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As heterotopias

The heterotopias

Claudio Medeiros 1
Universidade Federal Fluminense, Brasil

As heterotopias

Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 3, pp. 1-10, 2022

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepción: 18 Junio 2022

Aprobación: 16 Octubre 2022

Resumo: Na pós-colônia, a ingovernabilidade depende daqueles que aparecem onde não deviam aparecer, e falam sem autorização para falar. Depende, a rigor, da existência de heterotopias. A questão da espectralidade é, enquanto questão filosófica, a de nossa relação com esses espaços onde os mortos podem estar em aliança com os vivos. Mas os espectros não estão inteiramente aqui, ainda que nos movam, ainda que coloquemos nosso corpo à disposição para que eles possam falar em justiça. Há uma ruptura com o acúmulo da “memória pela memória”, com o desejo de “saber para que o passado não se repita”. No lugar disso, falar aos espectros, como forma de vitalizar uma luta, anônima e continuada, pela terreirização de nossos corpos através da ritualização desses espaços. Desse mesmo estoque de pólvora decorre a dose de liberdade excedida que comandou a luta dos nossos ancestrais contra a escravidão.

Palavras-chave: Filosofia pós-colonial, Filosofia Experimental Brasileira, Filosofia Contemporânea.

Abstract: In the post-colony, ungovernability depends on those who appear where they should not appear, those who speak without authorization to speak. Strictly speaking, it depends on the existence of heterotopias. The question of spectrality is, as a philosophical question, that of our relationship with these spaces where the dead can be in alliance with the living. But the specters are not entirely here, even if they move us, even if we make our bodies available so they can speak in justice. There is a rupture with the gratuitous accumulation of memory, with the desire to “know since then the past does not repeat itself”. Instead, talking to the specters, as a way to vitalize a anonymous and continuous struggle, for the terreirização of our bodies through the ritualization of these spaces. From that same stock of gunpowder comes the dose of exceeded freedom that commanded our ancestors' struggle against slavery.

Keywords: Postcolonial Philosophy, Brazilian Experimental Philosophy, Contemporary Philosophy.

Nossas carroças só deixam poeira nos olhos

Jamais encontrarão a estrada que abrimos em segredo

Na noite funda

Quebramos suas barricadas e fronteiras

Somos a clareira no fim da mata

Vocês sempre ouvirão nossos tambores

Todo chão é terreiro.

(Os 2 lados da linha vol. 1, Marcos Nascimento)

