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As três fases do problema da demarcação
The demarcation problem’s three phases
Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 1, pp. 227-250, 2022
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepción: 24 Febrero 2021

Aprobación: 16 Febrero 2022

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v22i1.2704

Resumo: :

Este artigo busca alcançar dois objetivos. Primeiro, apresentar uma análise panorâmica das três principais concepções contemporâneas sobre o problema da demarcação. Tradicionalmente, o problema da demarcação pretendeu delimitar conceitualmente as fronteiras entre “ciência”, “não-ciência” e/ou “pseudociência” via critérios e definições de ciência ou de cientificidade. Tal problemática – principalmente no século XX, mas não só – fez-se presente como um dos grandes desafios intelectuais da filosofia da ciência e em áreas afins. Com efeito, nossa análise produziu uma divisão que recorta três fases principais, a saber, perspectivas otimistas, pessimistas e, por assim dizer, perspectivas híbridas. À luz desse contexto, e a fim de apoiar a arquitetura geral do artigo, selecionamos dois autores de cada uma dessas fases para uma análise esquemática. Segundo, buscamos, ao final, argumentar que o problema da demarcação é melhor compreendido e respondido se caracterizado como mais do que um problema exclusivamente metodológico e epistemológico, isto é, nessa acepção ele seria também um problema valorativo com contornos políticos, sociais e, portanto, prático. Chamamos isso de: dimensão dual do problema da demarcação. Ademais, destacamos que nossa ênfase nesta interpretação está de acordo, essencialmente, ao que defende a terceira abordagem analisada neste trabalho. Ao final, defendemos que a terceira concepção aqui esboçada é uma alternativa comparativamente melhor do que as demais.

Palavras-chave: S: Problema da Demarcação, Ciência, Pseudociência, Critério de demarcação.

Abstract: :

This article seeks to achieve two goals. First, to present a panoramic analysis of the three main contemporary conceptions about the demarcation problem. Traditionally, the demarcation problem has intended to conceptually delimit the boundaries between “science”, “non-science” and/or “pseudoscience” via criteria and definitions of science or scientificity. This issue – mainly in the 20th century, but not only – was present as one of the great intellectual challenges of the philosophy of science and in related areas. Indeed, our analysis has produced a division that selects three main phases, namely, optimistic perspectives, pessimistic perspectives, and, so to speak, hybrid perspectives. In light of this context, and in order to support the general architecture of the article, two authors from each phase were chosen for a schematic analysis. Second, this article seeks, in the end, to argue that the problem of demarcation is better understood and answered if characterized as more than an exclusively methodological and epistemological problem, that is, in this sense it would also be a value-added problem with political, social and therefore, practical. We termed it the dual dimension of the demarcation problem. Furthermore, we highlight that our emphasis on this interpretation is essentially in accordance with the defense made by the third approach analyzed in this paper. In the end, we defend that the third conception outlined here is a comparatively better alternative than the others.

Keywords: Demarcation Problem, Science, Pseudoscience, Demarcation Criteria.

Introdução

Tradicionalmente, o problema da demarcação (doravante: PD) pretendeu delimitar conceitualmente as fronteiras entre “ciência”, “não-ciência” e/ou “pseudociência”.3 Tal problemática – principalmente no século XX – fez-se presente como um dos grandes desafios intelectuais da filosofia da ciência e em áreas afins. Com efeito, veremos na segunda seção deste artigo que, em virtude do alegado fracasso ou dos limites que várias propostas de soluções otimistas (destacadas na primeira seção), sofreram, grosso modo, dos anos 1970 em diante, com críticas de posições de índole mais cética, que ganharam força e espaço ao menos entre os filósofos da ciência (Cf. MAHNER, 2013, p. 33; LAUDAN, 1982, 1983; HAACK, 2012; MCINTYRE, 2019; HOYNINGEN-HUENE, 2013, pp. 1-13).

Contudo, uma via alternativa reativa, por assim dizer, apresentou-se quase que imediatamente. Nela, em alguma medida, reconhece-se o impacto das objeções levantadas pelos que negam ser possível ou provável solucionar o PD. Por outro lado, sublinha-se a importância social singular do tema e as motivações legítimas que os primeiros demarcacionistas exibiram. Nessa terceira fase da discussão, a nosso ver, concebeu-se o problema como sendo de natureza híbrida. Logo: tanto seria um problema conceitual, intelectual e geral (teórico) – o que implica aprofundar um debate com vistas a descrever (ou prescrever) critérios e/ou definições de cientificidade plausíveis e compatíveis com a diversidade científica –, quanto simultaneamente é um problema atravessado por disputas e interesses de âmbitos políticos, sociais, econômicos, jurídicos, entre outros.4

Ao contrário de uma predisposição mais purista, reconhecer essa “dualidade” ou “ambivalência” poderá ser uma chave interpretativa importante, pois equaliza elementos fundamentais e permite encaminhamentos realistas. À luz desse contexto, e a fim de apoiar a arquitetura geral do artigo, selecionamos dois autores de cada uma dessas fases para uma análise esquemática. Na primeira seção, apresentamos e articulamos as perspectivas de Popper ([1959] 2002, [1963] 2008) e Lakatos ([1970] 1979, 1974,). Na segunda seção, as de Feyerabend ([1975] 2011, [1978] 2012) e Laudan (1982, 1983). E, na terceira seção, tratamos das perspectivas de Thagard (1978, 1988) e Resnik (2000).

Por fim, sustentamos que: em que pese os problemas das duas primeiras fases poderem ser rebatidos, indicando que tais caminhos estão ainda “vivos”, avaliamos que a terceira aqui analisada é comparativamente melhor que suas alternativas.

Dois demarcacionistas clássicos ou como ser otimista

Se existe algum filósofo que é incontornável na temática da demarcação, esse é Karl Raimmund Popper (1902-1995). O filósofo austríaco conhecido pela sua magnum opus: The Logic of Scientific Discovery ([1959] 2002) geralmente é apresentado como o formulador do “problema da demarcação” nos seus contornos contemporâneos.5 Para todos os efeitos, não é exagero afirmar que a pergunta popperiana “[quando] pode uma teoria ser classificada como científica? ou Existe um critério para classificar uma teoria como científica?” (POPPER, [1963] 2008, p. 63) ainda desafia a mente de cientistas, filósofos e estudiosos da ciência em geral.6 Essa foi a formulação escolhida décadas depois de suas primeiras investidas no assunto, que datam do final dos anos 1920 (POPPER, 1977, p. 45).

Segundo a perspectiva popperiana, duas respostas foram tradicionalmente apresentadas para responder sobre a natureza da ciência. Primariamente, variações de algumas metodologias indutivistas podem ser rastreadas nos empiristas clássicos como Bacon, Hume ou até mesmo Aristóteles, embora esse último esteja apenas ligado à ciência antiga (LOSEE, 2001; MILLER, 2010). Deixando de lado sutilezas7 que Popper introduz para abordar a questão da demarcação, a ideia subjacente da visão indutivista era simples e elegante, a saber, poderíamos classificar uma teoria como científica, se e somente se, ela fosse satisfatória e repetidamente apoiada por evidências observacionais (CHALMERS, 1993; GODFREY-SMITH, 2003). Portanto, somente a experiência serve de justificação para as generalizações indutivas contidas nas proposições universais da ciência, a saber, as chamadas “leis da natureza”. Em outras palavras, poderíamos dizer: canonicamente a ciência distingue-se da religião, da metafísica, da matemática ou da pseudociência, porque apoia-se indutivamente nos fatos objetivos do mundo. Embora essas considerações históricas sejam influentes para o modo como Popper pensa o PD, ele maior influência dos pensadores mais imediatos, tais como os membros do Círculo do Viena.8

Por sua vez, foram as disputas com eles que serviram de contraponto ao seu pensamento (OUELBANI, 2009). É conhecida a defesa dos membros do Círculo do princípio da verificabilidade, sobretudo, nos anos 1920 e 1930 (MOULINES, 2020, pp. 66-70; DUTRA, 2017, pp. 36-47). Aproximadamente, a tese dos positivistas lógicos era: dado qualquer enunciado sintético, se não somos capazes de indicar, em princípio, sob que condições ele é verificável empiricamente (o que significa saber seu valor de verdade), então, provavelmente estamos diante de um pseudoenunciado. Consequentemente, tal enunciado (aparentemente empírico) carece de sentido cognitivo, ou seja, em última análise é destituído de utilidade para o sistema unificado da ciência, e deve ser eliminado (CARNAP, [1931] 2016; STEGMÜLLER, 1977, pp. 275-307; ABRANTES, 2020, pp. 67-72).9 Antes, na perspectiva popperiana ainda, Wittgenstein no Tractatus, já teria interpretado o PD como redutível ao problema do significado – algo crucial e que fora herdado pelos membros do Círculo num primeiro momento. Sobre essa herança, Popper afirma: “o critério de significatividade de Wittgenstein coincide com o critério de demarcação dos indutivistas, contanto que se substitua a palavra ‘científico’ ou ‘legítimo’ por ‘significativo’.” (POPPER, 2002, p. 13).

Assim sendo, é nesse contexto que Popper propõem o célebre critério de demarcação: a falseabilidade. Quando se busca distinguir a ciência empírica, por um lado, da metafísica, lógica, mito e pseudociência, por outro, tanto o indutivismo quanto o verificacionismo (com ou sem “roupagens linguísticas”) são inadequados. Complementarmente, defendeu também que: (i) nenhuma teoria pode ser justificada positivamente pela experiência, mesmo nossas melhores teorias serão sempre hipotéticas, falíveis (tese anti-indutivismo);10 (ii) isso ocorre porque existe uma assimetria lógica entre “verificabilidade” e “falseabilidade”.

Ora, uma hipótese prima facie poderia ser sucessivamente confirmada por estudos, experimentos ou resultados, mas tal condição, em princípio, não impedirá que no futuro – nos próximos testes ou experimentos – a hipótese venha a ser falseada, refutada e, em função disso, precise ser abandonada. Logo, o critério e tais pontos, estaria subsidiado pela regra de inferências modus tollens. Essa regra é o núcleo que respalda uma metodologia falseacionista. Não por acaso, a proposta popperiana é às vezes chamada de “dedutivismo”. Como tese de axial, temos a ideia de que só há uma lógica, a saber, a clássica; Popper é um ortodoxo em termos metalógicos (DUTRA, 1990, pp. 179-187).

