Artigos
A tendência à destruição do domínio público pela hegemonia da razão neoliberal
The tendency to destruction of public realm by the hegemony of neoliberal reason
A tendência à destruição do domínio público pela hegemonia da razão neoliberal
Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 3, pp. 45-54, 2022
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepción: 20 Abril 2022
Aprobación: 23 Septiembre 2022
Resumo: Partindo das distinções arendtianas do conceito de público na condição de aparência, exposição e publicidade e público como compartilhamento de um mundo comum tentarei mostrar como nossa percepção da realidade é dependente do senso comum. Essa característica própria da condição humana submete todas as sociedades ao desafio de criar e manter um domínio público, em que, ao confrontar-se umas com as outras e com o mundo percebido, as distintas opiniões possam elevar-se do nível da opinião própria ao patamar de visão comum da realidade, tornando, assim, o mundo partilhável. Em seguida, apresento as características da razão neoliberal a fim de concluir que ela não pode fundar um domínio público e precisa mesmo destruí-lo. Apresento essa ameaça da hegemonia da razão neoliberal sobre o senso comum contemporâneo em termos de tendência porque a total destruição do domínio público significaria também a extinção das sociedades humanas como agregação social e política, o que já foi tentado nos regimes totalitários e fracassou.
Palavras-chave: Domínio público, Razão Neoliberal, Hegemonia.
Abstract: Starting from the arendtian distinctions of the concept of public as appearance, exhibition and publicity and public as sharing a common world I will try to show how our perception of reality is dependent on common sense. This own characteristic of the human condition submits all societies to the challenge of creating and maintaining a public realm, in which the different opinions can, in confronting each other and both with the perceived world, rise from the level of self-opinion to common vision of reality, thus making the world shareable. Next I present the characteristics of neoliberal reason to conclude that it can not found a public realm and even needs its destruction. I present this threat of the hegemony of neoliberal reason over contemporary common sense in terms of tendency, why the total destruction of public realm would also mean the extinction of human societies as social aggregation and politic, which has already been tried in totalitarian regimes and failed.
Keywords: Public Realm, Neoliberal Reason, Hegemony.
Introdução
O problema que pretendemos discutir aqui poderia ser apresentado da seguinte maneira: a hegemonia da razão neoliberal sobre o senso comum das sociedades capitalistas contemporâneas representa uma ameaça ao domínio público? Essa ameaça pode significar a ruína e a destruição do domínio público, em particular aquele institucionalmente constituído pela democracia liberal? A hipótese que orienta este estudo é de que os pressupostos fundamentais da razão neoliberal e seu modo de subjetivação são incompatíveis com a existência de um domínio público nas sociedades capitalistas contemporâneas, espaço fundamental para o desenvolvimento da própria democracia liberal.
Neste trabalho, tomamos o termo hegemonia como inicialmente proposto por Gramsci, em duplo sentido: de um lado, como direção intelectual e subjetivação das ideias dominantes aceitas consensualmente; de outro, como controle político coercitivo, inclusive com o uso do poder policial e militar (ALVES, 2010). “Razão neoliberal” é um termo cunhado por Verónica Gago (2018) que sumariza, à sua maneira, o longo debate desde a denúncia de Forrester (1997) sobre o Horror econômico neoliberal, passando pelos trabalhos mais recentes de Dardot e Laval sobre A Nova Razão do Mundo (2009, 2016) que tentam compreender a lógica societal do neoliberalismo para além dos lugares-comuns sobre a natureza do capitalismo contemporâneo. Discutiremos adiante as características da razão neoliberal. Para início, basta dizer que seus ideólogos e operadores políticos nunca o conceberam somente como um programa econômico para o capitalismo do século XX. Como expressou Margaret Thatcher em 1981, “economics are the method; the object is to change the heart and soul” (“economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma”, em tradução livre).
