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A dança na filosofia: uma análise a partir do pensamento de Nietzsche e da obra O lobo da estepe de Hermann Hesse
Dance in philosophy: an analysis based on the thought of Nietzsche and the book The stepwolf by Hermann Hesse
A dança na filosofia: uma análise a partir do pensamento de Nietzsche e da obra O lobo da estepe de Hermann Hesse
Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 2, pp. 242-252, 2022
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepción: 05 Abril 2022
Aprobación: 31 Mayo 2022
Resumo: O presente artigo busca analisar como o fenômeno da dança se apresenta na filosofia, sobretudo, a partir das reflexões do filósofo alemão F. Nietzsche. Para realçarmos nossas hipóteses recorreremos à obra literária O Lobo da Estepe do escritor alemão Hermann Hesse. Sabemos que a dança enquanto metáfora do pensamento é apresentada tanto ao longo da obra nietzschiana quanto no supracitado livro de Hermann Hesse. Assim sendo, nossa análise busca demonstrar como a dança envolve uma situação de entrega e aceitação da vida. Trata-se da dança como um pensamento de superação de si mesmo. Tal superação se dá no instante. O instante em que compreendemos a vida como um movimento em direção às suas infinitas possibilidades. Levando como base a investigação filosófica, nesse trabalho, iniciaremos apresentando o conceito de dança na filosofia de Nietzsche, em seguida exemplificaremos este conceito na obra de Hesse e, por fim, demonstraremos a relação entre dança, pensamento e afirmação da vida.
Palavras-chave: Dança, Vida, Leveza.
Abstract: This article seeks to analyze how the phenomenon of dance presents itself in philosophy, especially from the reflections of the German philosopher F. Nietzsche. To enhance our hypotheses, we will resort to the literary work The Steppenwolf by the German writer Hermann Hesse. We know that dance as a metaphor for thought is presented both throughout Nietzsche's work and in the aforementioned book by Hermann Hesse. Therefore, our analysis seeks to demonstrate how dance involves a situation of surrender and acceptance of Life. It is about dance as a thought of overcoming oneself. This overcoming takes place in the instant. The instant when we understand Life as a movement towards its infinite possibilities. Based on the philosophical investigation, in this work, we will start by presenting the concept of dance in Nietzsche's philosophy, then we will exemplify this concept in the work of Hesse and, finally, we will demonstrate the relationship between dance, thought and affirmation of life.
Keywords: Dance, Life, Weightlessness.
E noutro tempo eu quis dançar como ainda não dancei nunca: quis dançar para além de todos os céus (NIETZSCHE, 2010, p.142)
No discurso intitulado “Do ler e escrever”, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, falando por meio de seu personagem Zaratustra, diz que só acreditaria num deus que soubesse dançar. À primeira vista, a expressão parece ser enigmática, pois para que um deus, em toda sua onisciência, onipotência e onipresença precisaria saber dançar? Que qualidade tão infinita teria a dança para que servisse como pressuposto à condição de crença por parte de nosso personagem Zaratustra?
Para Zaratustra, a dança possui aqui uma estreita relação com o modo como se compreende a vida. É preciso ser leve, ver a vida sob uma outra perspectiva, a saber, a perspectiva da aceitação, do amor ao destino, do dizer “sim” a si mesmo. É somente sob tal perspectiva que Zaratustra diz: “Agora estou livre; agora voo; agora, vejo-me de baixo de mim mesmo; agora um deus dança dentro de mim” (NIETZSCHE, 2010, p. 67).
Mediante o fenômeno da dança, Zaratustra agora encontrou deus, acreditou em deus. A dança passa então a ser a própria expressão da vida, o amor fati2, a fidelidade à terra.
Essa vinculação da dança e o bailar com a vida está demasiadamente presente desde o princípio em Nietzsche, já que não são mais que outra forma de anunciar a vida. Através da dança é que a vida penetra no corpo, provocando um estado de exaltação no qual o sujeito já não é mais artista, senão uma obra de arte; por isso a melhor maneira de compreender e experimentar a vida é dançando, escutando os modos de fala do corpo. (GUERVÓS, 2003, p. 88).
Por meio da dança, Zaratustra afasta de si o espírito de peso. O ser de gravidade que insiste e persiste em lhe puxar para baixo3. A dança possui o significado da leveza, do voo, da liberdade. Aqui não basta apenas saber andar ou correr, mas também, saber dançar. Trata-se, pois, da arte dançarina. A arte que desperta leveza, agilidade, movimento. Dançar é a arte que conduz o homem ao lugar mais alto. É a demonstração do espírito livre por excelência.
Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem de ser comandada, torna-se “crente”; inversamente, pode-se imaginar um prazer e força na autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em dançar até mesmo à beira do abismo. (NIETZSCHE, 2012, p. 215).
No discurso Dos desprezadores do Corpo Zaratustra nos mostra que o corpo é uma grande razão. O corpo não é separado da alma4. O corpo é este que, em sintonia, com a alma se expressa por meio da dança. Ao dançar, aquele que dança transpõe sua dimensão cotidiana e assume a leveza da vida afirmadora. Dançando ele toca o céu e a terra e, nisso, transborda de alegria. Na dança, o corpo e a alma são a mesma coisa. Não há, portanto, uma consciência autônoma guiando nem comandando o corpo. Não há um sujeito que determina a ação. A ação ocorre em simultâneo, sem separação. Corpo e alma juntos e concomitantes realizam a ação, realizam a dança.
O próprio Merleau Ponty, em sua Fenomenologia da Percepção, mais tarde nos orienta para o fato de que o corpo não deve ser pensado de forma separada da consciência. Não há uma relação causal aqui. A consciência não pode ser pensada como uma causa do corpo, pois tudo o que há é uma unidade.
O corpo não é uma “coisa” à qual estaria associada uma consciência: no reflexo, assim como na percepção, determinantes psíquicos e condições fisiológicas se enxertam umas nas outras em uma visão pré-objetiva – justamente o que chamamos de ser no mundo – que é ao mesmo tempo o modo como acedemos ao mundo e, de forma correlata, um certo modo de aparecer deste. (ROVIGHI, 2011, p. 418).
No fenômeno da dança, o corpo e a consciência se tornam uma coisa só. A dança flui. E aquele que dança se entrega ao êxtase. Ele se embriaga no movimento, sente os detalhes da vida e se torna leve. Como diria Nietzsche, ele sente um deus dançando dentro de si.
Para dançar é preciso, pois, ser um deus. Este deus é Dioniso. Através da dança ele exerce sua força e seu poder criativo. Ele transgride a ordem natural das coisas, transcende o tempo e o espaço, transforma o dito em inaudito. Dioniso é o deus de pés ligeiros e olhos risonhos. Sua mensagem é impossível de ser expressa por meio da linguagem convencional e, por isso, só pode se expressar por meio da dança. Não é à toa que a dança sempre esteve relacionada ao êxtase, ao prazer, à beleza. Para Guervós (2003, p. 87):
É um fato que o homem, ao longo de sua história, sempre dançou para celebrar suas mudanças e transformações. A dança esteve associada primeiro a ritos sagrados; era um meio de comunicação entre o homem e seus deuses, uma forma de veneração destinada a invocar a manifestação de poderes sobrenaturais, mas também esteve vinculada aos ritos de fertilidade, nos quais se exaltava a exuberância da vida. Uma vez dessacralizada, se converteu em meio de expressão do espírito do povo. Os grandes acontecimentos da vida cotidiana ainda se celebram com a dança, como manifestação da alegria e da vida.
É Dioniso quem proporciona o êxtase, o estado alterado da mente em que razão e emoção se confundem. O homem tomado por Dioniso se entrega a dança e é transportado para um outro mundo além de si mesmo. Isso, no entanto, não quer dizer que ele tenha perdido sua conexão com esse mundo. Muito pelo contrário, quer dizer que ele finalmente encontrou o sentido da terra. Significa que ele encontrou sua essência. É exatamente isso que Zaratustra quis dizer quando afirmou ter um deus dançando dentro de si.
Mas como podemos chegar à afirmação da vida por meio da dança? Como vimos, a dança significa leveza. É o movimento que flui e que se deixa fluir em consonância com o corpo. Neste sentido, afirmar a vida pode ser entendido aqui como a compreensão desta segundo uma multiplicidade de possibilidades. Aceitar essa multiplicidade de possibilidades é estar na leveza; ser leve. Estar na leveza ou viver a vida com leveza é aceitá-la como uma eterna possibilidade de vir a ser. Não importa se aquilo que vem a ser vai nos agradar ou aborrecer, pois se temos consciência de suas possibilidades sabemos que tudo pode acontecer e, por isso, tal qual a dançarina que flutua na leveza da dança, dançamos também na leveza da vida.
