Resumo: Ao tomarmos como ponto de partida a vida ativa, vemos que a pluralidade, categoria que fundamenta a ação, manifesta-se em meio ao espaço público. O campo da política é o da pluralidade, sendo que nele é necessária à liberdade que é a própria condição da política e, assim sendo, o espaço público torna-se a esfera acolhedora de ambas. É nessa esfera que se constituem as memórias e as narrativas através das ações praticadas nesse espaço. Assim, temos como objetivo demonstrar como o espaço público se constitui e a importância desse espaço como local de construção de memória, tendo como principal obra A condição humana de Hannah Arendt. Em síntese, nossa reflexão estará em torno da importância de se rememorar acontecimentos trágicos como forma de não os vivenciar novamente.
Palavras-chave: Espaço Público, Memória, Política, Pluralidade.
Abstract: When we take active life as a starting point, we see that plurality, the category that underlies the action, manifests itself in the middle of the public space. The field of politics is that of plurality, in which the freedom that is the very condition of politics is necessary and, therefore, the public space becomes the welcoming sphere of both. It is in this sphere that memories and narratives are constituted through the actions taken in this space. Thus, our objective is to demonstrate how the public space is constituted and the importance of this space as a place of memory construction, having as main work The Human Condition of Hannah Arendt. In short, our reflection will be around the importance of remembering tragic events as a way of not experiencing them again.
Keywords: Public place, Memory, Policy, Plurality.
Artigos
Ação, espaço público e memória na perspectiva de Hannah Arendt
Action, public space and memory from the perspective of Hannah Arendt
Recepción: 25 Julio 2022
Aprobación: 17 Octubre 2022
A condição humana da pluralidade resulta da preservação do espaço público2 que admite a ação política pautada no agir e no falar, pois é nesse espaço, onde os homens e as mulheres estão inseridos, que se constitui o mundo, no qual todos podem aparecer e se revelar uns aos outros. Quando os homens e as mulheres são privados do espaço público o novo fica impossibilitado de surgir pela ação e a fala – categorias que nos inserem no mundo – sendo ambas, portanto, o que permite que o sujeito ativo deixe sua biografia como prova de sua coragem de se envolver no mundo público e deixar seu legado no contexto histórico.
Nesse sentido, Arendt ao abordar a sua concepção de espaço público e ao trabalhar a sua ideia de poder “[...] evita confundir o poder político com a organização burocrática da população e, muito menos, com a organização econômica da sociedade através da prevalência do labor que é a faceta social do poder resumido a controle” (AGUIAR, 2010, p. 39). Arendt entende que o poder surge através do discurso e da ação em conjunto, isto é, o poder só existe enquanto houver a união de pessoas que vem a formar o espaço público. Nesse sentido, a ação é por excelência uma categoria política por ser plural, pois é através da pluralidade de pessoas que agem e falam que se forma o âmbito político.
É na esfera pública onde surgem as narrativas memoriais de feitos heroicos, heroico no sentido de se encorajar a sair da segurança da esfera privada para a esfera pública. Assim, abordaremos o papel do poeta como aquele que tornava os feitos imortais, mas que na modernidade é substituído pelas narrativas em conjunto no espaço público. Ademais, também iremos chamar a atenção para o problema do esquecimento ao abordarmos a verdade factual que Arendt apresenta em sua obra Entre o Passado e o Futuro.
Em sua obra A condição humana, Arendt nos apresenta as três atividades que compõem a vita activa. São elas: o trabalho, que tem como condição humana a manutenção da vida biológica; a obra, que se remete à mundanidade; e a ação, que tem como condição humana a pluralidade. Estas são as condições básicas em que se dá a vida humana na Terra3, sendo todas necessárias a humanidade. Contudo, dentre estas, a ação é por excelência uma categoria política, por conter em si o aspecto da pluralidade, dado que a política surge da união de homens, que ao agirem engendram poder. Em outras palavras, a ação política respalda-se na pluralidade.
Essas atividades estão ligadas diretamente às condições principais da existência humana que são o nascimento e a morte, isto é, a natalidade e a mortalidade. Mas somente a ação é por primazia uma atividade política, e se relaciona mais intimamente com a natalidade do que as atividades do trabalho e da obra, pois os recém-chegados ao mundo têm em si a capacidade de agir, portanto, de criar algo novo, enquanto o trabalho e a obra somente promovem e preservam o mundo para esses recém-chegados, que, ao nascerem, já pressupõem um mundo no qual seja possível o seu aparecimento.
