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Restaurar a diferença na sensibilidade: Deleuze crítico de Kant

To restore the difference in the sensibility: Kant’s critical Deleuze

Leandro Lelis Matos 2
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Restaurar a diferença na sensibilidade: Deleuze crítico de Kant

Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 2, pp. 168-186, 2022

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepción: 30 Marzo 2022

Aprobación: 31 Mayo 2022

Resumo: A partir da obra Diferença e repetição, pretendo discutir em que medida a proposta de Deleuze de restaurar a diferença na sensibilidade, evitando que a diferença seja confundida com o diverso, tal como propôs Kant, a fim de retirar a diferença da submissão à representação no âmbito da sensibilidade. Isso configura uma nova perspectiva para pensar a questão da diferença na sensibilidade reformulando noções do pensamento transcendental e da ontologia, por meio de uma aliança inusitada entre a ciência e a filosofia. Para tanto, os objetivos a serem cumpridos serão: I) expor a crítica de Deleuze à filosofia transcendental de Kant, no que tange à diferença como o diverso na sensibilidade e questionar o próprio conceito de transcendental como condição para a experiência; II) argumentar a saída de Deleuze para o problema da representação da diferença na sensibilidade a partir da noção de ser do sensível; III) explorar a apropriação de Deleuze do conceito de individuação de Gilbert Simondon; IV) exprimir porque as noções de vontade de potência e de eterno retorno, da filosofia de Nietzsche, contribuem, juntamente com a individuação, para compor o conceito de diferença em resposta aos limites do transcendentalismo.

Palavras-chave: Diferença, Sensibilidade, Transcendental, Deleuze, Kant.

Abstract: From the book Difference and Repetition, I intend to discuss the extent to which Deleuze's proposal to restore difference in sensibility, preventing difference from being confused with the diverse, as proposed by Kant, in order to remove difference from submission to representation in the ambit of sensibility. This sets up a new perspective to think about the issue of difference in sensitivity, reformulating notions of transcendental thinking and ontology, through an unusual alliance between science and philosophy. Therefore, the proposed objectives are: I) expose Deleuze's critique of Kant's transcendental philosophy, regarding difference as the diverse in sensibility and question the very concept of transcendental as a condition for experience; II) to argue Deleuze's way out of the problem of the representation of difference in sensitivity from the notion of being of the sensible; III) explore Deleuze's appropriation of Gilbert Simondon's concept of individuation: IV) to express why the notions of will to power and eternal return, from Nietzsche's philosophy, contribute, together with individuation, to compose the concept of difference in response to the limits of transcendentalism.

Keywords: Difference, Sensibility, Transcendental, Deleuze, Kant.

Introdução

Incontáveis são as referências ao modo pelo qual Deleuze confronta a filosofia de Kant tomando-a como aliada e inimiga, de acordo com as ferramentas conceituais que o pensador alemão dispõe. Kant ofereceu a Deleuze uma prodigiosa reversão do tempo, ao introduzi-lo no sujeito, rachando o Eu e o eu. Um tempo puro que fez do eu “um outro”, mas tornou-se preciso se afastar da letra kantiana para liberar a diferença da representação na superfície, algo que se concretizou quando a diferença de intensidade foi posta como o limite da sensibilidade, tornando-se não só condição para a experiência possível, mas para toda experiência real.

Diante dessa exigência do próprio Deleuze, pretendemos discutir em que medida a crítica do filósofo francês avança em relação ao problema da sensibilidade kantiana, e quais as principais alianças para liberar a diferença da redução ao semelhante na percepção sob a condição de ser captada por meio de uma assimilação do diverso enquanto matéria conceitual, o que configura uma “ilusão transcendental”. Para a diferença existir por si mesma e ser captada imediatamente na sensibilidade, para além da experiência, é preciso uma nova concepção de diferença enquanto diferença de intensidade, que demanda também uma perspectiva distinta da noção de transcendental, indo além de Kant e compondo alianças inusitadas com a ciência e a filosofia, que será destacada nos pensamentos de Simondon e de Nietzsche. A questão a saber é: como a diferença pode sair da submissão à representação no âmbito da sensibilidade? A orientação para responder à questão está no modo pelo qual Deleuze assume a sensibilidade não como uma faculdade receptiva por onde o sujeito se vê passivo ao ser afetado pelos fenômenos, mas como uma faculdade ativa. Vejamos como esse argumento procede.

A experiência da diferença: do extenso à profundidade intensiva

Para confrontar o seu “inimigo” do pensamento da representação, Deleuze recupera a distinção entre as noções kantianas de quantidade extensiva e de quantidade intensiva a fim de ultrapassar as condições de possibilidade da experiência, tal como Kant as instituiu. Antes de entrarmos no texto de Deleuze, fazem-se necessários alguns esclarecimentos3. Para Kant, o entendimento puro, não é somente uma faculdade capaz de fornecer regras, mas também uma fonte de princípios, que são válidos a priori, o que quer dizer que eles antecedem à experiência, a Crítica da Razão Pura dedica a eles, aos “princípios sintéticos do entendimento puro”, toda uma seção (a Terceira) da “Analítica dos princípios (doutrina transcendental do juízo)”. Como em vários outros momentos, a maneira de Kant apresentar esses princípios seguiu o fio condutor da tábua das categorias: da quantidade, da qualidade, da relação e da modalidade. Além disso, foi acrescentada mais uma divisão, que diz respeito ao “uso de sua síntese”4: aos dois primeiros grupos, isto é, aos que se referem à quantidade e à qualidade, “Axiomas da intuição” e “Antecipações da percepção” respectivamente, Kant chamou-os de “matemáticos”; e aos dois outros grupos, “Analogias da experiência” e “Postulados do pensamento empírico em geral”, referidos às categorias da relação e modalidade respectivamente, foram designados “dinâmicos”. Kant fez questão de distingui-los a fim de mostrar a diferença entre as evidências e as certezas: o primeiro grupo, dos princípios matemáticos, fornece uma certeza que é intuitiva, enquanto os princípios dinâmicos, apenas uma certeza discursiva (Cf. KANT, 2018, AA: 03-04, 201, p. 188).

Apesar de o foco da crítica de Deleuze, que é o mesmo dos pós-kantianos, em especial Maïmon, dirigir-se às “Antecipações da percepção”, passemos rapidamente pelos primeiros princípios matemáticos, os “Axiomas da intuição”, uma vez que eles também proporcionam uma evidência intuitiva e dizem respeito às quantidades do espaço e do tempo5. O primeiro princípio enunciado por Kant como um evidente axioma é: “todas as intuições são quantidades extensivas” (KANT, 2018, B 203 p. 189). A grandeza extensiva se refere à quantidade e define que a representação das partes possibilita a representação do todo. Desse modo, a multiplicidade é reduzida à apreensão contínua das partes e a unidade corresponde ao conjunto das partes do todo. Por exemplo, três metros de comprimento correspondem a 1m+1m+1m, ou mesmo a soma de vários centímetros, assim como uma hora é o resultado da soma de vários minutos, ou da soma de vários segundos etc. Os fenômenos são dotados de uma quantidade extensiva apreendida quando eles nos são dados pela experiência, tornando-se objetos para nossa percepção, ou, com outras palavras, somente a partir de uma magnitude (totalidade) dada a priori que somos capazes de perceber as partes que afetam a nossa sensibilidade sucessivamente.

Voltemo-nos agora ao princípio que é enunciado por Kant nas “Antecipações da percepção”: “em todos os fenômenos o real, que é objeto de sensação, tem uma grandeza intensiva, isto é um grau”. Assim como no caso dos “axiomas da intuição”, não tínhamos acesso a priori às quantidades extensivas, aqui, o acesso às qualidades do fenômeno também depende da experiência e são dados a posteriori. No entanto, Kant defende que temos acesso a priori a uma grandeza intensiva, “que é objeto da sensação”. Diferentemente da grandeza extensiva, a apreensão da grandeza intensiva é imediata, não necessitando da representação prévia das partes, por exemplo, um grau de calor: apreende-se 3ºc sem ser representado por 1ºc + 1ºc + 1ºc. A quantidade intensiva é aquela que “só é apreendida como unidade, e na qual a pluralidade só pode representada através da aproximação à negação = 0” (KANT, 2018, B 210, p. 193). Essa grandeza fugaz faz com que o real seja captado somente como uma unidade destituída de partes, dessa forma a multiplicidade é representada pela aproximação do grau zero na medida em que se supõe uma série de sensações intermediárias. A multiplicidade é assim representada levando em conta a inexistência de grandeza extensiva na sensação, porque não é representada objetivamente, e sim subjetivamente referindo-se à afecção. A quantidade da sensação é produzida a partir do grau zero equivalente à ausência da sensação, sendo, pois, próprio da sensação durar um instante e em seguida sumir gradativamente. Por consequência, o intervalo entre o tempo apreendido, o real, e o tempo que não foi preenchido, a negação, possui uma relação composta por inúmeras sensações intermediarias. Das grandezas em geral, só podemos conhecer a priori apenas uma qualidade: a continuidade. No que se refere a toda qualidade na realidade dos fenômenos “(...) só podemos conhecer a priori a sua quantidade intensiva, a saber, que possuem um grau; todo resto é deixado à experiência” (KANT, 2018, B 218, p. 198). Ou seja, algo situado fora dessa capacidade de apreensão pertence ao domínio da extensão.

