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Finitude e singularidade: o jogo dos irredutíveis em Sartre
Finitude and singularity: the game of the irreducibles in Sartre
Finitude e singularidade: o jogo dos irredutíveis em Sartre
Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 3, pp. 63-79, 2022
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepción: 21 Abril 2022
Aprobación: 02 Octubre 2022
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar a noção de finitude na obra de Sartre como base para a antropologia existencial desenvolvida nela. Perpassando desde O ser e o nada até as últimas entrevistas, discutimos tal tese a partir das análises, sobretudo, de Bornheim, Moutinho e Mészáros. Para isso, num primeiro momento discute a relação entre ser, finitude e negação. Num segundo momento, associamos a noção de finitude com a de singularidade e como por ela é estabelecida a relação entre ontologia, história e psicanálise existencial. Por fim, afere ao jogo dos irredutíveis como a dinâmica própria que subjaz à antropologia existencial.
Palavras-chave: Ontologia, Antropologia existencial, Finitude, Singularidade.
Abstract: This article aims to analyze the notion of finitude in Sartre's work as a basis for the existential anthropology developed in it. Going from Being and Nothingness to the last interviews, we discuss this thesis based on the analyses, above all, by Bornheim, Moutinho and Mészáros. For this, at first it discusses the relationship between being, finitude and negation. In a second moment, we associate the notion of finitude with that of singularity and how the relationship between ontology, history and existential psychoanalysis is established through it. Finally, we assess the game of irreducibles as the dynamic that underlies existential anthropology.
Keywords: Ontology, Existential Anthropology, Finitude, Singularity.
A filosofia de Sartre é uma tarefa de descida2 à finitude, uma forma de ontologia da vida prática (JEANSON, 1947, p. 146), uma antropologia existencial (MÉSZÁROS, 2012, p. 147). É isso que garante que esta filosofia conquiste uma distância do abstracionismo ontológico e do idealismo metafísico, embora não sem passar por eles. Por isso que apenas a tomada de alguns momentos dessa obra separada das demais pode levar à impressão desse teor mais abstrato, o qual foi reconhecido por Sartre em momentos posteriores e reconduzidos ao seu escopo maior que é a liberdade concreta. Por certo, Sartre reconhece a necessidade da ontologia e do conceito, mas devemos demarcar que as exigências do nível ontológico na sua filosofia não impedem que sua filosofia em seu espírito geral seja tomada como dramática, sintética, pois justamente o estatuto do seu objeto exige isto dela. Sobre isso Sartre aponta em uma de suas entrevistas:
Hoje, eu penso que a filosofia é dramática. Não se trata mais de contemplar a imobilidade das substâncias que são o que são, nem de encontrar as regras de uma sucessão de fenômenos. Trata-se do homem - que é ao mesmo tempo um agente e um ator – que produz e joga seu drama, vivendo as contradições de sua situação até o estilhaçamento de sua pessoa ou até a solução de seus conflitos. Uma peça de teatro (épico – como aquelas de Brecht – ou dramático), hoje, é a forma mais apropriada para mostrar o homem em ato (isto é, o homem, simplesmente). E a filosofia sob um aspecto pretende se ocupar desse homem. É por isso que o teatro é filosófico e a filosofia é dramática” (SARTRE, 1972, p. 8 e 9).
