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Necessidade, evolução e liberdade na filosofia jônico-epicurista

Necessity, evolution and freedom in the ionian-epicurist philosophy

Rafael Estrela Canto 1
Universidade Federal do Pará, Brasil

Necessidade, evolução e liberdade na filosofia jônico-epicurista

Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 1, pp. 49-58, 2022

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepción: 22 Junio 2021

Aprobación: 11 Febrero 2022

Resumo: O artigo parte do princípio de que os filósofos chamados “pré-socráticos” devem ser conhecidos pela análise de seus fragmentos e por uma análise crítica dos testemunhos que sobre eles nos chegaram. A leitura aristotélica prevaleceu, porém hoje temos condições de entender a filosofia jônica em sua particularidade, cada um dos filósofos e o que é comum a eles. Abordamos esses filósofos em seu conjunto como membros de uma tradição histórica, pois isto sem dúvida nos parece incontornável para a sua adequada compreensão, e nos ativemos às noções fundamentais de necessidade, evolução e liberdade, uma espécie de espinha dorsal do pensamento de Anaximandro ao de Lucrécio. Especialmente em contraste com a ideia de finalidade (basilar para Aristóteles, mas também para Platão), consideramos que os jônicos seguiram o caminho oposto ao aristotélico e que os epicuristas são seus principais herdeiros, daí a expressão “filosofia jônico-epicurista”, por nós cunhada para se referir ao que acreditamos ter sido uma longa e legítima tradição filosófica.

Palavras-chave: Necessidade, Evolução, Liberdade, Jônicos, Epicurismo.

Abstract: The article assumes that the philosophers known as “pre-Socratics” should be understood for analyzing their fragments and for a critical analysis of the testimonies about them that have come to us. The Aristotelian reading prevailed, but today we are able to understand the Ionian philosophy in its particularity, each of its philosophers and the ideas common to them. We approach these philosophers together as members of a historical tradition, as this undoubtedly seems unavoidable for their proper understanding, and we pay attention to the fundamental notions of necessity, evolution and freedom, a kind of backbone of Anaximander's thought to that of Lucretius. Especially in contrast to the idea of final cause (basilar for Aristotle, but also for Plato), we consider that the Ionians followed the opposite path to the Aristotelian and that the Epicureans are their main heirs, hence the expression “Ionian-Epicurean philosophy”, for us created to designate what we believe to have been a long and legitimate philosophical tradition.

Keywords: Necessity, Evolution, Freedom, Ionian, Epicurism.

São muitos os elementos, mas provavelmente o elo que une de modo fundamental os filósofos jônicos e os epicuristas historicamente é a natureza do movimento como ponto de partida de suas investigações. Por isso, consideramos não haver nada de assombroso em se defender a existência de uma filosofia jônico-epicurista, pois, como pretendemos mostrar, no que diz respeito a alguns pontos considerados por nós centrais, é que o trabalho realizado por cada um deles, através de gerações, perfazem um todo teórico coerente. Talvez a prova mais contundente seja o fato de que suas filosofias não podem ser bem compreendidas separadamente; tanto progressiva quanto retroativamente na linha o tempo, cada filósofo ajuda na compreensão do outro, de Tales a Epicuro, de Lucrécio a Anaximandro, suas ideias se esclarecem reciprocamente. Por isso, consideramos que as suas diferenças devem ser vistas como momentos distintos e necessários de uma elaboração teórica conjunta.

Neste sentido, consideramos que a investigação desses filósofos deve se posicionar desde o início da perspectiva deles, de seus próprios textos e fragmentos. Isto merece ser feito por duas razões muito simples: desde que há não muito tempo se iniciou o estudo dos chamados filósofos “pré-socráticos”, a partir da reconstrução dos fragmentos e testemunhos por Diels-Kranz, ainda impera uma leitura através dos óculos aristotélicos, como se a apresentação que fez Aristóteles dos filósofos anteriores não tivesse como critério o seu próprio arcabouço conceitual. Ler os testemunhos nas obras aristotélicas (que, na falta dos textos originais dos filósofos, não deixam de ser valiosos) compromete o entendimento dos filósofos jônicos, se assimilarmos as palavras de Aristóteles sem uma análise crítica da presença constante dos interesses filosóficos do próprio Aristóteles em seus comentários. Para entender isso, as questões em torno dos conceitos de movimento e de necessidade são, a nosso ver, chaves.