A ação, sendo a única de caráter político e que contém em si o aspecto da pluralidade, concebe o poder por meio do discurso e do agir em conjunto, dando assim início a algo novo. Arendt vê o homem e a mulher como seres dotados da capacidade de agir e, portanto, de iniciar, isto é, de fazer milagres. Contudo, não no sentido cristão da expressão, mas um milagre no sentido de poder tomar iniciativas. Consoante ao que afirma a autora, “o milagre da liberdade está contido nesse poder começar, que, por seu lado, está contido no fato de cada homem e mulher é em si um novo começo, já que através do nascimento veio ao mundo que existia antes dele e continuará existindo depois dele” (ARENDT, 2013, p. 43-44).
O poder em Arendt só ocorre no momento em que as pessoas agem em concerto. Quando elas se dissolvem, não há mais poder. Em outras palavras, o poder se dá por um conjunto de pessoas que formam o espaço público (local de aparência), ou seja, o poder existe enquanto efetivação dessa potencialidade, isto é, existe somente enquanto os homens se mantêm unidos a agir e a discursar em liberdade. Acentua Arendt que “[…] o poder não pode ser armazenado e mantido em reserva para casos de emergência, como os instrumentos da violência, mas só existe em sua efetivação” (ARENDT, 2014 p. 247) e a efetivação do poder depende da união do discurso e da ação, “[…] onde as palavras não são vazias e os atos não são brutais, onde as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para desvelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para estabelecer relações e criar novas realidades” (ARENDT, 2014 p. 248).
Segundo Aguiar, Arendt, de forma estratégica, evita relacionar a sua concepção de poder as formas comumente usadas para se pensar sobre o tema como, por exemplo, as categorias de Estado, Democracia, Partidos e etc, para que não se associe a sua reflexão sobre o poder ao de domínio e violência. Arendt vincula o poder
[...] à dimensão de legitimidade, autoridade, significação, potência e constituição política. Para ela, o importante era a qualidade da organização da vida comum e não a mera eficácia dos aparelhos estatais. A medida dessa qualidade era a preservação da capacidade de iniciativa, de expressão e de aparição dos membros da comunidade. Mais importante do que a captura burocrático-natural das pessoas, nas malhas governamentais, era o mundo, a cultura, a vida comum que o poder é capaz de fundar. Vale dizer, em nenhum momento, Arendt ensejou discutir e propor modelos para os meandros do poder constituído, governamental, mas visou a resguardar a capacidade de ação em conjunto e de participação efetiva das pessoas na vida pública. Mais importante do que a determinação normativa ou jurídica dos governos e do Estado é, em Arendt, saber a base e a forma sobre a qual está assentado o apoio do povo ao poder constituído. Para Arendt, trata-se de fundar espaços em que o apoio e a constituição do poder não seja naturalizada e burocratizada (AGUIAR, 2011, 121).
Ainda conforme Aguiar, a autora salienta que o conceito de poder se perde na modernidade ao ser reduzido a administração e a todas as ferramentas do Estado. Nesse sentido, nossa pensadora retoma a ideia de ação para refletir sobre o poder, pois o “[…] entrelaçamento entre poder, ação, condição humana e espaço público permite a focalização da visada arendtiana que privilegia a dimensão constituinte como mais importante do que a dimensão constituída, na sua reflexão sobre o poder” (AGUIAR, 2011, p. 122).
Na esteira dessa concepção de que o poder só nasce em um espaço de liberdade, não podemos deixar de falar sobre a polis4 no tocante ao espaço público como lugar de aparência, visto que foi uma das primeiras formas (ou talvez a primeira forma) de constituição política de que se tem conhecimento. A polis surge da organização de um conjunto de pessoas que formam o espaço que se constitui pelo agir e pelo falar em função do qual se concebe o poder e “o que distingue o convívio dos homens na polis de todas as outras formas de convívio humano que eram bem conhecidas dos gregos, era a liberdade” (ARENDT, 2013, p. 47).
Na obra O que é política, composta por fragmentos de textos póstumos de Arendt, em um dos textos nossa autora nos evidencia, de acordo com os gregos, que a política não é um meio para os homens alcançarem a liberdade. Salienta a pensadora que,
[…] se quiserem entender a coisa política no sentido da categoria meio-objetivo, ela era, tanto na acepção grega como na acepção de Aristóteles, antes de mais nada um objetivo e não um meio. E o objetivo não era pura e simplesmente a liberdade tal como ela se realizava na polis, mas sim a libertação pré-política para a liberdade na polis (ARENDT, 2013, p. 48).
