Resumo: Friedrich Nietzsche (1844-1900), aquele que procurou compreender com demasiada profundidade uma tensão interna do sentimento humano, foi o que propôs o “super-homem” como proposta para a superação do homem a partir de uma força oriunda do próprio indivíduo por se encontrar nele mesmo, a fim de transvalorar as dicotomias, erros e preconceitos que negavam a existência em prol da afirmação da mesma. Mais tarde, a proposta de superar o homem, entre outros e sob certo aspecto (anunciada por Nietzsche na segunda metade do século XIX), retorna, só que não mais a partir da ideia de uma força oriunda do próprio indivíduo, mas do aprimoramento deste por meio de aparatos tecnológicos, prometendo fazer do homem um “super-humano”. O presente trabalho pretende apresentar duas propostas para a superação do homem com as suas nuances particulares, passando pela filosofia de Friedrich Nietzsche e do movimento cultural denominado transumanismo. Para tanto, buscar-se-á mostrar que uma das propostas parte da ideia de que o homem deve ser superado, devido a sua decadência refletida na negação do mundo e da vontade dos instintos; a outra parte da ideia de que o homem não é o estágio final da evolução humana, devendo ser superado a partir de aparatos tecnológicos que contribuirão para o aumento das suas capacidades.
Palavras-chave:NietzscheNietzsche,Super-homemSuper-homem,TransumanismoTransumanismo,Super-humanoSuper-humano.
Abstract: Friedrich Nietzsche (1844-1900), who sought to understand very deeply an inner tension of human feeling, brought up the "superman" as a proposal for the overcoming of man through a force derived from the individual himself, in order to transvalue the dichotomies, errors and prejudices that denied existence, for the sake of its own affirmation. The proposal of overcoming man, announced by Nietzsche in the second half of the nineteenth century, returns later, but no longer through the idea of a force derived from the individual himself, but through his improvement by means of technological devices, promising to make man into a "superhuman". The following work intends to present two proposals for the overcoming of man, it is through Nietzsche and transhumanism philosophy. It is going to be shown that one of the two proposals comes by the idea that man must be overcome due to its decadence, seen by its denial of the world and its instincts, the other proposal is that man is not the final stage of evolution, therefore it must be overcome with tecnological enhacements.
Keywords: Nietzsche, Superman, Transhumanism, Superhuman.
Artigos
O “super-homem” nietzschiano e o “super-humano” transumanista
The nietzschean “superman” and the transhumanism “superhuman”
Recepción: 14 Diciembre 2021
Aprobación: 18 Febrero 2022
Desde que o homem resolveu sair da caverna e desbravar o mundo, levou consigo vários desejos; talvez, dentre tantos que ainda carrega em seu poder, se mostrando necessário para a manutenção da vida, é o desejo de superar a si mesmo.
Diante de tamanho querer, Friedrich Nietzsche (1844-1900) propôs o “super-homem” como proposta para a superação do homem a partir de uma força oriunda do próprio indivíduo por se encontrar nele mesmo, a fim de transvalorar dicotomias, erros e preconceitos que negavam a existência.
Mais tarde, a proposta de superar o homem (anunciada por Nietzsche na segunda metade do século XIX) retorna, só que não mais a partir da ideia de uma força oriunda do próprio indivíduo, mas do aprimoramento deste por meio de aparatos tecnológicos prometendo fazer do homem um “super-humano”.
Diante disto, a abordagem que se sucederá será direcionada a estas duas propostas, a perspectiva que se pretende sustentar é de que ambas são antitéticas.
No prefácio da obra A genealogia da moral, o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) diz que há a necessidade de investigar criticamente os valores morais por entender que em algum momento da história humana eles foram determinantes para a decadência do homem, devendo ser questionados a partir de uma análise genealógica2 de sua origem, circunstância, condição, desenvolvimento e modificação:
Necessitamos de uma “crítica” dos valores morais e antes de tudo deve se discutir o “valor destes valores”, e por isso é de toda a necessidade conhecer as condições e o meio ambiente em que nasceram, em que se desenvolveram e se deformaram (a moral como consequência, como máscara, como hipocrisia, como enfermidade ou como equívoco, e também a moral como causa, remédio, estimulante, freio ou veneno), um conhecimento de tal espécie nunca teve outro semelhante, nem é possível que não o tenha nunca desejado (NIETZSCHE, 2013, p. 28).
Com rigor e olhar histórico aguçado, Nietzsche analisará minuciosamente os valores “bem” e “mal”, “bom” e “mau”, atentando para não lhe escapar o espírito histórico que faltou àqueles que se ocuparam com uma investigação da moral3 – a fim de evitar toda e qualquer idiossincrasia que contamina o pensar investigativo e o transfigura em anti-histórico. Para tanto, o filósofo recorre à antiga Grécia do período homérico objetivando analisar as relações humanas. Ao fazer, chegará à conclusão de que os valores “bem” e “mal” não foram provenientes de um mundo inteligível, pelo contrário, eles são humano, demasiado humano; isto é, foram criados por “uma raça superior e dominadora em oposição a uma raça inferior e baixa”, determinando “a origem da antítese entre ‘bom’ e ‘mau’” (NIETZSCHE, 2013, p. 33).