Deleuze questiona as teses kantianas sob o ponto de vista da gênese transcendental6. Para ele, é como se Kant desse um salto do transcendental ao empírico e não levasse às últimas consequências o ponto de vista genético transcendental. Se as intuições são quantidades extensivas, e se for verdade que, enquanto representações de partes, elas antecipam a representação do todo, então, Kant terá dificuldade de manter a origem transcendental (a priori ou pura) do espaço e do tempo. Para manter a perspectiva transcendental, será necessário sustentar que é a representação do todo que funda as partes apresentadas como virtuais aptas a se atualizarem na intuição empírica. Segundo Deleuze, o “erro de Kant, no momento em que recusa ao espaço e ao tempo uma extensão lógica, é manter uma extensão geométrica e reservar a quantidade intensiva para uma matéria que preenche um extenso em determinado grau” (DELEUZE, 2018, p. 308a). Além disso, submetido ao ponto de vista da representação, Kant foi obrigado a definir a intuição como apreensão das partes. Talvez possamos formular da seguinte maneira a objeção deleuziana: ao invés de espacializar o tempo, como o fizera Kant, através da representação das partes/quantidades extensivas empíricas, Deleuze distingue o espaço extenso do spatium intensivo, como uma quantidade intensiva, uma pura intensidade, enquanto princípio transcendental. Então, espaço e tempo deixam de ser apenas “antecipações da percepção”, mas propriamente a origem ontológica da “extensio como esquemas”, do “extenso como grandeza extensiva”, das “qualitas como matéria ocupando o extenso” e do “quale como designação de objeto” (Cf. DELEUZE, 2018a, p. 308).

Deleuze orienta seu raciocínio por Herman Cohen, ao assumir a quantidade intensiva como princípio superior da possibilidade da experiência, à medida que essa quantidade é o princípio genético não só da experiência possível, mas da experiência real (Cf. MACHADO, 2009, p. 126). Mais do que uma exigência da gênese, a intensidade é o próprio princípio genético: “se é verdade que as condições da experiência possível se referem à extensão, o mesmo pode ser dito das condições da experiência real que, subjacentes, se confundem com a intensidade como tal” (DELEUZE, 2018a, p. 309).

Para que a sua proposta de diferença logre êxito, Deleuze tem de enfrentar ainda uma forte aliança forjada no final do século XIX entre a filosofia, a ciência e o senso comum. A ciência, em especial a termodinâmica, endossou certa posição do kantismo, submetendo a diferença ao diverso na sensibilidade7. O estudo das leis, que conduzem as relações de calor e as suas modificações em energia mecânica, procede criando medidas espaciais e temporais, que se inserem em um intervalo de tempo pequeno para a percepção, porém imenso para o mundo microscópio. Voltada às causas e aos efeitos das transformações dos tipos de energia, a termodinâmica abrigou a distinção fundamental para que o dado fosse compreendido como diverso, a razão se inclinasse à identidade e à igualização de tudo. No extenso, a energia já possui formas, e somente por elas é que percebemos a intensidade, portanto a condição para que a intensidade apareça e possa ser captada é a de que ela seja desenvolvida no extenso e revestida pelas qualidades que o preenchem. Deleuze se vale da definição da energia para afirmar que, na experiência, a intensidade (intensio) não está cindida e separada da extensidade (extensio), a qual remete ao extenso (extensum). Diante desse cenário, o filósofo considera a “quantidade intensiva como um conceito empírico e ainda mal fundado, misto impuro de uma qualidade sensível e do extenso, ou mesmo de uma qualidade física e de uma quantidade extensiva” (DELEUZE, 2018a, p. 298).

A filosofia e a ciência reforçaram a tendência, que já era própria a ela, de a diferença anular-se no extenso. Isso foi possível pela distribuição instituída pelo bom senso e pela hierarquia estabelecida pelo senso comum. O resultado desse encontro foi reduzir a diferença, uniformizar o diverso e igualizar o desigual. Sempre que há esse encontro, o bom senso se traveste de Filosofia ou de ciência, portanto, Deleuze nos adverte: esse encontro deve ser evitado. O bom senso procede distribuindo e estabelecendo um equilíbrio alcançado a partir das “fórmulas de sua banalidade ou de sua falsa profundidade” (DELEUZE, 2018a, p. 300). Mesmo havendo distribuições fora das regras do bom senso, como as distribuições da loucura, que não respeita a determinação dada às partes, o bom senso as supõe e em seguida corrige o aspecto louco da distribuição. A distribuição está de acordo com o bom senso quando ela já possui em si a capacidade de estabilizar o que há de excessivo naquilo que é distribuído. “É apenas quando se supõe que a desigualdade das partes se anula com o tempo e no meio, que a repartição é efetivamente conforme ao bom-senso ou segue um sentido considerado bom” (DELEUZE, 2018a, p. 300). Sempre uniformizando, o bom senso torna as partes bem distribuídas sem negar as diferenças, pelo contrário, ele as afirma já domesticadas por valer-se da tendência de a diferença negar-se “nas condições do extenso e na ordem do tempo” (DELEUZE, 2018a, p. 300)8.

O bom senso é uma antevisão, enquanto o senso comum é um processo cognitivo, que se desdobra em duas versões, uma subjetiva e outra objetiva. A subjetiva corresponde à “identidade de um Eu como unidade e fundamento para todas as faculdades”; já a objetiva, supõe uma identidade do objeto qualquer, ao qual se julga que todas as faculdades se reportem” (DELEUZE, 2018a, p. 302). Essas duas definições são estáticas e o senso comum precisa ultrapassá-las em direção a uma dinamicidade na qual o bom senso já se encontra. O processo se dá a partir da percepção de que, se não somos um Eu universal, não há um objeto universal posto diante de nós, já que os objetos e os Eus são repartidos em campos de individuação. Na ultrapassagem em direção ao bom senso, o objeto qualquer passa a ser determinado de maneira dinâmica e o eu é individualizado encontrando um lugar aqui e ali de acordo com o conjunto de objetos. Por sua vez, o bom senso assegura uma regra de partilha que anula a diferença nos objetos, pois eles tendem a igualarem-se, assim como os distintos Eus passam a uniformizar-se. Destarte, o bom senso e o senso comum constituem as regras ortodoxas de distribuição: “regra de partilha universal e regra universalmente partilhada” (DELEUZE, 2018a, p. 300).

Uma diferença anulada é compreendida como explicada, e explicar significa identificar, isto é, desabilitar a desigualdade da diferença. A diferença só pode ser anulada na qualidade que recobre o extenso, mas não existe qualidade por si nem pelo extenso: “A intensidade se explica, desenvolve-se numa extensão (extensio). É essa extensão que a refere ao extenso (extensum), no que ela aparece fora de si, recoberta pela qualidade” (DELEUZE, 2018a, p. 304). A partir da explicação da diferença, um sistema extensivo é criado resultando no “duplo aspecto da qualidade como signo” (DELEUZE, 2018a, p. 304), a saber: remeter à diferença em si mesma, em seu caráter de diferença de intensidade, e tender a anular, ou seja, desenvolver a diferença na extensão. A diferença em si mesma é implicada. A implicação corresponde ao estado intensivo de séries no qual há a comunicação por meio de diferenças, e não de identificação. Essa comunicação intensiva irá compor um “campo de individuação”. O campo de individuação é onde as relações de diferença de intensidade se distribuem anteriormente à composição de uma forma, por exemplo, um campo energético. Deleuze reforça o caráter pré-individual que é composto por relações de intensidades, quando as intensidades são desenvolvidas no extenso, elas tendem a se anularem. Então, é próprio da diferença inclinar-se para essa anulação, mas Deleuze chama a atenção para o fato de que a diferença precisa ser pensada em si mesma, implicada, e não apenas em seu aspecto explicado, desenvolvido, como fez o pensamento da representação.

Quando o signo que remete a diferença explicada, temos um “nome” que designa um efeito, por exemplo, “efeito Kelvin”, “efeito Seebeck”. Em um campo energético, quando um ponto possui um potencial elétrico distinto de outro ponto, temos a diferença de potencial. Essa diferença é produzida no intervalo da junção de dois condutores de materiais distintos e com temperaturas também distintas, daí temos o efeito Seebeck. Nesse sentido, “Seebeck” não diz respeito ao físico estoniano Thomas Johan Seebeck (1770-1831), mas ao efeito termoelétrico que ele descobriu em 1821, portanto o nome é um símbolo que corresponde ao campo de individuação. Desse raciocínio vindo da ciência, Deleuze extrai a ideia de que o signo simboliza o campo de individuação diferencial do qual surge o efeito descrito. O campo é um campo diferencial, logo não pode ser anulado pela simbolização do efeito. Dessa maneira, o que importa é como a “diferença de potencial” antecede e constitui um efeito, e não uma pessoa ou um sujeito. O que o nome próprio está designando é um efeito, algo que acontece entre dois. Se a sinalização confere à causalidade uma origem e uma direção, essa direção não é absolutamente fiel à origem, porque o efeito só faz sentido, por assim dizer, se ele “fizer efeito” do ponto de vista da percepção. O efeito que arremete a nossa percepção contém o esvaecimento da diferença apenas de modo ilusório, devido à nossa incapacidade perceptiva de captarmos o campo diferencial onde o efeito se origina. No extenso, percebemos a altura, a largura e a profundidade compondo uma relação de identificação, mas a profundidade homogênea não é a “verdadeira profundidade”, o fundo homogêneo é uma “projeção do profundo” e somente o profundo “pode ser dito Ungrund ou sem-fundo” (DELEUZE, 2018a, p. 306). Assim, a busca por uma “profundidade real” objetiva alcançar “diferenças bem mais volumosas, afirmadas e distribuídas”, irredutíveis ao negativo e ao semelhante.