Dito de outro modo, se existe um único contraexemplo confiável e reprodutível, então – popperianamente falando – existe uma boa razão para o descarte ou, no mínimo, para uma reformulação (não ad-hoc) da hipótese ou teoria em questão. Essa condição epistemológica/metodológica, longe de ser um obstáculo intransponível ou mesmo paralisante, ao contrário, seria o “motor” da racionalidade e do progresso científico. Segundo Popper, as realizações da ciência sempre se dariam a partir de conjecturas ousadas e abrangentes seguidas de testes rigorosos e críticos (MILLER, 2008, 2010). Somente as teorias que sobrevivem ao escrutínio crítico e implacável dos honestos cientistas são dignas de nossa preferência racional provisória; mesmo que isso não ocorra sempre, ou descreva um reflexo da prática dos cientistas, é o ideal regulador (HORGAN, 1998, p. 55).

Em suma, ainda que essa seja uma forma um tanto esquemática de apresentar o falseacionismo de Popper, o importante é compreender que o critério de demarcação é a falseabilidade empírica. Por isso, afirmações que compõem sistemas religiosos, metafísicos ou pseudocientíficos apenas na aparência são científicos (ou empíricos), pois, na verdade, são especulações não testáveis. Afinal, por exemplo, como testar alegações como: “Deus é onipotente, onisciente e onipresente.”, “Tudo tem uma causa.” ou “Os virginianos tendem a ser organizados, já os piscianos bagunceiros.”? Portanto, afirma Popper “[o] critério da ‘refutabilidade’ é a solução para o problema da demarcação, pois afirma que, para serem classificadas como ciência, as assertivas ou sistemas de assertivas devem ser capazes de entrar em conflito com observações possíveis ou concebíveis” (2008, p. 68, grifo nosso).

Na literatura sobre o tema, acumularam-se objeções ao critério de Popper e suas pressuposições de fundo (KUHN, [1970] 2011b; HAACK, 2012; 2013). Alguns críticos, aliás, irão mais longe e rejeitam o(s) projeto(s) demarcacionista(s) em si. Uma importante crítica foi do filósofo Imre Lakatos (1922-1974) que, não obstante, nunca escondeu sua dívida pessoal e intelectual à figura de Popper. Lakatos sublinhou que o pensamento de Popper o ajudou a “romper com sua perspectiva hegeliana mantida por quase vinte anos” (LAKATOS, 1974, p. 241). Todavia, – talvez no mesmo espírito de Aristóteles que dissera ser amigo de Platão, porém ser ainda mais amigo da verdade – Lakatos avaliou que o projeto popperiano sofria falhas, a despeito de suas inovações e contribuições.

Seguindo as críticas de Thomas Kuhn ([1970] 2011b) de natureza historicista, Lakatos argumentou que, desde uma perspectiva da história da ciência, o falseacionismo sofria duas vulnerabilidades importantes: (i) nem explicava os melhores momentos do progresso científico e, ocasionalmente, (ii) tendia a indicar irracionalidades patentes no que fora feito por alguns cientistas do passado.11

A primeira é que Popper supunha que a metodologia falseacionista captava muito bem o “duelo” que ocorreria entre teoria e experiência (LAKATOS, 1979). Ou seja, uma vez que se aceita (por convenção) uma determinada base empírica (enunciado de observação), os cientistas podem testar hipóteses. Adicionalmente, essa base empírica é uma forma de convencionalismo crítico, logo, é a comunidade de cientistas que intersubjetivamente delimita os ditos “enunciados básicos”. Outra fragilidade da proposta popperiana é a exigência de que, se provocado, o(s) cientista(s) precisa “especificar antecipadamente os experimentos que, se fornecerem resultados negativos, originariam o falseamento do sistema” (LAKATOS, 1979, p. 183, grifo nosso).

Segundo Lakatos, a primeira suposição é frequentemente desautorizada pela história da ciência. Na maioria das vezes, o conflito não acontece entre construções teóricas ou conjecturas, de um lado, e, do outro, o “mundo empírico” ou os “fatos” recortados como básicos. Mas se dá entre uma série de teorias competindo umas com as outras. Nas palavras do próprio, “[não] se trata de propormos uma teoria e a natureza poder gritar NÃO; trata-se de propormos um emaranhado de teorias e a natureza poder gritar INCOMPATÍVEIS.” (LAKATOS, 1979, p. 159, caixa alta do autor).

A segunda alegação, embora tenha uma razoabilidade intuitiva, é muito exigente. O argumento de Lakatos, em resumo, é: se solicitássemos um falseador potencial, por exemplo, a um newtoniano do século XVIII, é plausível imaginar que ele não daria uma resposta precisa (se é que alguma daria). Isso acontece pelo simples fato de que uma teoria tomada isoladamente (sem competidora) não é uma unidade de avaliação adequada, nem para averiguar suas virtudes internas (conteúdo empírico, poder explicativo, sucesso preditivo, evidências favoráveis, etc.), nem para seus eventuais vícios (anomalias, imprecisões, falhas preditivas, evidências contrárias, etc.). Ou seja, é necessária uma alternativa, em competição, para que se possa vislumbrar experimentos, observações e testes “cruciais”. Do contrário, os eventuais falseadores apresentados serão vagos e aparentemente evasivos.

À luz dessas duas críticas, cumpre agora analisarmos como Lakatos reposiciona o seu critério de demarcação, porque – diferente dos autores da próxima seção – ele reconhece o PD como um problema fundamental e que precisa ser solucionado, sob pena de não conseguirmos dissipar a poluição intelectual que se faz presente na academia, no debate filosófico ou na vida social e cultural (LAKATOS, 1979).

Consequentemente, apesar das diferenças com o seu mentor ou com os positivistas lógicos, Lakatos permanece no mesmo espírito desses. Talvez porque, numa nota mais pessoal, sentiu o quanto pode ser arriscado misturar indiscriminadamente ciência, racionalidade e temas intelectuais com interesses políticos, agendas partidárias e interpretações ideológicas.12 Porém, os seus exemplos históricos ilustrativos são: (i) Igreja Católica excomungando os copernicanos como defensores de algo “não-científico”, quando sabemos que isso era mais uma avaliação política do que epistemológica; (ii) o Partido Comunista Soviético classificando como pseudociência a genética mendeliana, a despeito de toda a sua fecundidade teórica, em favor das ideias do camarada Trofim Lysenko (LAKATOS apud. MOTTERLINI, 1999, p. 21-22).

No entanto, apesar desse diagnóstico, Lakatos defende que o primado dessa discussão deve ser resolvido ou solucionado (tanto quanto possível) em âmbito teórico e intelectual. É a partir de uma metodologia sofisticada que representa uma nova maneira de entender o fazer científico e seus padrões de honestidade que, finalmente, mostraremos que a ciência é um empreendimento racional e cognitivamente progressivo. (Ressaltando-se que Lakatos não aspira apresentar um conjunto de regras ou critérios mecânicos para serem seguidos e aplicados.) Em suma, o que está em questão é apresentar uma teoria da racionalidade científica.

Com esse objetivo, Lakatos também fez recorrente referência ao problema da história interna da ciência que, em conjunto com uma metodologia satisfatória, nos permite, em princípio, isolar os elementos da história externa (questões políticas, sociais, ideológicas, etc) e “decantar” o processo científico no que ele chamou de uma reconstrução racional da ciência. Sob tais parâmetros, o autor elaborou o que alguns comentadores classificam como uma abordagem combinada, tanto tributária a Popper, quanto a Kuhn (MUSGRAVE & PIGDEN, 2021).

Em linhas gerais, para Lakatos, a unidade básica de análise são os programas de pesquisa, compostos por uma série de teorias que se sucedem umas às outras “dentro” do próprio programa. Por sua vez, o que preserva a identidade do programa é o núcleo duro, cujo conteúdo são os postulados básicos do mesmo. Dois exemplos de núcleo duro são: na mecânica newtoniana, a lei da gravitação universal e as três leis do movimento; no programa darwiniano, as teses da descendência comum e a ideia da seleção natural. O segundo elemento de um programa de pesquisa é o “cinturão de proteção”, constituído pelas teorias, hipóteses ou conceito auxiliares “pontes” entre os postulados básicos e os fenômenos de um domínio a serem explicados, analisados ou descritos.

Além disso, quando um cientista que participa de algum programa de pesquisa específico se depara com fatos ou eventos que conflitam com uma previsão teórica do programa, isto é, quando ocorre uma “refutação” – ou em termos kuhnianos detecta-se uma anomalia –, então a heurística positiva é acionada. Ela serve para orientar modificações ou ajustes que procuram acomodar essa anomalia, ou seja, ajuda a transformar um problema em um indicador de sucesso. A heurística ajuda também no processo de sugerir novas previsões que, em se confirmando, computam sucesso ao programa. O que justifica por que muitos pesquisadores escolhem ser partícipes e defensores do programa em questão. Ademais, Lakatos (1974, 1979) informa que, quando um programa acumula casos bem-sucedidos em termos de previsões e explicações, em geral, indo melhor do que programas rivais, diz-se que tal programa é progressivo, ou seja, está prevendo fatos novos. Este é um dos indicadores epistemológicos e metodológicos mais importantes no que toca à classificação de um programa científico.

Entretanto, todo programa também dispõe de uma heurística negativa que tem como objetivo potencial proteger o núcleo do programa de ataques e críticas diretas (inclusive falseamento). Ora, se num contexto em que fatos novos e inexplicados esteja embaraçando um determinado programa, é a heurística negativa que pode ser, racionalmente (cientificamente), acionada para modificar conceitos, cláusulas ceteris paribus ou suposições secundárias para proteger o programa. Com efeito, se essa paralisia for reiterada e houver pouco ou nenhum progresso, então, para alguns, significará que o programa parou de “dar frutos” (teóricos e empíricos). Por sua vez, está somente rebatendo críticas. Logo, está degenerando nos termos lakatosianos. Nesse cenário, em algum grau, é possível falar-se de programas pseudocientíficos, metafísicos ou de um programa com escassas chances de uma defesa racional, afinal, há muito risco epistêmico envolvido.