É por isso que Zaratustra diz: “somente dançando, eu sei falar em imagens das coisas mais elevadas [...]”. (NIETZSCHE, 2010, p. 143). Ele se situa no movimento da dança e assim percebe, na vida, as coisas mais elevadas. A dor, a angústia e o sofrimento se apresentam como algo capaz de ser suportável, uma vez que ele sabe e reconhece que as tribulações também são partes constitutivas da vida. Percebendo isso, ele reconhece também que esta é condição de possibilidade para o novo, para a criação, para a superação. É dançando, ou seja, entregando-se na leveza do movimento que Zaratustra compreende a vida como este eterno retorno de possibilidades e consegue, enfim, superar a si mesmo.
Segundo Santiago Guervós (2003, p. 90), “a dança reconcilia o céu e a terra, reconcilia todos os mundos: o dançarino ligeiro como o vento, é livre, está para além de bem e mal, para além de verdade e mentira, voeja acima de todas as coisas”. Esta é a posição de Zaratustra. Este personagem que representa o vivente, que diz sim a si mesmo e que compreende o real com leveza, a saber, a leveza da dança. Aqui o céu e a terra se tocam. Não há espaço para o contraditório. Tudo se encontra numa só unidade, o corpo que dança, a dança que guia o corpo.
Quando saímos do âmbito filosófico e nos voltamos para a esfera literária; encontramos na obra O Lobo Da Estepe, do escritor alemão Hermann Hesse, um retrato fidedigno daquilo que Nietzsche apresenta por meio de seu Zaratustra. Com toda sua sutileza literária, Hermann Hesse nos apresenta, através do personagem Harry Heller, uma experiência prática acerca do fenômeno da dança. E é neste sentido que o escritor alemão, em torno do seu talento literário, evidencia de maneira profunda, aquilo que outrora, de modo filosófico, Nietzsche concebeu.
Em O Lobo da Estepe, Hesse nos conta a história de Harry Heller, um homem de 50 anos que por escolha própria decidiu caminhar na solidão. Heller leva uma vida solitária em meio às leituras de Goethe e as partituras de Mozart. É um intelectual que busca o equilíbrio entre os problemas sociais e suas tribulações existenciais. Nessa jornada, sua personalidade caminha inevitavelmente para a ambivalência ao passo que, de modo gradativo, vai se desgastando.
Harry Heller é o próprio lobo da estepe que mergulha no pesadelo da solidão, da depressão, da crueldade e da destruição. Em outras palavras, Heller é o lobo solitário incomunicável, isolado na existência e apavorado pelo peso de sua vida. Aliás, Heller ver a vida como peso, como algo indigesto, sem movimento e sem perspectiva. Nosso personagem não vê graça na existência. Seus dias são vazios de sentido. Nada parece ter importância nem alegria. Heller é “aquele animal extraviado num mundo que lhe é estranho e incompreensível”. (HESSE, 2009, p. 41).
Nesta jornada pela odisseia da vida, nosso querido personagem se encontra numa atmosfera de caos e elucubrações inevitáveis. E, angustiado pela consciência de si desabafa:
Eu, o Lobo da Estepe, vago errante
pelo mundo de neve recoberto;
um corvo sai de uma árvore, adejando,
mas não há corsas por aqui, nem lebres!
Vivo ansiando por achar a corsa,
ah! Se eu desse com uma!
Tê-la em meus dentes, entre as minhas garras,
nada seria para mim tão belo.
Havia de tratá-la tão cordial,
de cravar-lhe nas ancas os meus dentes,
beber-lhe o sangue até a saciedade
a uivar depois na noite solitário.
Contentava-me mesmo com uma lebre!
Na noite sabe bem a carne flácida.
Por que de mim há de afastar-se tudo
quanto faz esta vida mais alegre?
Em minha cauda o pêlo está grisalho
e também já não vejo as coisas nítidas;
há muito que morreu a minha esposa
e vivo a errar sonhando corsas,
ansiando lebres,
ouço o vento soprar na noite fria
com neve aplaco o fogo na garganta
e levo para o diabo a minha alma.(HESSE, 2009, p. 77).
Nosso herói parece não suportar mais o peso de sua existência. Seus dias são extensos, as horas demoram a passar e o colapso parece ser inevitável.
Mas nem tudo está perdido. Se a vida é mesmo uma infinita condição de possibilidade então nada é extático. Algo novo sempre pode acontecer. Certa noite, fugindo de uma noitada “pouco edificante”, o velho Heller finalmente absorve a plenitude do sentido da vida em sua existência.
Compreendi depois claramente que aquela noitada tão pouco edificante [...] para mim foi um último fracasso e deserção; minha despedida do mundo burguês, moralista, erudito; uma vitória completa do lobo da estepe. E fora uma despedida de fugitivo e vencido, uma declaração de falência ante mim mesmo, uma despedida sem consolo, sem supremacia, sem humor. Eu me havia despedido de meu mundo de então e de minha pátria, da burguesia, dos costumes, da ciência, da mesma forma que um paciente de úlcera estomacal se despede do leitão assado. (HESSE, 2009, p. 94).