Deste modo, se a obra de Sartre possuí dois grandes momentos críticos, O ser e o nada e a Crítica da razão dialética, nas quais ele postula o solo ontológico e estrutural, estas não podem ser apreendidas separadamente das obras cujos elementos apontam à concretude que estas sempre requereram. Por isso, nestas obras não se trata de exemplos particulares de uma substância geral, mas da própria realidade ali apresentada. É um erro considerar as obras críticas como abstratas ou requerendo uma abstração, pois seria destituir seu teor próprio que é a liberdade e a existência concreta. Portanto, deve-se perpassar as obras de literatura e teatro enquanto literatura engajada, as entrevistas e textos políticos como engajamento concreto, as obras biográficas e de psicanálise existencial como formas concretas e próprias da liberdade, de modo que a liberdade não seja jamais tomada por separado das suas imagens concretas, a despeito do momento analítico e das abstrações conceituais que ali são necessárias. Por certo, há ainda a ausência de uma análise mais apurada da relação entre a política em Sartre e a psicanálise existencial, mas as quais, dado o escopo de tal filosofia, se mostram inseparáveis. Em todo caso, a psicanálise existencial é também uma tarefa social, o que a elevaria para além do estatuto de uma disciplina auxiliar, como é apontado em algum momento de Questões de método, delegando a ela um lugar próprio na antropologia existencial que é, seguindo a linha de Mészáros, a maneira de entender dinamicamente os três grandes momentos da obra de Sartre, a ontologia, a História e a psicanálise existencial.
A partir desse mote, a liberdade não pode ser compreendida em tal filosofia apenas como uma forma instituída ontologicamente e a qual podemos conhecer. Mas também não se resume em ser apenas uma relação à história concreta, como se tudo se resumisse à materialidade do prático-inerte. Se trata, antes, da práxis em seus momentos de criação, instituição, permanência, quebra, crítica, ação, envolvimento, relação etc. Ela exige, então, para ser tomada em sua dimensão própria, a apreensão de si mesmo em seu mundo, sua situação. Se isso implica uma reflexão, como a tarefa crítica da Crítica, ou da reflexão e da psicanálise existencial em O ser e o nada¸ ou mesmo a conversão moral no Cahiers, é tão somente na medida em que se requer a dimensão concreta e real de um homem singular e finito: como descer ao concreto? E o que é este concreto senão a relação finita e existencial? Por isso nunca é um nada abstrato, ou o puro ser que tal filosofia perscruta. Tal filosofia é uma crítica do presente, um método de determinação “do lugar do homem em seu contexto” (SARTRE, 2002, p. 103). Se ela se apresenta como um espelho crítico da cultura é porque crê na possibilidade de revelar ao homem suas dimensões de liberdade e alienação e com isso realizar a liberação do campo dos possíveis, sobretudo ali onde a vida não suporta mais, onde se tornou impossível continuar dada uma situação doravante insuportável, onde não mais consegue visualizar algum horizonte de liberdade.
Esta tarefa que é ao mesmo tempo ontológica, histórica e de uma psicanálise existencial, apresenta a plasticidade da liberdade, de uma liberdade concreta que não se reduz à sua concretude, mas a qual não existe em separado de alguma, pois, sendo drama, ao invés de uma dedução feita por princípios primeiros, a liberdade exige a finitude, isto é, sua apreensão situada e singularizada, porquanto
não se trata, por isso, de afirmar a finitude contra qualquer fundamento ou contra o infinito, pois isto seria repetir a própria atitude da metafísica clássica ainda que negativamente” [...] “a mudança não significa apenas uma inversão: é uma conversão. Neste sentido, é uma nova posição em face do homem: uma descoberta da finitude como traço positivo do homem [...] notemos bem: de um lado não resta mais o apelo ao fundamento ontoteológico, e, de outro lado, é preciso superar o niilismo em que a subjetividade se arvorou em manipuladora do real. Uma filosofia da finitude terá que recuperar o homem concreto histórico. (STEIN, 1976, p. 23, 85 e 112, negritos nossos)
Pode-se dizer que em Sartre a ontologia, malgrado o dogmatismo3 das primeiras obras, e para usar uma expressão de Lebrun, passa a visar não o “ser-do-finito”, atitude da metafísica no seu sentido infinitista, mas o “ser-finito” (LEBRUN, 2006, p. 186). A implicação é também ética e epistemológica. Ela resolve tanto o problema da equivalência das ações humanas quanto o problema da dicção do fundamento cujo mutismo era a condição final tanto para o plano ontológico quanto para o epistemológico, pois se o ser (fundamento) não pode ser dito, então o que se diz se perde ante a ausência de fundamento, caindo na contingência opaca do ser e levando o discurso, sobretudo o filosófico, ao silêncio, como Bornheim diagnostica (BORNHEIM, 2003, p. 145). A solução seria assumir o plano fenomenológico, o qual se pautava não na dicção do ser, mas das maneiras de ser enquanto tomava o fenômeno como sentido do ser, desde que se assumisse sua pluralidade, isto é, não o fenômeno por seu ser, nem também como nada de ser, mas as diversas maneiras pelas quais o ser se faz como fenômeno, enquanto relação finita e singular. Isso se tornava mais visível a partir da dialética na Crítica ao pressupor a pluralidade das relações e do indivíduo como teia dessas relações.
