Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar o surgimento e os problemas aos quais o conceito de Thatsache ou fato da consciência busca solucionar no desenvolvimento da filosofia reinholdiana em seus anos iniciais. Para isso se utilizarão quatro textos chaves no desenvolvimento da Filosofia Elementar de Reinhold tratando-os em três passos. Num primeiro momento o texto se debruçará sobre o problema da diferenciação das condições internas e externas da representação com relação à mera representação e os problemas surgidos a partir dessa empresa no Ensaio para uma nova teoria da faculdade de representação humana (1789). Num segundo momento se analisará como Reinhold procura, por meio do conceito de fato, apresentar uma solução para o problema da diferenciação imediata supracitada nos textos Sobre a possibilidade da filosofia como ciência rigorosa .Nova apresentação dos momentos mais altos da Filosofia Elementar ambos presentes nas suas Contribuições para a retificação dos mal-entendidos dos filósofos até agora (1790) e num terceiro momento, como esse conceito funciona para além disso, como um princípio de toda a consciência e por conseguinte, da Filosofia Elementar, especialmente em seu Sobre o fundamento do saber filosófico, conhecido popularmente apenas por Fundamentschrift de 1791.
Palavras-chave:FatoFato,PrincípioPrincípio,FundamentoFundamento,ConsciênciaConsciência,RepresentaçãoRepresentação.
Abstract: This article aims to present the emergence and the problems which the concept of Thatsache or fact of consciousness attempts to solve in the development of elementary philosophy in its early years. To accomplish this task four texts will be analyzed in three steps. Primarily, the investigation focuses on the difference between internal and external conditions of representation in relation to the mere representation and the problems which it rises in his Essay on a new theory of the human capacity of representation (1789). Secondly, the article analyses how Reinhold tries to solve these problems through the concept of fact of consciousness proposing a definition to the representation as a proposition in his On the possibility of philosophy as rigorous science and New presentation of the chiefs moments of elementary philosophy, both present in the Contribution to the correction of previous misunderstandings of the philosophers (1790). Thirdly, how this concept works not only as a principle of consciousness, but also as a ground to elementary philosophy and the philosophy as well, especially in the On the foundation of philosophical knowledge (1791), known just as Fundamentschrift.
Keywords: Fact, Principle, Ground, Consciousness, Representation.
Artigos
O thatsache na filosofia elementar de K.L. Reinhold
The thatsache in K.L. Reinhold’s elementary philosophy
Recepción: 08 Julio 2021
Aprobación: 03 Octubre 2021
No fear; I like a good grip; I like to feel something in this slippery world that can hold, man (MELVILLE, 1981, p.431)
Após o sucesso que suas Cartas sobre a filosofia kantiana (1786-1790) alcançaram no meio filosófico alemão, as perspectivas de Reinhold a respeito dessa mesma filosofia se orientam em direção a uma nova empreitada - uma Filosofia Elementar - isto é, na condução de uma investigação em torno de um princípio universalmente válido (allgemeingeltend) pelas diversas facções filosóficas correntes. Mas esse não seria um empreendimento construído em vistas de si mesmo, antes, representaria uma tentativa de fornecer aos leitores da Crítica kantiana, uma via de acesso seguro àquela filosofia, que por sua vez conteria, essa sim, os princípios universalmente válidos (allgemeingültig), caraterística de uma investigação pautada na análise das capacidades cognitivas dos seres racionais. Essa via de acesso, contudo, só seria possível a partir de um princípio anterior à própria Crítica, que seria também universalmente aceita2, sem qualquer característica tomada de alguma daquelas facções, a saber, a representação per se. Reinhold acreditava que por Kant não ter se demorado no dissecar desse conceito, que fora por ele meramente pressuposto, meramente assumido como entendível, levou a Crítica da Razão Pura a ser alvo de maus entendidos fundados no fato de cada qual tomar por representação uma noção diferente (REINHOLD, 1789, p.64). Fazer cessar esses maus entendidos, pavimentando a entrada no sistema kantiano a partir desse princípio é o que torna a Filosofia Elementar digna do seu nome. Um ano depois, no primeiro tomo das suas Contribuições para a retificação dos mal-entendidos dos filósofos até agora3 esse princípio é elevado a princípio de toda a filosofia, dando um passo ainda mais preliminar à investigação presente no Ensaio para uma nova teoria da faculdade de representação humana4. Desta vez, conceber um princípio universalmente válido é o que torna essa filosofia uma filosofia elementar e o que torna o filósofo propriamente científico, afastando-o das suas convicções pessoais, dos seus debates constantes e seus humores inconstantes (BZL, I, 367). O fato (Thatsache) da consciência aparece, portanto, como elemento fundamental o qual é expresso pela proposição da consciência, universalmente válida enquanto aquela à qual não depende senão de si, isto é, aquela que determinando a si mesma, evita que em si se encontrem elementos que, por serem determinados externamente, venham a promover disputa entre partidários que compreendam diferentemente suas causas determinantes. Consequentemente esse princípio seria aquele contendo o mais alto e universal dos elementos a tudo o que é representável, o fato mesmo da consciência. Como argumenta Reinhold:
Ela é, enquanto filosofia elementar a ciência daquilo que é imediatamente determinado através da consciência e das proposições universalmente válidas que determinam a si mesmas, as quais expressam aquela [consciência]; a ciência da representação, assim como, consequentemente, também do representável em geral e do que é representável através da sensibilidade, entendimento e razão; ciência das formas da representação e nessa medida, não é nem filosofia teórica nem prática, senão a premissa para ambas (BZL, I, 363)
Esta fundamentação das filosofias teórica e prática, portanto, parecem acabar por abandonar àquele modesto empreendimento de um simples caminho de acesso seguro às investigações presentes na Crítica da Razão Pura ao qual se apontava no Ensaio, já que agora esse fundamento da Filosofia Elementar determina aquela5. Mas antes de analisar como a noção de fato constitui esse princípio e como ele funciona no interior da filosofia elementar, é importante analisar como ele se desenvolve no interior desta.