Abordaremos as atividades do domínio público a partir da perspectiva de Hannah Arendt. Ela o define como um espaço de aparição, de autoexposição e publicidade, mas também como um lugar partilhável, comum. Escolhemos domínio público para verter a expressão public realm, originalmente usado pela autora, em detrimento de esfera pública ou espaço público como também é comumente traduzido para o português, para marcar sua perspectiva de que o público, na acepção proposta por ela, é sempre plural. O domínio público, para Arendt, é o reino do conflito de opiniões, do contraditório e simultaneamente o lugar da comunidade, do comum no sentido de partilhável, comunicável. O mundo posto diante dos primeiros hominídeos era, objetivamente, o mundo ao alcance das suas percepções e, portanto, o seu próprio mundo percebido. Para que isso se transformasse em um mundo adequado ao convívio e desenvolvimento da humanidade no sentido de uma cultura e civilização, como a conhecemos hoje, seria necessária a descoberta de que o mundo percebido por cada um de forma peculiar teria algo em comum com o mundo percebido por outro semelhante. Foi a objetividade do mundo que exigiu o desenvolvimento da linguagem e da comunicação. Assim, é por aparecer para todos que o mundo pode ser comum, isto é, comunicável, partilhável.
Pela hegemonia da razão neoliberal sobre o senso comum, o estudo sistemático e reflexivo sobre as ameaças objetivas de destruição do domínio público nas sociedades capitalistas contemporâneas é essencial para, em primeiro lugar, disseminar na comunidade científica os diferentes enfoques sobre a questão e possibilitar, assim, uma visão comum do problema. Mas também tem, para o público não especializado no assunto, a relevância de chamar a atenção para a necessidade de, se não extinguir, ao menos mitigar a influência das ideias neoliberais sobre nossas sociedades para permitir o debate acerca de alternativas para nossa crise cultural/civilizacional.
Apresentamos essa reflexão a seguir em três momentos. No primeiro, exploramos com Arendt as distinções sobre o conceito de público e as bases materiais da necessidade de um domínio público para a manutenção da civilização humana sobre o planeta terra ou qualquer outro que viermos a habitar no futuro, isso porque aquilo que chamamos realidade objetiva depende em boa medida do que o senso comum considere tangível.
No segundo momento, descrevemos as características do fenômeno social do neoliberalismo. Apontamos para suas estratégias como ideologia política, enfatizando aquelas que, nitidamente, se confrontam com a democracia liberal. Mostramos a crise que a hegemonia neoliberal sobre o senso comum das sociedades capitalistas contemporâneas provoca na própria manutenção de um domínio público. Crise que se instala tanto no domínio público que surge naturalmente quando as pessoas se reúnem para falar e agir em comum, quanto naquele artificialmente organizado institucionalmente para esse fim, como os parlamentos e conselhos de gestão de toda ordem, comum às várias formas de democracia liberal.
No terceiro momento, refletimos sobre as potencialidades positivas da crise e os limites da razão neoliberal em perpetuar-se como razão dominante, em face dos seus próprios interesses econômicos e sua contradição com a condição humana.
1. Domínio público e senso comum
Na seção 7 d’A condição humana, cuja primeira edição é de 1958, Arendt inicia a discussão sobre as características do domínio público explicando que o termo “público” (public) indica dois fenômenos relacionados entre si, mas não totalmente idênticos. A expressão denota, em um certo sentido, aquilo que aparece e é visto e comentado por todos, mas também, em um outro sentido, o próprio mundo comum que se interpõe entre os homens.
A primeira indicação do termo é fundamental, pois representa o espaço em que todas as coisas, ao aparecerem, adquirem realidade tangível. Tudo o que existe na natureza, os seres vivos e inanimados, as coisas feitas pelo homem e o próprio homem dependem da aparição, isto é, da publicidade. A definição mais precisa do termo público, nesse sentido, aparece n’A vida do espírito, obra póstuma publicada em 1977, sob a direção de Mary McCarthy, em que Arendt afirma que:
Neste mundo em que chegamos e aparecemos vindos de um lugar nenhum, e do qual desaparecemos em lugar nenhum, Ser e Aparecer coincidem. A matéria morta, natural e artificial, mutável e imutável, depende em seu ser, isto é, em sua qualidade de aparecer, da presença de criaturas vivas. Nada e ninguém existe neste mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador. Em outras palavras, nada do que é, à medida que aparece, existe no singular; tudo que é, é próprio para ser percebido por alguém. Não o Homem, mas os homens é que habitam este planeta. A pluralidade é a lei da Terra. (1991, p. 17).
Tudo o que existe sobre a terra, em particular o mundo comum construído por mãos humanas, tem sua identidade reconhecida por alguém capaz de ver, ouvir e falar sobre o que vê e ouve, ou seja, pressupõe em seu próprio ser um espectador.