O extenso só apreende a diferença desenvolvida, não a diferença em si, portanto a diferença não se anula em si mesma no extenso, fazendo com que a intensidade seja insensível do ponto de vista do empírico. A intensidade antecede o extenso e a qualidade, daí sua característica pré-extensiva. O extenso é a grandeza extensiva (extensum), ele é o parâmetro pelo qual a extensão (extensio) é medida. Deleuze acompanha o extenso até encontrar a sua origem na profundidade e questionar a sua legitimidade. A origem só é válida se a profundidade alcançar uma definição própria, independente do extenso, o que não condiz com a relação do extenso e sua origem. Diante dessa insuficiência da origem, a noção de espaço é redefinida ultrapassando a extensão e o concebendo em termos de intensidade. O espaço deixa de ser uma quantidade (grandeza) extensiva, para ser uma quantidade intensiva, denominada “puro spatium”. Trata-se de um spatium intensivo ao qual Deleuze reporta à característica ontológica da sensação, buscando alcançar o seu ser.

Diferença de intensidade: o ser do sensível

Para Deleuze, o problema da teoria kantiana do transcendental foi manter-se na representação, separando a forma da matéria sensível. Isso a impediu de determinar as condições da experiência real, limitando-se à determinação das condições da experiência possível (espaço e tempo), que são demasiado gerais em relação ao real. Por isso, a estética kantiana foi cindida entre uma teoria que compreende aquilo que se pode reter do real, estando de acordo com a experiência possível (teoria da sensibilidade), e uma teoria que capta a “realidade do real na medida em que ela se reflete em outra parte” (DELEUZE, 2018a, p. 98) (teoria do belo). A solução apontada por Deleuze para equacionar a questão do dilaceramento da estética é a de uma nova determinação da experiência real que não ultrapasse o condicionado e se distinga das categorias. “Não devemos então nos elevar às condições como às condições de toda experiência possível, mas como às condições da experiência real” (DELEUZE, 2006, p. 52. Grifo meu).

Para Deleuze, Bergson já havia dado uma solução ao problema, ao afirmar que as condições são apreendidas pela intuição, e além disso, que não há distinção entre o seu objeto e o conceito que elas produzem. A partir dessa indistinção proposta por Bergson, Deleuze enfrenta o dualismo kantiano que distribui a razão, de um lado, destinando-a ao gênero ou à categoria, e de outro, relega o indivíduo ao domínio da contingência (espaço). Pelo contrário, Deleuze defende que a razão alcança o indivíduo e que o conceito chega até à coisa, com outras palavras: “que a compreensão chegue até o ‘isto’” (DELEUZE, 2006, p. 52). Ora, o que fez Kant? Inventou o transcendental, submeteu a doxa à representação e opôs a matéria passiva e forma ativa. Segundo a rígida dualidade kantiana, as relações entre o sensível e o pensamento se dão por meio da oposição entre matéria e forma e a faculdade da sensibilidade não é capaz de representar (Cf. SAUVAGNARGUES, 2009, p. 301). Daí resulta o paradoxo de uma estética fundada sobre aquilo que não pode ser representado sensivelmente. Para vencer esse paradoxo, Deleuze propõe que, ao invés de tratar das condições da experiência possível, a estética se volte para as condições da experiência real.

A representação uniformiza tudo de acordo com o bom senso e o senso comum, mantendo a diferença subordinada à semelhança. A semelhança é distribuída de tal maneira na representação, que se torna dispensável assumi-la no interior da relação entre cópia e modelo, passando a ser determinada como “semelhança do sensível (diverso) consigo mesmo, de modo que a identidade do conceito lhe seja aplicável e que essa identidade, por sua vez, dela receba uma possibilidade de especificação” (DELEUZE, 2018a, p. 354). A saída encontrada por Deleuze é restaurar a diferença na intensidade e liberá-la da subordinação ao semelhante na percepção, que a condicionava a ser sentida apenas sob a condição de “uma assimilação do diverso tomado como matéria do conceito idêntico” (DELEUZE, 2018a, p. 354). Assumindo a Diferença como o Desigual, Deleuze subverte a Estética Transcendental, tal como ela se apresentara na Crítica da Razão Pura, ou seja, enquanto uma Teoria dos Elementos (espaço e tempo). Na ousada reformulação deleuziana, as intuições (representações da sensibilidade) do tempo e do espaço não aparecem mais como condições do fenômeno. Elas são substituídas pela diferença de intensidade, entendida como a “razão do sensível”. “A razão do sensível, a condição daquilo que aparece não é o espaço e o tempo, mas o Desigual em si, a disparação tal como é compreendida e determinada na diferença de intensidade, na intensidade como diferença” (DELEUZE, 2018a, p. 297).

O que está em jogo nessa tese é, em primeiro lugar, a distinção entre diferença e diverso. A diferença diz respeito àquilo pelo qual o dado é dado, ou seja, a condição do dado enquanto diverso. Para Deleuze, o mundo é o resultado de “cálculos de Deus”, mas esses cálculos não são assertivos. O mundo é pensado em termos de resto, de fração, em vez de igualdade e simetria, sendo a desigualdade o seu princípio constitutivo. Dessa maneira, os fenômenos são condicionados por uma desigualdade em si e encontram a sua razão na diferença de intensidade, uma expressão tautológica, pois toda intensidade é diferencial. A intensidade é o que distingue a diferença do diverso, já que a diferença intensiva não trata da desigualdade como a condição de todo fenômeno. Essa proposta restitui a diferença à intensidade, para liberá-la da condição do mesmo no extenso.

Destarte, a intensidade constitui as condições da experiência real e é a “forma da diferença como razão do sensível” (DELEUZE, 2018a, p. 354), logo é pela forma da diferença que tudo aparece9. A diferença é a diferença de intensidade, nunca o diverso. O diverso é dado na extensão, enquanto a diferença possui uma dimensão profunda e diz respeito àquilo pelo qual o dado é dado, ou seja, a condição do dado enquanto diverso (DELEUZE, 2018a, p. 354). Deleuze insere a diferença em uma instância anterior ao fenômeno, pois o fenômeno é extenso, enquanto a diferença é intensiva. Portanto, não se trata de uma diferença entre fenômenos, isso seria a diversidade, e sim da desigualdade como a condição de todo fenômeno. Nessa outra configuração, a estética diz respeito à determinação da matéria intensiva da existência real, empírica, e não mais relativa às formas a priori da sensibilidade, como condições da experiência possível.

Há sínteses que são próprias da sensação e se realizam diante de algo que só pode ser captado por essa faculdade. Trata-se da intensidade: “o insensível e, ao mesmo tempo, aquilo que só pode ser sentido” (DELEUZE, 2018a, p. 307). A intensidade enquanto insensível significa a sua impossibilidade de a captarmos em si pelas qualidades do extenso. O problema não é que a intensidade esteja implicada no extenso, e sim que seja avaliada pelas qualidades dos extensos que a recobrem. O extenso estabelece medidas de grandeza para avaliar os objetos, enquanto o spatium intensivo envolve em si distâncias e coordenadas, que se explicam no extenso. A avaliação no spatium procede por vetores, em vez de unidades de medida. Então, como é possível captar na dimensão do extenso a profundidade que está nela implicada? Captamos uma sensação por meio da “potência de degradação” de uma intensidade e assim podemos ter a percepção da profundidade.

A implicação possui uma distinção de ordem. Quando uma intensidade está envolvida nas qualidades e no extenso que a explicam, temos uma implicação secundária. Quando a intensidade está implicada em si mesma, “ao mesmo tempo envolvida e envolvente”, ela assume o estado de implicação primária (DELEUZE, 2018a, p. 320). Nesse sentido, o estado de energia acompanha a ordem das implicações. Denomina-se “degradação secundária” a energia em seu estado mais baixo, como no caso da diferença de intensidade anulada, cuja consequência é o “mais elevado chegando ao mais baixo”. Ao assegurar a degradação secundária, como faz a representação infinita que assevera a diferença em segundo plano, se dá uma “potência de degradação primária”, em que o mais elevado se refere ao mais baixo afirmando-o (DELEUZE, 2018a, p. 320). Daí a ilusão, ou seja, confundir os dois estados, interno e externo. A questão de Deleuze nesse ponto é como evitar a ilusão a partir do “exercício empírico da sensibilidade”, o que não é nada fácil, pois o ponto de vista empírico acessa apenas a intensidade recoberta pela qualidade e no extenso10.