Assim, se a experiência-motor da liberdade era a angústia, esta denotava uma abstração pela ausência de como por ela se dizia uma tal liberdade, de como se irradiava a liberdade em seu fazer a partir dela, uma vez que a angústia seria ali em O ser e o nada o momento próprio da liberdade (mas analiticamente, pois o drama exige a síntese). Daí que ao tomar a liberdade pela angústia se figurasse no pensamento de Sartre a liberdade como esse nada, insuperável, inadiável e que findava a ação imediata no desmoronamento do nada frente ao ser contingente pela frágil e fraca ressonância que tal ação resultava (pois com ela não mais se ascende ao fundamento), desmoronando frente ao próprio fazer que ela engendrava e recaindo na angústia, dada a impossibilidade da guinada ao fundamento, permanecendo a ideia de uma tensão atemporal, da equivalência e da inutilidade da ação. Em outras palavras, a angústia nos conduzia à ideia de uma passagem do nada ao nada, cuja alienação deveria se perder ante a força dessa negatividade, mas para a qual ela era o próximo encontro iminente, fazendo desse processo um círculo infinito do nada sobre o nada, da impossibilidade de ser, e sem alteração qualitativa em tal movimento. Daí a ideia de que a finitude se associava ao nada e por ela ao indelével niilismo, onde o homem figurava como uma paixão inútil.
Todavia, embora esta posição sobre o finito já não diga ou vise dizer mais o infinito, este permanece latente como uma sombra, a qual restitui a hipótese idealista do fundamento ante a necessidade de pensar a analogia desse nada, uma vez que não é possível pensá-lo destituído do ser, haja vista que toda nadificação é a partir do ser, sendo o nada “puro” uma mera abstração. Mas “se o ser não pode ser dito, muito menos se pode esclarecer como o nada possa surgir no seio do ser” (BORNHEIM, 2003, p. 144), dificultando, assim, pensar a analogia e destituindo a própria analogia de sentido, restando novamente a frágil hipótese metafísica do nada como “a possibilidade própria do ser e sua única possibilidade” (SARTRE, 2007a, p. 115). Mas se é a hipótese metafísica a insígnia da crise do fundamento do ser em Sartre, e disso se segue como consequência o esquecimento da finitude do finito (BORNHEIM, p. 2003, p.183), a rejeição desta condição metafísica e idealista do fundamento como ideal em-si-para-si é o primeiro passo para a guinada da finitude.
A solução primeira de Sartre sem a rejeição da hipótese metafísica é o reconhecimento do fracasso de ser, o qual pressupõe uma guinada do âmbito ontológico para o ético. Se ganha, assim, um peso para a frágil ética de Sartre, mas fica insolúvel o problema ontológico, pois essa mesma ética que reconduz à vida autêntica pelo reconhecimento do fracasso de ser (tal como tematiza na moral ontológica do Cahiers) se resume a fazer da existência ainda uma visada sobre o nada, e sem mais. No limite, o nada como fundamento do real traz a consequência de que esse mesmo real se tornou nada4, o que em certo sentido conflui com o espírito aventureiro da liberdade. Mas é certo que uma filosofia do concreto exige mais, pois mesmo que uma “ontologia do finito” tome esse nada como seu princípio, corre-se o risco de tal ontologia do nada se tornar tão infrutífera (no quesito ético/estético, portanto, no âmbito criador da liberdade) quanto as metafísicas infinitistas.
