira de viver um mundo sem outrem, o psicótico a outra e o perverso a ainda outra. O conjunto dos três momentos repete o duplo movimento constitutivo da ilha deserta, de dispersão e de gênese, mas desta vez dentro da matriz analítica de outrem, do que é perder outrem, desviar do mundo precisamente por perder o fundo que relativiza o profundo, que condiciona a expressão de mundos possíveis, que até faz crer que o mundo vivido coincide com a consciência que se tem dele, como se não estivesse um ou dois passos à nossa frente. O que diz o neurótico sobre a ausência de outrem? Como vive ele esta ausência? E se ambos, neurótico e psicótico, definem a aventura em profundidade, em que Robinson se perde do mundo, que aventura é esta se é nos termos dos efeitos de um mundo sem outrem que é pensada?
Segundo Deleuze, a reação neurótica de Robinson é a do desespero, e isto pela ausência de outrem levá-lo a uma atualização alucinada das suas memórias pessoais, em que deixa de reconhecer o seu passado pessoal. Não havendo outros [autres] que emitam signos, é como se a estrutura funcionasse “sem ninguém para preenchê-la, efetuá-la” (DELEUZE, 2006, p.323). Assim, Robinson recorre a lembranças pessoais no sentido de procurar, no seu passado pessoal, o que possa talvez ativar a expressão de possíveis, de mundos, na ilha. Mas o esforço, claro, é inglório. Como vimos, o sujeito, o eu, já é um mundo passado em relação à expressão de mundos possíveis, a outrem. Sem outros, signos, sem mundos possíveis, o sujeito pode recorrer à sua memória, mas ela jamais substituirá outros, os signos que emitem, precisamente pelos sistemas de signos expressarem mundos por vir, e a memória do sujeito nada mais ser do que isso, passado, sistemas formados por lembranças. Por um lado, a estrutura-outrem está lá, simbolicamente pelo menos, tanto que Robinson procura nas suas lembranças maneiras de ativá-la. Mas, por outro, quanto mais Robinson procura preencher esta estrutura com as suas memórias, mais outrem o rejeita precisamente por se tratar de outrem, por outrem expressar mundos possíveis e não passados. O resultado desta rejeição é a neurose de Robinson. Sem outrem, sem mundos possíveis, são as próprias lembranças de Robinson que se perdem na ilha, que pairam na ilha, dançando nos cordões das folhas imóveis, mas sem jamais conseguirem atualizar-se. O que lhes falta é outrem, a expressão de mundos possíveis.
Compreende-se, portanto, a importância de outrem, da expressão de mundos possíveis, para a atualização de memórias. Podem-se evocar lembranças, ir buscá-las num determinado nível do passado, num grau específico de contração mental, temporal, para depois rodopiar a imagem-lembrança quantas vezes se quiser, encontrar-lhe as facetas que melhor traduzem a ação do sujeito: sem outrem, a expressão de mundos possíveis, é como se nada disto fosse realmente relevante, como se a própria atualização permanece oca. Porquê? Porque é nos signos, nos mundos possíveis, no desejo que estes mundos suscitam, que a memória lembrança se atualiza verdadeiramente. Estes mundos, as diferentes ‘vocações’ ou ‘aprendizados’ que envolvem, inflamam a atenção, o processo de reconhecimento mental e não meramente motor, fazendo com que os signos, a sua interpretação, decifração, possibilite a expansão da própria memória para além até do esforço intelectual voluntário, em direção a memórias involuntárias, a madeleine por exemplo. Enquanto mundo passado, é em outrem, nos mundos possíveis expressos no campo perceptivo, que o sujeito mergulha para atualizar o seu próprio mundo. É no fundo de outrem que a memória encontra o seu por vir. Mas na ilha deserta Robinson esbarra em outrem, é rechaçado por outrem à medida em que, com as suas memórias, procura os mundos nos quais pode atualizá-las sem eles existirem. Rejeitado por outrem, só lhe resta a ilha. Só que na ilha as suas memórias não são mais do que fiapos, que se perdem nas folhas imóveis de um galho, perdendo-se na própria percepção, já não se sabendo se são uma alucinação misturada na percepção ou se a própria percepção é uma memória alucinada.