De todo modo, existe um ponto que deixa a posição de Lakatos distante de Popper ou de outros demarcacionistas. Como aludido antes, para Popper – mas não só para ele –, estabelecer condições precisas e claras de quando uma teoria pode ser rejeitada ou aceita racionalmente é uma das marcas da imagem da ciência como um empreendimento superior cognitivamente de outras investigações. Porém, o modelo de Lakatos, ao operar com programas de pesquisas e admitir o mecanismo da heurística negativa, veda a possibilidade de existirem testes que derrogam uma teoria de uma só vez (experimentos cruciais). Portanto, não haveria “[...] nenhuma experiência, nenhum relato experimental, nenhum relato de observação ou hipótese falseadora que conseguisse levar sozinha ao falseamento” (LAKATOS, 1979, p. 146). Ao contrário, a tenacidade (persistência em defender o programa) é admissível e legítima até mesmo nos casos em que algum risco está envolvido. O que tira o caráter instantâneo que muitos esperam de um critério de demarcação.

Eis, em outras palavras, a razão de por que o critério de Popper é muito restritivo. Segundo Lakatos: os cientistas geralmente continuam trabalhando com teorias que, pontualmente, são “falseadas”. Esse comportamento só se modifica quando alguma alternativa estiver disponível. Como fica, então, o critério de demarcação de Lakatos?

Como se pode constatar, seu critério é complexo e heterodoxo, mas à luz da nossa interpretação, ainda assim otimista, o que fica explícito no seguinte trecho:

Se acompanharmos os céticos, o problema da demarcação é insolúvel. O motivo é muito simples: não há uma linha de demarcação, epistemologicamente falando, em que todas as teorias estão no mesmo nível. O ceticismo considera as teorias científicas apenas uma família de crenças que se iguala a outras milhares de crenças diferentes. Qualquer uma dessas famílias – ou sistemas – não está mais correta do que qualquer outra, embora algumas tenham mais poderes do que outras. Portanto, embora possa haver mudanças nos sistemas de crença, não poderá haver nenhum progresso. (LAKATOS apud. MOTTERLINI, 1999, p. 25)

Dito isso, desdobramos tais alegações em maiores detalhes. Primeiro, o seu critério não é simples porque não depende de uma teoria da racionalidade a-histórica. O modelo de programa de pesquisa (tal como a teoria dos paradigmas de Kuhn) é dinâmico, diacrônico e guarda estreita dependência do tempo para que se possa emitir juízos avaliativos (boa ciência, ciência ruim, protociência) ou juízos classificatórios (ciência, pseudociência, não-ciência, metafísica, filosofia, matemática). Mas também é heterodoxa, porque, embora possamos prima facie verificar que no tempo t¹ um programa em particular está degenerando, classificá-lo como “pseudocientífico” nem sempre é automático e, certamente, tal parecer poderia sofrer resistência por parte de um subgrupo da comunidade científica, tudo isso seria do jogo racional. Como um corolário desse último ponto, Lakatos admite que a estagnação não impede que se continue no programa “degenerado” tentando melhorá-lo, sempre na expectativa que isso se inverta no futuro. A tolerância ao risco é distinta entre as pessoas.

Todavia, igualmente, a alcunha de programa inaceitável pode vir à tona e, assim, os rótulos como “pseudociência”, “não-ciência” também. Com efeito, a condição necessária é a falta de progresso para que se possa começar a questionar a cientificidade de um programa. Essas últimas considerações podem soar contraditórias, mas, para a racionalidade “dialética” de Lakatos, ela é a racionalidade possível. Como escreveu em um dos seus slogans: não temos racionalidade instantânea (LAKATOS, 1979, p. 190).

Em síntese, é a progressividade o critério de Lakatos articulado com sua nova descrição do fazer científico. Porque, mesmo que não tenhamos a capacidade de determinar diretamente se uma coleção de teorias (programa de pesquisa) é ciência, pseudociência ou não-ciência, quando olhamos para o passado remoto de um programa podemos averiguar se novas previsões foram feitas e como se saíram; bem como, no plano teórico, averiguar se há progresso teórico. E, novamente, enfatiza-se que é também indispensável notar se há programas alternativos competindo e que possam obter sucesso no campo em questão. Quando a configuração é essa, um prognóstico tão racional quanto possível existe. Além disso, é verdade que, para finalidades mais práticas e imediatistas, Lakatos não teria muito a contribuir, isto é, não há pretensão de aconselhar o cientista do presente.

Para todos os propósitos, na próxima seção, veremos como Feyerabend critica o projeto racionalista de Lakatos e de Popper, assim como veremos também a posição de Laudan. Laudan é menos radical que Feyerabend, embora no tópico do PD tenha uma espécie de aliado.

Dois céticos do PD ou como ser pessimista

Nesta seção nos debruçamos sobre duas críticas endereçadas ao PD. Na primeira, analisamos a argumentação de Paul Feyerabend (1924-1994), que parte de considerações gerais sobre o empreendimento científico, mas que também incidem na questão da demarcação. Na segunda crítica, adentramos nas objeções levantadas por Larry Laudan (1941-).

O polêmico filósofo da ciência Feyerabend é, sem dúvida, um daqueles pensadores que se popularizou – nem sempre à luz de uma satisfatória compreensão – pelas suas posições ditas radicais, controvertidas e até jocosas (GODFREY-SMITH, 2003; SOKAL & BRICMONT, 2010; HOYNINGEN-HUENE, 2013; HORGAN, 1998). Com efeito, para os propósitos deste artigo, esquematizamos o pensamento de Feyerabend em três momentos principais e sucessivos.

Em um primeiro momento, aproximadamente entre os anos 1940 e 1950, ele estava interessado no debate filosófico do seu tempo e, em especial, nas questões da física moderna (quântica e relativística). Foi influenciado pelo positivismo lógico tanto que, em 1951, sua tese de doutorado versou sobre o estatuto dos “enunciados básicos” ou “sentenças protocolares”, e teve como orientador Victor Kraft (1880-1975), um conhecido membro do Círculo (PRESTON, 2020; FEYERABEND, 2012, p. 68). Ainda nesse período, tendo conhecido e simpatizado com a filósofa inglesa Elizabeth Anscombe (1919-2001), interessou-se crescentemente pelas reflexões do dito “segundo” Wittgenstein. Por isso, planejou ir para Cambridge pesquisar com o próprio, o que não aconteceu devido à morte de Wittgenstein em 1951. À luz dessa contingência, Feyerabend opta então por estudar em London School of Economics com Karl Popper.

Em um segundo momento, Feyerabend absorveu e simpatizou com o racionalismo crítico por um breve período de tempo. Todavia, essa combinação de influências sabidamente antagônicas – podemos dizer em retrospecto – tornará Feyerabend um intelectual singular.13 Isso começa a ficar latente quando Feyerabend se mostra bem mais pluralista do que seu “mestre” e os demais popperianos. Ora, por exemplo, um dos pressupostos popperianos é o de que existiriam apenas duas maneiras de fundamentar uma teoria da ciência: ou por meio de uma abordagem naturalista (descritiva/empírica) ou normativa (prescritiva/convencionalista).

A primeira não interessava a Popper, porque entendia que toda epistemologia ou teoria da ciência (consciente ou não disso) necessariamente implica “decisões” ou “convenções” que endossam convicções filosóficas não empíricas; tais como: “Qual seria o objetivo epistêmico da ciência?”, “Quais são os seus limites?”, “Quais valores serão evocados como justificando as regras metodológicas selecionadas?”, etc. Em suma, Popper, assim como outros teóricos da metodologia científica, provavelmente tinha em mente aspectos metametodológicos que o tornaram um metodólogo normativista (Cf. ANDERSEN & HEPBURN, 2021; ABRANTES, 2020).

De todo modo, Feyerabend endossava uma perspectiva mais flexível. Ele entende que – certamente – podemos (e devemos) aprender muito com as “abordagens naturalistas”, logo, tanto a história da ciência quanto a psicologia social, por exemplo, nos auxiliam boa compreensão da ciência enquanto prática real. Consequentemente, a distinção entre “contexto de descoberta” e “contexto de justificação”, mas também a distinção “abordagens naturalistas" e “abordagens normativas”, ambas aceitas por positivistas e popperianos, passam a serem duramente relativizadas.

Assim sendo, aproximadamente dos anos 1960 em diante, Feyerabend constata que nem racionalistas críticos, positivistas lógicos ou indutivistas conseguem, de fato, oferecer uma explicação de como e por que a ciência funciona. Isto é, não conseguem condensar a (pressuposta) superioridade epistemológica da ciência numa metodologia rígida, regrada, universal e, ao mesmo tempo, compatível com a prática. Ou mesmo explicam por que a ciência fora, geralmente, bem-sucedida, a despeito de não parecer seguir regras ou fórmulas claras como pensam metodólogos desde Bacon, Descartes e Mill.

Todavia, os dois momentos anteriores foram suplantados para dar passagem à reputação de Feyerabend logo após a publicação de Contra o Método (1975), no qual o autor ventilou a posição conhecida por anarquismo epistemológico.14 O referido livro foi pensado inicialmente como uma parte crítica mais ou menos direta (e jocosa) às visões racionalistas que, via de regra, eram propagandeadas por várias figuras que fizeram uma defesa da ciência, na visão de Feyerabend, às vezes ingênua, outras simplificada e quase sempre chauvinista. Assim, em meados dos anos 1970, Lakatos teria dito a Feyerabend: “você tem ideias tão estranhas. Por que não as põe por escrito? Eu escrevo uma réplica, [e] publicamos a coisa toda [...]” (FEYERABEND, [1975] 2011, p. 7). Feyerabend aceitou o desafio do amigo, ele se ocuparia de ser o representante da crítica radical, isto é, “ser contra o método”; e Lakatos representaria a posição “a favor do método”. Todavia, isso não aconteceu devido à morte inesperada de Lakatos pouco tempo depois.