Deste modo, por um lado, a seguir as críticas feitas a Sartre e seu próprio reconhecimento posterior, esse ser-finito ainda traz algumas heranças da metafisica, sobretudo pela terminologia e a maneira como é enfatizada em alguns momentos da obra, ressonância idealista e abstrata que Sartre assumiria; mas, por outro lado, enquanto ser-finito, apontamos que esses momentos não podem ser isolados do todo (o que certamente torna a análise (como momento de exigência da síntese) mais trabalhosa). Com isso, mesmo em O ser e o nada seria possível, segundo uma ordem própria das razões, não tomar apenas esse nada no sentido que apontamos, da impossível analogia ao ser contingente, tal como a crítica de Bornheim em geral o toma (e talvez esse seja seu maior problema, problema mais seu que de Sartre), já que Bornheim mostra-se, por vezes, mais preocupado com a crise e história da metafísica e o lugar de Sartre nela que com um possível abandono de Sartre sobre esse escopo com a ascensão da finitude do finito. Em outras palavras, ao tomar a obra de Sartre em seu conjunto, sobretudo, mas também ali em O ser e o nada, não precisamos optar ou por uma metafísica em crise ou uma ontologia do nada, mas estes como momentos da análise que direcionam ao teor concreto da obra, qual seja, a uma antropologia existencial. Este talvez seja um termo melhor para uma ontologia da finitude. Assim, se vemos Sartre pela história da metafísica é possível ver seu lugar de radicalização nessa crise, mas se vemos Sartre para além dela, é possível ver que sua filosofia figura essa radicalização da finitude do finito, para além de uma ontologia do nada, ou esta assumida como uma antropologia existencial.
E é possível ver isto ainda em O ser e o nada porque, embora haja momentos regressivos na análise que conduzem a alguma abstração, Sartre sempre enfatiza que nunca se trata do nada em geral, de modo que na ordem das razões o que figura é sempre a dimensão finita desse nada como privação singular deste ser:
O para-si não tem outra realidade senão a de ser nadificação do ser. Sua única qualificação lhe advém do fato de que ela é nadificação do em-si individual e singular e não de um ser em geral. O para-si não é o nada em geral, mas uma privação singular; constitui-se em privação deste ser (SARTRE, 2007a, p. 666 – negritos nossos)
Essa tomada do nada não como princípio geral, mas como privação singular subsume o ser e o nada à própria finitude e faz da hipótese metafísica da causa sui uma hipótese da subjetividade (SARTRE, 1983, p. 142). Tal movimento será consolidado e mais bem visível sobretudo quando Sartre passa a subsumir a consciência e a negatividade à vivência5 em seus escritos biográficos, e a assumir esse posicionamento teórico em suas entrevistas sobretudo a partir da década de 60. Por isso é possível se aproximar, mas por outra vereda, à tese de Moutinho ao falar de uma nova “extensão do negativo” (MOUTINHO, 2003, p. 134) na filosofia de Sartre e segundo a qual ele se diferenciaria de toda a tradição metafísica. A tese de Lebrun (2002) que Moutinho segue é de que a negatividade é convertida numa tese posicional que passa a determinar “o grau de realidade, a sua finidade” (MOUTINHO, 2003, p. 135). Ela é associada não a uma qualidade do ser, mas à potência de qualificar pelo fato de que toda negação implica uma determinação. Daí que não se trate de realidades em-si, ou do em-si real, mas de realidades finitas como negações. É essa condição, calcada na introdução do conceito de “grandeza negativa” segundo Lebrun (2002, p. 267), que marca a ruptura decisiva entre o finito e o infinito. Lebrun mostra como a comparação (Idem, p. 260) passa a ter valor de ato constitutivo da finidade. Mas uma finidade marcada não pela diferença de essência, sua qualitas, senão de grandeza (gradus), pois sendo determinações da mesma essência, essas oposições seriam apenas quantitativas. A negação aparece como determinação exterior, como condição de limitação, mas limitação possível apenas pela oposição e comparação de mais de uma positividade.