Heller corre pelas ruas da cidade e, já no avançar da noite, chega a uma agitada hospedaria. Ali, ao som da música dançante, do cheiro do vinho e da algazarra em meio a fumaça, o nosso personagem vai passar por uma experiência abismal. Sentado em uma mesa frente ao balcão, Heller percebe a presença de uma jovem mulher. Esta, bonita e pálida, sentada ao divã, lança-lhe um olhar observador e afetuoso acompanhado de um sorriso acolhedor.
A linda mulher, muito cordial, de rosto pálido e boca vermelha, com olhos e testa lisa, com gestos afáveis e irônicos oferece vinho e conforto ao cansado e amargurado lobo da estepe. Tratando-o com doçura, limpou os seus óculos, ordenou que comece e bebesse o saboroso vinho. Porém, pediu que tomasse aos poucos e, em seguida, elogiou sua obediência.
A mulher parecia atender todas as necessidades de Heller. Ele procurava um lugar para descansar. Ela lhe concedeu descanso, compreendeu suas ideias, tomou consciência de sua trajetória, pareceu conhecer seus complexos e agiu conforme buscasse evitar suas angústias. Por fim, asseverou que, depois de tudo pronto, os dois deveriam dançar.
Mas Harry Heller não sabia dançar. Dançar requer equilíbrio, leveza. Requer consonância entre o movimento e a leveza do ritmo. Heller não pretendia desapontar a bela mulher. Todavia, para ele, dançar era algo que não condizia com suas habilidades. Dançar era uma atividade em que Heller nunca viu possibilidade de acontecer em sua angustiante vida.
A jovem e bela mulher sabia que dançar exige esforço. Aprender dançar exige paciência, dedicação e empenho. Então, na sua mais completa sinceridade, ela pergunta como Heller “pode dizer que a vida lhe deu muito trabalho se nem ao menos sabe dançar?” (HESSE, 2009, p. 99). Heller aprendeu a ler, escrever, somar, falar latim, francês e outras tantas coisas, mas não aprendeu a dançar. Dançar não foi uma prioridade em sua vida. A dança nunca esteve em seus planos. Aquela linda e jovem mulher poderia lhe ordenar qualquer coisa, menos dançar.
Harry Heller, nosso lobo da estepe, encontra-se fascinado e seduzido por aquela mulher que, mais tarde, revela-se sob o nome Hermínia. Entretanto, não se trata de um simples fascínio ou sedução. Há aqui uma necessidade. Heller ver em Hermínia o retorno ao gosto pela vida. A possibilidade de um afago, de um alento e de uma esperança. A própria Hermínia percebe isso e o deixa a par dessa necessidade.
Eu não estou mais apaixonada por você, Heller, do que você por mim. Mas necessito de você como você necessita de mim agora, neste momento, porque está desesperado e necessita de alguém que o empurre para a água que lhe devolverá a vida. Precisa de mim para ensiná-lo a dançar, a rir, a aprender a viver. (HESSE, 2009, p. 122).
Momentos antes, Hermínia já havia perguntado se desde o último encontro, Heller já havia aprendido a dançar. E este, meio sem jeito, respondeu perguntando se seria possível aprender a dançar de um dia para outro. “É claro que sim”. Disse Hermínia que finalmente se propôs ensinar ao lobo da estepe a arte da dança. Para tanto, bastava apenas que ele providenciasse um lugar calmo e reservado. Podia ser sua própria casa, desde que tivesse um gramofone portátil e alguns discos.
Heller agora tinha um lugar, sua casa; uma professora de dança, Hermínia; o gramofone e os discos que seriam fáceis de comprar. Era tudo o que precisava para aprender a dançar, porém, o espírito de peso, aquele que nos puxa para baixo, ainda habitava o seu coração.
Não podia imaginar aquele aparelho tão pouco simpático para mim, em meu quarto de estudos, entre meus livros, e de modo algum estava em bons termos com a dança. Podia tentar uma vez, pensei, embora estivesse convencido de que era velho e duro demais para aprender a dançar. Sentia que em meu interior se erguiam, como antigo conhecedor e amante da música, todas as diatribes que antes lançara contra os gramofones, o jazz e a moderna música de dança. Pensar que alguém pudesse me pedir que tivesse em meu quarto, ao lado de Novalis e Jean-Paul, em meu tugúrio de pensamento e de reflexão, um gramofone a tocar música de dança americana e que teria de dançar, tudo isso era certamente duro demais para que eu pudesse suportá-lo. (HESSE, 2009, p. 128).