1. Filosofia como medicina

Uma discussão sobre política que fosse ao mesmo tempo uma discussão sobre o que é o conhecimento, e vice-versa. Será essa a forma como Platão criou uma linguagem para a filosofia que é, em alguma medida, a linguagem que ainda hoje falamos (RANCIÈRE, 1996, p. 72). Não foi diferente com fourieristas, icarianos e saint-simonianos do século XIX, em nada difere de como Jacques Rancière representa a filosofia política platônica2. Utopia é quando você dispõe de um modelo teórico, e você estipula que a realidade será tanto mais racional quanto mais ela se conforma àquele modelo. Platão não extrai uma prática política de um projeto teórico. Ele parte do reconhecimento de uma organização política insuficiente, e lança bases de uma poética, da organização social de uma República que é, simultaneamente, a oferta de um sistema de pensamento que dará conta da experiência humana. Enquanto Platão oferecia um sistema de pensamento político que desse conta da experiência humana e, ao mesmo tempo, mapeasse uma ordenação estatal que fundará uma sociedade justa, Sócrates pensa que as coisas não podem mudar se as pessoas não desejarem que mude. E o fato de Sócrates atestar nada saber revelaria algo sobre a natureza do conhecimento: o que importa são os efeitos que a verdade causa na forma como se vive. A verdade não está nas palavras. A filosofia teria a ver então não com o desejo da verdade, mas com a verdade do desejo. É a decisão voluntária de viver de uma certa maneira, é a opção de dar à vida certo estilo que não só determina, mas é condição para o iniciado ingressar neste ou naquele ensino escolar helenístico. Qual estilo dar à minha vida, para que eu viva uma vida filosoficamente verdadeira? (FOUCAULT, 2011, p. 206). Filosofar torna-se um tipo particular de medicina: quanto me custa, e quanto me dói, na condição de sujeito implicado em um regime terapêutico, ceder à decisão de saída dessa letargia? Pouco contribuiria medir a aposta que Foucault fez nessa imagem kantiana de Sócrates. Interessa-nos pensar como voltar a falar em filosofia após tanto tempo enclausurados num eterno dia da marmota. Como voltar a falar de futuro, especialmente agora que, com o consentimento do partido dos intelectuais, a redução tecnológica das relações fermentou a reprodução sem prazo de usos e costumes da aprendizagem mercantil? Faz sentido falar de futuro, quando percebemos que nossos assentamentos de classe média não são sustentáveis em um mundo aterrorizado pelo feitiço do tempo viral? Nossa forma de vida, reproduzida na letargia da quarentena, não é a única disponível. O que nos fez pensar se a negação radical que a quarentena ofereceu não foi reciclada numa garantia de continuidade narcísica do normal. Não disputamos a tendência global à positivação da quarentena, que se deu em nome da preservação da normalidade, mesmo que reclusa nas habitações (MEDEIROS; GALDINO, 2020). Não o fizemos por desespero, mas também porque foi desejável. Gostaríamos de pensar se, na pós-colônia, não há um excedente que não se deixa dizer conforme ao regime de coisas que consideramos a normalidade. Aqui onde vida é despesa, é também onde impera um excedente às formas de vida. Antes de questionar o que da normalidade continua desejável, cabe ao observador mudar a direção do olhar ou a posição do umbigo. Na pós-colônia, obter uma ou outra dessas imagens requer a reiteração de uma constituição ancestral em elo com a proliferação das táticas de sobrevivência provenientes da barbárie dos cafezais, dos canaviais e das minas. Este foi elo de uma cadeia de forças que integrou divindades, ancestrais, descendentes e um espaço ecológico permanentemente reinstaurado pela repetição de rituais – ou seja, pela transferência, reinvestimento e assentamento de uma cosmologia, um regime do imaginário e um fluxo de forças vitais. Eu me refiro a assentamentos culturais (ANKH; MEDEIROS, 2020) e aos pequenos abolicionismos da vida cotidiana que, ao longo destes séculos, gestaram uma constelação de lutas não interpretáveis dentro das coordenadas políticas fornecidas por conflito entre republicanos e monarquistas, liberais e demais partidos. Alguém duvida que nossas revoltas e insurgências pela liberdade fizeram o medo mudar de lado no curso de todo o XIX? O que trazemos, hoje, da primeira abolição dinamitada na grandeza de André Rebouças, Luiz Gama, ou de um José do Patrocínio? No caso das nossas segundas abolições, onde mora o seu viço senão nos “ebós epistemológicos” (RUFINO, 2019, p. 88) despachados contra as formas metropolitanas de desencantamento da vida? Onde senão na navalha do Malandro Camisa Preta, na valentia de Seu 7 Coroas, na pontaria do Caboclo das 7 Encruzilhadas? Lutas sem porta-vozes gregários, sem grandes gestos heroicos, descongestionadas de sistemas habituais de referência do Império. Insurgências silenciosas essas que gestam formas de produção de subjetividades alinhadas com o aquilombamento das reservas de vida que a ancestralidade afro-ameríndia nos destinou como legado.