Isto é, para participar da polis os homens tinham que ser livres e libertos5 das necessidades, e um dos meios de se alcançar a libertação era o da sociedade escravagista. Segundo a autora, a “[…] exploração do trabalho escravo na Antiguidade tratava-se de libertar os senhores por completo do trabalho a fim de dispô-los para a liberdade da coisa política” (ARENDT, 2013, p. 48).
O sentido da política na concepção grega era os homens poderem se relacionar uns com os outros em liberdade e na ausência de força, da coação ou do domínio. “Tal liberdade só tinha o senhor da casa, e ela não consistia em ele dominar os demais membros da casa, mas que em função desse domínio, ele podia abandonar a casa, a família no sentido da Antigüidade [sic]” (ARENDT, 2013, p. 53). Nesse sentido, só era livre aquele que arriscava a própria vida ao abandonar o seu lar, onde todas as necessidades vitais eram asseguradas, e aventurar-se efetivando sua liberdade ao participar da vida na polis. Conforme Arendt,
A coragem é a mais antiga das virtudes políticas e ainda hoje pertence às poucas virtudes cardeais da política, porque só podemos chegar no mundo público comum a todos nós – que, no fundo, é o espaço público – se nos distanciarmos de nossa existência privada e da conexão familiar com a qual nossa vida está ligada (ARENDT, 2013, p. 53).
Este que deixa a segurança da esfera privada e se lança na esfera pública, mesmo com suas imprevisibilidades, é chamado pela filósofa de herói. O herói para Arendt está na dimensão do humano, da pluralidade, da ação e da fala na esfera pública. O ato heróico está no interior da própria compreensão de ação política, que é imprevisível, e inaugura um evento sem precedentes, ou seja, o herói é aquele que interrompe uma série sucessiva de atos, iniciando algo novo, assim, o herói é um homem ou mulher de ação.
As ações humanas são efêmeras6 e, desse modo, precisam do auxílio da memória para ser guardadas e contadas em forma de história. Na Grécia antiga, o ator político precisava do poeta, pois este era quem imortalizava os feitos de alguém como ação heróica e política, através da sua narrativa, mantendo, assim, um vínculo estreito entre memória e narrativa. Salienta Arendt, que para que as memórias dos feitos se tornem coisas mundanas é necessário “[…] ser vistos, ouvidos e lembrados, e então transformados em coisas, reificados […]” (ARENDT, 2014, p. 117) por poemas, pinturas, esculturas e etc.
Para Arendt a memória, dessa forma, é a faculdade que leva a imortalidade das ações humanas. A memória preserva o quem revelado no espaço público. Contudo, para que isso seja possível é importante que a comunidade lembre quem nós somos e não o que somos7, pois, segundo a autora, só seria possível buscar essa essência humana se fossemos deuses para nos vermos fora do âmbito do mundo comum. Nesse sentido, a discussão levantada pela filósofa politica é direcionada a revelação de quem nós somos, isto é, de como nos manifestamos diante dos outros em um espaço plural. O quem é a construção do que é falado e feito por alguém no espaço público, assim, não é uma essência construída, mas uma revelação fenomenológica.
As ações realizadas nessa esfera pública faz surgir, por exemplo, as verdades factuais que podem ser guardadas na memória e depois manifestadas através das narrativas8. Segundo a autora, são essas verdades que preservam o mundo humano, pois “Nenhuma permanência, nenhuma perseverança da existência podem ser concebidas sem homens decididos a testemunhar aquilo que é e que lhes aparece porque é” (ARENDT, 2001, p. 285), isto é, as ações quando testemunhadas, tornam-se memórias que podem ser passadas por gerações, conservando, assim, o mundo. Quando os homens não dispõem de coragem para manter vivos esses testemunhos, gera-se um esquecimento dos fatos como, por exemplo, o caso de Trotsky que Arendt cita no seu texto Verdade e política da obra Entre o passado e o futuro. Trotsky desempenhou um papel importante durante a Revolução Russa, contudo, este não aparece em nenhum escrito ou livro de história que se remetem a Revolução, mostrando, assim, o quanto são frágeis às verdades factuais.