Na Metafísica, Aristóteles, ao discorrer sobre Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Empédocles e Anaxágoras, afirma:

Com base nesses raciocínios, poder-se-ia crer que exista uma causa única: a chamada causa material. Mas, enquanto esses pensadores procediam desse modo, a própria realidade lhes abriu o caminho e os obrigou a prosseguir na investigação. De fato, mesmo tendo admitido que todo processo de geração e corrupção derive de um único elemento material, ou de muitos elementos materiais, por que ele ocorre e qual é a sua causa? Certamente não é o substrato que provoca a mudança em si mesmo […] Ora, investigar isso significa buscar o outro princípio, isto é, como diríamos nós, o princípio do movimento. Os que desde o início empreenderam esse tipo de pesquisa e sustentaram só um substrato não se deram conta dessa dificuldade […] exceto, talvez, Parmênides, pelo menos na medida em que afirmou não só a existência do uno, mas também a existência de duas outras causas. (ARISTÓTELES, 2002, p. 19-20)

Segundo Aristóteles, o movimento deve ter um outro princípio além dele mesmo, e não deixa de ser curioso que, ao estabelecer isso, se valha da expressão 'como diríamos nós ’ . Talvez, sem o perceber, deixou registrado o fato de que a questão foi posta e tratada à sua maneira. Toda a história da filosofia predecessora a ele, Aristóteles a trata como um caminho progressivo de descoberta das quatro causas por ele definidas, como se não pudessem partir de pressupostos e interesses distintos dos seus. Pois, senão, como ele justificaria este fragmento de Anaximandro: “e, além disso, havia um movimento eterno, do qual resulta a origem dos mundos”? (BURNET, 2006, p. 67). Esse mesmo movimento eterno é caracterizado como infinito, não apenas por Anaximandro:

os que presumiam mundos inumeráveis, como Anaximandro, Leucipo, Demócrito e, numa época posterior, Epicuro, afirmavam que estes passavam a existir e desapareciam ad infinitum, alguns sempre surgindo e outros desaparecendo (idem, p. 70).

O comentário de Aristóteles, segundo o qual esses filósofos não teriam enxergado a necessidade de haver um substrato imóvel, na verdade, não leva em conta que eles partiam do pressuposto de que a existência dos corpos é movimento, não que está em movimento. Para esses filósofos, o movimento não é um estado do corpo, é a sua natureza própria. Entre Aristóteles e os filósofos que ele critica – e é isso que pretendemos deixar claro aqui – existe uma divergência de princípios, não de consequências.

A referência a Parmênides no final do trecho é esclarecedora, porque sendo o uno imóvel, revela o pressuposto aristotélico segundo o qual o movimento deve ter algo imóvel como causa. Ou seja, considera desde o início que a matéria é inerte, fato aparentemente justificado pela distinção entre causa eficiente e causa material. Esse pressuposto para ele inquestionável, se reflete nas demais distinções causais. Ao distinguir também a causa formal, põe a matéria de antemão como amorfa e, segundo a existência de uma causa final, conclui que a matéria deva ser regulada por uma Providência. Isto é, Aristóteles constrói a sua teoria das quatro causas e a projeta naqueles filósofos.

O que Aristóteles talvez não tenha percebido, haja vista não questionar os seus pressupostos, é que tão-somente pelo movimento necessário, como único princípio da Natureza, os filósofos jônicos e epicuristas buscaram explicar que os distintos corpos se formam por relações de movimentos constitutivos, cujas leis são antes determinantes e instituintes da realidade corpórea perceptível, e não o contrário. Em outras palavras, sendo o movimento da Natureza eterno e infinito (e o porquê disso não cabe aqui explicar), é o movimento infinito que deve explicar o movimento finito (e, consequentemente, explicar o que chamamos de repouso). Ora, o estudo da natureza do movimento infinito é o atomismo. Ele é — para usar uma palavra já tornada parte do vocabulário filosófico — uma ontologia, que não pode ser confundida com a metafísica, pois o pensamento metafísico é inteiramente rechaçado por esses filósofos desde o início. A ideia de que o movimento dos corpos finitos deveria ser explicado por algum princípio imóvel, sejam o uno de Parmênides, as ideias de Platão ou o Motor Imóvel de Aristóteles, não é meramente ignorada pela filosofia jônico-epicurista , como propõe Aristóteles, ela lhe é simplesmente incompatível.