No segundo livro dessa obra, Reinhold promove uma cuidadosa discussão a respeito do que chama de condições internas e externas da representação. No conceito de representação existe uma necessária diferenciação entre essas duas condições, onde a primeira possui uma primazia na investigação. Isso ocorre porque, uma vez que a investigação conduzida no Ensaio tem como intuito definir e defender o conceito de representação enquanto aquele fundamento faltante na filosofia kantiana, – empreendimento onde a investigação restringiu-se a um esgotamento da análise acerca das espécies de representação: sensação, intuição, conceito, ideias (REINHOLD, 1789, p.209) - são nas condições internas desta nas quais Reinhold se concentrará, já que sem elas qualquer representação estaria completamente cancelada (REINHOLD, 1789, p.227). Essas condições internas são o material da representação e a forma da representação, que em sua ausência tornariam qualquer representação impossível, ainda que ambos precisem ser distinguidos (unterscheiden) da própria representação. Em última instância, o objetivo de Reinhold é encontrar o genus da representação, que abarcaria todas as suas espécies. As condições externas, objeto representado e sujeito representante, por sua vez, dizem respeito a uma investigação completamente diferente, a saber, uma investigação na qual uma teoria a respeito dos objetos independentes da capacidade formal subjetiva seria tão conveniente quanto uma teoria a respeito do sujeito independente dos objetos representados (REINHOLD, 1789, p.206). Reinhold, portanto, desconsidera uma investigação a partir das condições externas, porque elas equivaleriam a uma tentativa de reduzir a capacidade de representação ou ao sujeito ou ao objeto (REINHOLD, 1789, p.225). No Ensaio, Reinhold não está interessado nessa alternativa, mas na relação que têm ambos com a mera representação.
Sendo assim, existem dois elementos na mera representação: o material da representação, que corresponde ao objeto representado, a forma da representação, que corresponde à entidade representante, todos distintos entre si. Sobre isso, diz Reinhold:
Eu espero que haja concordância comigo sobre isso, que toda representação consiste de algo que de si se diferencia na consciência e corresponde ao objeto [Objekt]. A isso eu tenho chamado de material; e é aquilo de que do representado (objeto) [Gegenstand] pertence à representação e de que, na representação pertence o objeto; de algo que de si, igualmente, se diferencia da representação na consciência, constitui-se o sujeito (o representante) (REINHOLD, 1789, p.237)
O problema de Reinhold no decorrer de toda sua investigação é precisamente a impossibilidade de definir o que é a mera representação. Ele chega a citar a não necessidade de tal definição, aproximando-a dos conceitos físicos de corpo e movimento, que ainda que sem uma definição, tornam-se funcionais uma vez que se sabe “o que pensar” a partir destes. Esse problema parece ser contornado no Ensaio, pela diferenciação entre definição e conceito. Enquanto procurar o conceito de representação é entendido como o exercício de procurar aquilo que se deve pensar sob o termo representação - isto é, aquilo de que é necessário pensar sob esse termo e que de modo contrário a tornaria “inconcebível” (no caso, as condições internas da capacidade de representação) - a definição equivaleria ao exercício de procurar a sua explicação para além dela mesma, uma vez que o primeiro exercício ainda não estaria completo, o de saber do que se trata ou o que significaria representação (REINHOLD, 1789, p.223). Esse último, completamente vetado por Reinhold no Ensaio, parece ser, contrariamente, o objetivo nos desenvolvimentos futuros da Filosofia Elementar. Como ele próprio diria no Ensaio:
Aqui a questão não é: de onde a capacidade de representação surge [entstehen]; senão em que ela consiste [bestehen], não na origem, senão somente a natureza da capacidade de representação; não de onde a capacidade de representação toma seus componentes, mas que componentes ela possui (REINHOLD, 1789, p.222)
De fato, nos passos seguintes da filosofia reinholdiana a questão da sua origem da representação ganha uma resposta. O ponto é que o objetivo do Ensaio não comporta uma investigação a respeito desta - em outras palavras, uma investigação genética - o que torna a compreensão da dinâmica da representação uma tarefa muito difícil, especificamente no que diz respeito à sua fundação. Mas, no decorrer do desenvolvimento da Filosofia Elementar, visto seu empreendimento ter concluído a tarefa primordial de entender o que é a representação, fica agora à cargo dos textos posteriores responder àquelas perguntas deixadas temporariamente de lado no Ensaio, isto é, o fundamento da capacidade representativa ou, a busca pela sua definição.