Com efeito, cabe destacar que Feyerabend não estava apenas expondo uma posição “pluralista” moderada, ou seja, argumentando que há várias metodologias ou que precisamos ter em conta que existem múltiplos critérios para demarcar o que é uma pesquisa científica, razoável ou racional e o que não é. O seu ponto é mais forte, a tese é a de que: “os eventos, os procedimentos e os resultados que constituem as ciências não têm uma estrutura comum: não há elementos que ocorrem em toda investigação científica e estejam ausentes em outros lugares.” (FEYERABEND, 2011, p. 19, grifo nosso).

Por conseguinte, em que pese os metodólogos racionalistas afirmarem o contrário, a ciência não é um empreendimento que segue regras universais e uniformes; às vezes usa regras indutivas, em outras contraindutivas; às vezes se escolhe teorias confirmadas, às vezes não; noutras ocasiões o falseamento é considerado importante, às vezes não, etc. Desde que a ciência surgiu, tentou-se condensá-la em códigos e numa perspectiva racionalista que subscrevesse fórmulas simples, diretas e intuitivas. Entretanto, para Feyerabend, essas empreitadas apenas produziram quimeras cuja acurácia é baixa; e, pior ainda, se as metodologias até então apresentadas fossem aplicadas, provavelmente bloqueariam o progresso científico tal como o conhecemos (FEYERABEND, 2012, pp. 32-33).

Em síntese, Feyerabend dá um duplo golpe na teorização hegemônica da ciência, pois: (a) dissolve qualquer distinção entre padrões e princípios como identificável, codificável ou inferível das práticas científicas concretas; (ii) geralmente, os racionalistas, que creem no “método” científico como resposta ao PD, oferecem uma “imagem congelada da ciência” (FEYERABEND, 2011 [1975], p. 21). Quem expressou de maneira sucinta a conclusão de Feyerabend foi Chalmers, quando escreve:

Se as metodologias da ciência forem compreendidas em termos de regras para orientação das escolhas e das decisões dos cientistas, então me parece que a posição de Feyerabend é correta. Dada a complexidade de qualquer situação realista dentro da ciência e a impossibilidade de previsão do futuro naquilo que se refere ao desenvolvimento da ciência, não é razoável esperar uma metodologia que dita que, dada uma situação, um cientista deve adotar a teoria A, rejeitar a teoria B ou preferir A à teoria B. (CHALMERS, 1993, p. 174)

Além disso, contra os defensores apressados e ingênuos da ciência, as metodologias indutivistas, os falseacionistas ou até mesmo a sofisticada proposta de Lakatos, Feyerabend reitera: “minha intenção não é substituir um conjunto de regras gerais por outro conjunto dessa natureza: minha intenção é, ao contrário, convencer o leitor de que todas as metodologias, mesmo as mais óbvias, têm limites” (FEYERABEND, 2011, p. 294, grifo nosso).

Logo, depreende-se que o seu envolvimento no debate é sobretudo negativo e explora uma perspectiva pessimista. Isso não quer dizer que o autor de Contra o Método não reconheça o papel local e relativo que regras ou padrões venham a desempenhar num contexto particular de investigação. Afinal, a posição defendida não era a de um anarquista ingênuo, isto é: defender que regras ou padrões (metodologias e epistemologias) não tenham nenhuma importância ou sejam totalmente inúteis. A tese é outra, a saber, “[...] tanto regras absolutas quanto regras [são] dependentes do contexto” (FEYERABEND, 2011, p. 194).

Por último, na contramão de uma romantização dos cientistas e suas investigações, Feyerabend concluiu (sem moralismo) que os cientistas são oportunistas metodológicos, utilizam os movimentos que tenham à mão, mesmo que isso viole os cânones da metodologia ortodoxa (PRESTON, 2020). Se Feyerabend estiver certo, o PD estaria completamente “morto” e assim permaneceria, sem prejuízo para os cientistas “na ponta do processo”. Ora, cientistas independentes nunca precisaram de um simplificador ou de uma muleta metodológica, nem de um altar (filosófico) para prestar contas.

E, sobre a perspectiva de Lakatos, Feyerabend entende que a proposto dos programas de pesquisa com todas as flexibilidades, concessões e padrões menos rígidos, na prática, endossa o anarquismo epistemológico, porém de uma forma envergonhada. A retórica racionalista por si só não basta para “impor a lei e ordem” que se espera de um critério de cientificidade, ironiza Feyerabend. Tal como funciona no direito penal, é preciso aplicar as normas e condenar os infratores.

Ao final do artigo, pontuamos algumas modulações e convergências à visão de Feyerabend. Sem pretensão de endossarmos ou desenvolver todas as implicações do anarquismo epistemológico, no que toca especificamente ao PD, pode-se dizer que Laudan está mais próximo de Feyerabend do que Popper e Lakatos, embora, veremos, ele é certamente menos radical do que Feyerabend. Dito de modo explícito, suas conclusões são convergentes, mas ambos chegam a ela por caminhos distintos.

Para Laudan, é possível estruturarmos uma compreensão racional da ciência e, paralelamente, livrar-se dos projetos demarcacionistas. Geralmente, Laudan é conhecido em razão do seu livro O progresso e os seus problemas (1977), lançado cronologicamente antes das suas contribuições ao PD. Nesse livro, na esteira do debate entre positivistas lógicos, racionalistas críticos, historicistas e anarquistas epistemológicos, o autor pretendeu acomodar o impasse que surgia no final dos anos 1970. Por um lado, havia visões tradicionais sobre a ciência que apelavam para os mecanismos da “análise tradicional que [iria] enfim esclarecer e justificar as nossas intuições acerca do caráter bem fundamentado da ciência” (LAUDAN, 2011, p. 7, grifo nosso). Por outro lado, havia autores como Feyerabend e Kuhn (segundo leituras dele) que questionavam os projetos dessa primeira índole e, conscientes disso ou não, pareciam defender que “[…] um modelo adequado da racionalidade como uma causa perdida, aceitando, assim, a tese de que a ciência é, ao que consta, claramente irracional” (LAUDAN, 2011, p. 7, grifo nosso).

Nesse contexto, Laudan coloca-se como alguém que calibra a discussão sem cair em um dos lados (aqui não teceremos comentários sobre a validade desse ponto de partida certamente problemático). A estratégia, em linhas gerais, é aperfeiçoar um modelo semelhante ao de Kuhn e Lakatos, também por meio de uma análise diacrônica e dinâmica, o que se refletiu na noção de tradição de pesquisa. Essa noção é confessadamente inspirada nas de “paradigmas”, “matriz disciplinar” e “programas de pesquisas”, porém com o diferencial de que nem é um conceito tão amplo quanto as primeiras formulações da noção kuhniana de paradigma, tampouco é um conceito que admita um núcleo duro, como figura no modelo de Lakatos.15

O modelo alternativo de Laudan é orgânico e não procura delinear às fronteiras entre “ciência normal”, “revolucionária”, “programas degenerando” ou “programas progredindo”. O que importa é constatar se uma tradição de pesquisa está ou não resolvendo os problemas teóricos e/ou empíricos [alcançando progresso cognitivo] que, no interior da tradição, são elegíveis como fundamentais e relevantes. A segunda parte da sua estratégia é inverter uma compreensão corriqueira no debate intelectual-filosófico, a saber, “os filósofos transformaram o progresso em parasita da racionalidade” (LAUDAN, 2011, p. 10). Embora esses conceitos estejam correlacionados, uma inversão precisa ser feita, “a racionalidade consiste em escolhas teóricas mais progressivas e não que o progresso consiste em aceitar sucessivamente as teorias mais racionais” (LAUDAN, 2011, p. 10, grifo nosso).

Apesar dessas inovações, nada do que Laudan escreveu nos leva a pensar que ele considera que sua proposta resolve o PD, e nisso ele se diferencia dos seus antecedentes. Entretanto, isso somente se torna evidente no começo dos anos 1980, em função de disputas acadêmicas e extra-acadêmicas. Concretamente, referimo-nos ao caso jurídico norte-americano McLean vs Arkansas, às vezes rotulado como o caso da “ciência da criação”.

O caso motivou Laudan (1982) a criticar o colega Michael Ruse (1982) que, uma vez estando na condição de testemunha especializada, elencou alguns critérios de cientificidade para ajudar na discussão. Em seguida, os critérios oferecidos por Ruse serviram para embasar parte do veredito do magistrado do caso (OVERTON, 1982, pp. 938-939). Overton concluiu que a “ciência da criação” é, na verdade, religião.

O que estava em questão, no caso McLean vs Arkansas, era o argumento rotulado de “tratamento equilibrado” (Lei-590), isto é, solicitava-se que a “ciência da criação” deveria ter o mesmo tempo curricular em sala de aula que se disponibiliza à teoria da evolução (darwinismo). Assim posto, como a constituição americana proíbe (graças à primeira emenda) que os estados ou o governo federal tenha uma religião oficial, cabia aos críticos da Lei-590 elaborar argumentos que, grosso modo: (a) explicassem o que é ciência; (b) analisassem comparativamente qual é o estatuto da “ciência da criação” (definida nos autos) em função do primeiro item.

A nosso ver, com intenção de ser objetivo e útil, Ruse (1982) apresentou cinco características cuja pretensão é – ainda que se possa falar em casos intermediários entre ciência e não-ciência – demarcar física, química e geologia (casos paradigmáticos) de outras modalidades especulativas, como teoria das formas (platonismo), teoria da Terra jovem, homeopatia, etc. Enfim, discursos ou doutrinas que não são sequer empíricas ou o são muito fracamente. Ademais, Ruse estava ciente de que, num contexto jurídico-prático, não estava propriamente “solucionando” o PD. O que se constata ao escrever: “Simplesmente não é possível dar uma definição clara – especificando as características necessárias e suficientes – que separa tudo e apenas aquelas coisas que já tenham sido chamadas de ‘ciência’.” (RUSE, 1982, p. 39, grifo nosso).

Todavia, os seguintes pontos pareceram razoáveis diante das demandas contextuais concretas: (i) a ciência é guiada por leis naturais; (ii) as explicações científicas fazem referência às leis naturais; (iii) todas, embora não isoladamente, as afirmações científicas são testáveis no mundo empírico; (iv) todas as conclusões são provisórias (mesmo as confirmadas) e podem, à luz de novas evidências, serem revisadas; (v) falseabilidade empírica.