Basicamente, a diferença entre o que diz Aristóteles do movimento atômico e o que dizem os próprios atomistas é esta:

Segundo Aristóteles, os atomistas não explicam qual é a causa do movimento originário dos átomos, quer dizer, de seu deslocamento pelo vazio. A crítica de Aristóteles não é pertinente, porque se o movimento é inerente ao átomo mesmo, não cabe buscar para ele uma causa diferente. Poder-se-ia perguntar pela causa do movimento apenas se houvesse um estado prévio de repouso dos átomos no vazio; porém, os átomos existem movendo-se. O movimento é sem causa, ou, como diz Demócrito, necessário. (CORDERO, 2015, p. 327, nota 107)

Tornou-se lugar-comum opor a necessidade à liberdade, mas essa oposição não existe em Demócrito (nem em Epicuro, Lucrécio etc.). Em Demócrito a necessidade se opõe à finalidade. Assim, necessidade nada tem a ver com determinismo, e isto pode ser explicado de forma simples e breve. O determinismo pressupõe a sucessão temporal, a partir da qual afirma que os fatos – concatenados no passado, no presente e no futuro – não podem ocorrer diferentemente, pois todas as coisas estão concatenadas fatidicamente numa única cadeia de causas e efeitos. No entanto, os átomos não se movem no tempo (o seu movimento é eterno!), ao contrário, eles constituem o tempo na medida em que constituem os mundos e os corpos que existem neles. Não há nenhum sentido em atribuir sucessão ao movimento dos átomos, pois eles não são corpo mundanos, logo a necessidade do movimento atômico nada tem a ver com o determinismo. Assim, cai a oposição entre necessidade e liberdade, pois ela é, na verdade, entre determinismo e liberdade (esta distinção, por sua vez, não pertence à física, mas à ética).

Em seu único fragmento considerado autêntico, Leucipo afirma: “nada se produz porque sim, senão que tudo surge por uma razão e por necessidade”. Já Simplício atribui a Leucipo e a Demócrito a ideia segundo a qual “somente para quem sustenta que os elementos são infinitos, tudo ocorre de una maneira conforme à razão”. Necessidade e razão como sinônimos significa que nada acontece que não tenha uma causa e que não possa ser explicado, ou seja, que na Natureza as coisas existem de acordo com leis intransgressíveis. Estas leis, por sua vez, não foram criadas por ninguém, por nenhuma inteligência pessoal, nenhuma deliberação, nenhum projeto; em suma, por nenhuma finalidade.

Quanto a isso, alguns testemunhos são preciosos: “Demócrito de Abdera sustentava que o universo é infinito, posto que não foi modelado por nenhum artesão”; “Leucipo, Demócrito e Epicuro afirmam que o mundo não está animado nem dirigido pela providência”; e, principalmente, este:

[...] Começar por aquela questão que parece ser a primeira por natureza: se há uma providência que se ocupa de tudo ou se todas as coisas são e se geram por obra do acaso. Demócrito é o autor desta sentença, confirmada por Epicuro. (CORDERO, 2015, p. 336)

Este último testemunho é fundamental, porque evidencia que para Demócrito (e Epicuro) a causa final (providência) não foi ignorada, como afirma Aristóteles, muito pelo contrário, estava consciente de que o seu rechaço é o ponto de partida do qual depende tudo o mais.

A providência aristotélica, por sua vez, aparece no décimo-segundo livro da Metafísica:

fim significa: (a) algo em vista do qual e (b) o próprio propósito de algo; no segundo desses significados o fim pode se encontrar entre os seres imóveis, no primeiro não. Portanto, <o primeiro movente> move como o que é amado, enquanto todas as outras coisas movem sendo movidas (ARISTÓTELES, 2002, p. 563).