Através do procedimento genealógico, o filósofo detecta que o valor “bom” não foi herança passada aos homens por meio dos que herdaram a bondade, mas por uma casta de homens nobres, de senhores poderosos e “superiores que julgaram ‘boas’ as suas ações: isto é, ‘de primeira ordem’, estabelecendo esta nomenclatura por oposição a tudo quanto era baixo, mesquinho, vulgar e vilão” (NIETZSCHE, 2009, p. 32). Isso foi um ato de autoridade que emanou dos que dominavam, vinculando “a um objeto ou a um fato tal ou qual vocábulo, e dessa forma tomaram posse dele. De maneira que primitivamente a palavra ‘bom’ não significava ação ‘altruísta’” (NIETZSCHE, 2009, p. 33).
Essa característica foi, para Nietzsche, o sentido etimológico da palavra “bom” em todas as línguas, como ele mesmo afirma ao se indagar:
Qual é, segundo a etimologia, o sentido da palavra “bom” nas diversas línguas? [...] descobri que esta palavra em todas as línguas deriva de uma mesma transformação de ideias; descobri que, em toda a parte, a ideia de “distinção”, de “nobreza”, no sentido de ordem social, é a ideia-mãe donde nasce e se desenvolve necessariamente a ideia do “bom” no sentido de “distinto quanto à alma”, e a ideia de “nobre” no sentido de “privilegiado quanto à alma”. E este desenvolvimento é sempre paralelo à transformação das noções “vulgar”, “plebeu”, “baixo”, finalmente, na noção de “mau” (NIETZSCHE, 2009, p. 34, grifos do original).
Por meio do procedimento examinador nietzschiano, o sentido da expressão “bom” vem à tona não como sentido em si mesmo, representado por aqueles que refletiam esse sentido, mas por autoridade dos que se afirmaram “bons”; ou mais precisamente, dos que se autoafirmaram “bons”, “transparecendo o matiz principal pelo qual os ‘nobres’ se sentiam homens de uma classe superior” (NIETZSCHE, 2009, p. 35).
Esses nobres, a quem Nietzsche se refere, e que se intitularam fortes, poderosos, superiores, são os guerreiros aristocratas do período homérico da antiga Grécia4. Foram eles que criaram o valor “bom” e o fundamentaram ao seu estilo de vida e a tudo que a caracterizava (robustez, vigor, saúde de ferro, etc.) e que contribuía para tal: dança, caça, guerra, jogos, exercícios físicos, aventuras; enfim, a tudo o que implicava uma atividade vigorosa, livre e demasiadamente jubilosa (NIETZSCHE, 2009, p. 38).
Após criarem o valor “bom”, os senhores criaram, por oposição a tudo aquilo que não se assemelhava ao seu estilo de vida e que não contribuía para tal, o valor “mau” e atribuíram aos fracos. Esse foi o modo com que os valores foram construídos. Agora nos resta saber como o outro lado (os fracos) se comportou, ao longo do tempo, diante dos valores criados pelos senhores.
Uma vez que os senhores criaram os valores morais a partir da autoridade de sua força e autoafirmação da mesma, os fracos5, mais tarde, inverteram os valores por impotência, acreditando que
“bom” é igual a “formoso”, igual a “feliz”, igual a “amado de Deus”. E, com o encarniçamento do ódio da impotência, afirmaram: “Só os desgraçados são bons; os pobres, os impotentes, os pequenos são os bons; os que sofrem, os necessitados, os enfermos são os piedosos, são os benditos de Deus; só a eles pertencerá a bem-aventurança; pelo contrário, vós, que sóis nobres e poderosos, sereis por toda a eternidade os maus, os cruéis, os cobiçosos, os insaciáveis, os ímpios, os réprobos, os malditos, dos condenados” (NIETZSCHE, 2009, p. 39).
Essa impotência dos escravos suscitou e fez crescer neles um ressentimento venenoso que ocasionou a transformação dos valores. Sua moral de estímulos externos levantou um “não” a tudo o que não lhes pertencia, que não lhes era próprio. Este “não” foi a
mudança do olhar que mede os valores, essa direção necessariamente exterior, ao invés de ser para si, é própria do ressentimento: a moral dos escravos necessitou sempre de um mundo oposto, exterior; necessitou, falando psicologicamente, de estimulantes externos para entrar em ação; a sua ação desde a profundidade é uma reação (NIETZSCHE, 2009, p. 41-42, grifos do original).
A moral de escravo, contrária à moral aristocrática, não brotou e não floresceu a partir da qualidade de homens completos, uma vez que sua felicidade teve origem em um sentimento externo construído artificialmente “sob a forma de estupefação, de sonho, de repouso, de paz, de sábado, de descanso do espírito, de estender dos ossos” (NIETZSCHE, 2009, p. 43) por não haver confiança e franqueza em si mesmos. Por conta disto, Nietzsche proporá a superação do homem degenerado pela moral de escravo, a partir da transvaloração dos valores que contribuirá para o surgimento do super-homem.