O segundo sentido do termo público complementa o primeiro, na medida em que representa o espaço dentro do qual os homens se relacionam. Esse espaço é o mundo – que se interpõe entre os homens, separando-os e vinculando-os, ao mesmo tempo. Ele é o palco construído por mãos humanas para que cada um encene a sua vida sobre ele. Neste sentido, não se confunde com a terra ou com a natureza como o lugar e condição geral da vida orgânica. Aparecer no mundo não quer dizer outra coisa senão conviver com outros semelhantes. Essa convivência significa dizer, basicamente, que há um mundo comum de coisas intermediando o aparecer de cada um.
Para tornar clara a dimensão do domínio público como espaço do aparecer é necessário precisar ainda mais o uso do termo comum. Comum pode ser entendido sob dois aspectos, que são diferentes do trivial e do vulgar. Comum é tudo aquilo que pode ser compartilhado, porque pertence a todos; mas para ser compartilhado, precisa ser comunicável. O mundo comum, portanto, é comum porque feito por todos. É a obra de todos que querem se encontrar em um domínio em que o que eles dizem ou fazem tem sentido e merece o respeito e consideração dos outros. O simples encontro na forma de conversação sobre o que é comum já é um espaço de aparição embora não seja, necessariamente, o domínio público constituído institucionalmente.
É a presença e a opinião de outros que garantem a realidade tanto do mundo quanto do próprio indivíduo que vê e ouve o que outros veem e ouvem. Se tudo o que um indivíduo isolado considerasse importante não pudesse ser, de certo modo, ratificado pela opinião e, por assim dizer, pela percepção semelhante de outros indivíduos, então tudo o que ele considerasse importante seria incerto e obscuro. Para ilustrar o quanto nossa sensação de realidade é dependente do senso comum costumo propor um experimento. Trata-se de definir “o que é a realidade”. Começo o experimento perguntando aos ouvintes se são capazes de elencar razões e justificativas que possam provar, sem contestação, que o diálogo que estamos mantendo está de fato acontecendo ou se trata tão somente de um sonho ou delírio. A primeira reação, normalmente, é de estranhamento. Para alguém que está em uma conversação a realidade parece óbvia e evidente. Pode-se perceber os sons e demais sensações que provam que tudo é real. Mas um esquizofrênico é capaz de afirmar as mesmas coisas, de modo que no plano exclusivo dos sentidos é praticamente impossível distinguir se estamos participando de uma experiência real ou imaginária. A própria definição de loucura, em seus variados enfoques, tende a contrapor as percepções do sujeito com as do senso comum para descrever o que é um comportamento patológico (COSTA JR.; MEDEIROS, 2007).
Portanto, se tudo o que tocamos, cheiramos, provamos o gosto, ouvimos ou enxergamos pode não ser real, se não podemos confiar em nossas sensações corpóreas para extrair a certeza da realidade, então de onde podemos tirar a certeza de que a leitura deste texto, por exemplo, é uma experiência real e objetiva e não um sonho ou delírio da sua mente?
Segundo Hannah Arendt,
Até mesmo a experiência do mundo, que nos é dado material e sensorialmente, depende do nosso contato com os outros homens, do nosso senso comum, que regula e controla todos os outros sentidos, sem o qual cada um de nós permaneceria enclausurado em sua própria particularidade de dados sensoriais, que, em si mesmos, são traiçoeiros e indignos de fé. Somente por termos um senso comum, isto é, somente porque a terra é habitada, não por um homem, mas por homens no plural, podemos confiar em nossa experiência sensorial imediata (1997, p. 528).
O senso comum é o sentido que ajusta e articula os sentidos naturais (visão, tato, olfato, audição e paladar) para que eles possam ter alguma tangibilidade no mundo e, com isso, oferecer algum sentido da realidade. Diferente dos sentidos naturais que cada um possui independentemente da relação com outro ser humano, o senso comum é um sentido partilhado. A compreensão do mundo, sua apropriação pelas palavras, baseia-se na sensação de realidade oferecida pelo senso comum, no qual já estamos mergulhados desde a nossa chegada ao mundo. Ao reunir e ajustar ao objeto percebido os cinco sentidos naturais, o senso comum oferece garantias aos órgãos sensoriais de que o objeto visto, tocado, provado, cheirado e ouvido é o mesmo objeto. Contudo, a garantia de que todos os sentidos privados não estão errados, mesmo estando de acordo uns com os outros, é dada pelo fato de que o mesmo objeto aparece também para os outros, embora de maneira diferente. É o caráter comum do mundo que, afinal de contas, garante que um mesmo mundo se abra para todos, ainda que percebido de formas diversas.