Assim, a preocupação da autora se remete a esse tipo de verdade e não a racional ou científica, pois a verdade factual, que resulta da ação conjunta de homens e mulheres na esfera pública, é o que vem a constituir a real estrutura do âmbito político. Nessa perspectiva,
As possibilidades de que a verdade factual sobreviva ao assédio do poder são de fato por demais escassas; […] está sempre sob o perigo de ser ardilosamente eliminada do mundo, não por um período apenas mas, potencialmente, para sempre. Fatos e eventos são entidades infinitamente mais frágeis que axiomas, descobertas e teorias – ainda que os mais desvairadamente especulativos – produzidos pelo cérebro humano; ocorrem no campo das ocupações dos homens, em sempiterna mudança, em cujo fluxo não há nada mais permanente do que a permanência, reconhecidamente relativa, da estrutura da mente humana. Uma vez perdidos, nenhum esforço racional os trará jamais de volta (ARENDT, 2001, p. 287-288).
Nesse sentido, a filósofa salienta que somente com as verdades factuais é que a falsidade deliberada vem a conseguir entrar em cena e a mesma acha estranho o fato de que “[…] ninguém, aparentemente, tenha jamais acreditado em que a mentira organizada, tal como a conhecemos hoje em dia, pudesse ser uma arma adequada contra a verdade” (ARENDT, 2001, p. 288). Outra questão que Arendt chama atenção é o fato das verdades factuais, quando surgem em momentos inoportunos, serem tranformadas em opinião, em relação a isso, salienta a autora que a verdade factual
[…] relaciona-se sempre com outras pessoas: ela diz respeito a eventos e circunstâncias nas quais muitos são envolvidos; é estabelecida por testemunhas e depende de comprovação; existe apenas na medida em que se fala sobre ela, mesmo quando ocorre no domínio da intimidade. É política por natureza. Fatos e opiniões, embora possam ser mantidos separados, não são antagônicos um ao outro; eles pertencem ao mesmo domínio. Fatos informam opiniões, e as opiniões, inspiradas por diferentes interesses e paixões, podem diferir amplamente e ainda serem legítimas no que respeita à sua verdade fatual. A liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação fatual seja garantida e que os próprios fatos não sejam questionados. Em outras palavras, a verdade fatual informa o pensamento político, exatamente como a verdade racional informa a especulação filosófica (ARENDT, 2001, p. 295-296).
Nesse sentido, o contrário da verdade factual, não é a opinião, pois pertencem ao mesmo domínio, mas a mentira, ou seja, falsidade deliberada, “[…] a mentira organizada tende sempre a destruir aquilo que ela decidiu negar, embora somente os governos totalitários tenham adotado conscientemente a mentira como o primeiro passo para o assassinato” (ARENDT, 2001, p. 312). Dessa forma, a autora alerta para a existência da mentira dentro da política, podendo a mesma substituir a realidade. Assim, uma mentira generalizada pode colocar em ameaça a verdade existente no viver politicamente entre homens e mulheres, além dos mesmos caírem no autoengano.
Ação e mentira estão interligadas, como adverte a autora. Essa conexão implica a possibilidade de, como forma de ação, negar o dado, de ser efetiva na mudança da realidade. É essa possibilidade que ganha destaque como problema diante de situações em que o horizonte do limite deixa de se impor. Parece que é justamente no tensionamento com essa possibilidade que a verdade se apresenta, como uma categoria de resistência política aos riscos que a instrumentalização moderna da política faz dessa conexão entre mentira e ação. A ação é a substância da política, e por ter algo em comum com a mentira parece que essa tem mais afinidade com a política que a verdade, já que aquela se constitui pela possibilidade de as coisas serem diferentes do que são, ao passo que esta se autodefine como o que não pode ser de outro modo (PEREIRA, 2019, p. 105).
Nesse sentido, o alvo da mentira deliberada é, segundo a autora, apagar testemunhos, tornando mentira à verdade através da instrumentalização moderna da própria política que vem, cada vez mais, estreitando a linha demarcatória entre ficção e realidade, facilitando, assim, que os fatos possam ser apagados. Assevera Pereira, “A instrumentalização moderna da mentira na forma de mentira organizada se coloca, então, como uma arma contra a verdade. A mentira organizada incorre na tentativa de banir os fatos, manipular a realidade e impor controle sobre o que configurará a memória histórica” (PEREIRA, 2019, p. 107).
Apesar de essa mentira moderna ter surgido com o totalitarismo, ela não se restringe a esse sistema político. A mentira organizada moderna se caracteriza por sempre almejar destruir aquilo que de início nega ao se utilizar da instrumentalização da persuasão e isso ainda persiste em nossa atualidade se considerarmos as democracias de massa e suas propagandas. Portanto, as verdades factuais podem ser atacadas e alteradas por políticas de esquecimento, devido a sua fragilidade em ser algo testemunhado, isto é, por ser de natureza fenomenológica e não seguir certos critérios para sua construção como as verdades provenientes da ciência. Assim, ao distorcer ou esquecer eventos trágicos se tem o risco de vivenciá-los novamente e, por isso, é importante manter a memória viva no espaço público através das narrativas, pois, sem a mesma, a ação se perde.