Por entender que a moral de escravo é negadora da vida, uma vez que a mesma era marcada pela ideia de além-mundo, Nietzsche propõe a sua transvaloração, pois essa moral impedia o fluxo da vida por promover o afastamento do aqui e do agora através da crença de que a vida puramente verdadeira, estaria para além da vida terrena. Diante disto, o filósofo vê a necessidade de transvalorar seus valores transcendentes, a fim de religar o homem à terra sem que este precise se comprometer com ideias de valor metafísico religioso, mas com a própria vida, pois ela é em si mesma pathos6 – estando presente na experiência humanamente terrena e em tudo aquilo que a constitui.
A proposta do filósofo é de que o homem deve olhar para a vida (e suas complexidades) sem medo de afirmá-la; isso o faz estar conectado com a terra. Conectar-se a esta realidade é valorizá-la, resgatando a si próprio a partir da afirmação do existir: símbolo da vida expresso naquele que não renuncia à sua força e combate os ideais corruptores que a tudo querem debilitar – como a moral de escravo, inescrupulosa da vida.
Não deixar que a moral inescrupulosa triunfe sobre a terra por ser o desprezo do corpo, negando este em favor da alma7, é promover a transvaloração desta moral doentia e de suas avaliações pérfidas que desqualificam e descartam a realidade. Essa transvaloração é a afirmação da vida, que, uma vez abraçada em toda a sua complexidade, faria do indivíduo o além-do-homem8; em outras palavras, faria dele o super-homem9: ser de instinto, força e vida – expressão da vontade de poder10.
O super-homem é aquele que está para além do homem, desvinculado de leis castradoras, tradições e costumes asceticamente sacerdotais; ele é o ser alegre, são, forte e criador de novos valores; é aquele que não se furta... afirmando a si mesmo e se protegendo de ideias rasteiras, pequenas e debilitadoras das forças vitais; é o indivíduo que reconhece a importância da vida pulsante e instintiva, de acordo com a condição natural e finita da mesma, sem desejo de projeção para além desta por meio esperanças ultraterrenas – permanecendo fiel à terra.
Esse super-homem é um espírito11 livre de valores transcendentes, e acima de tudo, um intenso defensor da beleza da vida; é a representação máxima do tipo superior de homem; é o ser que comanda a própria vida, exercendo a vontade de poder por dar vazão à sua força interna. Neste sentido, só ele concebe princípios morais e valores a si mesmo, e não outros – seja um sacerdote, ou mesmo Deus.
O super-homem de Nietzsche é o que daria sentido à terra, a partir de uma concepção antimetafísica. Seu desejo (o do filósofo) era humanizar o mundo12 a partir desta nova concepção de homem, por reconhecer a vontade de poder que está em si – dando vazão às manifestações instintivamente humanas sem abnegação (renúncia ascética à própria vontade em função de anseios místicos ou princípios religiosos) das mesmas.
Mais tarde, a proposta de superar o homem (que esteve presente na segunda metade do século XIX com o pensamento de Nietzsche) retorna, só que não mais a partir da ideia de uma força vigorosa oriunda do próprio indivíduo por se encontrar nele mesmo, mas do aprimoramento deste por meio de aparatos tecnológicos, fomentado pelo transumanismo, na crença de que isto fará do homem um super-humano, dando início a uma nova era: a pós-humana.
Em seu trabalho intitulado Transhumanism: toward a futurist philosophy, Max More esclarece que o transumanismo13 é uma classe de filosofias que buscam conduzir a humanidade a um estágio pós-humano, valorizando a razão e a ciência, compromissadas com o progresso e existência terrena, e não com uma vida metafísica, sobrenatural (como a do humanismo cristão)14, por isso se difere dela – reconhecendo e antecipando alterações na natureza humana e as possibilidades de progresso15.
Já Nick Bostrom, um dos principais adeptos deste movimento, vê o transumanismo como um modo de se indagar sobre o futuro, apoiado na ideia de que a espécie humana atual não representa o fim do desenvolvimento humano, vendo-a como algo que está sendo construído, pois o homem não é o estágio final da evolução humana16.
Os adeptos deste movimento anseiam transcender a condição humana, a partir da simbiose homem e máquina que aumentará consideravelmente as capacidades físicas, intelectuais e psicológicas do ser humano com a ajuda da ciência e tecnologia, promovendo um ser híbrido – capaz de ir além dos limites da biologia humana. E uma vez que estamos inseridos em um intenso processo de hibridização cultural que promove a construção de identidades abertas17, o transumanismo cresce vertiginosamente, alimentando um sonho antigo do homem: a autossuperação humana.
Para tal, a filosofia do transumanismo, amparada pelos crescentes avanços de novas tecnologias, está disposta a contribuir para que o sonho da autossuperação humana se torne menos utópico, uma vez que o desenvolvimento de tecnologias amplamente disponíveis está investindo maciçamente na ideia de aumentar as capacidades do ser humano18. A pretensão é habilitar cada vez mais o homem com atributos especiais, dotando-o de capacidades que ele não tem por natureza, a fim de que evolua para além das limitações físicas e mentais19.