O momento psicótico é o da radicalização desta aventura em profundidade. É o momento de um afundamento generalizado em que aparece o sem-fundo, “a genealogia Cósmica do esquizofrênico” (DELEUZE, 2006, p.324). Que genealogia é esta? Ela resulta de uma tentativa de substituir a estrutura-outrem. No momento neurótico, Robinson é rejeitado por esta estrutura. No psicótico, ele faz desta rejeição um combate, procurando impor uma ordem econômica rigorosa na ilha como maneira de superar tanto a sua memória pessoal alucinada quanto a ausência de mundos possíveis. Substituindo a estrutura outrem por um processo de produção, por uma estrutura económica, Robinson procura combater os efeitos neuróticos provocados pela ausência de outrem. Mas é, paradoxalmente, comicamente, na medida em que nada corre como esperado, que Robinson é levado a enterrar-se no sem-fundo. Como é possível que um processo de produção, que ainda por cima pretende ser rigoroso, ordeiro, nos leve à psicose, ao buraco esquizofrénico, a uma profundidade sem fundo, a uma noite sem fim? O exemplo que Deleuze dá no texto sobre o Robinson de Tournier é o mesmo que aparece em O anti-Édipo (2010, p.17-8): o da mesa de Michaux, feita por um esquizofrénico.
Desde que a tivéssemos notado, ela continuava a ocupar o espírito. Continuava mesmo não sei bem o quê, a sua própria ocupação, sem dúvida… O que impressionava é que, não sendo simples, também não era realmente complexa, improvisada ou intencionalmente complexa, nem tinha um plano complicado. Era, antes, dessimplificada à medida em que era trabalhada… Tal como estava era uma mesa feita de pedaços, como foram feitos certos desenhos esquizofrênicos, desenhos ditos entulhados, e se ela se apresentava acabada, era só na medida que se tinha tornado cada vez mais um amontoado e cada vez menos uma mesa… E não servia para nada do que se possa esperar de uma mesa… Pesada, embaraçante, só a custo podia ser transportada. Não se sabia como pegá-la (nem mental nem manualmente). O tampo, a parte útil da mesa, progressivamente reduzido, desaparecia, e era tão pouco relacionado com o resto da incómoda armação que já não era possível pensar no conjunto como sendo uma mesa, mas tão somente um móvel à parte, um instrumento desconhecido cuja utilidade era inapreensível. Mesa desumanizada, embaraçosa, que não era burguesa, nem rústica, nem do campo, nem de cozinha, nem de trabalho. Que para nada prestava, que se defendia, que se recusava ao serviço e à comunicação. Havia nela algo de aterrado, de petrificado. Podia levar a pensar num motor parado.12
Quanto mais se produz a mesa, mais desarranjada fica, menos mesa é, mais inconsumível se torna. O anti-Édipo pensa esta mesa esquizofrênica como produto da produção desejante, nos termos do corpo que Artaud definiu como “sem órgãos". Porquê? Pela espécie de suicídio que ambos supõem, tanto a mesa quanto o corpo do esquizofrênico. Falamos de um corpo suicidado, morto em vida e não na morte, que nasce para fora e não para dentro do mundo, que nasce para fora precisamente por abortar incessantemente o seu nascer para dentro, pelo corpo que se vive, que se sofre, ser este aborto, infinitamente este aborto. Mas falamos da mesa também no mesmo sentido. Afinal, o que é uma mesa que jamais acontece enquanto mesa, cujo processo de produção jamais a termina enquanto mesa? É como se a mesa supusesse uma gênese infinita precisamente por ser abortada incessantemente. Por um lado, a mesa começa, pelo menos no sentido em que começa o processo da sua produção. Por outro, jamais começando realmente enquanto ‘mesa’, ela não sai deste processo, chegando o desarranjo produzido a ser de tal ordem, a mesa cada vez menos mesa (‘cada vez mais um amontoado’), que o produto passa a ser identificado com o processo da sua produção, já não como mesa, mas como uma espécie de massa improdutiva, estéril, inconsumível, inengendrada, abortada para dentro da produção, perdida irremediavelmente no seu interior. É a este ciclo infernal que Deleuze-Guattari atribuem em O anti-Édipo o paradoxo de uma “produção de produção”, do produzir que produz produção.13 Só um produto que jamais transcende a sua produção, que é canibalizado e abortado sem deixar de ser produzido, pode garantir o processo onde se produz produção, onde o ‘produto’ da produção é a própria produção.14 A seu modo, criando uma ordem de trabalhos ‘rigorosa’ na ilha, Robinson lança-se nesta produção, neste frenesim. A sua intenção é inocente: pelo menos uma ordem, nem que seja económica, o rigor de um processo de produção, para substituir a ausência de outrem. Mas o resultado (cómico, satírico) é outro inteiramente: o processo que instaura é o de uma “regressão”, de involução esquizofrênica, para o interior da fenda terrestre, para o corpo sem órgãos enquanto corpo infinitamente abortado para fora do mundo. “Detendo por vezes a sua clepsidra, habituando-se à noite sem fundo de uma caverna, untando o seu corpo com leite, Robinson mergulha até ao centro da ilha e encontra um alvéolo em que consegue enrodilhar-se, que é como o envelope larvar do seu próprio corpo. Regressão mais fantástica do que o da neurose, pois remonta à Terra-mãe, à Mãe primordial" (DELEUZE, 2006, p.323).