Começar a aprender algo por muitas vezes pode ser uma tarefa difícil. A questão da idade, a falta de apoio, a escassez dos instrumentos necessários... tudo pode se tornar empecilho quando estamos prestes a aprender algo. Às vezes, aprender algo concerne à mudança de hábitos, de costumes, de comportamento. Diz respeito a sair da zona de conforto, a buscar novos mundo e encontrar o desconhecido. E, mesmo que tudo isso torne nossas vidas melhores, ainda assim temos medo de seguir adiante e não acreditamos que o sucesso seja possível.
Com Heller não foi diferente. Frente a possibilidade de se aprender a dançar, nosso personagem questiona se aquilo lhe seria possível. Mas, era Hermínia quem lhe pedia. Não era uma pessoa qualquer. Por isso ele obedeceu. Em sua primeira aula se mostrou meio atrapalhado. Típico do aluno inexperiente que era. Mesmo assim, deixa-se guiar por Hermínia numa absoluta entrega. Como uma criança que aprende os primeiros passos com a mãe, o lobo da estepe se deixa levar pelo movimento e pela melodia da música. Ato que encara como um dever.
Hermínia pôs um foxtrote e me ensinou os primeiros passos, tomou-me da mão e começou a guiar-me. Trotei com ela obediente, tropecei nas cadeiras, obedeci às suas ordens sem as entender, pisei-lhe várias vezes e me mostrei tão desastrado quanto cioso do meu dever. Depois do segundo disco, ela deixou-se cair no divã e riu-se como uma criança. (HESSE, 2009, p. 132).
Hermínia lhe ensinou que, quando se sabe, dançar é tão fácil quanto pensar. Da mesma forma, aprender a dançar é mais fácil ainda. Assim sendo, depois de aprendido, a dança não exige mais esforço e não necessita mais de tantas horas de dedicação, pois acontece de modo natural.
Mesmo assim Heller não saiu muito contente de sua primeira aula. Angustiado, acreditava que para dançar precisaria estar alegre, despreocupado, ser inocente e impetuoso. Entretanto, na sua segunda aula já se apresentou mais disposto. Começou a gostar do exercício e recebeu até um elogio de Hermínia. Foi informado que já sabia dançar e que no dia seguinte dançariam juntos num restaurante. Disse que no restaurante, ele também deveria tirar uma das moças que ali se encontrasse para dançar.
Esse foi seu maior desafio; mostrar para si mesmo que sabia dançar e provar para Hermínia que não tinha medo. “– Não tenho coragem! – disse contrafeito. – Se eu fosse um jovem bonito e elegante, mas sou velho pateta, que não sabe dançar; a moça vai rir-se de mim”. (HESSE, 2009, p. 134).
Às vezes para conquistarmos algo grandioso, necessário se faz atravessarmos os limites imposto pela zona de conforto. É preciso uma tomada de decisão, uma ação decisiva que trace o futuro de sua história. Nestes termos, Heller decide tirar a moça para dançar e é aí que a mágica acontece.
Enlacei-a pela cintura e dei os primeiros passos, admirado de que ela não se recusasse a continuar a dança; logo percebeu a minha indecisão e passou a guiar-me. Dançava admiravelmente e me levava com facilidade; esqueci-me por um momento dos conselhos e regras da dança, deixando-me simplesmente conduzir, sentindo as ancas firmes e os joelhos flexíveis da minha dançarina; fitei-lhe o rosto jovem e resplandecente e confessei-lhe que era a primeira vez que eu dançava na vida. Sorriu e me animou a prosseguir, respondendo aos meus olhares de admiração e às minhas frases elogiosas com toda naturalidade, não com palavras, mas com deliciosos movimentos que mais nos aproximavam, excitantes. Tinha a mão direita firmemente apoiado sobre a sua cintura, e esforçava-me por seguir satisfeito e ardoroso o elástico movimento de suas pernas, dos ombros e dos braços; não a pisei uma só vez o que me encheu de assombro; e, quando a música terminou, permanecemos em meio à pista aplaudindo, até que voltaram a soar os compassos do fox e reencetei o rito com toda a devoção de um amante. (HESSE, 2009, p. 132).