Por conta disto o transumanismo carrega consigo a ideia “de que um progresso sem fim, uma perfectibilidade ilimitada da espécie humana, é ao mesmo tempo possível e desejável” (FERRY, 2018, p. 2). Nesse sentido, “uma das características mais essenciais do movimento” é o de “passar do paradigma médico tradicional, o da terapêutica, cuja finalidade principal é ‘reparar’, curar doenças e patologias, para um modelo ‘superior’, o da melhoria, ou até do ‘aumento’ do ser humano” (FERRY, 2018, p. 1).
Essas pretensões são ordenadamente apresentadas em um texto que reúne a ideologia deste movimento cultural, intitulado Principles of Extropy – Princípios da Extropia20 –, escrito por Max More, que traz as seguintes ideias:
· Progresso perpétuo: buscar mais inteligência e sabedoria de forma eficaz em prol de uma expectativa de vida saudável e ilimitada;
· Autotransformação: afirmar continuamente o aperfeiçoamento físico, intelectual e ético por meio do pensamento crítico e do uso amplo da tecnologia em prol do aumento fisiológico e neurológico, contribuindo para o refinamento emocional e psicológico;
· Otimismo prático: alimentar os indivíduos e as organizações com expectativas positivas, adotando um otimismo racional e proativo em lugar do pessimismo e da fé cega;
· Tecnologia inteligente: aplicar a ciência de forma criativa, projetando e gerenciando tecnologias como meios efetivos para melhorar a vida, transcendendo características “naturais” derivadas da herança biológica;
· Sociedade aberta (informação e democracia): apoiar ordens sociais que promovam a liberdade de comunicação, ação, experimentação, inovação, etc., opondo-se ao controle social autoritário e à hierarquia desnecessária, favorecendo o Estado de Direito e a descentralização do poder e da responsabilidade;
· Auto-direção: valorizar o pensamento independente, a responsabilidade pessoal, a liberdade individual e o respeito próprio;
· Pensamento racional: entender, experimentar, aprender, desafiar e inovar, favorecendo a razão sobre a fé cega21.
Essas ideias demostram um
novo dogma que postula, assim como tantas religiões ocidentais, a possibilidade de alcançarmos uma “vida eterna”, não no sentido transcendentalista, mas sim diante das possibilidades vislumbradas pelos atuais avanços científicos que poderão permitir-nos continuar vivos ad infinitum22.
Isso tudo pode parecer ficção científica, sonho tecnocientífico de uma ideologia anômala, atípica, todavia, seus anseios já estão presentes na realidade23, sendo discutidos por intelectuais de várias áreas do saber, protagonizando o debate acerca do que o filósofo Julian Savulescu chamou de pós-humano: forma de vida evoluída que se distinguirá significativamente de qualquer aspecto natural (biológico) do homem, por se encontrar em um estágio para além deste. Tal estágio será
alcançado através da aplicação de técnicas de manipulação, instrumentalização e artificialização da vida, do patrimônio biológico humano, acarretando uma mudança de estatuto especista. Quer dizer, o humano, por iniciativa própria e com vistas ao melhoramento da sua natureza, deixará de ser humano (VILAÇA & DIAS, 2014, p. 342).
A mudança da condição biológica do homem, por meio do processo de alteração, dará origem a uma forma de vida pós-humana. Limitações, enfermidades e toda forma de sofrimento que acomete o homem poderão ser superadas, já que a crença é de que as
capacidades mentais, corporais, morais e emocionais poderão ser melhoradas, sendo ampliadas a um nível de eficiência ainda inimaginável. Em tese, melhoraria a qualidade de vida, elevando o nível de bem-estar individual e, quiçá! coletivo (VILAÇA & DIAS, 2014, p. 344).
As ideias de aprimoramento, ampliação e ultrapassagem dos limites humanos (superando até mesmo a morte) estão enraizadas na filosofia dos transumanistas por estarem convictos de que o ser humano pode e deve se desenvolver a níveis demasiadamente elevados, evoluindo para além da sua menoridade estrutural, rompendo com cadeias biológicas através da alteração de sua natureza24 que possibilitará o surgimento do super-humano25, o qual será imortal26.
Para os adeptos deste movimento, a natureza humana é a biológica, considerada básica, precária e vulnerável. Isso instiga-os a acreditarem que “as características (biológicas) do humano devem ser alteradas, tornando-o mais ‘feliz’, ‘saudável’ e ‘longevo’” (VILAÇA & DIAS, 2014, p. 347), ainda que esta alteração torne-o artificial, já que para eles
não há nenhuma virtude especial (maior valor) em fazer parte da espécie humana, pois “pertencer à espécie humana” é uma mera contingência, podendo acarretar até mesmo certos prejuízos. De acordo com alguns transumanistas, a moralidade humana não está fundamentada numa noção abstrata de natureza humana, mas sim na sua dimensão biológica, podendo, inclusive, ser “prejudicada” por esta. Desse ponto de vista, a natureza humana pode e deve ser alterada, pois, ao invés disso gerar prejuízos à humanidade, trará benefícios substantivos (VILAÇA & DIAS, 2014, p. 351-352).