A intensidade é aquilo que só pode ser sentido a partir do seu próprio ponto de vista. Reivindicando a capacidade de ser sentida em si, apesar de recoberta pelas qualidades e repartida no extenso, a intensidade só pode ser sentida pela sensibilidade, porque ela força esta faculdade ao seu limite próprio, ao máximo de potência que pode alcançar. Quando nos deparamos com o limite, estamos diante da experiência da diferença, e nessa situação a diferença deixa de ser apenas superficial. Numa oposição de forças e limitação de formas há um “elemento real e mais profundo” capaz de assumir-se como “multiplicidade informal e potencial” (DELEUZE, 2018a, p. 79). A limitação corresponde a uma “simples potência de primeira dimensão” e a oposição representa uma potência de segunda dimensão, como no caso das coisas reduzidas a um único espaço plano por desconsiderarem “a profundidade original, intensiva, que é a matriz do espaço inteiro e a primeira afirmação da diferença” (DELEUZE, 2018a, p. 86). A real profundidade da diferença se dá, portanto, em primeiro plano, daí a crítica de Deleuze de que as oposições e limitações do espaço e do tempo se reduzam à superfície. Então, a intensidade só pode ser sentida sob o ângulo da sensação, e ao mesmo tempo é o insensível, do ponto de vista empírico11. A intensidade não compõe uma teoria pensada em termos de profundidade, altura e superfície, mas busca encontrar na superfície o que nela há de mais profundo. Em suma, não encontrar o ser e resgatá-lo da superfície, mas alcançar a profundidade enquanto superfície do ser.

Da intensidade à profundidade já se trava a mais estranha aliança, a do Ser consigo próprio na diferença, aliança que coloca cada faculdade diante de seu próprio limite e só deixa que as faculdades se comuniquem no extremo de suas respectivas solidões. No ser, a profundidade e a intensidade são o Mesmo – mas o mesmo que se diz da diferença. A profundidade é a intensidade do ser ou inversamente. Dessa profundidade intensiva, desse spatium, saem, ao mesmo tempo, a extensio e o extensum, a qualitas e o quale (DELEUZE, 2018a, p. 298).

A intensidade em si mesma é independente das qualidades que a envolvem e do extenso no qual ela se desenvolve, mas sem deles abrir mão. Diante da nova compreensão da intensidade, Deleuze escreve: “se é verdade que as condições da experiência possível se referem à extensão, o mesmo pode ser dito das condições da experiência real que, subjacentes, se confundem com a intensidade como tal” (DELEUZE, 2018a, p. 298). Destarte, a intensidade é a condição da experiência real, por ser ela a razão do sensível. Repetindo o que acabamos de afirmar, nessa configuração a partir da intensidade, a estética está relacionada à matéria intensiva da existência real, e não mais às formas a priori da sensibilidade, que constituíam a experiência possível, segundo Kant. Assumir a diferença de intensidade como a gênese ou condição da experiência real significa subverter completamente “as condições da experiência possível”, tal como Kant as elaborara na primeira parte da Crítica da Razão Pura, e com isso permitir a estética reconciliar-se consigo mesma.

Para Deleuze, somente um estudo que não perde de vista o transcendental será capaz de verificar como a intensidade se mantém implicada em si e envolve a diferença quando esta se espelha no extenso. Com a perspectiva da gênese transcendental, o ponto de vista do exercício empírico da sensibilidade é ultrapassado. Enquanto o transcendental, segundo Kant, capta a intensidade apenas quando se apresenta na qualidade e no extenso criando uma realidade ilusória, na qual a diferença é confundida com uma imagem refletida na superfície. A crítica de Deleuze à Estética Transcendental depende, portanto, de uma teoria da intensidade, a qual permitiu uma redefinição das condições de existência do sensível. Através da intensidade, ultrapassamos o uso comum das faculdades levando-as ao seu limite máximo, que é o seu ser.

A grande oposição entre a ortodoxia do pensamento, que exige um juiz de partes, e o paradoxo, sem juízo, é explicitada em um uso transcendente das faculdades ao nos convocar a sentir e a pensar a diferença, pois sentimos algo que vai contra as leis naturais e pensamos também algo que confronta as leis do pensamento12. Por isso, a diferença não é o dado, mas a condição pela qual o dado é dado, diferença de intensidade. A resposta para a questão “qual é o ser do sensível?” precisa corresponder à “existência paradoxal de ‘alguma coisa’ que não pode ser sentida (do ponto de vista do exercício empírico) e que, ao mesmo tempo, só pode ser sentida (do ponto de vista do exercício transcendente)” (DELEUZE, 2018a, p. 314). Com o ser do sensível, Deleuze alcança o domínio do transcendental afirmando a intensidade como o objeto da estética evidenciando, assim, a sua relação direta com o pensamento. O ser do sensível define a estética como um problema para o pensamento, uma vez que a intensidade não é apenas um domínio que lida com as antecipações da percepção, mas o limite da sensibilidade em seu “exercício transcendente”.

É a intensidade, é a diferença na intensidade que constitui o limite próprio da sensibilidade. Tem ela, portanto, o caráter paradoxal deste limite: ela é o insensível, o que não pode ser sentido, porque está sempre recoberta por uma qualidade que a aliena ou que a “contraria”, distribuída num extenso que a subverte e a anula. Mas, de uma outra maneira, ela é o que só pode ser sentido, aquilo que define o exercício transcendente da sensibilidade na medida em que ela faz sentir e, por isso, desperta a memória e força o pensamento. Apreender a intensidade, independentemente do extenso ou antes da qualidade nos quais ela se desenvolve, é o objeto de uma distorção dos sentidos. Uma pedagogia dos sentidos volta-se para este objetivo e integra o “transcendentalismo” (DELEUZE, 2018a, p. 315).

A Diferença enquanto intensidade articula a crítica do fundamento ontológico, ao assumir um novo princípio, passando ao fundamento transcendental, o qual também exige uma nova maneira de ser conceituado. Optamos por explorar como Deleuze confronta a ação do fundamento na ontologia e no transcendentalismo valendo-se de duas alianças: a primeira, com a teoria da individuação, de Simondon; a segunda, com a vontade de potência e com a concepção cosmológica do eterno retorno de Nietzsche, para instituir os novos princípios empírico e transcendental.

Pensar a diferença com Simondon: a teoria da individuação

Para elaborar a teoria da individuação13, Simondon parte de duas críticas à tradição. A primeira é o confronto das concepções de substancialismo, que assumiu o indivíduo como algo fundado em si mesmo. A segunda crítica é contra o hilemorfismo, por ter defendido que o indivíduo é gerado a partir da união entre matéria e forma. Os erros cometidos pela tradição foram, nomeadamente, o de partir do indivíduo já pronto, perdendo de vista a constituição da individualidade do ser, e o de assumir a individuação como algo coextensivo ao ser. Destaca Deleuze: “Faz-se dele todo o ser e o primeiro momento do ser fora do conceito” (DELEUZE, 2006, p. 117). No entanto, Simondon exime os antigos de uma crítica mais dura, pois eles não dispunham de meios e condições hábeis para elaborar uma teoria da individuação tal como ele exige. Aos antigos era dado somente o conhecimento do equilíbrio estável e da instabilidade, do movimento e do repouso. Como alternativa às teorias que se referiram ao ser como um indivíduo (não dividido), Simondon reintroduz o indivíduo no ser nos níveis da física, da biologia e da psicologia14. Invertendo a ordem da relação, o programa da teoria da individuação é “conhecer o indivíduo pela individuação muito mais do que a individuação a partir do indivíduo” (SIMONDON, 2020, p. 16).

Simondon engendra um princípio para investigar a gênese da individuação, por conseguinte, a gênese do indivíduo15. A condição do indivíduo é ser contemporâneo de sua individuação, bem como a individuação é contemporânea do seu princípio genético, em razão de o princípio não ser puramente reflexivo e pré-concebido. Abdicando da compreensão do ser em geral e do seu princípio, Deleuze observa que a individuação “deve ser situável, determinável em relação ao ser num movimento que nos levará a passar do pré-individual ao indivíduo” (DELEUZE, 2006, p. 117). Para Simondon, a definição do ser dentro dos limites da estabilidade excluiu o devir da sua constituição, pois o devir “corresponde ao mais baixo nível possível de energia potencial” (SIMONDON, 2020, p. 18). Quando as possibilidades de transformações cessam, as forças se esgotam e o sistema se consolida alcançando o equilíbrio. Dito de outra maneira, no equilíbrio metaestável, as intensidades não estão relacionadas, elas são intensidades puras. A metaestabilidade consiste na existência de duas escalas heterogêneas capazes de repartirem as potências em um estado pré-individual.

Superando as limitações impostas pela ontologia tradicional, Simondon recorreu a um sistema metaestável constituído pela disparação. A disparação diz respeito ao processo de atualização do ser que se faz a partir de uma diferença originária entre duas ordens de grandeza, como a diferença de potencial na energia. Essa noção compreende a condição para a individuação. Como afirma Sauvagnargues, a “assimetria resultante da diferença de energia potencial e que explica a metaestabilidade do sistema se torna a condição transcendental de toda individuação” (SAUVAGNARGUES, 2009, p. 245). A disparação define um sistema como metaestável, porque nesse nível as ordens de grandeza não promovem uma comunicação interativa. O que há, portanto, é uma “diferença fundamental”, onde as energias não estão ligadas. O caráter de diferença fundamental interessa a Deleuze, pois é a partir de uma síntese assimétrica que as individuações se produzem.