Assim, graças à testemunha especializada e também a outras dificuldades dos criacionistas científicos (por exemplo, não resolver problemas já solucionados pelo darwinismo) o magistrado Overton mostrou que a ciência da criação não satisfaz os critérios aludidos. Porém – com certo exagero retórico – afirmou serem essas as “características essenciais” (essential characteristics) de toda e qualquer empresa científica (OVERTON, 1982, p. 938).

Em função dessa afirmação, mas sem negar que a “ciência da criação” é certamente algo indefensável ou colocar em dúvida o estatuto científico da evolução, Laudan critica Overton e, em certa medida, os critérios elencados por Ruse:

Na esteira da decisão do julgamento sobre a ciência da criação do Arkansas (McLean vs Arkansas) “os amigos da ciência” estão propensos a saborear o resultado obtido. Os criacionistas claramente fizeram uma bagunça a seu favor. Não existe dúvida de que a decisão do Arkansas pode, pelo menos por algum tempo, reduzir a pressão legislativa para promulgar leis semelhantes em outros estados. Entretanto, uma vez que a poeira baixar, o julgamento em geral e a decisão do juiz William R. Overton, em particular, poderão voltar para nos assombrar. Porque, embora a sentença deva ser elogiada, ela foi alcançada por razões erradas e por uma cadeia de argumentos que é irremediavelmente suspeita. Na verdade, a decisão se baseia em uma série de deturpações sobre o que é a ciência e como ela funciona. (LAUDAN, 1982, p. 48, grifo nosso)

Segundo Laudan, é equivocado assumir que os critérios mencionados são elementos essenciais da ciência. Certamente a doutrina criacionista deixa muito por responder, porém “os fins não justificam os meios”. Ora, valer-se de fragmentos de uma teoria da ciência débil para satisfazer demandas práticas e jurídicas até pode nos deixar pontualmente satisfeitos – afinal somos amigos da ciência –, mas oportunamente isso trará outros problemas, e tampouco é intelectualmente honesto dizer que há um consenso em torno do PD. Segundo o autor: “Por mais nobre que seja a motivação, má filosofia cria leis ruins” (LAUDAN, 1982, p. 52).

Laudan defende que os criacionistas devem ser criticados, mas não porque não fazem asserções empíricas, testáveis ou, no limite, infalseáveis. Ao contrário, várias asserções desses grupos são – à luz do que se sabe – simplesmente falsas; logo, testáveis, falseáveis e empíricas. Testabilidade e falseabilidade empírica são critérios fracos para dar cabo, de uma vez por todas, do PD. Consequentemente, a estratégia disponível seria mostrar, caso a caso, quais grupos de afirmações já foram submetidos a avaliações empírica e por que falharam. Um exemplo é o caso dos criacionistas da Terra Jovem, que sustentam que o planeta Terra, em vez de ter 4,5 milhões de anos, e cuja data é consenso científico, na verdade, teria algo ao redor de 5,7 mil a 10 mil anos. Bem, seja por argumentos, estudos e evidências astronômicas ou geológicas, não é nada incontroverso, para especialistas, mostrar que tais alegações não resistem às melhores informações ou argumentos conhecidos.

Além disso, Laudan entende que as exigências mencionadas pelo juiz, tomadas enquanto regras gerais e universais, e que funcionariam como uma solução ao PD, podem representar um problema para os filósofos da ciência. Afinal, onde está essa convergência entre os estudiosos do tema?! Diferentemente, os trabalhos em sociologia e história da ciência – alguns, inclusive, menos radicais do que pensava Feyerabend – indicam que alguns cientistas tomaram suas crenças às vezes como não-falseáveis; outros manifestaram crenças que julgavam verdadeiras (infalíveis) e, frequentemente, defenderam teorias com certo dogmatismo.

De certo modo, Laudan está dizendo que todas as características apontadas são passíveis de inobservância. Por exemplo, a exigência da presença de leis naturais (sem entrar no mérito do que isso seja) como condição necessária para balizar explicações científicas esquece (ou ignora) que várias pesquisas aspiram primariamente estabelecer a existência de um fenômeno, processo ou evento. Portanto, nenhuma referência à lei ocorre (o que não quer dizer que não se buscará isso posteriormente). A força gravitacional, investigada tanto por Galileu quanto por Newton, é exemplo clássico disso (LAUDAN, 1982, p. 51). Nessa mesma direção, Darwin descreveu o efeito do processo da seleção natural sem explicar o mecanismo subjacente aos fatos observados.

Em suma, nos confrontos com um “cientista de criação”, Laudan defende que: em vez de enfrentarmos em bloco, valendo-se de critérios gerais e/ou emitirmos juízos categóricos vazios (cujos rótulos remetem noções como “não-ciência”, “pseudociência” ou “ciência lixo”) e emocionalmente carregados (que podem até agradar leigos e a quem desconhece a história da ciência), deveríamos confrontar os criacionistas expondo suas falhas empíricas flagrantes e, ao que consta, incorrigíveis.

Ruse (1982b, p. 52) compreende a demanda (ou o preciosismo) intelectual do seu colega, porém o rebate avaliando que Laudan “erra o alvo”. Para fins jurídicos, os argumentos filosóficos e os critérios destacados são suficientes. Segundo Ruse, “[…] a questão não é se os criacionistas satisfazem alguma definição controversa ou pouco exigente do que é ser científico; a questão verdadeira é se existe evidência que fornece argumentos mais fortes para teoria da evolução ou para a ciência da criação” (1982b, p. 55, grifo nosso). E sobre isso, Laudan é ambíguo.

Ademais, a linha de argumentação de Laudan nos leva a classificar o criacionismo científico (ou ciência da criação) como “ciência falsa”, em vez de “não-ciência” ou “pseudociência”. Não só do ponto de vista filosófico isso é problemático, mas sobretudo do ponto de vista pragmático e jurídico, esse caminho é insuficiente. Afinal, a constituição americana veda o ensino de religião e não o de “ciência falsa”, embora essa última também não deva prima facie estar presente na sala de aula. O contexto é jurídico, não de um colóquio de filosofia.

Ruse reconhece que o PD ainda é um desafio intelectual, porém para usarmos uma imagem do seu artigo: “embora possa haver muitas áreas cinzentas, o branco realmente parece branco e o preto realmente parece preto” (RUSE, 1982, p. 55). Naturalmente, há casos claros de ciência e casos claros de não-ciência, e Laudan deve reconhecer isso, do contrário, cometeria a falácia da fronteira imprecisa. Por fim, destaca-se que os critérios mencionados tinham sentido e finalidade para avaliar uma discussão do presente, de sorte que considerações históricas ou de amplo espectro são de pouco valor, pois ignoram o essencial.

Laudan não recua. Ao contrário, “dobrando” a aposta contra o PD, no ano seguinte, com o artigo “The demise of the demarcation problem” (1983) argumenta de modo mais extenso contra (virtualmente) todos os projetos de demarcacionistas. Parafraseando-o, os filósofos ocidentais, ao menos desde Parmênides, Platão e Aristóteles, acreditaram ser possível distinguir conhecimento (episteme) da opinião (doxa), realidade de aparência, verdade de erro, ciência de não-ciência ou pseudociência. Tal preocupação foi exemplarmente articulada por Aristóteles, que – segundo Laudan (1983, p. 112) – foi quem primeiro estipulou parâmetros para demarcar o que é conhecimento científico de outras modalidades do saber.

Em poucas palavras, Aristóteles apresentou dois critérios influentes: (i) conhecer cientificamente algo é conhecer suas causas; (ii) devemos distinguir saber-como (típico ofício do artesão, engenheiro ou técnico) do saber-porquê, isto é, do entendimento demonstrativo visado pelo cientista (LAUDAN, 1983, p. 113). Contudo, o segundo critério foi por muito tempo aceito como o mais fundamental. Assim, a ciência (episteme) é sinônimo de conhecimento demonstrado e infalível, ao passo que o de não-ciência, opinião (doxa) é no máximo conhecimento falível. Sem dúvida, não se trata de dizer que Aristóteles está “resolvendo” o PD tal qual o conhecemos. Porém, independente de detalhes terminológicos ou categóricos, para o pai da ciência antiga, a ciência é marcada pela certeza como ideal epistêmico e, complementarmente, o traço fundante é ter que lidar com as causas dos fenômenos.

Deixando de lado pormenores, sobre a dita Velha Tradição Demarcacionista que foi por séculos uma reverberação do ideal aristotélico de conhecimento científico, diz Laudan sobre as rearticulações e inovações dos pensadores modernos:

Os protagonistas mais famosos deste método científico são, é claro, Galileu Galilei (1564-1642), Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650) e, mais tarde, Isaac Newton (1642-1727). O método científico é concebido principalmente como regras estritas de procedimento, e é a estrita observância dessas regras que estabelece a natureza especial do conhecimento científico. (LAUDAN, 1983, p. 114, grifo nosso)

Argumentos de dois tipos são apontados por Laudan para mostrar que, primeiro, os critérios demarcacionistas normalmente ofertados não foram às vezes seguidos. O caso mais flagrante é que uma das ciências mais antigas e respeitadas, a astronomia, desde Ptolomeu não seguiu os parâmetros aristotélicos. Tal como fizeram astrônomos modernos, nessa área se manifesta uma atitude instrumentalista, a saber, “oferecer construções hipotéticas dos movimentos e posições planetárias e, posteriormente, comparar as previsões extraídas dos modelos” (LAUDAN, 1983, p. 113; LAUDAN, 2000, pp. 28-29). Assim, Laudan ironiza que nem as causas dos movimentos compunham parte da investigação nem se interpretam tais modelos como infalíveis. Estariam, por sua vez, os astrônomos pré-newtonianos fazendo algo não-científico ou pseudociência?