O homem natural não é o fator principal para os adeptos do movimento transumanista por ser antigo, velho e cheio de características que o limitam, devendo ser transfigurado por meio da ampliação do ciclo da vida que abrirá caminho para o nascimento de uma nova era voltada inteiramente para a mudança e evolução, na qual a tecnologia estará totalmente compromissada em realizar a renovação do humano, reconstruindo-o a partir da fusão da biologia com a máquina; rompendo com as fronteiras humanas marcadas pela enfermidade, dor, sofrimento, morte e luto – ingressando em uma existência na qual todas as características naturais do corpo estarão potencializadas.
Em seu trabalho intitulado Nietzsche, the overhuman and transhumanism, Stefan Lorenz Sorgner associa o termo “Pós-humano” do transumanismo ao “Übermensch” nietzschiano, na crença de que a similitude de ambos os termos se dá devido ao fato deles estarem ligados a ideia de autossuperação humana.
Essa associação nada mais é que uma tentativa de fundamentar a proposta do transumanismo de superar o homem, nas ideias de Nietzsche. Contudo, parece que tal proeza mostra-se tênue quando nos deparamos com inúmeras passagens presentes em várias obras do filósofo de Röcken; por exemplo, a que se encontra na Genealogia da moral, quando Nietzsche fala da violência que o homem científico causa à natureza por meio de aparatos tecnológicos, evidenciando seu descontentamento por violentá-la, transfigurá-la, motivado por uma busca incessante de verdade27: “híbrida é a violência que fazemos à natureza por meio das nossas máquinas e das invenções dos nossos engenheiros e técnicos [...]” (NIETZSCHE, 2009, p. 110).
Cabe mencionar que Nietzsche se posiciona contra o homem científico por entender que além dele deter um conhecimento que fragmenta a vida – diferentemente da filosofia, que liga o saber à arte, afirmando a vida em seu conjunto –, o mesmo carrega um instinto de verdade que mata a cultura e o seu sistema poético de imagens míticas repleto de ilusões sadias para a vida. Refletindo sobre isto, Rosa Maria Dias diz que “a vida tem necessidade de um olhar que a embeleza, pois ela só é possível ‘pelas miragens artísticas’. O homem da ciência retira o véu benfazejo que cobre a vida e a embeleza, e isso tudo em nome do real e da verdade” (1991, p. 83). E acrescenta dizendo que “a ciência, ao querer reconhecer a vida custe o que custar, ‘destrói as ilusões’ que ajudam o homem a viver” (DIAS, 1991, p. 102). Por fim, diz que “Nietzsche, ao criticar a ciência, não visa aniquilá-la, mas conter seus excessos. A vida em pedaços garante menos vida para o futuro do que a vida enfeitiçada por algumas quimeras” (DIAS, 1991, p. 83).
Seguindo o fluxo de suspeita, há outra passagem que evidencia a fraqueza de uma fundamentação a partir do pensamento nietzschiano, presente na Gaia Ciência: “amor fati [amor ao destino]: seja este doravante, o meu amor. Não quero fazer guerra ao feio. [...] quero ser, algum dia, apenas alguém que diz sim!” (NIETZSCHE, 2001, p. 187-188). Esse dizer “sim” é afirmação da vida, que vai de encontro à negação dos transumanistas ante a biologia humana; sendo esta, na óptica de Nietzsche, resultado da natureza, não as negando por ser o homem fruto dela, não de Deus – nem muito menos de aparatos tecnológicos arquitetados pelo homem.
Diante das evidências, sobretudo as que foram mostradas até aqui, é possível enxergar o abismo entre ambas as propostas, uma vez que a superação do homem, promovida pelo filósofo iconoclasta, deveria partir de um prisma natural, isto é, de uma força oriunda do próprio indivíduo por se encontrar nele mesmo, contribuindo para a afirmação trágica da vida; e não fora de si, como a promovida pelo transumanismo a partir da ciência e tecnologia (similar ao pensamento ascético, religiosamente sacerdotal no que concerne à busca de força externa ao homem), se mostrando artificial, isto é, antinatural.
Ante o exposto, Rocha, ao indagar acerca da visão trágica e do amor fati em Nietzsche – ideia elementar para se compreender a afirmação da vida –, nos fornece elementos que alargam ainda mais o abismo existente ao dizer que,
como visão trágica de vida, o amor fati é uma postura de amar o acaso e um dizer sim à vida como um todo, não a separando em coisas boas (a serem aproveitadas) e ruins (a serem corrigidas). Tudo o que deveria ser ‘corrigido’ ou ‘consertado’ não pertence ao pathos da tragédia, não pertence ao modo de perceber tragicamente o todo. Amor fati é amar tudo que foi, é, [...] sem excluir nada. Para quem vê o mundo através do amor fati, nada é um defeito na existência. Esta visão de partes do todo a serem consertadas [...] deriva do cientificismo, que invoca a postura de colocar o homem como controlador, explorador e aprimorador da natureza28.