A este respeito, o contraste com o Robinson de Defoe é evidente. “Enquanto o Robinson de Defoe proíbe-se de produzir para além da sua necessidade, pensando que o mal começa com o excesso de produção, o de Tournier lança-se numa produção ‘frenética', o único mal consistindo em consumir” (Ibid). Que mal há em consumir? Ora, se o processo de produção visa substituir a estrutura-outrem, consumindo-o, contradiz-se a sua finalidade. Neste sentido, a produção terá de ser frenética, todo o peso incidindo sobre ela enquanto instauração de um novo real sobre a ilha. Não é o consumo que interessa mas a produção. Aliás, para o Robinson de Tournier, quanto mais inconsumíveis os produtos, melhor. É como se, inconsumíveis, tornassem-se vestígios de um povo que um dia existiu na ilha, sendo a este passado imemorial que Robinson se filia. Talvez até sejam estes vestígios, esta filiação, o sentido íntimo da espécie de ‘povoamento’ a que o Robinson de Tournier se propõe através do processo esquizofrênico de produção, sempre excessivo, superabundante, que instaura na ilha. Deleuze confirma-o (2006, p.324): ele diz que “o psicótico tenta aliviar a ausência dos outrem reais instaurando uma ordem de vestígios humanos, organizando uma filiação sobre-humana em resposta à dissolução da estrutura”.15 Mas longe de conseguir aliviar esta ausência, Robinson agrava-a. Ele próprio enterra-se no processo de produção, neste processo enquanto produção esquizofrênica da fenda terrestre. Abismo, corpo, terra: é esta a tríade que compõe a genealogia cósmica do esquizofrênico, com os seus vestígios, a sua filiação sobre-humana. O que a atravessa é o processo de produção esquizofrênico. Ele produz abismo, este abismo é um suicídio, onde se morre nascendo, atirado para fora do mundo, sendo este corpo suicidado uma fenda da própria terra, e isto pelo sem-fundo esquizofrênico dos corpos revelar uma profundidade de outra natureza inteiramente, além da profundidade do mundo, de outrem, de como outrem suaviza a fenda terrestre, medeia a profundidade ao ponto de condicionar a interioridade dos corpos, garantindo-lhes uma antiga orientação terrestre para que, só num pesadelo, talvez, se pressentir o inferno esquizofrênico, o processo de desabamento sem fim, de produção de produção para o interior do sem-fundo dos corpos, para dentro do abismo terrestre, Terra-mãe...
O Outro de outrem
Como sai o náufrago deste buraco? Se depois do momento neurótico, do psicótico, há ainda um terceiro momento, o perverso, que momento é este? O que faz o náufrago de tão perverso, logo ele que se perdeu do mundo numa ilha deserta, que chega até a cair na psicose com o processo de produção esquizofrênico que instaura? Não será por acaso que o romance se chama Vendredi, que Sexta-feira acabe por ser o seu personagem principal. É que “somente ele pode guiar e acabar a metamorfose começada por Robinson e revelar-lhe o seu sentido, o objetivo” (DELEUZE, 2006, p.325). Como? Antes de mais, “inocentemente, superficialmente”, destruindo a ‘ordem’ económica de Robinson, como uma criança termina um jogo e começa outro. Mas, principalmente, por ser ele, Sexta-feira, “o mestiço grosseiro e estúpido que irrita Robinson”, que lhe revela não só que outrem jamais será reencontrando como, também, que existe, para além de outrem, um Outro, não outro outrem mas um Outro de outrem.