Deleuze se vale da disparação simondoniana e compõe a sua como disparidade para confrontar o espaço e o tempo como condição de aparição dos fenômenos. A sua pretensão é a de formular o tradicional princípio da razão suficiente enquanto diferença de intensidade redobrada ao infinito, valorizando a existência de realidades não interativas. Ao definir o sistema metaestável a partir da disparação, Deleuze eleva a diferença de intensidade ao estatuto de princípio transcendental, na medida em que a disparação é a condição de existência do ser. A noção de metaestabilidade de Simondon está próxima da “teoria das quantidades intensivas”, ao afirmar que uma quantidade intensiva é por si mesma diferença, que vai ao infinito. Ora, se o ser metaestável tem a disparidade como momento originário, e a individualidade seria um estado alcançado após a individuação, o problema é como o indivíduo surge de um estado pré-individual? Simondon enfrenta essa questão assumindo que a individuação é uma tentativa de resolver um “sistema objetivamente problemático” (DELEUZE, 2006, p. 119), em outras palavras, um sistema metaestável, e Deleuze se apropria da noção de “problema”, inserida por Simondon na gênese do indivíduo. Mesmo pertencendo ao “momento pré-individual”, o problemático em Simondon possui uma “objetividade” e se livra da classificação de “conceito subjetivo indeterminado”. A individuação passa a configurar o momento inédito do ser, o momento do “ser fasado, acoplado a si mesmo”16.

Reforçado pela diferença originária encontrada na teoria da individuação de Simondon, Deleuze enfrenta o kantismo, em especial confrontando a diferença de intensidade com a identidade da representação. Se a representação possui a identidade como elemento e o semelhante como medida, a filosofia da Diferença assume a diferença da diferença como seu elemento e o díspar como critério avaliativo, portanto Deleuze compõe a sua noção de intensidade recorrendo a uma aliança com Simondon e a energética. Precisar a diferença como intensiva significa assumir a intensidade, como já vimos, como “razão do sensível”, por outro lado, classificar intensidade como diferencial, trata-se de compreendê-la composta por uma diferença serial, exatamente como explicita esta noção de sistema diferencial: uma intensidade é “E – E’, em que E, remete a e – e’, e e remete a ℇ - ℇ’ etc.” (DELEUZE, 2018, p. 99). A intensidade é simbolizada por E-E’, mas cada elemento reporta-se a outro, pertencente a uma séria distinta. Isso explica porque a diferença de intensidade não só antecipa a aparição dos fenômenos, mas participa de sua própria constituição. O fenômeno reluz de um sistema composto por sinal-signo. O sinal diz respeito a um sistema constituído basicamente por duas séries heterogêneas capazes de se comunicar entre si; enquanto o signo corresponde ao que resplandece do sinal através da comunicação das séries divergentes, em outras palavras, o signo é o fenômeno. Isso implica no caráter composto, heterogêneo e serial dos fenômenos.

O sistema serial constituído por intensidades (sistema intensivo) permite Deleuze pensar a “teoria das quantidades intensivas” de Simondon em vizinhança com a energética de Rosny17, na qual a diferença é concebida em num sistema metaestável. O elo entre as duas concepções é a intensidade definida por ordens de grandezas distintas, escalas assimétricas de realidade, em outras palavras, “uma diferença fundamental, como um estado de dissimetria” (DELEUZE, 2006, p. 132). Ressaltando que toda individuação é intensiva, portanto é a condição para as partições, especificações e composições no sistema metaestável, a intensidade coabita um campo no qual se constitui um “meio de individuação”. Dessa maneira, a teoria da individuação oferece uma nova definição das condições de possibilidade dos indivíduos a partir da diferença de intensidade para indicar o processo de singularização.

A intensidade é o objeto próprio da sensibilidade e diferença da intensidade é condição de aparição de todos os fenômenos. A intensidade em si mesma é uma “quantidade implicada, envolvida, ‘embrionada’” (DELEUZE, 2018a, p. 315), ou seja, não desenvolvida no extenso. Se a intensidade está implicada em si, logo ela não é divisível nem indivisível, já que tais características são atribuídas às grandezas extensivas. Pode-se dividir sem alterar a natureza do que é dividido, mas no caso de uma temperatura, por exemplo, ao observarmos atentamente, percebemos que ela não é composta por temperaturas, e sim cada temperatura envolve uma “série de termos heterogêneos” (DELEUZE, 2018a, p. 316). A quantidade intensiva também se divide, mas muda a sua natureza, como na aceleração ou desaceleração de um movimento definido por partes intensivas podendo ser maiores ou menores. A intensidade não é divisível ou indivisível, pois divisibilidade ou indivisibilidade são qualidades de uma matéria que pode ser repartida. Distintamente das quantidades extensivas, as quantidades intensivas são definidas pela diferença, que não está envolvida, mas que é envolvente, e pelo desigual em si. Desigualdade, distância e diferença são, portanto, as características da profundidade enquanto spatium intensivo. Sob a perspectiva da intensidade enquanto princípio define-se a diferença e a distância: “chamamos diferença aquilo que é realmente implicante, envolvente; chamamos distância aquilo que está realmente implicado e envolvido” (DELEUZE, 2018a, p. 335). A diferença se mantém desigual em si mesma (implicada) sem ser desdobrada pela representação (explicada), cujas pretensões são a anulação da diferença, o desenvolvimento das distâncias transformando-as em comprimento, e igualização do desigual em si18.

A partir do spatium intensivo, a diferença não é mais pensada em relação à negação. Ver a diferença como negativo é uma ilusão, como já foi mencionado, é vê-la pela perspectiva do mais baixo, o que não passa de uma ofuscação da diferença pela “sombra dos ‘problemas’”, que é recoberta pelo extenso e pela qualidade que explicam a intensidade. Somente no extenso é que a diferença sustenta uma relação próxima do negativo, mostra-se a sua tendência de anulação pela qualidade, portanto, a saída desses riscos não se dá reivindicando-se sínteses extensivas. Na verdade, é no mergulho na profundidade intensiva, na qual habitam as “disparidades constituintes, distâncias envolvidas”, que Deleuze afirma podermos encontrar o princípio da ilusão do negativo, que é mesmo tempo “o princípio de denúncia dessa ilusão” (DELEUZE, 2018a, p. 314). De acordo com a profundidade original, a gênese ilusória do negativo é exposta e a profundidade intensiva comporta tanto a origem da ilusão do negativo, quanto o que nela está em jogo. À vista disso, toda oposição se dá na extensão, ou seja, toda oposição é plana19.

Pensar a diferença com Nietzsche: vontade de potência e eterno retorno

Antes de entrarmos na contribuição nietzscheana para o pensamento da Diferença, recapitulemos alguns pontos conquistados nesse percurso da definição da intensidade. Talvez, ainda não tenha ficado totalmente claro que, para Deleuze, a sensibilidade abriga dois princípios distintos: um transcendental e outro, empírico. O princípio transcendental da sensibilidade é a Diferença, enquanto os princípios empíricos são a qualidade e o extenso, havendo entre esses dois princípios uma diferença de nível. O ponto de partida é a definição de energia em geral, a qual Deleuze apresenta duas vias. A primeira, associada ao Idêntico, considera os “fatores extensivos e qualificados no extenso”, aqui, a impressão é de estabilidade. A segunda maneira assume a energia em geral como “intensidade pura”, implicada na profundidade sem que nela haja qualquer qualidade ou “extenso”, donde a definição de “diferença de intensidade”. Para abrigar uma energia pura é preciso um espaço intensivo além do princípio empírico. A energia em geral é o princípio da energia em particular, definida como quantidade intensiva. Nas palavras de Deleuze, trata-se da diferença em si, do spatium, que abriga todas as transformações. “Neste sentido, a energia, a quantidade intensiva, é um princípio transcendental e não um conceito científico” (DELEUZE, 2018, p. 320). No spatium a energia é pura, diferentemente do espaço empírico, portanto há uma distinção entre o princípio empírico e o princípio transcendental.

O domínio regido pelo princípio empírico é definido como um sistema parcial criado pela diferença de intensidade. Ele obedece às leis da natureza dadas pela própria empiria. A função do princípio empírico é distributiva, pois o domínio organiza os conceitos de energia, o que o distingue de uma função criadora, já que não lida com a energia em geral. A energia em geral não está absolutamente separada do domínio empírico, mas é inacessível em seu ser pelo princípio empírico. No domínio empírico, a energia é desenvolvida com a diferença desenrolada. O princípio empírico atua através das leis da natureza governando a superfície do mundo e tende a igualar, desenvolver, e reger um domínio superficial. Porém, sob o princípio empírico brame o princípio transcendental. O princípio transcendental delimita o domínio sobre o qual o princípio empírico vai exercer sua legislação. Nesse sentido, o princípio transcendental é a diferença de intensidade. Reiterando, a diferença de intensidade é a criadora do domínio no qual ela se anula sob as leis do princípio empírico, que nada mais são do que as leis da natureza. No entanto, até quando está fora de si, a diferença se mantém em si mesma. Enquanto o espaço extensivo responde às leis naturais do princípio empírico, o spatium está de acordo com as leis do eterno retorno. Aqui aportamos, finalmente, no eterno retorno sob o seu aspecto cosmológico.