A tentativa de Sorgner em fundamentar a proposta do transumanismo, no pensamento nietzschiano, parte do preâmbulo de Assim falava Zaratustra, quando o próprio Zaratustra (alter ego de Nietzsche) diz que “o homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem [...]. Grande no homem é que ele é uma ponte e não um fim [...]” – na certeza de que o filósofo já anunciava a ideia defendida pelos transumanistas de que o homem puramente biológico não é o estágio final da evolução humana. Contudo, se sabe que a afirmativa de Nietzsche diz respeito a uma evolução enquanto ser biológico, ausente de muletas metafísicas, religiosamente sacerdotais, e não enquanto Übermensch tecnológico; pelo menos não é isso que se vê em nenhuma de suas obras, nem mesmo de forma alusiva, pois para tal o brilhante pensador necessitaria muito mais do que um universo imaginativo, demasiado fecundo. E bem sabemos que na segunda metade do século XIX, as ciências da época estavam longe de cogitar qualquer tipo de aprimoramento nas dimensões das discussões antropotécnicas (processos, métodos e técnicas que fazem com que humanos gerem humanos) que pairam sobre nosso tempo.
Nesse sentido, nos parece que Nick Bostrom se atentou bem às minúcias presentes no pensamento de Nietzsche, quando rejeitou a ideia de fundamentar as propostas do transumanismo em sua filosofia29. Tal postura não poderia ser diferente, uma vez que o anunciador do super-homem foi taxativo em Ecce homo ao dizer que a última coisa que faria seria “melhorar” a humanidade (NIETZSCHE, 2003, p. 16).
A proposta de superar o homem (anunciada por Nietzsche na segunda metade do século XIX) não foi suficientemente capaz de contagiar totalmente o homem do novo milênio, e muito menos capaz de proporcionar a superação da condição humana. Talvez, deve ser por isso que uma nova proposta para a superação humana tenha surgido, objetivando convencer o homem a acreditar que a ideia de ampliação das suas capacidades é muitissimamente necessária, fazendo-nos lembrar da observação feita por Pitágoras de que, dentre os animais, o homem é o mais calamitoso, pois todos os outros se contentam com os limites prefixados da sua natureza, ao passo que só ele insiste em ultrapassar os limites da sua; ainda mais agora que ele se encontra inserido em uma modernidade que excede, constantemente, suas próprias fronteiras, sendo-lhe permitido, mais do que nunca, cogitar ultrapassar os estreitos limites da sua biologia – carregando em seu poder o desejo de superar a si mesmo como já mais cobiçou antes.
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WELTE. Bernhard. “O super-homem de Nietzsche e sua ambígua questionabilidade”. In: Nietzsche e o cristianismo. Trad. Frei Fidélis Vering. Petrópolis: Vozes, 1981.
2 Procedimento base para a compreensão da história da moral.
3 Muitos indivíduos da época de Nietzsche que se ocuparam com a investigação de questões relacionadas à moral que “não levaram a nada”, por não terem trazido à tona a origem – de forma imparcial – do “bem” e do “mal” a partir de uma construção histórica, como foi o caso do psicólogo naturalista inglês, Herbert Spencer (1820-1903) – que, segundo o próprio Nietzsche, considerou “os conceitos ‘bom’ e ‘útil’ como de origem semelhantes; de sorte que a humanidade pelos juízos ‘bom’ e ‘mau’ resumiria e sancionaria as suas experiências inolvidáveis acerca do que é útil e conveniente, ou inútil e inconveniente. Segundo esta teoria, é bom aquilo que, em todos os tempos, se revelou como útil, e daí logo ‘o seu valor essencial’. Esta tentativa de explicação é errônea, mas ao menos é sensata e psicológica” (NIETZSCHE, 2009, p. 34). Diante desta afirmativa, Rafael Lauro, em seu trabalho intitulado Genealogia da moral – bom e mau, bom e ruim, reforça o posicionamento de Nietzsche ao dizer que “o bom não se liga ao útil, mas ao nobre” (se referindo ao que chamaremos mais adiante de senhores). E ainda: “É o próprio bom que diz o que é bom, que toma para si a tarefa de valorar o mundo pelo sim e o não de seu paladar. Bom é o que o agrada, é o que o fortalece, é o que o apetece... Ao redor deste monumento, que é sua apreciação tornada soberana, que o nobre estabelece um pathos da distância. Ele afasta de si o juízo baixo, comum, alheio e se aproxima cada vez mais o seu sim de seu bom. Não importa a utilidade, importa a força, isto é, a potência de se efetuar que existe neste sim”. Disponível em: <https://razaoinadequada.com/2014/09/09/genealogia-da-moral-bom-e-mau-bom-e-ruim/>. Acesso em: 10 de fev. 2021.
4 Doravante os chamaremos de “senhores”, e sua moral de “moral de senhores”.
5 Doravante os chamaremos de “escravos”, e sua moral de “moral de escravos”.
6 Equivalente a paixão, afeto; enfim, aos sentimentos do agir humanos.
7 Nietzsche dirá que “tudo é corpo e nada mais; a alma é simplesmente nome de qualquer coisa do corpo” (NIETZSCHE, 1979, p. 26).
8 Tradução para Übermensch. Esta palavra é frequentemente traduzida, também, para “super-homem”. É importante ressaltar que “além-do-homem” e “super-homem” não são traduções literais, uma vez que não há equivalente adequado em português para o vocábulo “Übermensch”. De toda forma, utilizaremos as duas traduções para “Übermensch”, a fim de facilitar a exposição da nossa proposta.