Por certo Sartre não escapa a isso, e assume que toda negação é determinação. Mas como coloca Moutinho, os leitores de Sartre atribuem a esta negação um nada mais radical, mais puro (MOUTINHO, 2003 p. 141), que não é mera sombra do positivo. Moutinho associa aqui a real posicionalidade do nada com a sua pureza, reclamando o dualismo pela absoluta contraditoriedade entre ser e nada, isto é, por sua pureza, a qual será assegurada pela condição de negação não somente do real, mas de autonegação. Assim, sendo a negação do real ao mesmo tempo a sua determinação, a negação de si implicaria também determinação de si ao mesmo passo que, por esta negação, se é impedido de ser6. Negando o mundo e a si mesmo, o para-si se constituiria enquanto tal nesse duplo ato de negar, determinando o mundo e a si mesmo, nessa negação mais pura e mais radical que a da tradição. Mas isso não resolve ainda a condição de síntese, porque essa dupla negação é concomitante e não dialética: “o ser é posto de início e depois negado, o não ser aparecendo como seu contraditório, como negação dele, sem “passagem” de um no outro” (MOUTINHO, 2003, p. 143); mantendo-se a tensão entre ser e nada e recaindo nas hipóteses criticadas desde o início.
Nesse sentido, a ideia de grandeza negativa pode demarcar o rompimento com a tradição do infinitismo, uma vez que a finidade é marcada pelo positivo dado, mas não mostra como essa negatividade é ela mesma essa finidade, ou como basta essa nova extensão do negativo que habita a realidade humana em sua intra-estrutura para que ela se converta em condição de positividade ou síntese frente a esta autonegação. Em outras palavras, como o puro nada, não podendo nunca ser, poderia se converter em condição de positividade, em potência de não ser? Moutinho responde a isso apontando não uma “positividade do negativo”, mas sim sua “condição posicional” (MOUTINHO, 2003, p. 139). Isso faz do negativo o princípio do real, o que Sartre mesmo assume, uma vez que o concreto ou real é nadificação do ser (SARTRE, 2007a, p. 666), mas, novamente, nos coloca numa finitude tão inócua quanto à do ser, já que se foca no vazio do princípio e não na sua condição sintética. Em outras palavras, fazer do nada uma potência de não ser, uma condição posicional, é alocá-lo não mais como negativo primeiro, mas como condição sintética de negação, uma posição e condição de negação que não é antes ou separado daquilo que ele posiciona. Neste sentido, diríamos que mais radical que a autonegação é a singularidade da negação, na medida em que esta exige sua condição finita e sintética, senão a negação impensável fora dessa condição. Tal condição reclama que não se trate desse nada geral e mais puro, mas da privação singular deste ser (SARTRE, 2007a, p. 666) na dinâmica que escapa à exterioridade de indiferença por sua própria diferenciação, cuja tradução concreta não é o em-si-para-si enquanto síntese impossível, nem a tensão do real como fenômeno enquanto impossível ser, nem o sujeito como nada cujo fenômeno próprio é a angústia, mas o universal singular como negação qualificada por sua própria escolha de si, sua finitude.