O espaço público se constitui no entre os homens, isto é, pela associação dos homens que só é possível pelo poder, por ser a potência que gera a possibilidade da ação em conjunto. Assim, é o local em que as aparências se manifestam por serem garantidos direitos iguais aos mais diferentes. Nesse sentido, a ação constitui a relação que os homens têm com o mundo público, sendo a única atividade capaz de tal feito.
O espaço da aparência é onde cada um se revela aos outros, não como seres inanimados, mas como homens de ação. Quando agimos e falamos afirmamos o nosso aparecimento físico que nos insere no mundo humano e revelamos quem somos, não podendo, desse modo, a ação política se realizar em isolamento, mas na pluralidade, pois é na pluralidade que ela surge erigindo o espaço público, local onde se constitui memórias.
Em suma, se na antiguidade a ação ficava na dependência narrativa do poeta para se imortalizar o que vem a substitui-lo é o espaço público que passa a ser o local de execução dessa imortalidade da ação. Não dependemos mais das falas dos poetas, mas das narrativas em conjunto que acontecem no interior desse espaço que vem a reificar as ações. O espaço público é o local onde as narrativas se tornam memórias e, consequentemente, essas memórias impedem o esquecimento de acontecimentos importantes à humanidade.
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2. “O espaço público no contexto pensado por Arendt é muito mais do que um local político, pois se trata da condição para a política, uma vez que o mesmo é a representação dos que atuam com isonomia, em um espaço que é deles, produzido pelo consentimento de todos, para que todos tenham acesso à vida.” (ASSAI; SILVA; et al, 2013, p. 94).
3. Nessa perspectiva, considerando a diferença entre mundo e Terra, o mundo é o que inserimos entre nós e o natural, que possibilita as relações entre os seres humanos pela ação e o discurso. Este é erigido pelo ser humano e o dá identidade a partir do momento que este se reconhece em sua criação, que perpassa gerações como artifício criado, sendo o homem e a mulher responsável por este.
4. Arendt é ciente de que o modelo antigo não mais se aplica na modernidade. Sua busca está voltada a uma arché, de uma luz do passado que possa vir a iluminar as questões que a inquietam.
5. Arendt acentua que “[...] a libertação, que deve preceder a liberdade, não significa apenas a libertação de um rei tirânico ou de uma forma tirânica de governo, mas a libertação da necessidade” (ARENDT, 2018, p. 190), isto é, “Libertação significa a satisfação das necessidades vitais, a abolição do que era conhecido então como ‘infelicidade’; em suma, a solução do problema social” (ARENDT, 2018, p. 191). Somente estando libertos das necessidades individuais é que os homens podem se voltar ao comum e agir em prol de uma felicidade pública como se mostrou evidente para autora, por exemplo, na Revolução Francesa, que, para Arendt, malogrou, pois a massa de miseráveis colocou como urgente a satisfação de suas necessidades e, dessa forma, não houve como pensar em uma fundação da liberdade política. Assim, derrotar a pobreza, sanar as necessidades, seria “[...] um pré-requisito da fundação da liberdade” (ARENDT, 2018, p. 193).
6. “O que mantém unidas as pessoas depois que passa o momento fugaz da ação (aquilo que hoje chamamos de ‘organização’) e o que elas, ao mesmo tempo, mantêm vivo ao permanecerem unidas é o poder” (ARENDT, 2014, p. 249).
7. O conceito de quem vem a ser desenvolvido pela autora, quando a mesma alude que é no agir e no falar em meio ao espaço público, que o quem de alguém vem a se revelar aos demais homens que compõe esse espaço. O quem é a unicidade de cada ser humano que é comunicada por ele mesmo. O homem e a mulher não são estáticos para que possamos identificar o que eles são, isto é, sua essência e, assim, não podemos reconhecer um quem como um que.
8. A memória narrativa tem como dever justamente impedir o esquecimento ao ser narrado aquilo que foi. Isso é algo problemático, por exemplo, para Ricoeur ao refletir sobre quem vem a deter o poder da narrativa, pois há varias formas de narrar um acontecimento, sendo uma delas o de poder omitir personagens ou dados importantes a favor de alguém, sendo isso “[...] resultante do desapossamento dos atores sociais de seu poder originário de narrar a si mesmo” (RICOEUR, 2014, p. 455).