O essencial é que Sexta-feira não funciona em absoluto como um outrem reencontrado. É muito tarde, pois a estrutura desapareceu. Ora ele funciona como um objeto insólito, ora como um escravo cúmplice. Robinson trata-o ora como um escravo que procura integrar à ordem económica da ilha, pobre simulacro, ora como detentor de um segredo novo que ameaça a ordem, misterioso fantasma. Ora quase como um objeto ou um animal, ora como se Sexta-feira fosse um além de si mesmo, um além de Sexta-feira, o duplo ou a imagem de si. Ora aquém de outrem, ora além. A diferença é essencial. Pois outrem, no seu funcionamento normal, exprime um mundo possível; mas este mundo possível existe no nosso mundo e, se não é desenvolvido ou realizado sem mudar a qualidade do nosso mundo, ele o é, pelo menos, segundo leis que constituem a ordem do real em geral e a sucessão do tempo. Sexta-feira funciona bem diferentemente, ele indica um outro supostamente verdadeiro, um duplo irredutível unicamente verdadeiro e neste outro mundo um duplo de outrem que ele já não é e não pode ser. Não um outrem mas um outro de outrem. Não uma réplica, mas um Duplo (DELEUZE, 2006, p.325-26).
Que Outro é este? Aquém e além de outrem, simulacro e fantasma? O essencial é a sua relação com outrem: se outrem é a expressão de um mundo possível, expressão esta que condiciona o funcionamento do conjunto do campo perceptivo (enquanto uma estrutura transcendental, a priori), o Outro de outrem, o seu duplo, liberta as singularidades (os “Elementos” para usar a linguagem de Robinson) que outrem aprisiona (DELEUZE, 2006, p.311-12). É precisamente isto que Robinson realiza através de Sexta-feira: que existe um além de outrem, não enquanto terra, abismo ou sem-fundo esquizofrênico, mas enquanto um Outro de outrem, no outro lado tanto da terra quanto do mundo, se por ‘mundo’ supormos o que inclui a estrutura-outrem, que é condicionado por esta estrutura, e, por ‘terra’, a fenda terrestre, o sem-fundo esquizofrênico dos corpos. O que Robinson realiza, por fim, é que o problema era mesmo outrem, que é outrem que aprisiona os elementos, as singularidades, nos mundos possíveis que expressa, que todos estes elementos, todos os expressos ou singularidades, podem ser eles mesmos expressos de outra maneira inteiramente, a partir do acontecimento que afirma, que sexualiza, a própria ausência de outrem, a pequena ilha deserta. “Não é o mundo que é perturbado pela ausência de outrem, pelo contrário, é o duplo glorioso do mundo que se encontra escondido pela sua presença. Eis a descoberta de Robinson: descoberta da superfície, do além elementar, do Outro para outrem” (DELEUZE, 2006, p.328). Longe de se sofrer, na neurose, os efeitos da ausência de outrem, estando a estrutura ainda lá (através de memórias pessoais) mas sem funcionar por não existirem outros que a preencham, que a efetuem, ou de se procurar, na psicose, substituir a estrutura ausente com um processo de produção afundado, enterrado, esquizofrênico, na sua última metamorfose, a perversa, Robinson primeiro identifica-se com o Outro de outrem, com Sexta-feira, para depois passar a afirmar a ausência ou anulação da estrutura outrem, investindo esta ausência diretamente, sexualmente, nos termos de uma sexualidade desértica, elementar, insular, solar.
Não é, portanto, do ponto de vista do seu comportamento que Robinson é perverso.16 Nem é, certamente, a partir da moral que a psiquiatria e o direito atribuem à perversão, de uma “fenomenologia apressada dos comportamentos perversos” (DELEUZE, 2006, p.329) que dizemos que o náufrago é perverso. O que é perverso em Robinson é, antes de mais, a sua identificação com o Outro de outrem, com o duplo de outrem. É precisamente a partir desta identificação, revelada inocentemente por Sexta-feira, e que ‘indica [a Robinson] um outro mundo supostamente verdadeiro’, que se entende que o problema era outrem. Como diz Deleuze (2006, p.329) a respeito de Sade, “não é porque deseje fazer sofrer o outro que o sádico o destitui da sua qualidade de outro … É o inverso, é porque ele carece a estrutura outrem, e vive sob uma outra estrutura servindo de condição ao seu mundo vivo, que [o sádico] apreende os outros seja como vítimas seja como cúmplices, mas em nenhum dos dois casos como outrem, sempre ao contrário, como Outros de outrem”. Mesmo não sendo um perverso do ponto de vista comportamental, Robinson revela, para Deleuze, a dimensão estrutural da perversão, a natureza da repetição que ela pressupõe. Identificando-se, através de Sexta-feira com o Outro de outrem, Robinson repete para si mesmo a ausência de outrem, liberta