Conforme sugere Seyla Benhabib (1996, p. 128): “As duas dimensões fenomenológicas do domínio público são (a) sua qualidade como um espaço de aparição e (b) sua qualidade de ser um mundo comum”.
Nesse sentido, público é sinônimo de mundo comum. Há agora, entre os homens, algo interposto, não pelas necessidades vitais, mas pelo produto de suas mãos. O mundo comum – diferente da natureza ou do meio ambiente terrestre – é como uma “natureza artificial” onde o homem pode enfim morar. A natureza na forma em que foi “naturalmente” dada ao homem sobre a terra não é adequada para a vida tipicamente humana. Mesmo que os homens não deixem de estar vivos, sem o mundo construído pela obra de suas mãos, é somente nele que podem aparecer e encenar as suas vidas singulares. Para Arendt, o mundo comum é alguma coisa que surge com a civilização, na qual tem lugar a cultura.
Destarte, o domínio público é diferente e até oposto ao domínio privado. Tais diferenças se caracterizam por ser o domínio público dependente da reunião dos homens sob a forma de discurso e ação em um espaço organizado para esse fim. Essa reunião, por sua vez, depende da capacidade de comunicação, da ligação entre os indivíduos, da criação de pontes que estabeleçam contato entre aqueles que se mostram nesse espaço. Tudo isso, no entanto, depende de ser visto e ouvido. A constituição institucional de um espaço público só é possível porque todo aquele que age pressupõe um espectador, encontrando-se já sob o domínio público. Essa pressuposição, implícita no próprio impulso para aparecer, não quer dizer outra coisa senão que os homens são plurais. Somente sobre essa base é possível conceber a comunicação e a iniciativa da ação como constitutivos do mundo comum. Quando os homens se isolam, como acontece em regimes tirânicos ou em condições como as de uma sociedade de massa, a pluralidade humana está comprometida, porque nessas condições os homens comportam-se como se fossem inteiramente privados, na medida em que o mundo não mais lhes aparece em suas múltiplas perspectivas, mas somente na medida de suas próprias sensações. Neste caso ocorre algo como uma “torre de babel”: todos falam e ouvem, mas ninguém entende ninguém, porque perderam a referência do mundo comum.
2. Hegemonia da razão neoliberal
Hannah Arendt, que já foi acusada de ter um modernismo relutante (BENHABIB, 1996) e de nutrir uma certa nostalgia helênica em face do desenvolvimento da sociedade industrial do fim do século XIX e começo do XX (O’SULLIVAN, 1982), antecipou os elementos fundamentais que permitem identificar o solo fértil para o cultivo e florescimento da razão neoliberal.
Anteriormente, de um outro ponto de partida, mas com diagnóstico semelhante sobre o desenvolvimento da modernidade, Marx (1988) apontou a tendência catastrófica da incontrolabilidade da expansão do capital.
O consumo desenfreado e a fome voraz de ter sempre e cada vez mais a propriedade de coisas que jamais, no limite temporal estreito de uma vida, podem ser admiradas e aproveitadas com o devido valor, bem pode ser a conclusão contrária da crença cristã na não permanência do mundo. Se o mundo de fato não durará para sempre, parece razoável fazer dele um lugar para o deleite e prazer da vida dos que estão vivos, sem a preocupação ou responsabilidade de sua manutenção aos que vão nos suceder. Há nesse fato uma ausência quase completa de preocupação genuína com a imortalidade, que indica por sua vez o quanto a perda do domínio público pode perverter as pessoas tornando-as idiotas (do grego idion – aquilo que é privativo, próprio e peculiar a cada um). Ocorre que sem um domínio público onde cada um pode ser visto e ouvido, tudo o que alguém possa considerar importante será sempre algo irrelevante, uma vez que não é compartilhável. Os limites do mundo comum contêm o espaço de encontro de todos que, por estarem separados e por isso mesmo vinculados por este mundo comum, têm a possibilidade de ocupar um lugar que lhes pertence, sem ser o mesmo lugar de outro.