Depois, já mais leve solto e alegre, dançou com Hermínia. Mesmo que ainda não se sentisse completamente livre e esquecido de si como na dança anterior, Heller apresentava sinais de superação. A dança mostrara como podemos ter outras perspectivas, como podemos ver a existência por outros ângulos e como gerar novos pensamentos. Aliás, quando dizemos que aprender a dançar exige esforço, leia-se pensar.
Aprender a dançar é como aprender a pensar. Pensar é pôr em prática aquilo que os gregos antigos chamavam noesis (νόησις). É contemplar de forma direta o inteligível. Desse modo, o pensamento prefigura uma atividade intelectual cujo fim se encerra na produção de um novo saber que é fundado na reflexão. Talvez possamos dizer, então, pensar é refletir para, em seguida, produzir um saber.
Nesse contexto, Heller por meio dessa dança/pensamento produz um novo saber acerca de si mesmo e da sua existência. Ele percebe que a dança não lhe concede a certeza da mudança. Não ocorre o fim de sua dor nem tampouco a supressão de suas aflições. Em uma determinada passagem da obra, Hermínia diz que vai ensiná-lo “a dançar, a brincar e a sorrir, e ainda assim permanecer infeliz”. (HESSE, 2009, p. 139). Heller descobre, por meio da dança, a realidade de sua existência. Percebe a vida em sua plenitude, cercada de possibilidades. Ele compreende que na dimensão da vida tudo é possível, tudo é dotado da capacidade de acontecer, tudo é potência. Isso, a princípio, causa espanto. A dor insiste em doer.
Harry Heller, o lobo da estepe, adentra aqui em um outro processo: o processo de aceitação da vida assim como ela é. Um processo que, a priori, conforme relata abaixo, não parece ser muito agradável.
Todavia essa reversão, essa libertação de minha personalidade não constituía, de modo algum, uma aventura agradável e divertida, mas, ao contrário, era frequentemente amarga e dolorosa e não raro quase insuportável. O gramofone soava às vezes diabólico em meio àquele ambiente onde tudo estava sintonizado com um tom inteiramente diverso. (HESSE, 2009, p. 141).
É preciso pois, que Heller destrua sua antiga personalidade, que ele se volte para si e que, assim como fez Zaratustra, deixar que se desenvolva uma nova postura diante da vida, do mundo e da existência. A dança o leva a questionar sua própria personalidade. Personalidade esta que podemos compreender aqui como um modo de aceitação da vida. Fato explicitado na passagem a seguir:
Com a destruição do que havia chamado antes “minha personalidade”, comecei a compreender por que, apesar de todo desespero, eu temera tão horrivelmente a morte, e comecei a notar que também esse temor atroz e ignominioso pela morte era um resquício de minha antiga existência, burguesa e enganadora. (HESSE, 2009, p. 141).
E é neste processo que o nosso lobo da estepe caminha pela sua senda existencial em direção à aceitação da vida. Tal qual ocorreu com Zaratustra ao repelir o espírito de gravidade que insistia em puxá-lo para baixo5, Heller também afugenta o peso mais pesado que trazia em suas costas.
Heller compreendeu finalmente que dançar é pensar a realidade da existência. É compreender a vida com toda sua gratuidade e possibilidade de vir a ser. Ele aceitou a vida quando afirmou que “ainda que o resto do caminho até o ocaso fosse inteiramente desfigurado, o cerne desta vida fora nobre, tinha feição e estirpe, não girava em torno das moedas, mas em torno das estrelas”. (HESSE, 2009, p. 154). Em outra passagem, Hermínia observa o estado de bem-estar causado pela dança: “– a dança estar lhe causando um grande bem – disse. – Quem o visse a quatro semanas, hoje não o reconheceria”. Heller responde: “– Concordo [...] Há anos que não me sinto tão bem”. (HESSE, 2009, p. 161).
Esta aceitação da vida realizada por Heller, possui na filosofia de Nietzsche uma extrema relação com o conceito de Amor Fati. Utilizado pela primeira vez na obra A Gaia Ciência, por diversas vezes encontramos este conceito nos escritos nietzschianos. O termo se refere àquele que ama e afirma o seu próprio destino.
Hoje, cada um se permite expressar o seu mais caro desejo e pensamento: também eu, então, quero dizer o que desejo para mim mesmo e que pensamento, este ano, me veio primeiramente ao coração – que pensamento deverá ser para mim razão, garantia e doçura de toda a vida que me resta! Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: – assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (NIETZSCHE, 2012, p. 166).