9 Em O super-homem de Nietzsche e sua ambígua questionabilidade, Bernhard Welte (1906-1983) diz que o super-homem indica algo que está além, acima do homem, sem necessariamente deixar de fazer parte deste. Isso significa dizer que o super-homem não é um indivíduo elevado à enésima potência, um ser sobrenatural, mas uma figura que assume e dá sentido à Terra, como bem destacou o filósofo Max Scheler (1874-1928) em La idea del hombre y la historia.
10 Em A doutrina da vontade de poder em Nietzsche, Wolfgang Müller-Lauter, ao interpretar o filósofo, diz que a vontade de poder não é um caso particular do querer, nem muito menos um simples desejar: “vontade de poder não é um caso especial do querer. Uma vontade ‘em si’ ou ‘como tal’ é uma pura abstração: ela não existe factualmente. Todo querer é, segundo Nietzsche, querer-algo. Esse algo-posto, essencial em todo o querer é: poder. Vontade de poder procura dominar e alargar incessantemente seu âmbito de poder. Alargamento de poder perfaz-se em processos de dominação. Por isso querer-poder (Machtwollen) não é apenas ‘desejar, aspirar, exigir’. A ele pertence o ‘afeto do comando’” (1997, p. 54). Contudo, preferimos o parecer de Marilena de Souza Chauí em consultoria para a coleção Os Pensadores, ao relacionar “super-homem”, “vontade de potência” (ou vontade de poder) e “domínio”, dizendo que o “super-homem nietzschiano não é um ser, cuja vontade ‘deseje dominar’. Se se interpreta Vontade de Potência, diz Nietzsche, como desejo de dominar, faz-se dela algo dependente dos valores estabelecidos. Com isso, desconhece-se a natureza da Vontade de Potência como princípio plástico de todas as avaliações e como força criadora de novos valores. Vontade de Potência, diz Nietzsche, significa ‘criar’, ‘dar’, e ‘avaliar’” (Nietzsche – Vida e Obra, 1978, p. 20). Desta forma, nos afastamos de interpretações extravagantes que se apropriam de expressões como “vontade” e “domínio” para disseminar ideias grosseiras, como foi o caso do Nacional-Socialismo na Alemanha nazista que, se apropriando de forma desvairada da filosofia de Nietzsche, procurou fundamentar sua ideologia inescrupulosa marcada pelo domínio, terror e aniquilamento de outros povos.
11 Entende-se “espírito” não como “um nous imaterial no sentido platônico”, mas como “capacidade corporal de interpretação através da linguagem que é baseada na força fisiológica”, como bem notou Stefan Lorenz Sorgner em Nietzsche, the overhuman and transhumanism. Disponível em: <https://jetpress.org/v20/sorgner.htm>. Acesso em: 11 de ago. 2021.
12 Entende-se “humanizar o mundo” como sendo “apropriar-se dele”.
13 Termo criado pelo biólogo e eugenista Julian Sorell Huxley (1887-1975) em 1927, mas é ao filósofo e futurista Max More que são atribuídos os créditos à filosofia atual deste movimento. É importante ressaltar que há várias correntes transumanista, por exemplo: “Transumanismo libertário”, “Pós-generismo”, “Singularitarianismo”, “Tecno-gaianismo”. Contudo, não pretendemos apresentá-las, e muito menos distinguir suas formas, mas apenas abordar alguns aspectos do trajeto trilhado por este movimento cultural (transumanismo) que segue uma meta: “pós-humanismo” – fase evoluída que ultrapassa a do ser humano natural, puramente biológico –, como bem notou Luc Ferry em A revolução transumanista, ao dizer que “seria preciso reservar o termo ‘pós-humanismo’ para” este movimento cultural, “já que se trata de criar uma espécie nova, radicalmente diferente da nossa, milhares de vezes mais inteligente e mais poderosa, outra humanidade. Assim, vemos que esse é verdadeiramente um pós-humanismo, já que defende não a simples melhoria da humanidade atual, mas a fabricação de outra espécie, uma espécie que, no limite, não terá mais muito a ver com a nossa”. O transumanismo “é o trajeto, enquanto o pós-humanismo é a meta; um é o caminho ou processo, o outro é o resultado ou o ponto de chegada” (2018, p. 8-10).
14 Os adeptos dos ideais do transumanismo “são partidários da razão, do progresso [...] renegando valores centrados em autoridades religiosas ou dogmas”. Ver o texto de Franco, Edgar Silveira O Manifesto da Arte Extropiana e a obra PRIMO 3M+: Proposta para um Corpo Pós-Humano. Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_953.pdf>. Acesso em: 10 de nov. 2021.
15 MORE, M. Transhumanism: toward a futurist philosophy. Disponível em: < https://pt.scribd.com/doc/257580713/Transhumanism-Toward-a-Futurist-Philosophy>. Acesso em: 15 de set. 2021.
16 BOSTROM, Nick. Transhumanist values. Philosophical Documentation Center Press, 2003. Disponível em: <https://nickbostrom.com/ethics/values.html>. Acesso em: 05 de jul. 2021.
17 Conjunto de caracteres particulares que o indivíduo se identifica, escolhe e toma para si a partir das suas experiências, reconhecendo-se da forma que lhe apraz.