Essa questão parece clarificada primeiramente nas Contribuições, publicado no ano seguinte, quando o conceito de Thatsache aparece. Essa clarificação não é apenas aparente, mas evidente, já que o seu texto se inicia justamente por ela. Em sua primeira parte, Der Sätz der Bewuβtseins ou A proposição da consciência, a relação entre os conceitos de representação, sujeito e objeto são tratadas por Reinhold a partir do conceito de fato da consciência. Como T. Pinkard bem defendeu em seu livro German Philosophy 1760- 1860: The Legacy of Idealism (2002), o conceito de imediato (unmitellbare) possui uma importância axial no desenvolvimento da Filosofia Elementar, e é justamente a partir da noção de fato que Reinhold encontrará o imediato exigido pela filosofia de Jacobi. A observação de Pinkard parece bastante acertada. Em 1787 em seu David Hume, Sobre a Fé ou Idealismo e Realismo, um diálogo, Jacobi de fato constrói uma argumentação que lembra a noção de fato presente na filosofia reinholdiana. Nela Jacobi traz uma noção de aparecimento da consciência e do objeto da consciência, de um dentro e de um fora ou, mais suscintamente de um eu e de um tu de maneira imediata. Essa argumentação surge como uma maneira de Jacobi lidar com as objeções céticas de Hume, que fazia dos objetos da experiência um objeto de mera fé, consequência da impossibilidade de uma reconstituição da ligação causal entre elas e as percepções que afetam o sujeito. Esse surgimento imediato de ambos, sujeito e objeto, a qual é tão independente da ação do sujeito quanto o aparecimento dos objetos das sensações, dá-se de uma maneira “i-mediata”, portanto, sem qualquer mediação causal, sem qualquer necessidade de reconstituição da sua ligação: [...] que mesmo na mais primordial e simples percepção, o eu e o tu, consciência interna e objeto externo devem, ambos, estarem já na alma, num mesmo instante indivisível, sem antes ou depois, sem qualquer operação do entendimento (JACOBI, 1845, p.176).
A influência fica, mas a terminologia de Jacobi sai. Reinhold encontra esse imediato na sua noção de fato. Ela inicia a dinâmica entre representação, sujeito e objeto, conceitos determinados e diferenciados entre si, justamente pelo ponta pé inicial do fato da consciência (BZL, I, 219). Então, aquela diferenciação que tinha de ocorrer de alguma maneira no Ensaio (REINHOLD, 1789, p.238), no decorrer da Filosofia Elementar encontra uma justificação. Como argumenta Reinhold: Que a intuição sensível, o conceito, e assim por diante, são, e o que eu penso sobre elas enquanto representação, eu o sei imediatamente apenas através da consciência (BZL, I, 169). Há então uma completa recondução da investigação do conceito de representação ao fato, uma vez que este funda a consciência. Isso se clarifica ao avançar ao Fundamentschrift, onde a Filosofia Elementar expõe enfaticamente que, agora, a busca está concentrada em encontrar uma definição. Não, como dito, uma definição arbitrária como da filosofia até então, mas uma completamente determinada, que não tome de empréstimo nada senão a pura verificação do fato da consciência. Não é como se o fato fosse arbitrariamente escolhido como o princípio da consciência, mas que, após o proceder analítico da Crítica da Razão Pura – no sentido kantiano do termo, o de uma progressão ascendente do condicionado aos seus princípios (AK149) - na análise das diferentes espécies de representação e no esgotamento dessa tarefa, o que resta é justamente, um princípio, uma definição para um futuro empreendimento, agora sim, sintético, dos princípios aos compostos:
De fato era preciso que o empreendimento analítico tivesse, antes de tudo, bom êxito com os seus traços subordinados, antes de se dedicar ao traço supremo, era, além disso, necessário que Kant descobrisse as peculiaridades das espécies das representações, antes de poder ter descoberto o que é peculiar do gênero (peculiar, i.e. que não é afirmado a partir delas, porém nem antes delas); a descoberta do fundamento último e autêntico da filosofia e a da razão determinante da definição – que é a primeira na série de todas as possíveis [97] e que contém a condição suprema da fiabilidade delas – podia, além disso, apenas concluir, não começar e nem acompanhar a obra do progredir analítico (FS, 96)