de dentro de um naufragar, de um dispersar, onde se é atirado para fora e não para dentro do mundo, as singularidades que outrem aprisionava. Ele revela, em suma, que estruturalmente a perversão é equivalente à repetição da ilha deserta, de um mundo sem outrem. O que difere em Robinson não é a identificação com o Outro ou duplo de outrem, muito menos o fato de Sexta-feira passar ele mesmo a funcionar como outro Outro: o que difere é a maneira em que se esclarece, inclusive para o sádico, o que realmente se encontra em jogo na repetição para si deste Outro, a ausência de outrem. E há várias maneiras de repetir esta ausência, de investi-la, a do sádico é certamente uma, mas existem outras, inclusive, como indicamos, repetições onde é mais imediata a apreensão que o comportamento perverso é inteiramente secundário, nem havendo, em certos casos, como no do masoquista, um uso obsceno da linguagem, descrições e narrativas abomináveis (ao contrário, claro, de Sade). Mas não é esta diferenciação interna à repetição que nos interessa de momento. O que queremos sublinhar é o que nos parece ser a insistência de Deleuze no seu ensaio sobre Vendredi: que o que o perverso repete para si é a pequena ilha deserta, um mundo sem outrem. É isto que Robinson revela de uma maneira tão clara a Deleuze: não só a relação da perversão com o tema de outrem, mas como é precisamente a anulação de outrem que o perverso repete para si mesmo, e isto em favor da constituição de um mundo perverso, Outro, sem outrem. Não se trata, claro, de substituir outrem, de garantir uma estrutura que reproduza os seus efeitos. Bem pelo contrário: o problema é o de fazer o próprio mundo nascer a partir da anulação de outrem, da ausência completa e absoluta dos seus ‘efeitos’.
Mundos sem outrem
Só na filosofia de Deleuze existem uma série de mundos sem outrem, de ilhas desertas. Há o de Sade, o mundo sem outrem do sádico, mas há outros mundos, outras ilhas, todas desertas, a ilha do masoquista, a do pornógrafo, mas também a da menina, do esquizofrênico, do esgotado, do vampiro ou do animal, entre outros, todos extraídos, vale a pena acrescentar, da análise literária, de Sade, de Masoch, de Klossowski, de Carroll, de Artaud, de Beckett, de Kafka, etc. O que todos têm em comum é o náufrago, que perdendo a estrutura-outrem, perde o mundo, que afirmando a ilha deserta enquanto mundo, faz do próprio mundo um mundo sem outrem, uma ilha deserta. É como se cada um destes mundos fosse uma espécie de linha de fuga em relação ao mundo, uma maneira singular de fazer o próprio mundo fugir, perder-se de si mesmo. Perder outrem é ainda perder o mundo, ser atirado para fora e não para dentro do mundo, mas este fora é agora a condição para a construção de ‘mundos', todos eles no limite do mundo. É preciso insistir: a morte não é o limite do mundo, não é a sua exterioridade imanente, seja do ponto de vista interior, onde se assume o acontecimento da morte como o que nos é mais íntimo, pessoal, seja do ponto de vista exterior, onde se assume que é o horizonte deste acontecimento que desenha o contorno do mundo, dos possíveis que nos oferece. Para além deste ‘ser-para-a-morte', há o seu avesso, há a interioridade, o limite interior, de perder o mundo em vida e não na morte, tanto quanto há também uma exterioridade de outra natureza inteiramente, o limite exterior de mundos construídos fora e não dentro do mundo, no avesso de ser-no-mundo e da morte que este ser define como limite. É a perda de outrem, no outro lado da existência, de ser-no-mundo, que define, para além de um ser-para-a-morte, o limite interior, o sentido íntimo, que é a experiência do desastre, do naufrágio. E são os mundos sem outrem, as pequenas ilhas desertas, que se constroem de dentro do desastre, do naufrágio, que definem já não a morte como desenho do contorno do mundo mas os mundos sem outrem como pinturas dos diferentes modos em que o próprio mundo se perde dele mesmo no seu por vir. Vamos do mundo à perda do mundo, desta perda a outros mundos, todos no limite do mundo, todos linhas de fuga por onde o próprio mundo escapa de si mesmo, ou pelo menos do que o ‘humano’ faz dele atrofiando-o na ‘compreensão pré-ontológica’ de um ser-no-mundo. O conceito de outrem dá-nos uma pequena introdução a este avesso. É na ausência de outrem que vamos de uma interioridade externa a uma exterioridade interna, da perda radical de outrem à criação de mundos sem outrem. Tudo acontece, portanto, na imanência deste limite, deste avesso: o limite do mundo são mundos construídos no avesso do mundo, na imanência da ausência de outrem, do fora.