A interpretação que Deleuze faz da noção de Eterno Retorno (ER) de Nietzsche é mais um momento de afirmação da Filosofia da Diferença. Defendendo Nietzsche da interpretação usual que o assimilou à maneira pela qual os Antigos costumavam compreender o eterno retorno como retorno do idêntico, como lei da “natureza”, Deleuze une os dois conceitos: vontade de potência e eterno retorno e propõe uma interpretação inédita do ER que o liga antes ao devir e à diferença do que à identidade. Na verdade, argumenta Deleuze, os Antigos acreditavam somente no caráter parcial do eterno retorno, ou seja, apenas no retorno de “ciclos parciais e de ciclos de semelhança. Era uma generalidade, em suma, uma lei da natureza”, que compunha também os ciclos astronômicos. O retorno se fundava na “transformação cíclica dos elementos qualitativos uns nos outros (eterno retorno físico)”, ou no “movimento circular dos corpos celestes incorruptíveis (eterno retorno astronômico)” (DELEUZE, 2018a, p. 320). Nas definições que ainda estão submetidas à identidade e que se baseiam na diferença extensiva ou qualitativa, as transformações são aparentes, pois a identidade supõe uma semelhança generalizada no sentido de que o processo e a posição dos elementos permanecem inalterados, enquanto os fenômenos regidos por essa lei apresentam somente “semelhanças grosseiras”. “O ‘mesmo’ processo qualitativo ou a ‘mesma’ posição respectiva dos astros só determinam semelhanças grosseiras nos fenômenos que elas regem” (DELEUZE, 2018a, p. 321). O que faltava a essa compreensão antiga do eterno retorno era justamente a sua potência de transformação e o seu caráter de desigualdade.

Deleuze compreende que é necessária uma terceira maneira de conceber o ER e vai extrair essa concepção especialmente dos capítulos “Da visão e do enigma” e “O convalescente”, de Assim falou Zaratustra, buscando na noção nietzschiana de puro devir uma aliada para o seu próprio pensamento do sem-fundo contra as falsas profundidades20. Deleuze consegue mostrar que o ER nietzscheano é precisamente o contrário de um retorno do Mesmo, do Semelhante ou do Igual. Ele não precisou de um tour de force interpretativo, para afastar Nietzsche de uma posição favorável à identidade e o aproximou de si mesmo, de sua concepção de espaço intensivo. Se o ER fosse compreendido nos termos de extensão e qualidade, ele teria de concordar com a identidade, com a semelhança e com o Mesmo, ou seja, com a diferença anulada e afirmada em segundo plano. Já o ER intensivo não pressupõe a identidade em geral e se diz de um “mundo cujo próprio fundo é a diferença e em que tudo repousa sobre disparidades, diferenças de diferenças que se repercutem indefinidamente (o mundo da intensidade)” (DELEUZE, 2018a, p. 321). Em suma, o eterno retorno é intensivo e se diz da diferença.

Na ultrapassagem do extenso para o spatium, o eterno retorno não é elaborado em uma profundidade, mas no sem-fundo, e ele está em companhia da vontade de potência. A noção de vontade de potência em Nietzsche diz respeito à relação entre as forças, ou seja, não existe força que não esteja em relação com outra força. Uma força tanto exerce dominação quanto é o objeto submetido à dominação. Nesse momento a força é denominada como vontade (vontade de potência), apontando para uma concepção inédita de uma “filosofia da vontade”, que destaca o exercício de uma vontade sobre outra, e não sobre a matéria, por exemplo. O problema da vontade é deslocado de uma vontade que quer o involuntário para a relação entre uma vontade que obedece mais ou obedece menos. A relação entre forças é de comando e de obediência. Quando se questiona acerca da origem dessa relação, encontra-se uma “diferença na origem”, essa diferença corresponde à hierarquia, através da qual podemos compreender a relação de uma força com outra, se é de comando ou de obediência (DELEUZE, 2018b, p. 17)21.

Há uma hierarquia inerente à genealogia das forças, assumida como o “fato originário”, de acordo com a interpretação deleuziana da vontade de potência, que insiste numa distinção subjacente entre vontade e força, na origem da relação entre as forças. Para Deleuze, a diferença entre vontade e força é a diferença entre transcendental e empírico22. A vontade de potência é um elemento diferencial, porque corresponde à diferença de quantidade a qual define se as forças são dominadas ou dominantes, e um elemento genético, porque dela decorre a diferença de qualidade que define se as forças são ativas ou reativas. Assim, a vontade de potência aparece como “gênese” da quantidade e da qualidade das forças em relação, deduzindo daí a sua natureza como “princípio para a síntese das forças”. Dessa maneira, a questão que se coloca é: quais são as forças em jogo e como se dá a relação entre elas. A peculiaridade da vontade de potência, nessa leitura, é o seu caráter de complemento interno da força23.

No eixo da discussão levantada por Nietzsche e acompanhada por Deleuze está a ideia de que o mundo é composto por uma relação de forças que se movimentam segundo a diferença de potência. A concepção nietzschiana do mundo como um campo de forças foi inovadora ao introduzir na força a vontade de potência que é, por sua vez, o próprio motor da ação. É a vontade de potência que, através de uma relação interna, impele a força a agir. Na ausência de um princípio basilar para orientar a ação da força, o que há é uma diferença hierárquica como na origem relação entre forças, uma exercendo-se sobre a outra. Enquanto princípio plástico da quantidade e da qualidade das forças, a vontade de potência traz o sem-fundo originário, fazendo abismar o fundamento, e com ele qualquer possibilidade de se estabelecer uma identidade. A vontade de potência expressa a profundidade na qual se encontra a diferença, a desigualdade à qual o ser se remete e que nele próprio coabita. Assim, ultrapassando o fundamento chega-se ao sem-fundo que é onde tudo começa, sem que se possa designá-lo de “origem”.

Para Deleuze, as duas noções nietzscheanas – a vontade de potência e o eterno retorno – são convergentes. A vontade de potência é o “mundo das diferenças de diferenças” (DELEUZE, 2018a, p. 322), das metamorfoses e dos simulacros, isto é, o mundo intensivo e tudo o que nele ocorre, o ser desse mundo é o eterno retorno. Não é à toa que Deleuze rebusca o interesse de Nietzsche pela energética da sua época, pois acreditava ser possível “fazer do caos um objeto de afirmação” (DELEUZE, 2018a, p. 323). Se pelas leis da Natureza a diferença é representada, de acordo com a vontade de potência a diferença é sentida. A vontade de potência é definida, portanto, como “o mais elevado objeto da sensibilidade, a hohe Stimmung (recordemos que a vontade de potência foi primeiramente apresentada como sentimento, sentimento da distância)” (DELEUZE, 2018a, p. 323). Em seu complemento, rivalizando contra as leis do pensamento “a repetição no eterno retorno é o mais elevado pensamento, a gross Gedanke” (DELEUZE, 2018a, p. 323). Assim, numa síntese disjuntiva e assimétrica, Deleuze conjuga o pensamento mais elevado com a sensibilidade diferencial; a forma extrema com a sensibilidade, o devir sensível das forças; em uma palavra eterno retorno com a vontade de potência (Cf. MACHADO, 2009, p.102). A diferença é a primeira afirmação enquanto o eterno retorno é a segunda, enquanto “enésima potência que se diz da primeira”. O eterno retorno se diz da diferença, em outras palavras, se diz do devir.

Para afirmar esse pensamento do devir, é preciso romper com a relação de causa e consequência balizada pelo sujeito. Deleuze se vale da noção de vontade de potência, pois ela realiza a função que em última análise era exercida pelo sujeito como substância. “Quer seja o átomo dos epicuristas, a substância de Descartes, a coisa em si de Kant, todos esses sujeitos são a projeção de ‘falsos filhos’, ‘falsas crias’” (DELEUZE, 2018b, p. 160). Esse é um dos casos nos quais a força foi separada daquilo que ela pode. A tradição assumiu o sujeito como causa das ações, como se a consciência humana fosse responsável por todos os atos24. Disso decorre a crença na vontade como causa dos atos humanos, e o “Eu” a causa da consciência. Recusando a causalidade e o finalismo não há um sujeito pré-existente como a tradição metafísica o instaurou. Nietzsche assume a vontade de potência enquanto relação múltipla de forças ocupa o lugar do sujeito pensante, e a vida passa a ser afirmada em sua plenitude. Deleuze acrescenta a essa definição de vontade de potência a condição de agente que interpreta e avalia. Nesse caso, a interpretação é a chave para a crítica de Nietzsche das noções de vontade e de valor, cunhadas pela tradição metafísica. Em outras palavras, a força possui o poder de conferir sentido e valor às coisas do mundo. Em vez de renovar o conceito de sujeito Nietsche cria a noção de vontade de potência, de caráter múltiplo, e remove os entulhos metafísicos, que impossibilitavam a múltiplas interpretações do mundo. Por meio de um novo pensamento que instaura as novas concepções de sentido e de valor, a verdadeira crítica pode se realizar. Essa nova concepção de crítica se complementa com os outros dois aspectos do eterno retorno, o ético e o ontológico, os quais não caberão discutir aqui.