Para Aristóteles, as coisas não se movem por necessidade própria, mas por amor a Deus, o primeiro movente. Aproximar-se do amado é o propósito, a finalidade, a causa de todo movimento. Dado que Deus é imóvel, essa finalidade coincide com a ideia de que, segundo a física aristotélica, o lugar natural de cada coisa seja o seu repouso. Segundo Aristóteles, portanto, o repouso é a origem e o fim de todo movimento. Com esta ideia, ele acreditava ter resolvido um problema que os atomistas teriam ignorado. Porém, como vimos acima, não só o problema não foi ignorado como foi resolvido no sentido diametralmente oposto.

Além disso, o segundo e o último testemunhos (além de muitos outros) são importantes porque comprovam a forte ligação entre Leucipo, Demócrito e Epicuro, mas o primeiro também aponta para Anaxágoras.

Ao comentar a filosofia de Anaxágoras, Aristóteles se posiciona mais uma vez explicitamente na posição diametralmente oposta na mesmíssima questão:

Anaxágoras disse que o homem é o mais inteligente dos seres vivos por causa de ter mãos, porém o razoável é dizer que recebeu as mãos por ser o mais inteligente. Com efeito, as mãos são um instrumento, e a natureza – tal como um homem sábio – atribui cada coisa ao que pode usá-la. (CORDERO, 2015, p. 166)

Ou, na forma resumida de Galeno: “não é o [homem] mais sábio porque tem mãos, como disse Anaxágoras, senão porque era o mais sábio foi dotado de mãos, como disse Aristóteles”. Platão também, antes de seu mais ilustre discípulo, criticara Anaxágoras por motivo semelhante. No Fédon, Sócrates conta ter exultado em seu primeiro contato com o filósofo jônico: “certo dia ouvi alguém que lia um livro de Anaxágoras. Dizia este que 'o espírito é o ordenador e a causa de todas as coisas'. Isso me causou alegria” (1983, p. 104). Em seguida, explica o porquê: “a única coisa que o homem deve procurar é aquilo que é melhor e mais perfeito” (idem). Como Sócrates havia entendido que o espírito (nôus) de Anaxágoras era uma inteligência que teria criado tudo tendo em vista o melhor e o mais perfeito – observe-se que ele parte justamente de um princípio que já havia estabelecido antes –, decepcionou-se quando ao ler a obra do jônico descobriu que “esse homem não fazia nenhum uso do espírito nem lhe atribuía papel algum como causa na ordem do universo, indo procurar tal causalidade no éter, no ar, na água, em muitas outras coisas absurdas!” (idem) – ou seja, nos movimentos da matéria.

A inteligência (nôus) de Anaxágoras, contudo, nada tem a ver com a inteligência demiúrgica do Timeu de Platão. Ela está mais próxima da razão (lógos) de Leucipo, à qual nos referimos acima: “Anaxágoras, Empédocles e Demócrito dizem que as plantas têm intelecto e inteligência”. Ora, com isso não queriam dizer, certamente, que as plantas pensam como nós. Estavam a dizer que, tal como nós, as plantas ou – por que não? –, para falar de modo mais geral, cada coisa existente tem a sua razão de ser tal como é, ou que se move inteligentemente, de acordo com as suas necessidades. Cada corpo tem diferentes necessidades e, por isso, age ou realiza movimentos diferentes. Sem mãos, as plantas não podem ter as mesmas necessidades que levam o homem a fabricar seus instrumentos e utensílios. A ausência de mãos certamente é uma das razões de as plantas não pensarem como nós.

Essas necessidades, no entanto, não devem ser entendidas do ponto de vista dos produtos das suas ações ou dos objetos almejados. Por exemplo, a necessidade da planta de realizar a fotossíntese não vem do sol, assim como não é a lança que leva o homem a fabricá-la. Ao contrário, a necessidade, do ponto de vista de cada ser, o leva antes de mais nada na direção de algo desconhecido e imprevisto. Ao ter a ideia de produzir algo que perfure, o homem ainda não conhece a lança, ele só passa a conhecê-la depois que a fabrica pela primeira vez, e isto ele o fez porque resolveu uma necessidade por meio da criação de algo perfurante. Assim, a finalidade (alcançar o sol, perfurar com uma lança) não é a causa do movimento, porque ela só se revela após o movimento ter sido executado. Conceber a finalidade como causa provém mais do modo como nós, seres humanos, percebemos as coisas, ou seja, do modo de ser da nossa inteligência e de nosso corpo, do que de como as coisas de fato ocorrem na natureza.