Estamos longe, é preciso admitir, do detalhe necessário no que se refere à relação de outrem com ser-no-mundo. Em linhas gerais, dissemos que, sem outrem, é como se já não nos fosse possível interpretar uma compreensão supostamente intrínseca ou natural sobre nós mesmos enquanto seres no mundo, compreensão esta que Heidegger define como pré-ontológica e constitui como objeto privilegiado da sua ‘fenomenologia hermenêutica'. Detalhando o processo onde se passa a descompreender esta compreensão, que inverte o sentido de ‘ser-atirado' para fora e não para dentro do mundo, propusemos o entendimento desta ‘desfactização do ser' nos termos do conceito de outrem, das diferentes metamorfoses, neurótica, psicótica, perversa, envolvidas em perder outrem e distinguidas por Deleuze na sua extraordinária análise do Robinson de Tournier. Definimos, portanto, tanto a estrutura-outrem como condição para uma auto-interpretação do que supostamente já compreendemos enquanto humanos, ‘Daseins', como também, a ausência de outrem, desta estrutura, enquanto critério de imanência para um processo de outra natureza inteiramente, o que perde o mundo, ser-no-mundo, o que descompreende a tal compreensão pré-ontológica, ou dito positivamente, que compreende, com um rigor dilacerante, uma cisão fundamental no ser com o ser, com o seu mundo, até com o seu além. São, assim, duas as ‘estruturas’ que distinguimos, às quais acrescentamos o mundo sem outrem, a pequena ilha deserta, como limite, linha de fuga: temos ser-no-mundo como estrutura, ele mesmo composto por diferentes estruturas, ser-aí, ser-com, ser-para-a-morte, etc.; a estrutura-outrem, que aparece como condição real para a interpretação de ser-no-mundo, com as suas diferentes estruturas (fundo, mundos possíveis, sistemas de signos, etc.); e, finalmente, o mundo sem outrem como devir ou por vir por onde o próprio mundo, com as suas ‘estruturas', foge de si mesmo. O limite do mundo, de ser-no-mundo, é agora a impossibilidade do mundo, deste ser, os diferentes ‘mundos', as ilhas, todas desertas, constituídas ao longo deste limite. Falamos de mundos cujas línguas ainda não conhecemos, cujos corpos ainda não vivemos, cujos povos ainda não conhecemos. De línguas, corpos, povos por vir. São línguas menores, corpos menores, povos menores, que não refletem a lumen naturale de ser-no-mundo, a compreensão pré-ontológica que se atribui a este ser. Outrem funciona, portanto, como uma gigante dobra, a dobra do ser com o seu lado avesso, mas também a dobra interna a este lado avesso entre o seu lado de dentro e o seu lado de fora, entre perder a estrutura-outrem e fazer desta ausência a criação de possíveis, de ‘ilhas desertas', de ‘plateaus', para usar a terminologia de Capitalismo e esquizofrenia, no limite do próprio mundo. E se é um náufrago que pensa estas dobras, talvez seja por ser ele quem cria o conceito de outrem. Foi preciso perverter o próprio Robinson, o de Defoe, para fazer dele um filósofo. Se ele também atravessa a obra de Deleuze, talvez seja por toda a sua filosofia procurar criar ilhas desertas, plateaus, modos de povoar a terra, de distribuir o ser e os conceitos à margem de concepções como a de ser-no-mundo, de compreensões ditas naturais, seja de que espécie forem.
Referências
ARTAUD, Antonin. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2004.
DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2006.
DELEUZE, Gilles. “Descrição da mulher. Por uma filosofia de outrem sexuada”. Tradução de Juliana Oliva e Sandro K. Fornazari. Limiar, vol. 2, 4, 2016, p.168-77.
DELEUZE, Gilles. Cinema 1. A imagem-movimento. Tradução de Stella Senra. São Paulo: Editora 34, 2018.
DELEUZE-GUATTARI. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 1997.
DELEUZE-GUATTARI. O anti-Édipo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010.
DELEUZE-GUATTARI. Mil platôs (vol.3). Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2012.
HEIDEGGER, Martin. Ontologia. Hermenêutica da facticidade. Tradução de Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes, 1995.