2. O colonialismo é a desmagificação da vida

Mostrei uma foto minha para minha vó, eu carregado de limo nos bolsos, cabelo embaraçado de musgo, empapado de água até a canela na Lagoa de Cima. A vó disse que não sabia da Lagoa de Cima, mas sabia de um rio bravo que passa aqui em Campos. Nesse rio o seu pai pescou, e os pais dos seus pais, e os seus tios, e os seus primos navegaram. O rio Paraíba do Sul, que desce para Campos passa antes por São Fidélis, cidade de parte da família. Depois me disse que eu não conheço nada sobre esse rio, que com rio não se brinca, para tomar cuidado que a correnteza é forte. Na cheia o rio traz boi, árvore. Senti o cheiro barrento dos tambaquis e do querosene queimando nas lamparinas rio acima, em São Fidélis. Senti a mão velha e corpulenta da minha avó entrando em minha boca, o cheiro de ferro da terra enchendo minha vida até a garganta – como escreve o poeta de Inhaúma. O leito do Paraíba do Sul alimentou seus parentes, matou a sede dos mais antigos da terra, ou só matou simplesmente. Quando me mudei do Rio para Campos dos Goytacazes, Rafael Haddock-Lobo me ligou pra avisar que esse chão é de uma tribo muito especial, talvez a mais feroz que tivemos, e que o chão dos Goytacás, o leito desse rio, era uma coisa bonita de ser saudada. Tinha uma coisa interessante sobre eles: seus rituais de passagem. O garoto, para virar homem, precisa mergulhar no mar, e quando aparecesse o tubarão, ele dá um soco no nariz do tubarão, o tubarão abre a boca, ele enfia uma viga de madeira na boca do tubarão que o impede de fechá-la. Com a mão enfiada na garganta até as entranhas do bicho, puxa as vísceras. Depois nadavam de volta com o tubarão para fazer um colar de dentes. Foram bravos como o rio e foram exterminados de maneira covarde: como os portugueses não conseguiram vencer a guerra, deixaram cestos com varíola, foi a peste que os matou. Isso os tornava naturalmente protetores contra a peste, vítimas do extermínio através de uma doença pensada. Guardiões desse lugar, entidades da terra, venceram a morte e desafiam as membranas do tempo. Nunca foi extraordinário cultuarmos os ancestrais dos habitantes mais antigos da terra, e eu estava apenas há duas gerações de saber que o rio tem personalidade, que é sagrado, e que quando despersonalizássemos o rio e esvaziássemos ele de sentido, considerando que estes atributos seriam exclusivos dos humanos, liberaríamos esses lugares para que se tornassem recursos naturais, resíduos de atividade extrativista (KRENAK, 2019, p. 49). E minha avó saudava o Paraíba do Sul de uma maneira muito especial me dizendo que gostava muito desse rio, como se falando dele falasse de outra pessoa. O rio tinha humor, tinha personalidade, era seu parente.

3. A filosofia do corpo na medicina das semelhanças

Ptolomeu acreditava ser possível desenvolver a previsão da disposição do corpo humano pelo conhecimento das estações.3 “Através da configuração celestial, o tipo corpóreo e a capacidade mental da qual a pessoa é dotada desde o berço podem ser anunciados.” (PTOLOMEU, sem datação, p. 4) Brás Luís de Abreu, em Portugal Médico (1726), dizia que homens dotados de compleição saturnina tinham com frequência a estatura do corpo “grossa, avultada e grave, mas com alguma desproporção a respeito das partes que a compõe”: o rosto é vertical e gordo, a cabeça em um arredondamento estabanado, os olhos negros e góticos, “centralmente dispostos, um maior que o outro”, “o nariz grande, descarnado e agudo” (ABREU, 2011, p. 57) O homem, segundo Paracelso, era um constelado de astros. Seu céu interior podia até ser autônomo, desde que o homem se dispusesse, pela sabedoria, a manter em equilíbrio seu firmamento interno. Aí cintilam estrelas invisíveis. Através da sabedoria o homem descobre que carregamos estrelas corpo adentro, sorvemos o firmamento nas suas influências (PARACELSO, 1913, p. 3, In: FOUCAULT, 2007, p. 28)