Para que o mundo continue sendo a morada dos homens, ele não pode ser destruído pela vaidade privada, que parece ter substituído o desejo antigo de imortalidade. A vaidade pela apropriação de bens e a ostentação da riqueza parece ter tomado o lugar da glória e brilho de aparecer em público, no qual o indivíduo obtinha reconhecimento por suas belas ações e palavras memoráveis (ARENDT, 1993). Por isso é que este mundo não pode ser pensado para uma geração, mas deve se constituir como algo que transcenda a vida individual de cada ser humano.
No contexto de dissolução do domínio público, e na inexorável e concomitante perda do mundo comum, a propriedade, que já foi a garantia de um lugar no mundo, também está condenada a desaparecer, restando, talvez, somente o corpo como último bem privado a que o homem ainda tenha direito. A propriedade era, segundo a apresentação arendtiana da concepção dos antigos, diferente da riqueza, embora essa também tenha desempenhado a mesma função que aquela: liberar os homens das necessidades vitais para que estes pudessem ingressar no domínio público. A propriedade privada havia sido considerada sagrada porque garantia um lugar no mundo, aquele de onde os homens saíam para a luz do domínio público e para onde retornavam para suprir suas necessidades vitais.
Quando a época moderna, pós-Revolução Francesa, igualou os termos propriedade à riqueza e a ausência de propriedade à pobreza, embaralhou as conexões que no pensamento antigo tornavam a propriedade privada importante para o corpo político. Ora, segundo Arendt, a propriedade privada no mundo antigo era como o outro lado do domínio público e recebia dele sua importância. No sentido da posse de “uma parte específica do mundo”, ela foi destruída quando igualada à riqueza – a posse de tudo que um indivíduo consegue conquistar e acumular durante a vida.
Nas sociedades de massa, característica do capitalismo contemporâneo, a vida cotidiana é algo superficial, carente de realidade objetiva. Nesse contexto, só as dores e prazeres do corpo oferecem alguma garantia de que o próprio corpo existe. É essa, talvez, a razão pela qual cresce o consumo de produtos cada vez mais requintados e descartáveis, pois a sociedade de massa é a sociedade do consumo.
O liberalismo, como corrente política e subjetividade social, procurou contornar essa tendência destrutiva do capital por meio de uma forma de governo democrática que separava, na formalidade, o que chamamos de sociedade civil e Estado. A interferência da economia na política ou da política na economia, sempre foi, do ponto de vista liberal, apontada criticamente como não desejável. Assim, ao Estado fora reservado o papel de garantidor dos direitos do cidadão como a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade, ao mesmo tempo que garantia também ampla liberdade de culto religioso e iniciativa própria para empreender negócios na esfera do mercado.
O liberalismo político na forma de governo constitucional democrático chegou a ser dominante em escala mundial, embora na economia aparecesse de forma muito eclética. Ainda assim é possível afirmar que realizou um esforço genuíno para manter o capital separado do Estado e assim uma distinção formal entre o domínio público e o domínio privado ou a esfera do mercado e a esfera do Estado. Seu período de maior sucesso ocorreu entre 1945 e 1973 e ficou conhecido como idade de ouro do capitalismo ou a Era de Keynes.
O colapso do acordo de Breton Woods, com o fim da conversão do dólar em ouro, decretado unilateralmente pelos EUA, em 1971, a crise do petróleo em 1973 e o crash da bolsa de valores seguido de recessão em 1973-4, abriram caminho para uma guinada na política. Surge a fase de implementação de políticas antikeynesianas que domina o senso comum quando pronunciamos o termo neoliberal.
A ideologia neoliberal que não tinha nenhuma credibilidade quando da fundação da Sociedade de Mont Pèlerin, em 1947, aparece no mundo real como programa econômico e projeto político, não casualmente sob uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina, o Chile de Pinochet, em 1973. Em 1979 chega ao poder no Reino Unido com Margaret Thatcher e em 1980, nos EUA, com Reagan. Até 1999, aproximadamente, expande-se para quase todo o globo terrestre e para todos os aspectos da vida social, transformando-se em uma razão-mundo (DARDOT, LAVAL, 2016).
A característica central da razão neoliberal é a afirmação das leis de mercado como leis naturais, independente da vontade e organização social. Ir contra essas leis seria atacar a natureza humana que é competitiva e empreendedora. Contrariar essas leis seria trilhar “O caminho da servidão” (HAYEK, 2010). A concorrência passa a ser vista como a norma do Estado e do indivíduo.