Cumprindo a exigência kantiana que concebe uma definição enquanto clareza e suficiência dos traços (KrV, B755), isto é, um esgotamento do um determinado objeto por meio de seus predicados, Reinhold procura fazê-lo a partir de algo que seja certo apoditicamente, ou seja, algo em que sujeito e predicado determinem-se imediatamente. Como argumenta Kant, não podem ser dadas definições dos objetos da experiência empírica, porque no caso destes não há qualquer garantia de que os sentidos possam apreender completamente todos os predicados possíveis de um objeto. Tampouco a definição de um objeto a priori é possível, porque não se pode verificar o esgotamento dos predicados de um objeto sem que ele esteja acessível à experiência, tornando-o sempre um trabalho de pura suposição (KrV, B756). Em contrapartida, a matemática possui justamente a característica de que o objeto pensado por conceitos já é um objeto na intuição, homogeneidade da qual carece a filosofia. Um princípio apodítico para a Filosofia Elementar e consequentemente para toda a filosofia, aproximar-se-ia, por conseguinte da definição matemática. O empreendimento de Reinhold toma para si essa preocupação:
Na Filosofia Elementar a explicação fundamental é já, por ela mesma, exposição completa e portanto a autêntica definição do seu objeto, quer dizer, da representação; o princípio da consciência, a única coisa que a precede não é, além disso, nem uma exposição completa, nem uma exposição incompleta, ele não é sequer uma exposição do conceito da representação, mas [104] a expressão imediata do fato auto-evidente da consciência, a partir do qual a explicação fundamental consegue imediatamente a sua exposição completa (FS, 103)
Daí em diante, a investigação da faculdade de representação ganha um desenvolvimento em torno desse princípio apodítico, expresso pelo fato da consciência. Ele é caracterizado pela sua autoevidência, pela sua impossibilidade de decomposição, ou seja, ele é absolutamente simples e de modo imediato. Diz Reinhold a respeito:
O conceito de representação, na medida em que está na base deste princípio, é deduzido imediatamente da consciência, e é, portanto, perfeitamente simples e não decomponível. A sua fonte é um fato que, enquanto tal, não admite nenhuma explicação, é auto evidente e, justamente por esta sua qualidade, é capaz de fornecer o suposto fundamento último de toda explicação (FS, 78)
Qualquer recondução para justificação, uma causa anterior, é completamente vetada por Reinhold a partir do fato. Ele dá início à dinâmica, mas não pode estar fundado em algo para além dele mesmo, ele é precisamente aquele algo de inicial que dá vida ao conceito de representação e a seu traço fundamental, sua distinção e relação com o sujeito e do objeto (FS, 99). Ao mesmo tempo que esse fato é absolutamente fundante, é objeto de uma reflexão. Reinhold defende o conceito de reflexão como uma alternativa ao conceito de abstração, pelo qual se encontraria a representação enquanto representação e não meramente uma representação em geral, isto é, o gênero da representação encontrado por meio dos seus traços em comum, como é no caso daquela investigação presente no Ensaio (BZL, I, 169).
Esse é outro conceito minuciado durante o Fundamenschrift. Visto que o princípio dado pelo fato não é passível de prova, nem de redução desse princípio à uma definição, – usada como fora pelos filósofos até então, e justamente por isso, recaindo continuamente na arbitrariedade de um princípio dessa natureza - ele é passível unicamente de uma verificação, dada, por sua vez, pela reflexão. O sujeito encontra o princípio da representação pela reflexão em torno deste fato e, analisando-o na consciência, é capaz de encontrar a diferenciação entre representação, sujeito e objeto. Nesse processo de verificação (FS, 78), o sujeito reflete sobre a consciência e encontra essa diferenciação como dada a partir do princípio que é absoluto, certo por si:
Não através de um silogismo racional, mas por meio da simples reflexão acerca do fato da consciência, quer dizer, através da verificação (Vergleichung) do que acontece na consciência, nós sabemos que por obra do sujeito, a representação é distinta na consciência do objeto e do sujeito e referida a ambos (FS, 78)
O fundamento da consciência é, portanto o fato, e é pela verificação da consciência fundada naquele que se constata como já diferenciados: representação, sujeito e objeto. Justifica-se, portanto, aquela diferenciação de ambos por meio do processo reflexionante.