Isso significa dizer que Anaxágoras, Demócrito e Epicuro concebiam o ser humano pela natureza, enquanto que Platão e Aristóteles, ao contrário, concebiam a natureza pelo homem, pois atribuíam a ela a inteligência humana. Ao fazerem isso, negaram à matéria qualquer inteligência, qualquer ação ou atividade própria, retiraram-lhe a sua forma e a trataram como existência separada. Por esse motivo, ambos entendiam o sábio como aquele que busca o melhor e a perfeição, ou que se mira no mais belo e perfeito, e acabaram por atribuir à natureza o seu ideal humano de sabedoria. Mas nem sequer a sua noção de sábio se poderia chamar de universal, pois a sabedoria para Demócrito e Epicuro, por exemplo, tinha o seu quê de 'imperfeição'. Segundo Sexto Empírico, o conhecimento para Demócrito é indissociável da disposição do corpo e, por isso, tão limitado quanto: “na realidade, nada sabemos sobre coisa alguma, senão que em todos os homens a sua opinião é uma reforma [epirysmíe] de sua disposição”. (Este testemunho é muito complexo, sintetiza muitas ideias, pois nele a teoria dos átomos aparece intimamente conectada à concepção que Demócrito tinha da condição humana. Ele remete diretamente ao conceito de rythmós ou rhysmós, o qual não tratamos aqui.)

O sábio para Demócrito não é alguém que visa a perfeição e muito menos é capaz de contemplar a causa primeira de todas as coisas, no máximo, pela experiência, por investigar a natureza, pode pensar os movimentos mínimos para além dos quais não é capaz de conceber mais nenhum, e que servem de princípio (cânone, método) para orientá-lo na investigação das coisas particulares. Posteriormente, Epicuro diz em sua Carta a Heródoto: “Daí, sendo o método útil para todos que se dedicam ao estudo da natureza – cuja atividade contínua, aliás, recomendo e graças a qual se colhe sobretudo serenidade para a vida” (2020, p. 94). Some-se a essa recomendação de Epicuro o fato de que o modo de vida no Jardim seguia a máxima de que se deve evitar submeter-se aos desejos não naturais nem necessários, supérfluos (conforme consta na Carta a Meneceu), e então vemos como compartilhava com Demócrito uma noção semelhante do sábio. Além de reconhecer o limite do conhecimento humano, para Demócrito “o sábio suporta a pobreza com dignidade” e “o sábio não deve obedecer as leis, senão viver livremente”.

O sábio não visa a perfeição, mas viver com dignidade e livremente. Ora, nenhuma dessas qualidades aparecem de forma absoluta. A dignidade é frente à pobreza e a liberdade, frente às leis. Portanto, é na experiência concreta da vida que o homem torna-se digno e livre, ao confrontar as verdadeiras necessidades de sua natureza com as condições de vida e com o Estado. Dignidade e liberdade estão interligadas, pois ser digno na pobreza significa não desesperar-se e não abandonar o poder sobre a própria vida. Aquele que se entrega nas mãos de outrem é um escravo ou servo. Enquanto Platão e Aristóteles definem a sabedoria por oposição à ignorância, Demócrito e Epicuro definem a sabedoria por oposição à servidão. Servo, antes de mais nada, é aquele que é escravo de suas paixões e do que ou quem ele acredite poder libertá-lo delas.

O exemplo de Diógenes, o Cão, aqui é notável. A estória é famosa. Conta-se que quando jovem, por conta de dívida, seu pai o utilizara como pagamento. Após muitos anos, durante os quais Diógenes educou o filho de seu dono legal, recebera destes como presente a sua alforria. No momento em que estenderam o documento para Diógenes, este, frustrando as expectativas dos dois, respondeu simplesmente que a liberdade não podia ser dada a ele, porque nunca deixou de ser livre. Para Demócrito, Diógenes e Epicuro, a servidão não é definida como estado social, em que o sujeito aparece como objeto, mas, ao contrário, é definida a partir do sujeito como a própria condição de seu ser. Assim nos tornamos capazes de apreender o significado da afirmação de Demócrito de que o sábio não deve obediência às leis. Ora, tal como não é a carta de alforria que garantiria a liberdade de Diógenes, também não são as leis que garantem a liberdade do sábio, muito pelo contrário, as leis que devem ser escritas pelo sábio, pois somente ele é capaz de orientá-las segundo a liberdade. Aliás, é somente se forem escritas tendo como fundamento a verdadeira liberdade que podem ser leis dignas de serem obedecidas por quem não é sábio o suficiente para criá-las.