Sabedoria dos espelhos, ela envolve o mundo como um elo a girar até o fundo do céu e mais além. Assim escreviam e pensavam seus médicos e alquimistas, como quem invocasse forças infernais que não pôde conter. Seu gênero poético é zona de interferência entre as vozes da terra e o fio desencapado das antenas. Talvez daí a preferência dos bebês pelos partos durante a lua cheia e a lua nova, ao invés das luas crescente e minguante (as piores luas); a poda preferida na lua nova (a lua crescente mirra os frutos); daí o plano piloto dos povoados que originaram as cidades romanas ser orientado por duas fartas avenidas principais que se cruzam, o cardo e o decumanus: “duas linhas traçadas pelo littus do fundador, de norte a sul e a de leste a oeste, que serviam como referência para o plano futuro da rede urbana. Nestas o agrupamento ordenado pretende apenas reproduzir na terra a própria ordem cósmica.” (HOLLANDA, 1995, p. 97)

Como foi possível àquela cultura – anterior à celebração das revoluções copernicanas – pensar o corpo como um equilíbrio entre o firmamento, onde cintilam estrelas visíveis, e o firmamento íntimo do corpo constelado? A medicina não foi alheia a isso durante muitas gerações. Epidemias tinham a ver com a qualidade das interações dinâmicas entre corpo e causas meteorológicas. Sabe-se que a imagem da influência dos fenômenos da atmosfera na produção das epidemias se desenvolverá para um outro lado com o cartesianismo. Então volumes atomizados, nascerão em pouco tempo indivíduos divorciados do sistema de interações cósmicas: o homem tornar-se-á organismo. Só que, até esse momento, o colapso epidêmico, a doença, o corpo adoecido, tinham relação com a perda momentânea do equilíbrio com a dimensão telúrica. Adoecer sinalizava certa crise reversível da natureza, quando o ocaso deixaria de exercer justiça às proporções que simpatizavam destino humano com a conjunção dos astros. Como trabalhava a medicina? Em primeiro lugar, no registro dos sinais cósmicos que anunciam o perigo do contágio presente. Quando, no topo do céu, algum desses astros chamados “planetas setentrionais” ou “austrais” procuram entrar em conjunção, saberá o médico que, nessa região, ocorrem grandes mudanças no entorno da terra: uma grande umidade como efeito de vapores que exalam da terra e das águas; em seguida, as secas que causam incêndios para desfazer a nuvem de vapores. Ao médico é aconselhável assistir ao doente, ele observa o levante dos astros, e profetiza pestes tal como os satélites artificiais preveem tempestades. Seu raio de ação é sempre estar à espreita do “conhecimento das mudanças das estações, e dos nascimentos e ocasos dos astros, e de como cada um deles ocorre”, sabendo “de antemão como será o ano” (HIPÓCRATES, 2005, p. 95). Seria preciso estar atento para ter sucesso na arte médica, ser um conhecedor prévio das ocasiões oportunas ou inapropriadas para a saúde. A semelhança entre corpos humanos e astros era “base dos estudos fisiognômicos, que propunham interpretar o corpo e o comportamento humano fundamentado nas assinaturas deixadas pelos corpos celestes” (ABREU, 2011, p. 59) desde o marco fundamental da Criação.

Trago essas coisas para que se possa lembrar, ainda que vagamente, que já fomos menores, ou seja, já fomos algo além de manipuladores e colonizadores. Já sentimos a doença como perturbação de um corpo que é o corpo do mundo, já previmos a divisão de tronos e a queda de impérios nos eclipses da lua, remediamos o pavor dos trovões com feitiços e sacrifícios, reverenciamos o humor do tempo (do qual depende a colheita) em seus surtos de temperamento. Muito embora a ciência da natureza pudesse explicá-los desta ou daquela forma, a própria natureza também se sentiu chicoteada no espelhamento da maravilhosa tolice humana: maquinações, incestos, traições e toda sorte de desordem ruinosa nos acompanharam sem sossego à sepultura por desrespeitarmos as leis da natureza entre pais e filhos, criaturas e divindades, homens e espíritos insalubres. Aos poucos, nossas culturas, que hoje se imaginam desencantadas, começam a admitir como mundo apenas o que sujeita o mundo àquilo que ele seria caso fosse mais racional. Gosto de citar um trecho do Jovem Werther quando me deparo com a lembrança desses presságios escatológicos, é quase como se tivéssemos sido amputados de algo cuja existência foi esvaziada de dignidade.