HEIDEGGER, Martin. Os conceitos fundamentais da metafísica. Mundo, finitude, solidão. Tradução de Marcos Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Fausto Castilho. Campinas: Editora Unicamp, 2012.
TOURNIER, Michel. Sexta-feira ou os limbos do Pacífico. Tradução de Fernanda Botelho. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014.
Notas
2 Artaud, “Les nouvelles révélations de l’être” (1937), p.787-99. “Lutei para tentar existir, para tentar aceitar as formas (todas as formas) com que a ilusão delirante de ser-no-mundo revestiu a realidade” (a tradução é minha).
3 O apêndice 4 da Lógica do sentido, “Michel Tournier e o mundo sem outrem”, p.311-30.
4 Cf. Ontologia. Hermenêutica da facticidade, em particular §3. “Hermenêutica como auto-interpretação da facticidade”. Em Ser e tempo, Heidegger diz o seguinte (p.67): “Se a interpretação do sentido de ser é a tarefa a ser executada, o Dasein não é somente o ente a ser perguntado em primeiro lugar, é além disso o ente que já se comporta cada vez em seu ser relativamente a aquilo a que se pergunta ... Mas nesse caso, a questão do ser nada mais é do que a radicalização da tendência-de-ser em essência pertencente ao Dasein ele mesmo, isto é, a radicalização do pré-ontológico entendimento do ser”.
5 “O que pensaria de um suicídio anterior, de um suicídio que nos fizesse voltar atrás, mas para o outro lado da existência, e não para o lado da morte? Só esse teria um valor para mim.” “O suicídio é uma solução? [Le suicide est-il une solution, 1925] (a tradução é minha).
6 Vale a pena dizer que Deleuze eram amigos, e isto desde a faculdade onde ambos fizeram o curso de filosofia da Sorbonne (de 1944 a 48). Nesta altura, curiosamente, com uns 20, 21, anos, Deleuze lança um ensaio (2016, p.168-77) sobre outrem, conceito que diz ter ‘emprestado’ de Tournier. Este ensaio (de 1945) foi mais tarde renegado.
7 Heidegger (2012, p.381) chega a deslocar o “discurso ôntico” em torno da “luz natural”, remetendo-o a Dasein, à “clareira” que Dasein é precisamente enquanto “ser-aí”, estando, portanto, Dasein na origem da luz natural que o ente se atribui a si mesmo (no tal discurso ôntico). “O discurso ôntico figurado do lumen naturale no homem não significa nada mais do que a estrutura ontológico-existencial desse ente, que é no modo do seu ser ‘aí’. Ele é ‘iluminado’ [erleuchtet] significa: como ser-no-mundo ele é em si mesmo iluminado, não por receber a luz de um outro ente, mas porque ele mesmo é claridade [getlichtet] da clareira [Lichtung] … Dasein é a sua abertura”.
8 “Outrem assegura as margens e as transições do mundo. Ele é a doçura das continguidades e das semelhanças. Ele regula as transformações da forma e do fundo, as variações de profundidade. Ele impede os assaltos por trás. Povoa o mundo com um rumor benevolente” (DELEUZE, 2006, p.315).
9 Ainda que não o faça no ensaio sobre Robinson de Tournier, Deleuze relacionará outrem a outro conceito da sua filosofia, o do rosto, da rostidade. Em O que é a filosofia? (1997) Deleuze-Guattari chegam a usar outrem (apesar do seu estatuto relativamente marginal) para dar um exemplo do que seria um conceito filosófico (no primeiro capítulo cujo título é justamente “O que é um Conceito?”), relacionando-o explicitamente ao rosto, como um dos seus “componentes”: “Outrem é um mundo possível, tal como existe num rosto que o exprime, e efetua-se numa linguagem que lhe dá uma realidade. Neste sentido, é um conceito com três componentes inseparáveis: mundo possível, rosto existente, linguagem real ou fala” (p.29). Em “Michel Tournier e o mundo sem outrem”, Deleuze focará em outrem como uma espécie de sistema de signos (lembrando Proust) que expressa um mundo possível (como analisaremos em seguida). Em todo caso, bastaria a maneira em que Deleuze pensa o rosto em Cinema 1: A imagem-movimento (2018, cap. 6 e 7) para associarmos estes sistemas ao rosto, dizermos que é através de ‘rostos existentes’, ou o que Mil platôs (2012, plateau 7, “Ano zero. Rostidade”) definirá como uma “máquina abstrata de rostidade”, que outrem se exprime. Ou seja, outrem exprime o fundo, mas fá-lo através