Nessa mesma toada, no alvorecer da ciência moderna, o critério das causas (saber-porquê) foi oportunamente escamoteado, ao passo que o da certeza (infalibilidade), no século XVII, tinha seu lugar ao sol “[...] novamente, a infalibilidade dos resultados, em vez de sua derivabilidade das primeiras causas, passa a ser o marco do status científico.” (LAUDAN, 1983, p. 114). Em síntese, tanto Bacon, Descartes quanto Locke polemizaram sobre o que seria o “método científico”, quais seriam as regras principais, “mas nenhum contesta a afirmação de que a ciência e conhecimento infalível são termos permutáveis” (LAUNDA, 1983, p. 114).

Para além disso, em razão das mudanças não-cumulativas e correções que se tornavam recorrentes nas teorias científicas, os cientistas e os teóricos da ciência (tais personagens geralmente se confundiam) começaram a desconfiar da infalibilidade como traço da cientificidade por excelência. Mas foi somente no século XIX que, de uma vez por todas, o critério mais longevo de demarcação finalmente deixou de ser aceito pelos principais cientistas. Agora, o horizonte é tal que não se pode mais afirmar peremptoriamente que a ciência é sinônimo de verdade, certeza, infalibilidade ou coisa do gênero. Essa característica epistemológica não pode mais ser evocada como a marca da ciência, exceto retoricamente.

Deixemos de lado os "sucedâneos do deus morto”, parafraseando Nietzsche, tais como “ciência é confiável”, “ciência é autocorretiva”, “ciência usa o método indutivo”, “ciência é previsão e controle”, etc. O fato é que, no que diz respeito ao PD:

[…] Justamente no momento que ciência começa a ter um impacto decisivo nas instituições e na vida dos povos ocidentais, precisamente naquela época em que o 'cientificismo' […] ganhava espaço; exatamente neste quarto de século quando os cientistas estavam envolvidos numa batalha séria com toda sorte de ‘pseudocientistas’ (por exemplo, médicos homeopatas, espiritualistas, frenologistas, geólogos bíblicos), os cientistas e os filósofos percebem-se de mão vazias. Exceto no nível retórico, já não havia nenhum consenso sobre o que separa ciência de quaisquer outras coisas. (LAUDAN, 1983, p. 116, grifo nosso)

Se o diagnostico Laudan estiver certo, então não é para menos que no século XX que as correntes neopositivistas e falseacionistas são herdeiras dessa conjuntura pessimista. Em razão de não serem novidades nem originais, aqui, não reconstruiremos as críticas de Laudan aos demarcacionistas do século XX (parcialmente vistas na seção anterior). O importante é entender que o seu ceticismo está calcado num argumento até certo ponto razoável. A seu ver, o “problema da demarcação” é, à luz do que sabemos, um pseudoproblema, pois pressupõe que existe um critério necessário e suficiente para individuar ciência de “não-ciência”, ciência de “pseudociência”. Geralmente, tais projetos tendem a endossar uma perspectiva essencialista. Porém, para Laudan, não há um “invariante epistêmico” que esteja (ou que esteve) presente exclusivamente nas práticas científicas.

Assim, em resumo, “sepultando” o problema que já tinha sido duramente criticado por Feyerabend e que outrora foi celebrado por Popper como um dos problemas fundamentais da teoria do conhecimento, Laudan adverte: “A evidente heterogeneidade epistêmica das atividades e crenças habitualmente consideradas científicas deveria nos alertar para a provável futilidade de buscar uma versão epistêmica de critério da demarcação.” (LAUDAN, 1983, p. 124, grifo nosso). Na conclusão do artigo teceremos comentários à posição de Laudan e Feyerabend.

Nem pessimista nem otimista: uma alternativa híbrida

Apesar de muitos concordarem em alguma medida com Laudan e, em menor grau, com Feyerabend, houve autores que reposicionaram a discussão sobre PD. Isto é, ao mesmo tempo que reconhecem que, por exemplo, verificabilidade, falseabilidade e progressividade são critérios insatisfatórios, outros propuseram abordagens alternativas (Cf. BARTLEY, 1968; KUHN, [1970] 2011b; HOYNINGEN-HUENE, 2013; MCINTYRE, 2019). Autores como Thagard (1978, 1988) e Resnik (2000) trataram de recalibrar as pretensões desse ambicioso projeto e, sem demora, incorporaram outras camadas ao problema original. Ademais, a pressuposição de uma solução monocriterial passou a ser rejeitada. Vejamos – para fechar a terceira fase do debate – como Thagard e Resnik fazem essas mudanças.

Consciente dos argumentos céticos mencionados na seção anterior, ou seja, dos autores da segunda fase, o filósofo canadense Paul Thagard, no final dos anos 1970, escreve um artigo em que equaciona as linhas gerais do debate da demarcação até o seu momento, bem como usa a astrologia como estudo de caso. Após tecer críticas aos critérios verificacionistas e falseacionistas, Thagard (1978, p. 223) afirma: diferente do que já se tentou com tais critérios, é preciso introduzir na análise elementos históricos e sociais. Salvo melhor juízo, não se trata apenas de apontar os limites dos critérios já ventilados, mas sim sublinhar nuances ou camadas pouco trabalhadas, sobretudo, pelos demarcacionistas mais tradicionais. Isso levou Thagard a propor um critério composto, orientado por três tipos de variáveis que se articulam, a saber, (i) teoria, (ii) comunidade e (iii) contexto histórico.

Uma teoria ou disciplina cuja pretensão é ser científica será pseudocientífica se e somente se: (1) Tem sido menos progressiva do que as teorias alternativas por um longo período de tempo e enfrenta muitos problemas não resolvidos; e (2) A comunidade de praticantes faz poucas tentativas de desenvolver a teoria na direção da solução dos problemas, não se preocupa com as tentativas de avaliar a teoria em relação às outras e é seletiva ao considerar confirmações e refutações. (THAGARD, 1978, pp. 227-228, grifo do nosso)

Assim sendo, à luz do exemplo da astrologia, Thagard avalia que do ponto de vista teórico, a(s) teoria(s) astrológica(s) – com seus signos, mapas astrológicos, dados pessoais e previsões vagas – não é necessariamente pior do que outras tantas teorias do passado ou do presente. Afinal, diferente do que pensam os popperianos, é possível avaliar (testar) através de modelos estatísticos o quanto de confiável (ou aleatório) há nessas especulações astrológicas (GAUQUELIN, 1967). Então, mesmo que vagamente, pode-se dizer que a astrologia é testável.

Por sua vez, se analisarmos pela perspectiva do critério do progresso, Thagard diz, mais ou menos como Lakatos, que o progresso é um parâmetro fundamental e que se uma teoria (ou disciplina) estiver por muito tempo sem exibi-lo, então há uma deficiência grave. Por progresso, entende-se muitos problemas (anomalias) por serem resolvidos, sejam de ordem empírica, conceitual, metodológica ou lógica. Entretanto, esse critério precisa ser cotejado à luz do comportamento efetivo da comunidade de astrólogos, a saber, é preciso averiguar se existe honesto e verdadeiro interesse em resolver tais impasses ou, ao contrário, se predomina uma tendência de seleção conveniente e artificial das confirmações ou refutações disponíveis.

Dito isso, por que então, segundo Thagard, a astrologia seria pseudociência?

Primeiro, a astrologia é dramaticamente não-progressiva, pois mudou pouco e nada acrescentou ao seu poder explicativo desde a época de Ptolomeu. Segundo, os problemas como a precessão dos equinócios estão ainda pendentes. Terceiro, existem teorias alternativas da personalidade e do comportamento disponíveis […]. Quarto, finalmente, a comunidade de astrólogos geralmente não se preocupa com o avanço da astrologia para lidar com problemas pendentes ou com as objeções à sua teoria feitas por outras pessoas. Por essas razões, meu critério classifica a astrologia como pseudocientífica. (THAGARD, 1978, p. 228, grifo nosso)

Todavia, possivelmente por ter tido contato com os argumentos de Laudan e outras objeções pontuais, Thagard modificou parcialmente sua posição. No núcleo, continua enquadrando a astrologia como pseudociência, porém reconhece que o seu critério falha em alguns aspectos.

A principal falha é: em que pese no conteúdo a sua proposta ser menos rígida do que os demarcacionistas da primeira fase, na forma continua tão exigente quanto. Afinal, ainda que tenha adicionado uma dimensão social e histórica na sua compreensão do PD, sua formulação levou seus leitores a entenderem que se tratava de um critério logicamente forte, ou seja, necessário e suficiente.

Uma segunda recuo, é que o critério demandava que para podermos classificar uma disciplina ou teoria como pseudocientífica, antes, é preciso que se vislumbre uma teoria alternativa disponível concorrente. No caso concreto, Thagard supunha que a astrologia, ao longo da sua história, ocupou em boa medida o papel que hoje é ocupado pelas teorias psicológicas. Por exemplo, em vez de categorizarmos um indivíduo como “neurótico”, “perverso” ou “psicótico” tal como fazem os psicanalistas ou, num registro mais popular, descrever uma personalidade como “extrovertidas”, “introvertidas”, etc. Na astrologia, categoriza-se as pessoas em “virginiana”, “leonina”, “aquariana”, etc. Essa suposição, em princípio, para alguns críticos de Thagard deixava tanto a astrologia com a “vantagem” de poder prontamente rejeitar que disputa (ou disputou) terreno com a psicologia – que sabemos surgiu no ocidente de modo sistemático no século XIX –, quanto autoriza às pseudociências sem concorrentes poderem negar qualquer rotulação contundente.

Por essas e outras, a reformulação da posição de Thagard sofre uma adaptação. Sua hipótese é de que podemos diferenciar ciência de pseudociência listando características que consubstanciam, por assim dizer, um perfil científico em evidente contraste com um perfil pseudocientífico. A proposta de Thagard (1988, pp. 170-171) é – ainda levando em conta as dimensões teóricas, comunitárias e históricas – que a ciência exibe com frequência os seguintes traços ou características: (i) estabelece correlações causais entre fenômenos; (ii) busca tanto confirmar quanto desconfirmar hipóteses ou teorias; (iii) os cientistas avaliam criticamente suas teorias em relação às concorrentes; (iv) procuram apresentar teorias coerentes e claras; (v) há progresso mensurável ao longo do tempo, seja na esfera dos fatos ou da teoria. Ao passo que, um perfil pseudocientífico geralmente exibe: (i’) pensamento por analogia ou semelhança; (ii’) negligenciam dificuldades empíricas; (iii’) ignoram e/ou omitem teorias concorrentes; (iv’) teorias obscuras e com muitas hipóteses ad hoc; (v’) teorias estagnadas por muito tempo, tanto na esfera empírica quanto teórica.