Considerações finais

Restaurar a diferença na sensibilidade evita a sua subordinação à representação, tal como ela distribui a diferença na sensibilidade tomando-a como semelhança. Afirmar a diferença em si mesma a faz desviar da ilusão transcendental, aquela que tende a apresentar a igualdade no sensível sob a pena de a diferença ser anulada, recoberta. A diferença como ser do sensível insubordinada ao semelhante na percepção também é uma peça-chave para Deleuze confrontar a dualidade presente na estética kantiana, a do transcendental e a do belo e da arte. Como aponta Silva (SILVA, 2017, p. 21), o que reúne os dois sentidos de estética, a estética transcendental e o sentido de estética exposto na Crítica da faculdade de julgar, é um movimento feito por Deleuze através do conceito de intensidade. Isso ocorre quando a intensidade assume a gênese do que é dado pela experiência assim como torna-se a condição de possibilidade para toda a experiência possível e real. De um lado, Deleuze defende que os elementos sensíveis são criados para uma sensibilidade na atuação dessa faculdade, que não somente uma faculdade receptiva, mas colocada por Deleuze em termos de atividade, de outro lado, esse processo que é o sentir ocorre no âmbito de uma subjetividade parcial, constituída no próprio processo de sentir. Dessa maneira, a teoria deleuziana da individuação, cuja principal fonte foi Simondon, contribuiu para reforçar a ideia de que a diferença de intensidade não pode ser algo estático, e sim metaestável, portanto reforçando a noção de devir, tão cara à filosofia deleuziana em seus embates contra a ontologia tradicional. Por último, a apropriação inédita das noções de vontade de potência e de eterno retorno, recuperando o aspecto cosmológico e a influência de Nietzsche da ciência, formulam uma nova concepção de princípio empírico e princípio transcendental, tendo a diferença de intensidade como condição. Assim, Deleuze se vale das alianças com a filosofia e com a ciência para confrontar momentos decisivos da Crítica da razão pura e elaborar conceitos inéditos que terão implicações no domínio do conhecimento, da estética e da política. Mas isso é uma outra conversa.

Referências

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SIMONDON, Gilbert. A individuação à luz das noções de forma e de informação. Trad. Luís Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo. São Paulo: Editora 34, 2020.

Notas

1 Este artigo é uma parte adaptada da minha tese Estética e dessubjetivação em Deleuze (2021).

3 Devo a compreensão sobre a filosofia de Kant a seguir à orientação da professora Virginia de Araújo Figueiredo.

4 “Na aplicação dos conceitos puros do entendimento à experiência possível, o uso de sua síntese é ou matemático ou dinâmico: pois em parte ela concerne apenas à intuição, em parte à existência de um fenômeno em geral. As condições a priori da intuição, no entanto, são sempre necessárias em relação a uma experiência possível, ao passo que aquelas da existência dos objetos de uma possível intuição empírica são em si contingentes. Por isso os princípios do uso matemático parecerão incondicionalmente necessários, i.e., apodíticos, enquanto aqueles do uso dinâmico somente trarão consigo o caráter de uma necessidade a priori sob a condição do pensamento empírico em uma experiência, portanto apenas mediata e indiretamente, e por conseguinte não conterão (ainda que sem prejuízo de sua certeza universal na relação com a experiência) a evidência imediata que é própria àqueles primeiros” (KANT, 2018, AA: 03-04, B 199, p. 187).

5 A esse respeito, cf. SILVA, 2013, p. 119; MACHADO, p. 2009, p. 125; SAUVAGNARGUES, 2009, p. 227.

6 Stéphane Lleres destaca que Deleuze questiona como poderia haver uma gênese transcendental. Deleuze encontra essa gênese transcendental na obra de Maïmon, que procurou estabelecer uma “gênese do percebido, mas no quadro de uma busca que não pretende sair do quadro crítico kantiano”. A intenção de Maïmon é “retomar e precisar de maneira rigorosa a abordagem kantiana”. Com Maïmon, Deleuze pode tornar possível uma gênese do transcendental que legitime um pensamento sem estar obrigado a submeter-se ao modelo do condicionamento. Acerca do princípio da gênese transcendental em Maïmon, Segundo a autora, “O Ensaio sobre a filosofia transcendental, de Maïmon, publicado em 1790, não constitui um ataque contra o empreendimento crítico de Kant. Ao contrário, o conteúdo da crítica é considerado como verdadeiro. Ela é considerada apenas inacabada ou insuficiente na medida em que, de acordo com Maïmon, certos pontos essenciais são deixados nas sombras. Trata-se de fornecer as explicações ou as demonstrações que a crítica de Kant não fornece. O Ensaio sobre a filosofia transcendental compromete-se a continuar a crítica kantiana, e não reforma-la ou revisá-la. É nisso que Maïmon se situa sobre o terreno transcendental. As zonas das sombras deixadas por Kant são, segundo Maïmon, pelo menos três” [...] “1) O problema do acordo da sensibilidade e do entendimento a priori; [...] 2) A questão da necessidade das categorias [...] 3) O problema da coisa em si” (LLERES, 2011, pp. 115-117).

7 Surgida no início do século XIX, a termodinâmica precede a teoria atômica e molecular da matéria, portanto os seus primeiros estudos dispunham apenas de uma noção ainda incipiente dos átomos e que nada conheciam sobre elétrons ou outras partículas moleculares. Seus modelos se restringiam às grandezas como trabalho mecânico, pressão e temperatura, buscando compreender as suas influencias sobre as transformações energéticas (Cf. HEWITT, 2002, p. 312). Deleuze inspira-se não numa perspectiva exclusivamente filosófica, mas também se vale das reflexões científicas sobre a termodinâmica, datadas do início do século XX, feitas por um autodidata, ilustre desconhecido, Léon Selme. Foi ele que afirmou ser o aumento da entropia somente ilusório e não passar de uma ilusão sensível. Essa proposta é devedora da reflexão do desconhecido Léon Selme. Recuperando a crítica de Selme a Carnot, é digna de nota a elucidação de McNamara: “Para desarticular essa união da ciência com o bom senso é que Deleuze cita o trabalho de Léon Selme. Trata-se de um obscuro capataz industrial sem título universitário, autodidata em temas de matemática e física avançada. Em 1917, pouco antes de sua morte, Selme publicou um livro no qual se discutem alguns dos postulados principais da termodinâmica e que gerou um acalorado debate na Revue de métaphysique et morale. A operação realizada pelo autor nessa obra supõe uma generalização do Princípio de Carnot, que tem como primeiro resultado erradicar a diferença entre energias nobre e energias degradadas. O princípio de Carnot estabelece que o valor da eficiência para qualquer sistema térmico real é menos que ideal, quer dizer, menos de um, devido à inevitável perda de energia calórica. Grande parte dos raciocínios de Selme apontam para demonstrar que isso é assim para qualquer tipo de energia, e não só para o calor. Segundo o autor, esse ponto de vista é essencial para demonstrar que o aumento da entropia é ilusório (...). Em um artigo no qual defende as ideias de Selme, Louis Rougier parte do seguinte postulado: para conciliar o princípio de Carnot com a primeira lei da termodinâmica (quer dizer, da conservação da energia), em todos os procedimentos irreversíveis é possível verificar apenas uma de duas opções: ‘ou a extensão aumenta, ou a quantidade de energia diminui’ (Rougier apud McNamara). Para todos os tipos de energia, os físicos assumem a segunda opção. A energia calórica constitui uma única exceção, sendo a única para a que se postula um aumento da extensão (quer dizer, da entropia). Do ponto de vista de Selme é um erro. Segundo nosso autor, não há motivos científicos para tratar o calor de um modo diferente do resto das energias” (McNAMARA, 2015, p. 65).

8 Fundado no presente, o bom senso passa do particular ao geral, do passado ao futuro, compreendendo ambos em termos de possibilidade: o passado é o menos provável e o futuro é o provável. No entanto, somente pressuposto por uma diferença negada no extenso e no tempo é que o bom senso se constitui, encontrando lugar em uma posição entre os intervalos de tempo preenchidos pela intensidade. A sua posição é intermediária promovendo filiações, alianças e consensos. Nem das classes altas, nem das classes baixas, o bom senso é uma “ideologia das classes médias que se reconhecem na igualdade como produto abstrato” (DELEUZE, 2018, p. 300a). Ou seja, não contempla nem age, apenas prevê adequando o seu tom a uma situação parcial, seja de otimismo ou de pessimismo, para que modos de agir e de pensar extemporâneos possam ser capturados no final. Assim, o bom senso atua como uma “regra de partilha universal” entre a diferença disparatada e a diferença anulada.