Demócrito entendia perfeitamente que as leis políticas são criações humanas, forjadas para atender necessidades que não são sempre as mesmas. Defensor da democracia, via no sábio aquele capaz de criar leis favoráveis à maioria, que satisfizesse ao máximo o desejo ou a necessidade natural de cada um de viver livremente. Por outro lado, leis escritas por pessoas de ânimo servil só podem criar sociedades servis. E como não há um modelo de sabedoria, também não há um de sociedade, a experiência é sempre a maior mestra.

Anaxágoras, o mestre de Péricles, devia pensar algo parecido. Ao afirmar que a mão é a responsável pela inteligência humana, estava dizendo que a experiência não nos é dada, mas construída pela nossa atividade transformadora. O conceito de necessidade, portanto, se desdobra em uma noção muito importante que une os jônicos e os epicuristas: as coisas na natureza se formam todas por processos de evolução.

Desde Anaximandro já é possível perceber esse 'evolucionismo', seja quando ele explica o ciclo das águas (dos mares à chuva e vice-versa) ou ao esboçar a trajetória da vida, desde seu surgimento na água até a origem do ser humano a partir de animais saídos dela. Além disso, pode-se inferir que Anaximandro também já tinha aberto mão da ideia de finalidade para compreender o mundo em que vivemos, pois, como Rovelli (2013, p.57-69) bem observou , o milesiano já concebia a Terra como suspensa no vazio sem nada que a sustentasse, de modo que todas as direções no espaço se tornavam relativas e nenhum desígnio prévio ou finalidade seria compatível com esse estado de coisas. A formação deste mundo se deveu antes a um complicado processo de aquecimento e esfriamento, dinâmica esta posteriormente bastante explorada por Anaxímenes e que reaparece com muita força no turbilhão de Leucipo, se aceitarmos a descrição feita por Diógenes Lâertios (e não há motivo para a crermos inverossímil).

Demócrito leva adiante a ideia de que na natureza os corpos se formam por transformações necessárias e a estende para o desenvolvimento da vida humana em sociedade. Não se trata de uma transposição automática, muito menos de um “biologismo”. Já vimos que na natureza, para ele, as coisas não se formam de modo determinista. Chegaram a nós dois testemunhos bastante detalhistas e coincidentes sobre esse ponto. Em um deles, é evidente a conjugação entre necessidade e processo evolutivo (neste caso não mais somente natural, mas também histórico):

Quanto aos primeiros homens se diz que viviam desordenada e selvagemente, dispersos aqui e ali pelos prados e nutrindo-se com as ervas de sabor mais agradável e com os frutos que cresciam espontaneamente das árvores. E quando as bestas iniciaram o seu assédio, os homens começaram a se ajudar mutuamente porque a conveniência foi a sua mestra; e como o temor os levou a se agrupar, começaram pouco a pouco a reconhecer mutuamente as suas características… Os primeiros homens viviam então de maneira rude, porque não havia sido descoberto ainda nenhuma das coisas úteis à vida; iam desnudos, careciam de casas e de fogo e desconheciam todo alimento que não fosse silvestre. Posto que ainda não conheciam um sistema de coleta desses alimentos silvestres, não faziam provisão alguma dos frutos para tempos de necessidade; por isso muitos deles pereciam em períodos invernais, devido ao frio e à falta de alimentos. Mais tarde, já que a experiência lhes foi ensinando pouco a pouco, começaram a se refugiar em cavernas durante o inverno e guardaram os frutos que podiam ser conservados. Quando, por fim, conheceu-se o fogo e as demais coisas úteis, foram descobrindo paulatinamente as artes e tudo quanto podia auxiliar a vida em comum. Em geral, o uso mesmo se converteu em mestre dos homens, tornando familiar a aprendizagem de cada coisa a esse ser vivo bem dotado e que possui como colaboradores, em toda circunstância, mãos, inteligência e vivacidade de ânimo. (CORDERO, 2015, p. 457-458)