de sistemas de signos, de rostos enquanto máquinas abstratas de rostidade. Neste sentido, a estrutura-outrem é indissociável do rosto. E ainda que Deleuze só o esclareça explicitamente em O que é a filosofia?, a sua última grande obra, escrita com Guattari, é curioso notar que em “Descrição da mulher”, um texto de um (muito) jovem Deleuze que ele mais tarde renegou, outrem é associado ao rosto através da mulher. Aparentemente já cansado, apesar da terna idade, com o ‘mundo’ da fenomenologia, inteiramente assexuado, chegando a irritar-se com a maneira em que o “sr. Sartre” pensa a sexualidade (“só se pensa em fazer amor”), a aposta deste jovem Deleuze é na mulher enquanto ‘mundo’, outrem, ou seja, enquanto condição para uma concepção sexuada do mundo assente precisamente numa “teoria sexuada de outrem”. Ainda que se compreenda o porquê de Deleuze o rejeitar mais tarde, há ainda assim passagens comoventes, especialmente em relação ao rosto, à maneira em que se constrói a tríade outrem-mulher-rosto. Pensamos em particular sobre o que se diz em relação a sardas e sinais, ou sobre a maquiagem em geral, a distinção entre dois tipos, uma maquiagem das “superfícies” e outra dos “orifícios”. A este respeito, já se anuncia, parece, a concepção do rosto que aparece formalizada bem mais tarde, enquanto organizada em torno de dois pólos, o pólo da “superfície de rostificação” [visagéification] e o pólo dos “traços rostificantes” [visagéité] (Cf. Imagem-movimento [2018], cap.6, seção 1, “Os dois pólos do rosto: poder e qualidade”, ou o que Mil platôs [2012] chamará “sistema muro branco-buraco negro”, no plateau 7, sobre a rostidade).
10 “O essencial da Recherche não está na madeleine … A obra de Proust é baseada não na exposição da memória mas na aprendizagem de signos … [E] aprender diz respeito essencialmente a signos … Tudo o que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos … Não existe aprendiz que não seja ‘egiptólogo’ de alguma coisa”. (DELEUZE, 2003, p.3-4).
11 “O problema do conhecimento nasce, então, de um anacronismo” (Ibid).
12 Esta referência a Michaux (Les grandes épreuves de l'esprit, Gallimard, 1966) aparece na p.324 do ensaio sobre o Robinson de Tournier.
13 A primeira síntese do inconsciente, tal como Deleuze-Guattari o propõem, é “conectiva”, e corresponde à “produção de produção”. Cf. O anti-Édipo, p.17-8 e 95-104.
14 A identidade produção-produto é também um dos eixos essenciais do processo produção esquizofrênico, nos termos do qual Deleuze-Guattari entendem a produção-desejante, a auto-produção do inconsciente. “Um produzir, um produto, uma identidade produzir-produto”. Ibid, p.18.
15 No seu período final (1945-48), a partir dos tempos finais de Rodez, Artaud (2004) também conta uma história de filiação sobre-humana. Aliás, é no seu regresso a Paris, num encontro organizado no Théâtre Litt da rue du Vieux-Colombier (a 13 de janeiro de 1947), que Artaud apresenta (com o título “Histoire vécue d’Artaud-momo”) ‘novidades’ do seu pensamento após 9 anos de internamento psiquiátrico, e conta em público a história sobre a sua nova filiação, em relação ao corpo que virá a definir como “sem órgãos”, o verdadeiro corpo humano. Nesta história, Artaud insiste que a forma “metafísica” do homem atual, o organismo, não remonta a mais do que 2,000 antes de Cristo. O organismo, enquanto corpo humano doente, morto, teria aparecido, assim, há 4,000 anos, existindo até há 1,000 “homens verdadeiros”, que viviam o verdadeiro corpo do homem, o corpo sem órgãos. Trata-se, portanto, de um processo “morte lenta”, onde já só restam vestígios desta “realidade mágica”, do verdadeiro corpo humano, “cinquenta poemas” insiste Artaud, os de Poe, Nietzsche, Nerval, Baudelaire, Lautréamont, para além de Van Gogh. Cf. “Autour de la séance au Vieux-Colombier", p.1174-89 e também o famoso poema, “O homem-árvore”, escrito de Ivry (23 de abril de 1947) em forma de uma carta a Pierre Loeb, p.1602-07.
16 Ainda que evidente, Deleuze (2006, p.328) também o confirma: “Robinson, contudo, não tem nenhum comportamento perverso”.
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