Essa diferenciação é melhor explicada durante o primeiro tomo das suas Contribuições, no seu texto Sobre a Possibilidade da Filosofia como Ciência Rigorosa. O fato, de acordo com a argumentação de Reinhold aqui, possui dois modos de determinar, isto é, o fundamento tem dois modos de “fundar”, mediamente e imediatamente (BZL, I, 358). Todas as proposições fundamentais pensáveis devem ser determinadas mediatamente pela proposição fundamental, na medida em que ela é a única que determina a si mesma, isto é, se se quer chamar-se de fundamental, é preciso que aquelas façam referência à essa de alguma maneira. No caso das proposições imediatamente determinadas pelo fato da consciência, elas nada mais são do que as espécies da consciência, elas são os gêneros de representação, conceitos genéricos sem os quais todo o encadeamento a partir do fato se tornaria impossível. Portanto, o fato possui um determinar primordial, que está presente nessas espécies de consciência: a consciência da representação, a consciência do sujeito e a consciência do objeto. Sobre isso diz Reinhold:
As proposições as quais essas três espécies de consciência expressam, seriam determinadas pela proposição da consciência apenas considerando o traço genérico que está contido nelas no que se refere à consciência em geral; no que se refere ao próprio de cada uma, e as espécies de representação que ela expressa, elas se diferenciam tanto do gênero quanto das espécies restantes pelos traços, cada uma não sendo menos determinada por si mesma do que a proposição da consciência como essa pelo simples fato que a expressa claramente através da reflexão, sem raciocínio (BZL, I, 362)
Reinhold indica nesse ponto, portanto, um diferenciar mútuo, que não depende apenas daquela proposição da consciência (Grundsätz) em geral, mas também das próprias espécies em si mesmas no interior dessa dinâmica, e isto se torna evidente pela mera reflexão. Assim, as espécies de consciência possuem traços próprios que a diferenciam tanto do gênero (consciência em geral), quanto das demais espécies de representação. Portanto, como sugere também M. Gueroult, aquelas condições internas e externas da representação do Ensaio, aqui reaparecem como dadas a partir da noção de fato e encontradas por aquela reflexão:
No mais, embora não possa ser pensado sem o sujeito e o objeto, ele se distingue e o procede, porque lhes torna possível na consciência e os eleva à classificação de elementos constitutivos de si mesmos. Essa distinção permite pôr de maneira precisa os caracteres externos e os caracteres internos da representação. O objeto e o sujeito são caracteres externos porque são diferentes da representação e devem ser excluídos dela. Os caracteres internos são aqueles que estão contidos na simples representação, e graças aos quais ela pode se reportar ao sujeito e ao objeto distinguidos dela (GUEROULT, 1982, p.82)
Essa noção de reflexão que Reinhold sugere, parece ter uma significação dupla. Segundo Ameriks (2000), Reinhold assume essa noção de reflexividade - em primeiro lugar – de modo mais geral, como orientadora da sua leitura do empreendimento crítico kantiano. De acordo com ele, Reinhold tinha claro para si que a filosofia de Kant não havia tomado para si uma atitude reflexiva, isto é, não havia se atentado em justificar os fundamentos desse empreendimento. Mais precisamente, ele não havia feito mais do que justificar os fundamentos de uma experiência possível sem, contudo, mostrar como seria possível assumir de maneira absolutamente certa esse próprio “pôr dos limites”, Kant carecia desse elemento do qual partir em tal investigação, em última instância, um elemento autoevidente:
Um verdadeiro e completo sistema deve ser reflexivo, ele deve incluir a consideração de si mesmo e de como ele pode afirmar os limites gerais do conhecimento que ele conclama, a fim de fornecer uma garantia em princípios pelos resultados contra apóstatas dogmáticos (AMERIKS, 2000, p.117)
Um sistema que tem por intenção desenvolver uma investigação sobre os limites do conhecimento humano, precisa também justificar-se sob o risco de essa limitação mesma do conhecimento se configurar como arbitrariedade e não enquanto método científico. O princípio da consciência assume, por conseguinte, justamente esse elemento reflexivo que fundamenta a filosofia crítica, não sendo necessário mais do que – e esta seria sua segunda acepção - um simples “refletir” do público. Tudo o que é preciso para alcançar esse princípio é a atitude de refletir sobre o fato da sua própria consciência (AMERIKS, 2000, p.121). Assim, essa exigência reinholdiana pela reflexividade conduz a uma autoevidência que, por ser absolutamente certa, torna-se acessível a qualquer um que a alcance, sendo esse próprio alcançar não menos reflexivo, a saber, pelo simples refletir sobre o próprio fato. O princípio deve ser, nomeadamente, encontrado a partir da reflexão e, por conseguinte, não construído de modo arbitrário6.