Nesse texto há várias referências aos “mestres” dos homens ao longo de sua história: i) a conveniência, que os ensinou a se ajudarem contra as bestas; ii) o temor, que os levou a se agruparem e a se reconhecerem; iii) a experiência, que os ensinou a se refugiar e a guardar alimento; iv) o fogo e as demais coisas úteis, que os levaram às artes, e tudo o mais útil à sociabilidade; v) o uso, que sintetiza todos os 'mestres' anteriores, que ensina os homens a se familiarizarem com a aprendizagem; vi) seus auxiliares constantes: mãos, inteligência e sagacidade. Antes de introduzir os dois primeiros, Demócrito descreve um estado de desordem na vida humana, em que não havia uma vida social. Foi somente ao se defrontarem com as feras e com seu próprio medo que as sementes da futura sociedade foram lançadas. Contraste similar aparece em seguida, ao descrever nessa vida primitiva a falta de conhecimento para a fabricação dos bens associados às condições mais básicas da vida, como o fogo e moradia. Estavam, portanto, à mercê das intempéries da escassez de alimentos e das mudanças climáticas. Padecendo juntos tais revezes os homens primitivos viam seus semelhantes morrerem sem recursos para ajudá-los ou para prevenir a sorte futura dos vivos. Diante das necessidades surgidas por conta dessas situações precárias, aos poucos aprenderam a encontrar soluções para elas, como se abrigar em cavernas e a estocar alimento. Esse “aos poucos” é o tempo necessário, pois “todas as coisas crescem pouco a pouco, como é natural” (LUCRÉCIO, 2015, p. 29). A natureza não dá saltos, essa é uma ideia, tal como um bordão, bastante comum entre esses filósofos. É, na verdade, uma das maneiras com que podemos observar a necessidade presente em todas coisas.

Existe, portanto, um tempo para cada coisa evoluir, mas, como se pode observar no texto acima, o processo evolutivo não é algo que acontece, como se fosse dado, pois a síntese final na ideia de uso significa que ele não teria se realizado sem que o ser humano o tivesse feito acontecer. Sem dúvida que Demócrito estava de acordo com Anaxágoras, pois é inegável que todas as coisas criadas pela humanidade ao longo da história com as mãos, como a técnica para criação e controle do fogo, a construção de casas, as artes etc., tornaram o ser humano mais inteligente, isto é, mais capaz de aprofundar e realizar novas descobertas. Mãos e inteligência aparecem lado a lado como auxiliares de um ser humano que vive a fome, o frio, o medo, em suma, a necessidade da cabeça aos pés, como um todo. Somente através da confrontação real com os obstáculos da vida os homens se desenvolveram ao longo de sua existência, e cada passo realizado abre, por sua vez, novas necessidades e possibilidades para a sua evolução em direções antes insuspeitadas: “quando se tornaram mais prudentes e provisores e descobriram o fogo, começaram a desejar coisas mais quentes e que requeriam, portanto, maior engenho”. A inteligência também se desenvolve quando isso lhe é exigido. Uma inteligência pronta, formal, como uma faculdade, é tão estranha para Demócrito que beira o delírio.

Epicuro segue a mesma forma de pensar ao comentar a origem da linguagem. Infelizmente, temos dele sobre o assunto apenas uma rápida passagem na Carta a Heródoto, porém, dentro do contexto geral que estamos apresentando, é o suficiente para termos uma ideia da direção que a filosofia jônico-epicurista teria dado a uma teoria da linguagem.

No trecho em questão, Epicuro primeiro apresenta o que seria uma espécie de regra geral sobre a relação entre natureza e raciocínio ou inteligência:

é preciso supor, no entanto, que a natureza também recebeu uma instrução múltipla e variada por força das próprias circunstâncias, e depois o raciocínio acrescentou precisão e descobertas ao que foi transmitido pela natureza (EPICURO, 2020, p. 106, grifo nosso).