Não havia ainda terminado a dança, quando os relâmpagos que já há muito víamos brilhar no horizonte, e que eu seguia empenhado em não levar a sério, começaram a tornar-se mais fortes, até que os trovões dominaram a música. Três damas saíram das filas e os seus cavalheiros seguiram-nas; a desordem generalizou-se e a orquestra parou. É natural que, quando um acidente ou um terror súbito nos surpreende no meio do divertimento, a impressão causada seja maior do que em qualquer outra ocasião [...]. É a isso que atribuo as estranhas caretas que vi desabrocharem no rosto de muitas damas. A mais prudente foi refugiar-se num canto, de costas para a janela e tapando os ouvidos. Outra, de joelhos diante dela, escondia a cabeça no colo da primeira. Uma terceira se meteu entre as duas e envolveu sua irmãzinha num mar de lágrimas. Algumas queriam voltar para casa; outras, que sabiam ainda menos o que fazer, já nem sequer tinham forças para reprimir os atrevimentos de nossos jovens estouvados, bastante ocupados em interceptar, nos lábios das belas aflitas, as ardentes súplicas que faziam ao céu. (GOETHE, 2013, p. 40-1).

A cena corta para uma imagem que me perturba. Debaixo do caos generalizado que se instaurou desde a tempestade, “uma parte dos homens havia descido para fumar com tranquilidade o seu cachimbo” (2013, p. 41)

4. O lúmpen dos espectros

ilberto Freyre, em livro de sociologia sobre espíritos desencarnados e encantaria pernambucana, escreve “que o Rio recorre ao sobrenatural principalmente para ver o futuro; enquanto no Recife o sobrenatural é sobretudo uma p

Gilberto Freyre, em livro de sociologia sobre espíritos desencarnados e encantaria pernambucana, escreve “que o Rio recorre ao sobrenatural principalmente para ver o futuro; enquanto no Recife o sobrenatural é sobretudo uma perseguição do presente pelo passado.” (FREYRE, 1987, p. 13) Não se sabe ao certo. Sabe-se que na Corte Imperial – na segunda metade do XIX – estariam muito bem distribuídos os papéis entre os que mandavam dizer missa para as almas do purgatório, as carpideiras, os que pediam donativos para a filantropia dos enterros, as viúvas de luto, e as demais almas, sufragadas nas igrejas, cujos corpos dariam ar da presença pelo cheiro impregnado no reboco. Em Esaú e Jacó de Machado de Assis, Dona Natividade, ao descer o morro do Castelo após consulta com cabocla que realizava vidências sobre as “coisas futuras”, “tirou da bolsa uma nota de dois mil-réis, nova em folha, e deitou-a à bacia” (2014, p. 57) de um irmão das almas, um sujeito que recolhia esmolas para as almas negligenciadas, mortos desconsolados, os sem missa e sem cerimônia. Estamos falando de uma sociedade bem mais ritualizada que a nossa, onde exercícios religiosos formavam parte essencial da vida, e as almas seriam objeto de culto e motivos de preces. Havia certa integração doméstica entre o teatro da vida e o teatro da morte: vivos e mortos “faziam companhia uns aos outros nos velórios em casa, [...] atravessavam juntos ruas familiares, os vivos enterravam os mortos em templos onde estes haviam sido batizados, tinham casado, confessado, assistido a missas e cometido ações menos devotas.” (RODRIGUES, 1997, p. 93)