Com efeito, há quem entenda que esta lista de critérios (que, por sua vez, representa um dos muitos demarcacionistas multicriteriais) não seja necessariamente uma saída melhor do que as abordadas na primeira seção. Afinal, pode-se indagar, entre outras coisas, sobre o tamanho dessa lista? Se há hierarquia entre os elementos? Se tal lista não é exaustiva, então há sempre casos que escapam? Não temos aqui pretensão de dirimir tais dúvidas, pois isso foge ao nosso escopo. De todo modo, apenas sublinhamos um último aspecto que, para os nossos propósitos, julgamos essencial. A motivação abertamente sociopolítica de Thagard, além da teórica.

Minha preocupação é social: a sociedade enfrenta um duplo problema, por um lado, falta de preocupação pública com o avanço da ciência, por outro lado, falta de preocupação pública com as importantes questões éticas que agora surgem na ciência e na tecnologia [...]. Uma razão para essa dupla falta de preocupação é a grande popularidade da pseudociência e do ocultismo entre o público em geral. A elucidação de como a ciência difere da pseudociência é o lado filosófico de uma tentativa de superar a negligência pública da ciência genuína. (THAGARD, 1978 p. 230, grifo nosso)

Tendo essa breve história do PD de fundo, bem como do aspecto “social”, “ético” e, por que não dizer, “político” do debate em questão, podemos introduzir o pensamento de David Resnik (1962-). Consideramos que, consciente dos desafios filosóficos do PD, Resnik deu o passo decisivo no entendimento dual ou híbrido do PD: “o problema da demarcação não é meramente um problema filosófico” (RESNIK, 2000, p. 249). Ao contrário, ele é fortemente atrelado às questões de política pública, saúde pública, testemunhas periciais e, certamente, questões envolvendo financiamento da pesquisa e as justificativas para tal. De modo direto: Resnik esboça uma solução pragmática do PD, mas que contempla as suas duas dimensões, antes vista como primariamente epistemológica ou metodológica.

Nessa perspectiva não se quer “apenas” apresentar uma resposta geral, abstrata e teórica ao problema, algo que, de maneira geral, verificamos em abordagens mais tradicionais. Resnik (2000) inova na medida em que aceita – parcialmente – a falta de consenso das soluções ofertadas na filosofia da ciência e áreas afins. Todavia, esse diagnóstico não é definitivo para dizermos exageradamente que o problema “morreu” ou que “vale tudo”.

Tal interpretação, além de ser passível de objeções internas, é equivocada também porque ignora a contrapartida concreta, prática e real do que os filósofos chamam de “problema da demarcação”. É fato que alguns problemas filosóficos são, sobretudo, intelectuais e com pouca relevância social e prática. Por exemplo, quando filósofos (ou cientistas de índole filosófica) discutem se devemos ser realistas ou antirrealistas sobre as entidades postuladas pelas teorias científicas, é difícil mostrar seu impacto no mundo extra-acadêmico.

De um ponto de vista pragmático e realista, para o bem ou para o mal, profissionais em múltiplas áreas estão decidindo, classificando e demarcando: medicamentos, tratamentos, livros, teorias, disciplinas, métodos, técnicas, etc. Todos convictos de que há uma diferença (não trivial ou meramente verbal) entre “ciência”, “pseudociência” e “não-ciência”. Certamente, de modo às vezes mais hostil, crítico e duro, mas às vezes de modo meramente funcional, didático e heurístico.

Com efeito, também é provável que esses profissionais (professores, jornalistas, advogados, médicos, pesquisadores, engenheiros, etc) estão convencidos de que tais categorias são necessárias e úteis, tenham os filósofos, teóricos da ciência ou historiadores obtido algum consenso ou não. Em outras palavras – sem minimizar o caráter difuso e complexo do que está em jogo, quando o PD é atacado pelo viés puramente epistemológico, metodológico e teórico, e tampouco sem deixar de manusear critérios, definições e fixar parâmetros, tanto quanto possível –, permanece relevante mapear e decidir se estamos diante de algo científico ou não. E, nos casos em que estamos diante de algo nitidamente não-científico, é legitimo usar categorias como "pseudociência", “ciência lixo”, “ciência patológica”, etc.

Por outro lado, parece inegável que esse tipo de debate sofre interferência de valores (morais, políticos e econômicos) e/ou de pressões (governos, empresas e instituições sociais) “extracientíficas” que por múltiplas razões trazem tonalidades mais ou menos polêmicas. Logo, cada caso e cada contexto demandará estratégias distintas e, provavelmente, pouco universalizáveis. Vimos em parte algo do gênero quando Ruse e o juiz Overton fizeram as devidas adaptações e os ajustes necessários para, na disputa contra os criacionistas, mostrar que “ciência da criação” não é ciência, mas, na verdade, religião disfarçada de ciência. Obviamente, esse caso não poderá ser aplicado para os que se dispõem, por exemplo, a criticar psicanálise, marxismo ou parapsicologia. Logo: tanto os elementos teóricos devem ser diferentes, quanto os pontos extrateóricos que nem sempre são explicitados, mas que certamente estão amalgamados com as avaliações.

Por isso, entendemos que Resnik captura o espírito de uma abordagem alternativa e híbrida às fases “otimistas” e “pessimistas” ao PD. Assim, nas palavras do próprio, é urgente percebermos que:

Interesses e preocupações práticas devem desempenhar um papel importante na resposta à pergunta “O que é ciência?”, porque eles formam uma parte importante das características pragmáticas desse tipo de questão. Podemos compreender tais interesses e preocupações práticas em termos de consequências: sempre queremos promover alguns resultados (como saúde e justiça) e evitar outros (como doenças e injustiça). (RESNIK, 2000, p. 262, grifo nosso)

Considerações finais

Assim como mencionado na introdução, este artigo buscou essencialmente dois objetivos. O primeiro era de natureza expositiva, mas cujo resultado geraria uma nova chave de leitura para uma clássica discussão. Outros autores e caminhos alternativos poderiam ser trilhados.

Com efeito, igualmente, alguns (legitimamente) entendem que tal discussão em algum momento cairá em aporia. Por exemplo, Ziman ([1968] 1979) nos alerta que: querer responder algo dessa ordem é tão descabido quanto tentar definir “o sentido da vida” ou definir poesia. Não obstante, há algo incontornável nessa (ingrata) tarefa que continua se impondo para muitas gerações de teóricos da ciência. Portanto, ciente de que muito se aprendeu sobre tal problemática, mas também de que outras subquestões aguardam respostas, avaliamos que o esquema proposto ajuda a organizar as três grandes tendências nessa discussão, ao menos desde a segunda metade do século XX.

Em outras palavras, esperamos ter fornecido um mapa do debate. Com efeito, sabemos que todo mapa é sempre uma versão simplificada, mas útil para alguns propósitos e não para outros. Além disso, em relação à divisão em si, nela subentendemos uma distinção entre autores que equacionam o PD como primariamente teórico e cujos representantes foram Popper e Lakatos. E, paralelamente, no outro espectro, há quem equaciona o PD como incontornavelmente híbrido ou ambivalente e cujos representantes foram Thagard e Resnik.

Sobre os “pessimistas”, gostaríamos de tecer algumas considerações. A primeira é que: aceitamos quando eles criticam as pretensões e as respostas que, por mais interessantes e engenhosas que sejam, não “entregam” o que prometeram. Feyerabend, apesar de controvérsias e exageros retóricos que aqui não tratamos, é quem parece desafiar os demarcacionistas com maestria. Porém, ele mesmo reconheceu que precisamos ser comedidos no alcance das suas contribuições, sob pena de lhe atribuir algo que não defendeu. Ele mesmo ventilou que, em consonância com a nossa visão dual do PD, “minha principal razão para escrever o livro [Contra o Método] foi humanitária, não intelectual” (FEYERABEND, 2011, p. 14, colchetes nosso), pois, diferente do que se veicula por leigos ou filósofos chauvinistas, a ciência não é uma unidade nem uma coisa só, mas sim muitas. Em resumo, para Feyerabend, a lição é que não há “soluções gerais”. Isso, portanto, não é incompatível com a nossa proposta. Ao contrário, está no mesmo em espírito do que defendem os autores da terceira fase.

Todavia, Laudan é sim um autor que deve ser compreendido e respondido. A nosso ver, além de ser um tanto enviesado na sua reconstrução da história do PD, ele induz o leitor a ter uma perspectiva pessimista sobre todos os projetos demarcacionistas. Para Laudan, não houve progresso nessa discussão, porque: “[d]esde Platão até Popper, os filósofos têm procurado descobrir aquelas características epistêmicas que separam a ciência de outros tipos de crença e atividade. No entanto, parece bastante claro que a filosofia falhou em grande parte oferecer resultados relevantes.” (LAUDAN, 1983, p. 111, grifo nosso). Ora, mesmo que concedermos que esse ponto é plausível, Laudan não está mostrando um fato histórico, na verdade, só está fazendo uma intepretação e uma aposta indutiva de que, no futuro, nada de relevante será proposto.

Adicionalmente, entendemos que ele falha também ao recortar o PD como uma problemática unicamente epistemológica ou metodológica. Talvez porque não queria dar (mais) espaço para as visões relativistas da ciência (programa forte, por exemplo, algo que se sabe ele combateu) ou porque vislumbrava que, a seu modo, o movimento anticiência iria ter nele um aliado. Seja como for, o fato é que ele circunscreveu o PD ao campo intelectual. Discordamos desse pressuposto (que ele parece extrair dos projetos dos demarcacionistas tradicionais).

Nessa discussão, sobre os limites, as fronteiras e o caráter especial da ciência frente a outros empreendimentos, não há como se reivindicar neutralidade plena ou purismo teórico. A título de ilustração, não é novidade para ninguém que, “suplementando” os raciocínios metodológico e filosófico, Popper levantara restrições contra a psicanálise e o marxismo; Aristóteles tinha suas diferenças com os hipocráticos; os positivistas lógicos igualmente contra o discurso metafísico heideggerianos, etc.