Vê-se então que o princípio da consciência, o fato, possui sobretudo uma característica sintética, ele antecede a toda síntese que se apresenta na consciência, ainda que na investigação reflexiva seja possível apreendê-lo apenas analiticamente. Nele, sujeito e predicado estão intrinsicamente unidos, ou seja, não é adicionado à dinâmica do fato nenhum traço que seja tirado de fora de si. Ele é, em suma, uma dinâmica absoluta. Expressos na consciência, os seus traços mais simples e não decomponíveis estão na representação, no sujeito e no objeto, os quais não podem ser senão, ou não pensáveis, ou pensáveis apenas como simples e certos, uma vez derivados do princípio da consciência (FS, 87). Aqui, como explica F. Fabbianelli:
A distinção operada por Kant entre o fundamento da síntese – a intuição – e a faculdade que opera a síntese – vale dizer a imaginação – retorna também na Filosofia Elementar: ambos os momentos vêm, todavia, subsumidos sob a categoria de fundamento (FABBIANELLI, 2018)
Isto se dá porque a síntese presente no princípio da consciência já se encontra na espontaneidade da consciência. Diferentemente do que acontece na crítica, onde a atividade sintética dependia da intuição que fornecia o objeto da representação para a síntese subsequente a partir dos conceitos do entendimento. O fato, portanto, comporta essa síntese primordial de todo o juízo, ainda que não explique o modo como se dá essa síntese. Ou seja, tudo o que resta é, com o sujeito, refletir a consciência que já está dada como sintetizada. Essa passividade subjetiva no princípio de Reinhold dentro outras questões inspirará o trabalho de Fichte na primeira metade da década de 17907.
Isso mostra uma linearidade do pensamento reinholdiano, quando analisado seus desenvolvimentos no Ensaio. Especialmente quando considerada aquela impossibilidade de uma investigação a respeito de uma definição da mera representação. O fato corresponderia a esse algo que se dá estando além da própria representação, fornecendo aqueles elementos sem os quais a própria representação seria impensável. Ao mesmo tempo, há uma evidente modificação no foco da investigação, porque a partir das Contribuições a questão passa a ser o princípio da consciência (Der Sätz der Bewuβtsein), o que antecede justamente a representação. O fato fundante da consciência dá luz aqueles seus elementos fundamentais já em sua diferenciação, diferentemente do que ocorre no Ensaio, quando a representação possui primazia, tornando possível qualquer consciência (REINHOLD, 1789, p.224). A partir de 1790 a primazia é realocada para o fato e sua imediatidade, e a investigação em torno do conceito de representação avança na esteira de uma procura pelo fundamento originário da mesma (BZL, I, 168). Como o próprio Reinhold afirma:
No meu Ensaio acerca de uma nova teoria da faculdade representativa humana este fundamento, enquanto tal, é certamente mais sugerido do que exposto em detalhe. Busquei remediar esta deficiência através das minhas Contribuições, ou seja, por meio dos tratados sobre o primeiro princípio fundamental e sobre a possibilidade da filosofia como ciência rigorosa que estão contidos ali (FS, 108)
Esse empreendimento possui um objetivo de grandes proporções filosóficas, com Reinhold equiparando a busca do fundamento da Filosofia Elementar à uma busca do fundamento da própria filosofia. A argumentação de Reinhold nesse ponto se baseia na divisão do fundamento da consciência em fundamento material e formal, ambos pertencentes à dinâmica do fato. De acordo com ele: “O primeiro é a consciência como fato, o segundo são os princípios da consciência e as definições deduzidas imediatamente deles e determinadas completamente através deles” (FS, 109). O primeiro então tem por característica aqueles traços absolutamente simples que comporta o fato imediato da consciência, o próprio conteúdo da Filosofia Elementar, enquanto o segundo, diz respeito à sua forma, donde se constitui a sua sistematicidade. Ou seja, estrutura-se com base nisso, um edifício em que os princípios científicos (a forma), esteja sustentada sob uma base segura (o conteúdo). A forma se sustenta na inteira recondução de todas as suas premissas numa primeira e única, a do conteúdo, sua base segura, imediata e absolutamente simples. Ou seja, a síntese entre forma e matéria presente no fato da consciência, a absoluta determinação através de si permite ao fato da consciência colocar-se como um fundamento absolutamente primeiro e unificado (FS, 111).