O termo Amor Fati ainda pode ser encontrado ao longo de seus fragmentos póstumos de 1888 e em sua autobiografia Ecce Homo. Em ambas as citações, Nietzsche utiliza o Amor Fati para afirmar sua postura de afirmação frente à vida. Para Nietzsche (2009), o Amor Fati expressa o amor pela vida em toda sua plenitude. É a sua natureza mais intima. Trata-se da aceitação da vida frente toda sua adversidade e abundância. Não se trata aqui de um certo conformismo, mas tão somente, de uma constatação de sua realidade enquanto possibilidade. Por isso:
Quem ama o destino aceita o instante. [...] quem ama o destino não se prende ao passado, nem tampouco ao futuro, mas se lança no instante, aceitando-o, afirmando-o e desejando-o como ponto de inflexão no tempo em que presente, passado e futuro estejam dispostos de modo contíguo, formando uma unidade. (LIMA, 2018, p. 146)
Através da dança, Harry Heller, o lobo da estepe, passa a amar o destino e, por consequência, passa também a aceitar o instante. O peso da existência se torna mais leve e já não o maltrata tanto. De modo mais sublime ele começa a desejar a vida com mais afinco e vigor.
Heller vive seu Amor Fati. Assim como Nietzsche descreve em seus escritos, o lobo da estepe se apaixona pela sua vida em torno da dança. A dor e o sofrimento, inerentes a sua existência, já não fazem muito sentido, tornaram-se secundárias e, portanto, são ignoradas. Não que ele tenha se conformado com suas adversidades e tenha aceitado carregar todo fardo pesado em suas costas, não se trata disso. Ele apenas compreendeu que a vida também é isso, mas não somente isso. A vida também pode lhe trazer paz, conforto, prazer e liberdade. É a esta dimensão que ele se apega.
Este é o momento em que o instante se faz presente. Por isso, o instante, de acordo com Sampaio (2005), também é presença, ou seja, é algo que chega e se apresenta. Algo que chega na hora certa. A palavra alemã para instante é augemblick. Lembra algo como o piscar dos olhos. Aquilo que ocorre de forma rápida e inesperada, mas que, ao piscar dos olhos, já ficou marcado. E é ficando marcado que aceitamos de modo incondicional o aqui e o agora. Aceitando-o desejamos que ele eternamente retorne. Aceitamos tanto aquele instante que queremos que ele seja infinito.6 Isso, entretanto, não quer dizer que tudo deve retornar: o retorno da vida, o retorno das coisas, o retorno da história. Não se trata disso, mas tão somente, de uma aceitação incondicional da vida. Aceitar a vida do jeito como ela é, a saber, repleta de possibilidades.
Diante disso, voltamos ao fenômeno da dança, pois Heller parece ter vivido o instante por meio dela. Foi mediante a sua entrega ao movimento da dança que ele compreendeu a vida com leveza. Àquele instante ele desejou que fosse eterno. Heller passou a aceitar sua vida, livrou-se dos complexos que lhe abatia. Para ele, a vida se tornou mais leve, calma e suave. Aqui cabe as palavras de Alain Badiou (2002, p. 79) quando diz que a “dança é antes de mais nada, a imagem de um pensamento subtraído de qualquer espírito de peso”.
Por meio da dança, Heller encontrou a leveza. Passou a se conhecer e enxergar a vida como condição de possibilidade e se entregou a ela de forma inocente. Segundo Badiou (2002, p. 79-80):
A dança é inocência, porque é um corpo de antes do corpo. É esquecimento, porque é um corpo que esquece sua prisão, seu peso. É um novo começo, porque o gesto da dança deve sempre ser como se inventasse seu próprio começo. Brincadeira, é claro, pois a dança liberta o corpo de qualquer mímica social, de qualquer coisa séria, de qualquer convenção. Roda que se move por si só: bela definição possível para a dança. Porque ela é como um círculo no espaço, mas um círculo que é o próprio princípio de si mesmo, um círculo que não é desenhado de fora, um círculo que se desenha.
A partir dali Heller recomeça sua jornada. Podemos identificá-lo com o próprio Zaratustra que levando o peso enfadonho do anão sobre suas costas, num ato de coragem e determinação, decide finalmente romper com aquela circunstância.
“Alto lá, anão!”, falei. “Ou eu ou tu! Mas eu sou o mais forte dos dois; – tu não conheces o meu pensamento abismal! Esse – não poderias suportá-lo!” –
Então aconteceu algo que me aliviou: porque o anão pulou das minhas costas ao solo, esse curioso! E foi encarapitar-se numa pedra a minha frente. (NIETZSCHE, p. 193)
Assim como na obra O Lobo da Estepe, nesta passagem de Assim Falou Zaratustra encontramos um exemplo extraordinário da própria determinação do pensamento. O pensamento que se autorregula, que se autoavalia e que reconhece na natureza da vida a condição de diversidade, adversidade e também possibilidade. Em síntese, podemos dizer que “o pensamento não se efetua em outra parte além daquela que se dá, o pensamento é efetivo ‘no lugar’, é o que se intensifica, se assim se pode dizer, sobre si mesmo, ou ainda o movimento de sua própria intensidade”. (BADIOU, 2002, p. 81).