Assim sendo, é salutar admitir que o embate será travado em dois fronts, um teórico e outro sociopolítico. Contudo, a nosso ver, dois tipos de erros precisam ser afastados na medida do possível: (i) nenhum teórico da demarcação pode propor critérios ou definições de “ciência”, “pseudociência” ou “não-ciência” como uma racionalização de preconceitos, ideologias ou antipatias teóricas; (ii) não se deve incorrer em reducionismo, isto é, afirmar que todo esse debate sobre demarcação é somente sobre “poder político”, “disputas econômicas”, “capital simbólico”, “prestígio social”, etc. Certamente tais dimensões podem (devem) ter lugar numa visão crítica da relação entre ciência, sociedade e cultura, mas isso por si só não esvazia o debate epistêmico, metodológico e cognitivo.

Ademais, é prudente ter em conta a seguinte lição: algumas teorias aceitas e hoje vistas como legítimas outrora foram “hereges”, ou seja, nenhum demarcacionista (mesmo os otimistas), ainda que crítico e rigoroso, deseja inviabilizar o aparecimento de teorias, hipóteses ou especulações arrojadas, inovadoras e heterodoxas. É salutar e frutífero para todos os campos das ciências o fomento e o abrigo de posições fora do convencional. Do contrário, na busca – às vezes legítima e necessária – por excluir e combater práticas pseudocientíficas ou duvidosas, interdita-se a criatividade e a inovação.

Por fim, defendemos que a terceira concepção aqui esboçada é uma alternativa comparativamente melhor do que as demais. Não porque nela há algo de acabado ou incontroverso, mas porque essa rota aponta para uma direção que é compatível com o bom debate cognitivo e, ao mesmo tempo, não teme (ou nega) que existe interface com valores não-cognitivos, interesses privados e questões políticas. Por mais arriscado que esse caminho represente, não vislumbramos muitas opções. Insistir num purismo racionalista, idealizado e desenraizado historicamente é algo que ficou para trás.

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Notas

3 Há variações nos termos usados por cada um dos autores aqui e, em geral, na literatura sobre demarcação. Há quem prefira contraposições entre “ciência” e “não-ciência” como primária; outros entre “ciência” e “pseudociência”; outros “ciência normal” e “ciência lixo”, outros ainda introduzem termos cognatos, porém sempre preservando o caráter pejorativo de ao menos uma das categorias. Tentar uniformizar tal terminologia não é tão urgente. Portanto, nas abordagens aqui tratadas, as escolhas ficaram implícitas no encaminhamento de cada autor.

4 Contudo, não se trata de defender que os autores demarcacionistas tradicionais (da primeira seção deste artigo) não soubessem disso, ocorre que eles tomam tais aspectos como algo colateral e secundário. Discordamos dessa postura na conclusão.

5 Não obstante, ressalta-se que Popper não inventou essa problemática, no máximo, cunhou a expressão e delineou o debate mais atual. Versões dessa questão já apareceram, mutatis mutandis, na antiguidade e na modernidade. Cf. Hoyningen-Huene (2013), Laudan (1983) e Losee (2001).

6 Ver, por exemplo, os pesquisadores interessados em dar uma resposta concreta e operacional ao contexto educacional sobre a “natureza da ciência” (sigla em inglês NOC); Cf. Bejarano e Nelson (2019).

7 Tais como distinguir às dimensões lógica, psicológica, metodológica ou pragmáticas do problema da indução e da demarcação que ele entende estarem ligados. Cf. Popper (1975, pp. 13-40).

8 Tanto Carnap quanto Hempel desenvolveram versões mais sofisticadas do que a posição verificacionista, de modo paralelo, ambos avançaram num programa puramente lógico que, ao mesmo tempo, fixavam critérios para que possamos avaliar se uma hipótese é confirmada por um conjunto de evidências ou não. Uma investida mais pormenorizada neste debate extrapola o escopo deste artigo. Cf. Abrantes (2020).

9 Há muitos elementos intermediários nos quais não adentraremos: a discussão sobre enunciados protocolares, a discussão sobre os “termos teóricos”, o reducionismo, a busca por uma linguagem comum, etc. À luz de alguns revisionismos, sabe-se que é um erro atribuir uma visão monolítica aos membros do Círculo; havia divergências e diferenças internas que desmistificam quaisquer generalizações simplistas. Todavia, tais retificações não prejudicam a lógica desta exposição. Cf. Creath (2017) para uma visão precisa.

10 Como substituto aos conceitos de “confirmação”, “verificação” e equivalentes, o racionalista crítico oferece a “corroboração”. Por corroboração, entende-se o “laudo dos resultados de teste”, isto é, seu caráter é eminentemente descritivo. Mais em Popper (2002, cap. 10).

11 Na esteira do que Lakatos (1979, p. 110) chamou de “crise na estrutura dos valores intelectuais” – o que significa que o conhecimento científico não é mais sinônimo de algo provado ou demonstrado – frente a esse fato novo que se consolidou na segunda metade do século XIX, ao socorro da ciência os “remédios” do século XX foram: neopositivismo, sociologias do conhecimento (Ziman, 1979) e racionalistas críticos. Estes últimos, Lakatos subdivide em: ingênuos, isto é, cuja crença é a de que há refutação conclusiva e natural; falseacionistas metodológicos que são convencionalistas, ou seja, sabem que o falseamento depende de decisões metodológicas ou convenções, logo, não é algo “natural”, mas sim dependente de regras razoáveis e plausíveis; por fim, existem os falseacionistas sofisticados, grosso modo, o que representa a articulação mais forte de Popper (já apresentada) cuja compreensão é que: tanto os falseamentos quanto as corroborações dependem de contexto histórico específico e de uma sucessão de teorias, cada uma buscando maior conteúdo empírico do que suas antecessoras. Ou seja, o falseamento ou a corroboração é sempre comparativa.

12 Em função de ter nascido e crescido numa Hungria atravessada por conflitos sociais e políticos, encontrou sua identidade político-teórica na tradição da esquerda marxista ocidental, algo que só mudou pouco tempo antes de ir para Inglaterra em 1956. Graças às posições que o seu país tomou na Primeira Guerra e na Segunda, não experimentou momentos tranquilos por décadas. Depois da Segunda Guerra, a Hungria se tornou zona de influência da URSS formando o chamado bloco Oriental na Guerra Fria. Por um tempo, Lakatos foi aliado tático (e secreto) dos comunistas-stalinistas que gradualmente se infiltravam nas instituições húngaras. No entanto, seu alinhamento partidário/ideológico estremeceu alguns anos depois. Em especial, devido à acusação de comportamento “antipartidário” (revisionismo) o que acarretou em sua prisão, em 1950, depois de ter ido a Moscou. Mais em Musgrave e Pigden (2021).

13 Quem relata em detalhes o quanto essas figuras foram antagônicas é Edmonds e Eidinow (2010), quando escreveram sobre o famigerado encontro intempestivo de Popper e Wittgenstein.

14 O anarquismo epistemológico não se confunde com o anarquismo político ao menos numa primeira fase do pensamento feyerabendiano. Por sua vez, num segundo momento, especialmente depois da publicação de Ciência em uma sociedade livre (2011b), o autor avança considerações de amplo alcance e que dizem respeito à relação da ciência com a sociedade. Mais concretamente – no espírito do anarquismo político e de uma clara posição relativista –, Feyerabend avança argumentos contra o poder e a pretensa superioridade (autoridade) da ciência (ocidental) sobre outras culturas, formas de saber e instituições. A seu ver, infelizmente, as instituições científicas com o espírito libertador que, entre outras coisas, “bateram de frente” com a Igreja na época de Galileu, agora, cada vez mais, tornam-se um braço do Estado. E, juntos, Estado e Ciência buscam o controle e domínio de tudo aquilo que julgarem: “obscuro”, “pré-moderno”, “não-científico”, “mágico”, etc. Dito de outro modo, nesta perspectiva, a ciência hegemônica deixou de respeitar e reconhecer outras formas de vidas e tampouco valorizou o intercâmbio com outras formas de saber. Esse Feyerabend relativista/anarquista defendeu que: todas as tradições têm direitos iguais e devem ter igual acesso aos espaços sociais (FEYERABEND, 2011b, p. 14). Todavia, algo pouco mencionado pelos críticos é que Feyerabend, tempos depois, recuou ou, no mínimo, suavizou essa perspectiva relativista. E, então, defendeu que nem precisamos ser idólatras do “racionalismo ocidental”, nem se precisa aceitar a alcunha do “‘relativismo, [que] como muito termos filosóficos’ é ambíguo e, conquanto confesse ser um fervor relativista em algum sentido, certamente não sou em outros. Além do mais, mudei de opinião” (FEYERABEND, [1991] 2012, p. 92).

15 Paradigma, para Kuhn, é definido em dois sentidos principais. Primeiro, enquanto exemplar compartilhado por um grupo de cientistas no interior de uma disciplina ou área (KUHN, 2011, p. 234). Segundo, enquanto matriz disciplinar ou “constelação de compromissos” (metodológico, técnicos, matemáticos, ontológicos, metafóricos, metafísicos, valores, epistêmicos) de uma disciplina científica madura (KUHN, 2011, pp. 228-235). Ao passo que uma tradição de pesquisa, em resumo, para Laudan, é uma entidade semelhante à de paradigma, porém diferem nos seguintes pontos: (i) uma disciplina poderá ter mais de uma tradição e todas podem ter bons resultados; (ii) não há uma identidade clara e permanente do que é a tradição de pesquisa, ou seja, não haveria, por exemplo, um “núcleo duro”. Assim, Laudan define (de modo operacional) tradição como: “um conjunto de suposições acerca das entidades e dos processos de uma área de estudo e dos métodos adequados a serem utilizados para investigar os problemas e construir as teorias dessa área do saber” (LAUDAN, 2011, p. 115).

Notas de autor

2 Doutorando(a) Em Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis – SC, Brasil. Bolsista do(a): Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil.


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