Pode-se rasurar um Gilberto Freyre para dizer que não há abertura de futuro dentro de uma dinâmica de transgressão do colonialismo que ignore certa “perseguição do presente pelo passado”. A sorte futura de Natividade não aparece dissociada da honra prestada às almas ancestrais daquela parte velha do Rio colonial. A perseguição do presente pelo passado, credibilizada a partir do seu sentido, alerta quanto a uma urgência apenas: a elaboração de um novo calendário cultural e de uma agenda política pós-colonial implicam, dentro de um projeto de futuro, certo projeto de passado. O quão longe se vai na rasura (SIMAS; RUFINO, 2018) experimental da Colônia dependerá do quão subversiva é a perseguição do presente pelo passado. É nesse mesmo passo que as giras de umbanda apontam para a perseguição do presente pelo passado, elas apontam para o fato de que a gira dos corpos macumbeiros desbloqueia, no rito, dimensões tridimensionais do tempo destinadas ao lúmpen dos espectros. Gostaria de chamar de lúmpen dos espectros esta falange para quem o irmão das almas recolheu as moedas: almas da indigência, os sem sepultura, espíritos de homens e mulheres quebrados e rachados na moenda da colônia penal das fazendas. Como me disse Rafael, no Congá dos cultos de matriz afro-ameríndia os santos convivem com os espíritos dos antepassados que povoaram este território, índios e pretos velhos, mas também com boiadeiros, ciganas, prostitutas, malandros, marinheiros, baianos, criminosos, e quem mais quiser aparecer (HADDOCK-LOBO, p. 2020). São eles os convidados a baixar para dançar, curar, para beber, se embriagar, baforar seus cachimbos, riscar o ponto, desfazer as amarras e transmitir o legado da luta contra a barbárie em curso.

Suspeito que nos territórios herdeiros da colonialidade apenas um sentimento avesso a ficções de origem deveria produzir historiografias – o ressentimento revestido de passadismo e o imaginário de progresso são polos de um único enquadramento temporal: a bidimensionalidade da linha cronológica. Nossas ruas e terreiros, os subúrbios das velas acesas nas encruzilhadas, as cidades nos pelourinhos e antigos cemitérios clandestinos, possuem algum excedente, um “eco das pedras entrando no silêncio”, como diz Sérgio Ortiz de Inhaúma. A vocação para esse excedente transforma o discurso histórico em gênero poético ou em palavra de encantamento para conjurar eguns silvestres entocados no xarpi dos viadutos e fábricas abandonadas. O excedente ecoa as culturas de oralidade, fala a língua dos ritos ancestrais e de uma determinada economia do imaginário, quer dizer, o excedente não é orientado pelas silhuetas rígidas de lógos histórico ou pelas “disputas de narrativa”. Não que através disso ele habite um fora, mas antes funciona como princípio de pirataria e movimento de tensionamento de limites protagonizados pelo esclarecimento (a metafísica da presença, a idealidade do sentido e o princípio de identidade como medidas para pensamento e escrita).

Uma historiografia que nem fosse diletantismo senil, nem iluminismo desgostoso com os retrocessos das dinastias do império, mas que acolhesse os efeitos de limiaridade que a espectralidade afro-ameríndia nos destina. Esta limiaridade se insinua no lugar de que aquilo que retorna, na aparição mestiça do espectro, não será reapresentação de algo que um dia já foi, mas sua rasura. A vida encantada é o espectro que retorna na sua espectralidade, fenômeno novo, inédito, anunciado. “Haverá aí, entre a coisa mesma e seu simulacro, uma oposição que se sustente? Repetição e primeira vez, mas também repetição e última vez, pois a singularidade de toda primeira vez faz dela também uma última vez. Cada vez, trata-se do acontecimento mesmo, uma primeira e uma última vez.” (DERRIDA, 1994, p. 26)