Uma vez descoberto o fato, é possível perceber como as filosofias até então tiveram uma conduta unilateral com relação à ideia de fundamento. Reinhold dá dois exemplos principais dessa unilateralidade. A de Locke, quando concebe um fundamento meramente material, com um princípio não decomponível nas ideias simples, e a de Leibniz, quando concebe um fundamento meramente lógico/formal, pelo princípio de contradição. Um princípio da filosofia precisa ser antes, um princípio material/formal, ele precisa ser um princípio real e não meramente um princípio lógico. É fato, entretanto, que Kant tenha alcançado um fundamento transcendental, na própria possibilidade da experiência, mas esse fundamento permanece apenas enquanto fundamento de uma metafísica da natureza, isto é, restrita ao que se pode conhecer a partir da receptividade, relacionando as intuições aos conceitos do entendimento. Todavia, apesar de Kant ter conduzido uma investigação de maneira sistemática, ele não pôde apontar o modo como os princípios da ciência ou da metafísica - aqui aproximados numa estratégia retórica - podem ser reconduzidos à um único princípio autodeterminante. Kant, portanto, empreendeu uma investigação preparatória para essa ciência, sob a forma de uma propedêutica. Ele não explica como os conceitos de possibilidade da experiência e, também o de realidade dos juízos sintéticos a priori podem ser expostos e determinados completamente. A Filosofia Elementar, com seu princípio da consciência no fato, contrariamente: [...] é a fonte científica dos princípios de todas as partes da filosofia derivada; o seu resultado são os princípios fundamentais da filosofia teórica e prática, ou seja, os da filosofia pura, imediatamente, os da filosofia empírica, por meio da filosofia pura (FS, 117). Sendo assim, a Filosofia Elementar uma vez sendo fundamento da consciência, se configura justamente como fundamento anterior à metafísica da natureza sensível (filosofia teórica/ filosofia material) e igualmente, anterior à metafísica dos costumes (filosofia prática), unificando-as, diferentemente daqueles princípios particulares de cada uma, os quais não possuem a universalidade ou a abrangência da Filosofia Elementar. Pelo fato, princípio autodeterminante, é possível deduzir a completa definição do conceito mais universal e abrangente, a saber, a representação (FS, 81). Ambas, filosofia teórica e filosofia prática, então, estariam sustentadas sob a constituição de uma ciência acerca da faculdade representativa em geral e não restrita ao seu caráter meramente conhecitivo ou apetitivo. Nas Contribuições, esse encadeamento fundamentacional a partir do fato é desenvolvido de maneira mais suscinta a partir da proposição da consciência. As espécies de consciência que se diferenciam da consciência em geral não são as únicas proposições determinadas, como de óbvio se deduz de uma filosofia que pretende fundamentar todas as demais. Reinhold apresenta um rápido panorama dos objetos de estudo aos quais a Filosofia Elementar se debruçaria. A proposição da consciência fundamentaria as espécies particulares de consciência: consciência do sujeito, consciência do objeto (BZL, I, 364). Outrossim, a proposição da consciência fundamentaria o gênero da representação e suas espécies particulares: representação sensível, intelectual e racional. Nessa medida elas diferenciam-se entre si assim como ocorria na dinâmica do fato da consciência, pois também são imediatamente determinados pelo gênero do representável, que em última instância é determinado pela espécie particular de consciência, determinada por si. Por conseguinte, tudo o que é imediatamente determinado pela consciência é objeto de estudo da Filosofia Elementar (BZL, I, 363), fundamento das filosofias teórico, prática e, portanto, da própria filosofia crítica.
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2 Reinhold estabelece uma diferença entre Allgemeingemütig e Allgemeingeltend. Que todas as filosofias se julguem partir de um princípio universalmente válido (allgemeingemütig) parece evidente, mas isso não significa que elas conquistem uma validação aceita, um consenso possível a partir desse princípio (allgemeingeltend). D. Henrich (2003) argumenta que esse modo de pensar o ponto de partida enquanto allgemeingeltend tem por origem a noção cartesiana de certeza, isto é, o princípio precisa ser universalmente acordado entre todos, autoevidente e acessível imediatamente, tal-qualmente o cogito desenvolvido por R. Descartes nas suas Meditações.
3 A partir daqui apenas Contribuições.
4 A partir daqui apenas Ensaio.
5 Essa parece ser também a perspectiva de M. Gueroult em seu L’evolution et la structure de la doctrine de la science chez Fichte quando diz: “Por teoria da faculdade representativa deve então se encontrar resolvido o problema posto pelo kantismo à especulação moderna: encontrar uma via de acesso mais fácil para eliminar os velhos contrasensos (relativos à faculdade de conhecer) descoberta pela via mais difícil da crítica, que é destruída de certa forma pelo obstáculo que representa a intelecção da própria crítica” (GUEROULT, 1982, p.81).