18 A título de exemplo, cientistas desenvolveram uma técnica extremamente poderosa para se alterar a hereditariedade humana, CRISPR-Cas9, que é uma biotécnica de edição de genoma utilizada por vários pesquisadores como sendo a ferramenta revolucionária de alteração do DNA, capaz de fazer corte de pedaços de sequência de DNA no genoma, eliminando um gene defeituoso e substituindo-o por outra cópia. Foi por meio desta técnica que o cientista chinês He Jiankui, da Universidade de Ciências e Tecnologias do Sul, localizada na cidade de Shenzhen (China), conseguiu criar bebês geneticamente modificados. GIZMODO. Tudo o que você precisa saber sobre a CRISPR, nova ferramenta de edição de DNA. Disponível em: <http://gizmodo.uol.com.br/tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-a-crispr-nova-ferramenta-de-edicao-de-dna/>. & NATIONAL PUBLIC RADIO. Chinese scientist says he's first to create genetically modified babies using CRISPR. Disponível em: <https://www.npr.org/sections/health-shots/2018/11/26/670752865/chinese-scientist-says-hes-first-to-genetically-edit-babies>. Acesso em: 30 de nov. 2021.
19 MOTTA, Heuring Felix. Transhumanismo: o nascimento de uma nova humanidade! Disponível em: <https://visaocrista.com.br/revista/transhumanismo/>. Acesso em: 22 de nov. 2021.
20 Termo que traz uma ideia oposta a da “Entropia”. O termo “Extropia” representa “uma espécie de síntese do movimento científico e filosófico que nomeia, ele é usado como uma medida de informação, inteligência, vitalidade, diversidade, oportunidade e desenvolvimento, opondo-se de forma contundente a um conceito tradicional da física, a ‘Entropia’, segundo o qual todos os sistemas sofrem uma perda constante de energia tendendo à falência/extinção; dessa forma, a Extropia desafia esse princípio propondo uma expansão sem limites, da vida e da consciência”, como bem destacou Edgar Silveira Franco em O Manifesto da Arte Extropiana e a obra PRIMO 3M+: Proposta para um Corpo Pós-Humano. Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_953.pdf>. Acesso em: 10 de nov. 2021.
21 MORE, M. Principles of Extropy. Version 3.11 © 2003. Disponível em: < https://web.archive.org/web/20131015142449/http://extropy.org/principles.htm>. Acesso em: 27 de ago. 2021.
22 FRANCO, Edgar Silveira. O Manifesto da Arte Extropiana e a obra PRIMO 3M+: Proposta para um Corpo Pós-Humano. Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/biblioteca_953.pdf>. Acesso em: 10 de nov. 2021.
23 Os ideais transumanistas já estão sendo trabalhados, recebendo o apoio de várias universidades, centros de pesquisa, empresas e laboratórios espalhados pelo mundo. A título de exemplo, o movimento “recebe o apoio de várias associações internacionais, entre as quais o Extropy Institute, a World Transhumanist Association, [...] Aleph, na Suécia, Transcendo, na Holanda etc.”. Recebe, também, financiamento de “empresas envolvidas no desenvolvimento de novas tecnologias, como Google”, por exemplo; esta financiadora da “Universidade da Singularidade” (FERRY, 2018, p. 1 e 8).
24 ara os adeptos das ideias do transumanismo, “a natureza não é sagrada, motivo pelo qual nada proíbe modificá-la, melhorá-la ou aumentá-la. O genoma humano não é um santuário, e desde que as modificações que poderíamos fazer nele sigam o bom senso, o da liberdade e da felicidade humana, não existe nenhum motivo para proibi-las, mas, ao contrário, deveríamos favorecê-las” (FERRY, 2018, p. 20).
25 DUPUY, J-P. O transumanismo e a absolescência do homem. In: NOVAES, A. (Org.). A condição humana: as aventuras do homem em tempos de mutações. São Paulo: Agir, 2009.
26 Entende-se “imortalidade” aqui como sendo o prolongamento da existência do corpo, e não a sua indestrutibilidade. Essa imortalidade tem relação, apenas, com a longevidade; esta não exclui a destrutibilidade da matéria (corpo), pois ela (a matéria) é efêmera. Assim sendo, afirmar aqui a “imortalidade” no sentido estrito da palavra é inconcebível, pois para isto teríamos que levar em consideração, também, a indestrutibilidade – como no caso da imortalidade da alma por ser imaterial. Não à toa que Luc Ferry disse que “mesmo que conseguíssemos controlar o envelhecimento do organismo, a morte ainda permaneceria possível em caso de acidente, suicídio ou atentado” (2018, p. 25).
27 Ver o texto de Nietzsche Sobre verdades e mentiras no sentido extra-moral. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
28 ROCHA, Fabio. Epicuro e Nietzsche: filosofia para a vida. Disponível em: <http://filosofando-fabio-rocha.blogspot.com/2009/08/epicuro-e-nietzsche-filosofia-para-vida.html>. Acesso em: 23 de nov. 2021.
29 BOSTROM, Nick. A history transhumanist thought. Journal of evolution and technology, v. 14, n. 1, p. 1-25, 2005.