Seguindo o pensamento de Nietzsche, podemos compreender a dança, nesse contexto, como uma imagem do pensamento. A dança seria a própria aceitação da vida e o pensamento seria essa dimensão da entrega, do deixar-se envolver, do deixar fluir. Trata-se, portanto, do deixar ser. Deixar a coisa acontecer por meio do movimento e ao se entregar, tornar-se leve. A dança é o pensamento refinado, voltado para a aceitação e compreensão da vida como ela é. A leveza seria sua essência. Quando levados pelo movimento suave da dança, tornamo-nos leves. Vivemos aquele instante em que compreendemos a beleza da vida enquanto possibilidade.
Para concluir, é importante considerarmos algo que Alain Badiou (2002, p. 89) nos chama atenção a respeito da dança. A dança seria como um poema que não tivesse sido nem inscrito nem traçado. Seria também como uma dança desdançada. Isso porque, enquanto pensamento, há nela uma dimensão subtrativa. Uma dimensão que retira do movimento todo o saber técnico que seja determinado por uma autonomia da consciência. É subtrativo porque na dança, enquanto metáfora do pensamento, não há uma técnica previamente configurada para se pôr em prática durante seu ato. A dança é entrega, é leveza. Badiou (2002, p. 90) explica como se dá essa subtração:
Como a dança indica essa subtração? Precisamente porque a “verdadeira” dançarina jamais deve aparecer como a que sabe a dança que dança. Seu saber (que é técnico, imenso, conquistado dolorosamente) é atravessado, como nulo, pelo surgir puro de seu gesto. “A dançarina não dança” quer dizer que o que se vê não é em momento algum a realização de um saber, embora de parte a parte esse saber seja sua matéria, ou seu apoio. A dançarina é esquecimento milagroso de todo seu saber de dançarina, ela não executa qualquer dança, é essa intensidade retida que manifesta o indecidido do gesto. Na verdade, a dançarina suprime toda dança que sabe porque dispõe de seu corpo como se ele fosse inventado. De modo que o espetáculo da dança é o corpo subtraído a todo saber de um corpo, o corpo como eclosão.
Portanto, a dança se dá a partir de um movimento de entrega e de aceitação da realidade em que a vida é compreendida na sua mais completa plenitude. É neste instante que ocorre a leveza e, estando nessa dimensão da leveza, desejamos que este instante eternamente retorne, que seja infinito enquanto dure. Foi assim que Zaratustra, Harry Heller e tantos outros que compreenderam a vida por meio da dança e se entregaram a toda sua abundância, gratuidade e possibilidade.
Referências:
BADIOU, Alain. A dança como metáfora do pensamento. In: BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 79-96.
GERVÓS, Luis Antonio de Santiago. Nos limites da linguagem: Nietzsche e a expressão vital da dança. Cadernos Nietzsche. São Paulo, Unifesp. v.1, n. 14, 2003, p. 83-104. Disponível em:<https://periodicos.unifesp.br/index.php/cniet/article/view/7847> Acesso em: 29 jan 2022.
HESSE, Hermann. O lobo da estepe. Tradução de Ivo Barroso. 34ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.
LIMA, Márcio J. S. A influência de Jacob Burckhardt e o conceito de Força Plástica no pensamento de Nietzsche. Tese (Doutorado em Filosofia) – Curso de Filosofia, Universidade Federal da Paraíba. Paraíba, p. 166. 2018.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das letras/Companhia de Bolso, 2012.
ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia contemporânea. Tradução de Ana Pareschi Capovilla. 4ª ed. São Paulo: Loyola, 2011.
Notas
3 Cf. Da visão e do enigma. In: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. p. 190-196.
4 “Eu sou corpo e alma” – assim fala a criança. E por que não deveria se falar como as crianças?” (NIETZSCHE, 2010, p. 60)
5 Cf. Da visão e do enigma. In: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010. p. 190-196.
6 A isso Nietzsche chamou Eterno Retorno do Mesmo. Cf. NIETZSCHE, F. O Maior dos Pesos. In: NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Tradução de Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das letras/Companhia de Bolso, 2012. p. 205.
Notas de autor