Também D. Henrich propõe essa perspectiva quando argumenta: “Reinhold afirma chegar à experiência e às faculdades da mente por uma nova fundação. A Filosofia Elementar é necessariamente ambos, virar de ponta cabeça as críticas à Crítica da Razão Pura e fundar a filosofia ela mesma (HENRICH, 2003, p.130)
6 Na segunda edição de suas Cartas sobre a filosofia kantiana de 1792, a noção reinholdiana de fato e a noção de reflexividade aparecerão mais próximos do conceito de fato da razão presente na Crítica da Razão Prática. Kant logo nas primeiras páginas da sua segunda crítica se depara com o problema de provar o a existência do âmbito prático, em outras palavras, de mostrar que a razão pode também ser prática. Para sair do imbróglio, Kant sustenta que a razão se prova prática por um simples fato - ela é - e a partir da sua realidade (Realität), sua possibilidade é então tratada. Z. Loparić em seu famoso artigo Fato da Razão: Uma interpretação semântica (1999) traz uma cuidadosa investigação a respeito desse conceito no interior da filosofia crítica, aproximando o fato àquela determinação imediata da vontade pela lei moral, seu único móbil, o respeito (KrP, A139). Isto se dá porque existe a necessidade de explicar como um âmbito puro é capaz de comunicar-se com a sensibilidade, por isso a razão prática precisa ser real (Real), mas também efetiva (Wirklich): “Como se trata de um efeito, nós traduzimos: produzindo um feito da razão. De que feito se trata? De um tipo particular de consciência, a saber, de que forma das máximas é imposta (aufgedrängt) a nossa vontade (KrV, p.55). Essa consciência nos revela que a fórmula da lei moral nos obriga. A obrigação em questão tem o caráter de necessitação (Nötigung) ou coação. O feito da razão é a consciência de que a fórmula vigora (findett statt) porque a razão age em nós” (LOPARIC, 1999). A maneira como Reinhold passa a interpretar o fato da consciência nesse momento tem a ver com a necessidade de uma autodeterminação da vontade para além da determinação da mesma pela razão. Isso ocorre porque Reinhold preocupa-se nesse momento com a necessidade de fazer a vontade livre por si mesma, concebendo a sua liberdade num processo de autodeterminação, diferentemente do que havia feito Kant, quando sustentava a liberdade na determinação daquela pela lei. O fato (da autoconsciência) aqui, portanto, expressa essa autodeterminação da vontade. Kant havia explicado na segunda crítica a maneira como a determinação da vontade pela lei moral produziria um efeito negativo, na medida em que restringiria o egoísmo do amor próprio. Essa determinação apareceria então como uma humilhação do ponto de vista sensível, contudo, num sentido positivo do ponto de vista intelectual, uma vez que potencializa a ação do ser racional em conformidade com a lei moral, já que as inclinações sensíveis se enfraqueceriam por essa determinação. Em Reinhold, a vontade independente está diretamente relacionada ao mundo sensível por sua determinação própria. É por seu arbítrio que a vontade decide entre obedecer ou não as inclinações sensíveis do impulso de egoísmo ou, contrariamente, indo em direção da negação dos mesmos pelo impulso altruísta. Em sentido negativo, a liberdade da vontade se basearia na independência dessa vontade tanto de um impulso quanto do outro, mas em um sentido positivo, ela residiria justamente na capacidade de uma autodeterminação da vontade, expressa pelo fato da autoconsciência (BKP II, 282). Nesse sentido a liberdade é livre para obedecer ou desobedecer a lei. Isso implica, como explica A. Lazzari: “Reinhold pensou que a liberdade da vontade enquanto fato da autoconsciência contrariava três teoremas fundamentais da Crítica da Razão Prática: primeiro, a suposição da consciência da lei moral como o único fato da razão. Segundo, a suposição da liberdade enquanto derivada ratio essendi da lei moral, terceiro, a suposição da liberdade como postulado da razão prática pura. Então se aceita, a liberdade da vontade como sendo fato não empírico da autoconsciência, se seguindo, que a lei moral ou a consciência da mesma não sendo "o único" fato [Faktum] não empírico. Segundo, que a liberdade não pode unicamente encerrar a lei moral enquanto ratio essendi, então nós temos dela, enquanto fato, uma consciência imediata, e terceiro que a liberdade enquanto fundamento também não poderia ser observada enquanto postulado da razão prática pura” (LAZZARI, 2020, p. 140-141). O fato da consciência aqui se entenderia, portanto como expressão da autoconsciência, desta autodeterminação da vontade. Ele funcionaria de maneira próxima àquele fato da razão kantiano, já que a partir dele tomar-se-ia, justamente, a consciência da liberdade, mas não como determinação pela lei, mas contrariamente - e aqui se afastando de Kant - da vontade como fundamento de todas as faculdades do espírito (sensibilidade, entendimento e razão), uma vez que não pode ser derivada de nenhuma outra faculdade, pois funda-se apenas em si mesma. Ela é antes um ato de pura autodeterminação que não pode ser compreendida senão por esse fato, que expressa tanto a sua possibilidade (Möglichkeit) quanto sua realidade (Wirklichkeit) (BKP II, 283).
7 Sobre uma ligação entre o Thatsache e os princípios da Wissenschaftslehre ver Reinhold’s Principle of Consciouness and Fichte’s Third Principle (2020) de J. Karásek.