Não é sem motivo que chamamos antropoceno ao momento correspondente à oportunidade em que reservamos aos mortos que se ancestralizaram um espaço restrito no teatro da vida. Na marcha metafísica pelo desencantamento do Ser no Ocidente, a imagem dessacralizada da natureza é espelhamento de uma economia do imaginário que desabilitou as tecnologias ancestrais de se atualizarem, ou seja, de serem o que elas são: passado efetivante, arkhé constituinte, régua de temporalidade. Somente o recurso a tecnologias ancestrais permitiu-me positivar algo da “aventura civilizatória brasileira: aquela que transformou o infame pau de bater nos corpos escravizados em baqueta de bater no couro do tambor para, percutindo o chamado aos ancestrais do lado de lá do oceano, inventar novamente o mundo a partir da rua.” (SIMAS, 2019, p. 115) Sem o recurso à ancestralidade, a crueldade habilitada no racismo já teria comido meus olhos e dos meus amigos, e, doentes de Colônia, não cantaríamos como canta Gloria Bomfim para Obaluwaye:

O velho é o dono do tempo

Não para nunca de andar

E todo o peso do mundo

Carrega em seu xaxará

A volta do mundo é grande

Pra quem nem bem começou

A gente faz o caminho

Que o velho já caminhou

Quem tem ajuda do velho

Já vira caminhador

Que mais de vez rodou o mundo

E mais de vez já voltou

(Paulo César Pinheiro, O mais velho)

6. Heterotopias

Achille Mbembe (2018, p. 175) chama de “assimilação criativa” o princípio de negociação, pirataria e entrelaçamento que possibilitou formações de territorialidades itinerantes como modalidades de constituição das identidades diaspóricas: se tendemos a pensar que “a África foi falsificada no contato com o exterior, como dar conta da falsificação à qual os negros, por sua vez, em seu esforço para ingerir (digerir) o mundo, submeteram o mundo?” (2018, p. 182) Enquanto o sistema colonial implicou em muitos aspectos desterritorialização e apartheid urbano, o sagrado popular, do complexo cosmológico assegurado por cultos de matriz afro-ameríndia, transformou mitologicamente o território num espaço de experiência associativa possível4.

O egbé, a comunidade litúrgica Nàgô, é uma destas alegres experiências de rasura e ampliação de repertórios e do imaginário diaspórico. O terreiro de candomblé funciona, fisicamente, como um tipo de suporte de um imaginário social. Nas casas dos òrìsás, no Ilé àse, no Ilé Ibo Aku (casa de culto aos ancestrais), nos barracões das festas e giras, na mata virgem (onde iniciados nos segredos de Òsanyìn “chamam” as folhas, raízes e os demais componentes vegetais indispensáveis ao rito), em todos os seus elementos o terreiro é contração de uma medida de temporalidade diferente daquela temporalidade imprópria onde cotidianamente nos movemos. Ora, a abertura para um futuro interditado pelo desencantamento colonial, da qual dependeu a ampliação das intensidades de existência dos indivíduos, passou por uma baldeação neste passado mítico. Este não é o passado dos historiadores, trata-se de um passado constituinte, medida da potência de agir gerada e reinvestida na cangira dos encantados. São as vésperas do presente que estão aí reencenadas, em rodas de ciranda, desde as vésperas da primeira manhã do mundo.

Ciranda de roda De samba de roda da vida Que girou, que gira Na roda da saia rendada Da moça que dança ciranda Ciranda da vida Que gira e faz girar a roda Da vida que gira

(Martinho da Vila, Roda Ciranda)

Essa baldeação no passado é de caráter heterotópico, porque apesar de os elementos mitológicos estarem assentados, metonimicamente, no território sagrado do terreiro, o acesso ao seu regime de imagens não é dado senão a iniciados no rito. Sem esse território ancestralmente ritualizado, por mais codificado que seja, a dinâmica das forças vitais da mitologia yorubana e o regime de imagens dela dependente não conseguiriam se proliferar.