Nesse contexto, a razão neoliberal implica a desarticulação da democracia liberal, na medida em que corrói a separação entre público e privado, subordinando qualquer ação pública à lógica da produtividade financeira e da rentabilidade econômica. Não mais o cidadão é o centro da política social, mas o sujeito-empresa que precisa provar sua competência para atingir seu potencial máximo e alcançar suas metas pessoais de forma consistente e meritocrática. Qualquer intervenção do Estado na promoção de políticas de renda mínima, pensões, aposentadorias, programas de equidade social é vista pelos neoliberais como um enfraquecimento da natureza competitiva do ser humano. O Estado é um entrave a liberdade de empreender. Seu papel deve resumir-se a promover a competição.
Para cumprir esse papel, o Estado, sob hegemonia da razão neoliberal, submete suas ações aos critérios de rentabilidade financeira, ao passo que amplia o controle policial sobre a sociedade através da promoção do medo e insegurança. As leis e a constituição, que na democracia liberal eram a referência básica do convívio social, passam a ser tratadas como tática, instrumentos do objetivo estratégico de transformar cada indivíduo em uma empresa.
No debate político, as várias alternativas são apresentadas pelos neoliberais como mercadorias concorrentes que o consumidor tem a sua escolha. Veda-se, assim, um autêntico debate sobre os rumos da sociedade. A aparição, no que já foi um domínio público fulgurante, assemelha-se à disputa de feirantes no mercado de trocas em que cada um grita mais alto para ter a atenção de seus clientes e não a construção de uma visão comum sobre as regras do bom convívio social.
Todos os princípios fundamentais da democracia liberal são solapados: igualdade, universalidade, laicidade, autonomia política, liberdades civis, cidadania, imprensa livre, estado de direito.
Deste modo, o que se denomina neoliberalismo é uma visão de mundo estranha ao liberalismo clássico, ainda que compartilhe com ele a noção de livre mercado. O Estado que fora erigido a partir da Revolução Francesa como um ente garantidor das liberdades civis e da justiça passa a ser usado como gestor da concorrência dos negócios de empresas e pessoas. O dirigente político é associado à figura do CEO (Chief Executive Officer), que deve cumprir as metas de rentabilidade, punir os incompetentes e destruir a concorrência política, mesmo que para isso precise manipular os órgãos de segurança e o aparato judicial.
3. Limites da razão neoliberal
O sucesso político e ideológico da razão neoliberal é resultado, em grande medida, do fracasso da democracia liberal e das alternativas socialistas em efetivar a liberdade, igualdade e fraternidade. Assim, com a simples e falsa ideia de que não há alternativas ao livre mercado e ao domínio do capital, a razão neoliberal sujeitou da direita liberal e progressista aos sociais-democratas e até uma parcela significativa da esquerda socialista aos limites da sua ideologia. Atualmente, no gradiente político e ideológico que vai da extrema direita até uma parte da esquerda, pensar os fundamentos da democracia é sinônimo de redução do papel do Estado e promoção do homem/mulher empresa, do faça-se por si mesmo e do protesto contra qualquer política pública que vise a equidade social.
Não temos notícia, no século XX e início do XXI, de qualquer outra forma de pensamento ou sabedoria tradicional que tenha alcançado tamanha abrangência territorial e influenciado tanto a maneira de ver o mundo, como a razão neoliberal. A isso damos o nome de hegemonia.
O domínio político e ideológico da razão neoliberal, porém, só pode ser mantido sob o signo do medo, provocado em momentos de crise aguda. Por esse motivo é que ela aprendeu a usar ou até a provocar e manipular crises como tática eficaz para impor suas políticas. No entanto, o sucesso da razão neoliberal é, paradoxalmente, o momento mais propício para sua derrocada.
Isso, muito provavelmente, porque a razão neoliberal não suporta o contraditório e o diferente. Somente sobrevive se impõe um pensamento único. Ocorre que quando suas políticas obtêm algum sucesso e as crises econômicas e políticas amenizam, as sociedades via de regra retomam o caminho democrático e com isso o debate sobre desigualdade e desproporção na apropriação da riqueza. Logo, a razão neoliberal começa a enfraquecer-se e novas alternativas são consideradas.