Não é por determinismo que na natureza as coisas se transformam, mas por transmissão de aprendizados gerados por 'força das próprias circunstâncias'. O raciocínio, enquanto inteligência humana, vem depois, e, em última instância, deriva dessa 'inteligência natural' que não dirige as coisas segundo objetivos, mas está presente em todas elas como seu modo próprio de ser e de agir em circunstâncias concretas. O trajeto, por conseguinte, não é linear, a inteligência humana não estava prevista, os caminhos evolutivos são oscilantes, assim como cada descoberta que a nossa inteligência fez e acrescentou à natureza: “rapidamente em certos casos, lentamente em outros, por certos períodos e tempos <com progressos maiores> e por outros, menores” (idem).

É com esses princípios que Epicuro (idem, p. 106-107) descreve logo após a origem da linguagem:

Daí ainda os nomes no início não terem nascido por convenção, mas a natureza mesma dos homens que, segundo cada povo, experimentaram afecções próprias e receberam imagens próprias, emitiram de modo também próprio o ar sob o efeito de cada uma dessas afecções e imagens, como a haver por fim uma diferença entre povos de lugar para lugar. Depois cada povo em acordo instituiu as peculiaridades para tornar as expressões menos ambíguas entre eles e o expressar conciso. E, para certas coisas não visíveis com as outras, quem delas tinha conhecimento ao introduzi-las fazia circular certos sons forçados a proferir ou escolhia por raciocínio de acordo com a causa preponderante de exprimir-se assim.

Não foi imediato, mas lento o processo de formação da linguagem. Na sua base, como em tudo o mais, está lá a natureza, não como causa direta, mas como primeira mestra. A descrição que nos fornece Epicuro lembra imediatamente o que diz Demócrito sobre reconhecimento do outro. Coincide com o desenvolvimento lingüístico e social a consciência da humanidade, da sua diferença em relação aos outros seres, das suas características próprias. O humano consciente de si como humano é a realização da passagem da 'maneira rude' de viver para a em que as coisas úteis à vida se fazem presentes, a saber, as técnicas de provisão, o uso do fogo, a fabricação de todos os bens necessários ao florescimento da vida humana, como casas, roupas e os mais variados utensílios, e, claro, a linguagem. Tal passagem, no entanto, não se deu num salto, não foi por milagre. Ela foi progressiva e participante do caminho de de auto-reconhecimento humano, o qual, repetimos, poderia não ter ocorrido da maneira que ocorreu até agora ou simplesmente poderia ter sido interrompido.

Técnicas, afetos, teorias, línguas, utensílios – tudo se desenvolve junto na vida humana, cada um participa da criação da nova circunstância a partir da qual o engenho humano faz novas descobertas. Dentre essas descobertas, uma profundamente marcante para todo a existência futura da humanidade é a morte, pois é certo que, como diz Demócrito, durante muito tempo fomos ignorantes dela:

os homens [primitivos] de então, simples e desprovidos de toda experiência [...] ignoravam o que era a doença ou a morte, senão que, caindo sobre a terra como se fosse um leito, expiravam sem saber o que estava lhes ocorrendo. (CORDERO, 2015, p. 458)

Após a descoberta da morte surgiu o medo dela, e esse medo Epicuro disseca, em sua Carta a Meneceu. Ali, ele mostra a profunda conexão entre o medo da morte e os desejos pelo que é supérfluo, a religião e a servidão, outras criações do engenho humano...

Referências

ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002.

ARISTÓTELES. Da geração e da corrupção seguido de Convite à filosofia. São Paulo: Ed. Lany, 2001.

BURNET, J. A aurora da filosofia grega. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

CORDERO, N. L.; CROCE, E. La; PRUNES, M. I. S. C. de. Los filósofos presocraticos: Obras II. Madrid: Editorial Gredos, 2015.

EPICURO. Cartas & máximas principais. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2020.

LAERTIOS, D. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1988.

LUCRÉCIO. Da natureza das coisas. Lisboa: Relógio D ’água, 2015.

PLATÃO. Fédon. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores.)

ROVELLI, C. Anaximandro de Mileto: o nascimento do pensamento científico. São Paulo: Loyola, 2013.

Notas de autor

1 Doutor(a) em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil. Professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém – PA, Brasil.
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