9 “Tudo o que se passa e que aparece é correlativo de ordens de diferenças: diferença de nível, de temperatura, de pressão, de tensão, de potencial, diferença de intensidade”. Essa definição tem sua fonte na física e recorre à formulação de diferença de potência de Rosny. “Tudo o que se passa e que aparece é correlativo de ordens de diferenças: diferenças de nível, de temperatura, de pressão, de tensão, de potência, diferença de intensidade” (DELEUZE, 2018a, p. 297).

10 Deleuze ressalta que o extenso e a qualidade implicam, sim, a intensidade, porém em segundo plano “(...) apenas o suficiente para ‘explicá-la’” (DELEUZE, 2018a, p. 319). É uma ação limitada, já que a diferença, por ela mesma, assume imagens que provocam confusões na superfície. Por outro lado, a diferença continua a “sua vida subterrânea quando se confunde sua imagem refletida pela superfície” (DELEUZE, 2018a, p. 319).

11 Essa lógica paradoxal acompanhará as definições de todas as faculdades, não só em Diferença e repetição, mas em toda a filosofia deleuziana. Daí expressões como: impensável do pensamento, inimaginável da memória, indizível na linguagem, imemorial na memória etc. (DELEUZE, 2018a, p. 325).

12 “Objetivamente, o paradoxo faz valer o elemento que não se deixa totalizar num conjunto comum, mas também a diferença que não se deixa igualizar ou anular na direção de um bom senso” (DELEUZE, 2018a, p. 304).

13 Destaca-se o comentário escrito por Deleuze em Gilbert Simondon, “O indivíduo e sua gênese físico-biológica” [Cf. ID, pp. 120-124 (117-121)], acerca da primeira parte da tese de Doutorado de Gilbert Simondon, defendida em 1958 e publicada em 1964. A segunda parte da tese só veio a lume em 1989, de forma incompleta sob o título “A individuação psíquica e coletiva”. Somente em 2013 uma versão coerente com o plano original do escrito de 1958 foi publicada acolhendo a divisão em duas partes: “A individuação física” e “A individuação dos seres vivos”. Utilizamos a tradução brasileira da tese integral A individuação à luz das noções de forma e de informação (Cf. SIMONDON, 2020, p. 7).

14 “A intenção deste estudo, portanto, é estudar as formas, modos e graus da individuação a fim de recolocar o indivíduo no ser de acordo com os três níveis: físico, vital, psicossocial. Em vez de supor substâncias para dar conta da individuação, tomamos os diferentes regimes de individuação como fundamento de domínios como matéria, vida, espírito, sociedade” (SIMONDON, 2020, pp. 28-29).

15 “O que a busca do princípio de individuação postula é que a individuação tenha um princípio. Nessa própria noção de princípio, há certo caráter que prefigura a individualidade constituída, com as propriedades que ela terá quando estiver constituída; a noção de princípio de individuação, em certa medida, deriva de uma gênese às avessas, de uma ontogênese revertida: para dar conta da gênese do indivíduo, com seus caráteres definitivos, é necessário supor a existência de um termo primeiro, o princípio, que traz em si aquilo que explicará que o indivíduo seja indivíduo e que dará a razão de sua ecceidade” (SIMONDON, 2020, pp. 13-14).

16 Deleuze destaca que, para Simondon, duas vias conduzem a essa resolução. A primeira é a ressonância interna, comunicação entre realidades distintas. A segunda é a informação, a comunicação entre dois níveis distintos, “um definido por uma forma já contida no receptor, o outro definido pelo sinal trazido do exterior” (DELEUZE, 2006, p. 119) (sistema sinal signo).

17 Reproduzo a passagem que Deleuze retira de Rosny: “A energética mostra que todo trabalho deriva de diferenças de temperatura, de potencial, de nível, como de resto toda aceleração supõe diferenças de velocidade: com toda verossimilhança, cada energia calculável implica fatores da forma E-E’, nos quais E e E’ ocultam, eles próprios, fatores, da forma e-e’... Como a intensidade já exprime uma diferença, seria necessário definir melhor o que é preciso entender por isso, e particularmente, fazer compreender que a intensidade não pode compor-se de dois termos homogêneos, mas, pelo menos de duas séries de termos heterogêneos” (Rosny, apud Deleuze, 2018, p. 99).

18 De fato, existe uma ilusão relacionada às quantidades intensivas, o que constitui o processo de anulação da intensidade, não só de forma aparamente, mas de forma real, mas Deleuze insiste que a intensidade só se anula fora dela mesma “no extenso e sob a qualidade” (DELEUZE, 2018a, p. 319), pois não existe diferença de grau se ela não for explicada no extenso, assim como não há diferença de natureza se não estiver recoberta no extenso. Esse é, portanto, o risco que a intensidade assume, “parecer se extinguir” nessas diferenças, porém as diferenças de natureza e de grau só existem a partir da intensidade.

19 Não se reconcilia os diferentes pela síntese no extenso, a síntese do diverso, mas é diferenciando a diferença que eles podem ser afirmados em intensidade: “As oposições são sempre planas; elas apenas exprimem sobre um plano o efeito desnaturado de uma profundidade original” (DELEUZE, 2018a, p. 314). Deleuze se refere às imagens estereoscópicas, aquelas imagens tridimensionais que apresentam duas perspectivas distintas, uma para cada olho, por exemplo. As oposições se resolvem no tempo e no extenso apenas quando os díspares engendram uma ordem de comunicação autônoma na profundidade e ao alcançar essa dimensão, os díspares pautam seus caminhos e relações intensivas, mas que dependem do “mundo ulterior do extenso” para que sejam conhecidos.

20 “A profundidade, a distância, os baixios, o tortuoso, as cavernas, o desigual em si formam a única paisagem do eterno retorno. Zaratustra lembra isto ao bufão, mas também à águia e à serpente: não é uma "cantilena" astronômica nem mesmo uma ronda física. Não é uma lei da natureza. O eterno retorno elabora-se num fundo, num sem-fundo em que a Natureza original reside em seu caos, acima dos reinos e das leis que apenas constituem a natureza segunda. Nietzsche opõe ‘sua’ hipótese à hipótese cíclica, ‘sua’ profundidade à ausência de profundidade na esfera dos fixos” (DELEUZE, 2018a, p. 322).

21 Um o corpo, seja ele físico, biológico ou social, é definido como uma relação entre forças, como um “fenômeno múltiplo”, o qual é formado por uma “pluralidade de forças irredutíveis”. Essas forças se distinguem por sua qualidade e por sua quantidade. A quantidade diz respeito às noções de dominada e dominante, e a qualidade, que explicita a relação entre as forças, corresponde às noções de ativa e reativa (DELEUZE, 2018b, pp. 77-78). As forças dominantes, também entendidas como superiores, são de qualidade ativa; e as forças dominadas, ou inferiores, são de qualidade reativa. Deleuze alerta que, pelo fato de serem forças que obedecem, as forças inferiores não deixam de ser forças, pois obedecer e comandar são qualidades inerentes à força. Mesmo reativas, as forças inferiores atuam na conservação da sua quantidade de força: “Nenhuma força renuncia à sua própria potência. Do mesmo modo que o comando supõe uma concessão, admite-se que a força absoluta do adversário não é vencida, assimilada, dissolvida. Obedecer e comandar são duas formas de um torneio” (Nietzsche apud Deleuze, 2018b, pp. 56-57). Cada força relacionada possui uma qualidade correspondente à sua “diferença de quantidade”. A diferença de quantidade é a “essência da força”, porque é ela que vai caracterizar a qualidade: “A vontade de potência é o elemento do qual decorrem, ao mesmo tempo, a diferença de quantidade das forças postas em relação e a qualidade que, nessa relação cabe a cada força” (DELEUZE, 2018b, p. 68). Se há o predomínio das forças ativas em uma relação, deve-se ao fato de a quantidade dominante ser maior. Do mesmo modo, se há um predomínio das forças reativas é porque prevalece a quantidade dominada. Sendo as forças qualificadas de acordo com o seu grau de quantidade, a hierarquia é justamente a diferença entre as forças.

22 Para Machado o transcendental corresponde à vontade, enquanto o empírico diz respeito à força. Ele interpreta essa questão da gênese destacando a distinção entre força e vontade como uma distinção de nível: “enquanto as forças são empíricas, a vontade, que é condição ou princípio genético e diferencial, é transcendental. Assim, o que Deleuze está sugerindo quando salienta que uma vontade interna complementa a força é que o empírico é quantitativo e qualitativo, mas que esse mundo das qualidades e das quantidades precisa de um princípio interno de determinação, de um princípio genético, não mais empírico, mas transcendental” (MACHADO, 2009, p. 95).

23 Para sair dessa espécie de contrassenso, Deleuze esclarece que a vontade de potência não é atribuída à força como um predicado, já que se for feita a pergunta “Quem quer?”, a força não é este sujeito. O direito de querer pertence tão somente à vontade de potência, vontade de potência é “quem quer” e força é “quem pode”. Nesse caso, a força só poderá exercer seu poder se houver um querer. Ademais, é somente pela vontade de potência que a força exerce seu querer, sua atuação sobre outra força (DELEUZE, 2018b, p. 67).

24 Cf. NIETZSCHE, 2006, pp. 41-42.

Notas de autor

2 Doutor(a) em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte – MG, Brasil. Membro do GT Deleuze/Guattari-ANPOF.
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