O enfraquecimento e mesmo o fim da mediação das democracias parlamentaristas como anteparo para o choque inevitável entre capital e trabalho poderá desaguar na completa barbárie de nossas sociedades. Contraditoriamente, a mesma razão neoliberal que brada pelo fim das fronteiras comerciais, a desregulamentação total da circulação do capital ergue muros contra a imigração, endurece a legislação de concessão de vistos de trabalho e tenta controlar a mobilidade dos cidadãos entre países. Com isso, incentiva todos os tipos de nacionalismos tão nefastos num passado não muito distante dos Estados-Nações, a xenofobia e a hostilidade com blocos econômicos, levando, a tomada de decisões flagrantemente contrárias aos interesses de seus próprios países, como no caso do Brexit e da guerra comercial EUA-China.
Isso ocorre porque, no plano ideológico, a razão neoliberal procura incutir a ideia do homem-empresa, que produz a si mesmo, independentemente dos outros. Para essa ideologia não há propriamente sociedade, mas apenas uma competição generalizada de todos os indivíduos entre si. E prevalecerá o homem-empresa mais preparado, mais eficaz e eficiente. Entretanto, no plano econômico, a produção capitalista é cada dia mais integrada e dependente desta integração. Sequer o botão da camisa que o CEO usa é produzido por ele ou por uma empresa local. Para que possamos levantar todos os dias e prover nossa sobrevivência e vivência cultural com conforto e dignidade é necessário o concurso colaborativo de milhões de pessoas no mundo todo. Assim, a política é empurrada a encontrar soluções colaborativas, como os blocos econômicos, os parlamentos extra nações e os organismos multilaterais para resolver problemas que não são de nações, mas da economia mundial.
A contradição fundamental do neoliberalismo é entre uma ideologia que deseja a liberdade e autossuficiência do indivíduo promovendo uma competição entre eles e uma sociedade cuja produção capitalista só pode produzir e reproduzir sua existência se contar com a colaboração de todos. Aqui a razão neoliberal encontra sua fronteira, seu limite. Esse limite faz as sociedades dominadas pela razão neoliberal retrocederem à relação metrópole-colônia, pois o capital só existe, única e exclusivamente, na relação de troca. Manter essa condição somente é possível sob o signo do medo, da fome, da guerra e da insegurança. Portanto, a razão neoliberal necessita destruir qualquer domínio público onde, necessariamente, se coloca a questão “o que estamos fazendo com nossas sociedades?”.
As sociedades anteriores à Revolução Francesa tendiam a ser estacionárias. Elas reproduziam todos os dias as mesmas condições para a produção de seu modo de vida. As sociedades do capital, nas suas múltiplas formas de capitalismo, necessitam intercambiar valores sempre, reduzindo os seus custos de produção. Esse dinamismo do capital define o espírito do capitalismo. O dinamismo do capital, mesmo na sua forma neoliberal, é derivado de sua necessidade intrínseca de extração da mais-valia. Contudo, esse processo não é infinito, como gostariam todos os capitalistas, pois em um determinado momento o mercado produziu tanto que já não tem mais o que trocar e, por conseguinte, o valor de uso faz valer seus direitos sobre a troca. O neoliberalismo agrava essa circunstância da crise por instigar o consumo ao mesmo tempo em que retira das pessoas a possibilidade de consumir, seja pela redução da renda com o aumento do desemprego, seja pelo corte de benefícios sociais pelo Estado.
A produção em escala inimaginável de pessoas obsoletas para a reprodução capitalista foi apontada por uma vasta gama de especialistas, de filósofos a economistas, como um mal necessário para a reestruturação produtiva do capital. Na versão deles, com o incremento da tecnologia, a sociedade do conhecimento iria prosperar e todos os obsoletos seriam reintegrados à produção, desde que investissem em si mesmos para estar apto a essa nova sociedade.
Agora que os aprendizes de feiticeiros não conseguem desfazer sua mágica, uma solução terá de ser encontrada. Embora haja revoltas em todas as nações contra as consequências do neoliberalismo, tudo parece apontar para a repetição da receita usada no passado para destravar o capital: guerras, destruições e novo ciclo de crescimento até a próxima crise. No entanto, uma vez que o capitalismo já desenvolveu suficientes meios materiais para que se possa pensar outras saídas que não as já conhecidas, seria um contrassenso não considerar a possibilidade de uma revolução social no século XXI, como aquela do século XIX.
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Notas de autor