Nàgô é nome genérico dado a um complexo cultural que compreende uma diversidade de nações: os “Egbá, Egbádo, Ijebu, Ijexá, Ketu, Sabé, Iaba, Anagô e Eyó, incorporando traços dos Adja, Fon, Huedá, Mali, Jegum e outros conhecidos no Brasil com o nome genérico de Jeje. Em termos históricos e geográficos, essas nações provinham da Costa da Mina (área que hoje abrange Benin, Nigéria e Togo) e começaram a chegar ao Porto de Salvador, na Bahia, em fins do século XVIII, como moeda de troca africana para aquisição de fumo produzido no recôncavo baiano.” (SODRÉ, 2017, p. 88) Se, pela escravidão, a política colonial produzia a barbárie em nome da civilização, no processo inconcluso da diáspora o espaço geográfico da África e seus conteúdos culturais se aquilombaram na encruzilhada atlântica. Uma encruzilhada que gerou, em movimentos de contrapelo histórico, a ampliação do imaginário de uma variedade de sociedades e culturas, como a nossa.

Esta experiência de convívio de diferenças resguardou, acima de tudo, uma perspectiva de um fundo em comum: a transinvenção do território mítico ameríndio, africano e afro-ameríndio através da ritualização da vida nas frestas da própria colonialidade. Conforme me mostrou Ronnielle Singular, podemos nos arriscar a pensar a busca pela terra sem males dos Guarani, a Aldeia Maracanã, as Irmandades dos Pretos na Igreja Católica, as pajelanças nas cidades, os quilombos, Canudos, Chiapas, os Messianismos Timbira, entre tantos outros, como relativamente acolhidos neste acontecimento. Mas esse já é outro texto.

Referências

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SODRÉ, M. Pensar Nagô. Petrópolis: Vozes, 2017.

Notas

2. “Basta que a partilha deixe cada um no seu lugar, e de fato há duas maneiras de garantir isso. Há a velha e autoritária franqueza que, em sua versão conservadora, diz que, se os sapateiros se meterem a fazer leis, só haverá na cidade leis ruins e mais nenhum sapato, e, em sua versão revolucionária, que se pretenderem fazer eles próprios a filosofia da emancipação operária, reproduzirão o pensamento feito especialmente para cegá-los e fechar o caminho de sua libertação.” (RANCIÈRE, J. A noite dos proletários. Trad. Marilda Pedreira. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 26)

3. “O que impediria esse pesquisador cuidadoso de compreender também a qualidade geral da idiossincrasia de cada um dos homens (por exemplo, qual é o seu tipo de corpo e qual é o seu tipo de alma), com base no seu ambiente de nascimento? E de compreender também os eventos de cada momento, tendo em vista que, por um lado, um tipo de ambiente é proporcional a um tipo de temperamento e pode contribuir para a saúde, e, por outro lado, outro tipo de ambiente é desproporcional e contribui para a adversidade? Portanto, através desses e de semelhantes argumentos, pode-se compreender que esse tipo de conhecimento é possível.” (tradução de Marcus Reis de PTOLOMEU. Tetrabiblos, p. 6 da versão inglesa, p. 315, Caderno de História e Filosofia da Ciência, Campinas, série 4, vol. 1, n. 2, jul.-dez. 2015.)

4. O terreiro, se por terreiro compreendermos uma prática expandida para além do candomblé, é um mundo que “inventa e cruza múltiplas possibilidades de ressignificação da vida frente à experiência trágica da desterritorialização forçada. O terreiro, termo que compreende as mais diversas possibilidades de invenção dos cotidianos em sociedade, não se configura como um mundo particular à deriva nos trânsitos da diáspora. O mesmo codifica-se como uma experiência inventiva que inscreve modos em coexistência e interação com as mais diversas formas de organização da vida. Assim, os terreiros por aqui inventados apontam para uma vasta ecologia de pertencimentos e para a dimensão de uma cosmopolítica das populações negras no Novo Mundo.” (SIMAS, L; RUFINO, L. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018, p. 45.)

Notas de autor

1 Doutor(a) em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil. Professor(a) da Universidade Federal Fluminense (UFF), Campos dos Goytacazes – RJ, Brasil.
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