Se a intencionalidade enquanto nadificação implica um projeto de ser, um ser-para-si, de modo que seu nada implica um fazer, isto significa que esse nada não se torna ser, mas que ele é uma maneira de negar este ser, e enquanto nega também a si, nega qualquer constituição já dada, mas só o pode fazer e realizar tal negação de uma certa maneira, a partir da sua singularidade. A finitude não é um ser limitado dado por um nada exterior ou interior, mas também autodeterminação, isto é, criação de si. Daí que essa nova extensão não seja, como o quer Moutinho, de uma pureza, mas justamente da irredução à esta pureza. Todo nada é singular e é a singularidade a extensão própria desta nadificação. Em outras palavras, a negatividade aqui é posicional na medida em que tal grandeza na sua qualidade alude a uma forma diferenciada, singularizada, em que tal posicionalidade é a própria finitude em seu processo e singularização.
Assim, a negatividade que é a própria liberdade passa a denotar no indivíduo não apenas essa potência nadificadora, mas requer, por sua singularidade mesma, que ela se implique na sua forma sintética, isto é, como qualidade e singularidade deste indivíduo. Tal qualidade que alude à maneira como o indivíduo se faz aparece como seu gosto e estilo, e que reforça ainda mais ideia da necessidade da liberdade como superação do dado e singularização da situação, ou seja, da situação como um modo singular de ser em sua constituição no transcorrer temporal da existência individual. Em outras palavras, não há um nada fundamental senão enquanto qualidade fundamental como resultado total do processo de singularização e de finição de se fazer outro; um nada que se qualifica não somente pela negação do outro e de si mesmo, mas pela sua constituição singular enquanto esta negação. Esse ponto de vista singular, finito, é o seu máximo de ser (SARTRE, 1983, p. 529). Essa grandeza que se traduz em uma existência singular faz que o ser se reduza à sua própria qualidade e que, sendo ela trans-histórica, não seja resumida nem ao ser positivo, nem à negatividade que a engendra, mas as englobe em seu processo total cuja síntese de reconhecimento de sua singularidade implica a apreensão dessa qualidade como seu drama.
Toda essa mudança de perspectiva não nega o ser e o nada, mas os agencia segundo a possibilidade em que o finito possa ser dito enquanto tal. Por certo, Sartre não quer cair nas amarras de uma metafísica, pois é sua forma de tratar o ser que a impede de privilegiar o finito, para o qual ela permaneceria infrutífera. Aí que é preciso colocar todo peso ontológico não no ser, mas no fenômeno, ou melhor, nas maneiras de ser. Sartre se aproxima disso com a psicanálise existencial, mas é só pela passagem à Crítica que ele consegue efetivar tal abordagem pelo fato de assumir ali a matéria e a História, fazendo da medida do ser não a opacidade, mas o tempo do homem. É somente ali que o universal singular pode adquirir a concretude necessária para que o próprio ser singular seja restituído à sua concretude, isto é, no seu ser absoluto. Como observa Bornheim,
A liberdade tal como a entende o primeiro Sartre é toda feita de uma peça só, ao passo que agora tudo se desdobra no interior da ambiguidade radical daquele conceito de vivência a que me reportei anteriormente. E ainda que sempre alérgico a qualquer forma de homogeneidade atribuível à categoria do objeto – o sujeito lhe é irredutível -, digamos que, a partir da Crítica, Sartre tornou-se mais “positivo” (BORNHEIM, 1998, p. 46).
Esta positividade deve ser entendida como essa descida à finitude, pois não mais se finda ao impasse da tensão e do fundamento, mas ascende-se, pela vivência, a uma dinâmica que envolve a negação em sua condição de criação e finitude subsumindo-a à singularidade de uma vida. É nisso que se dá o coroamento da liberdade para além do ato de se libertar: sua condição de criação, pois o que se cria não é tão somente uma mudança no exterior, mas toda a realidade. Se o garçom brincava de ser garçom, tal encenação é levado não à apenas ser uma forma de má-fé, pois enquanto paixão pelo ser, cada para-si singular define-se por sua paixão, sua perda, sua ação, de modo que se realiza por esta, ainda que toda realização permaneça sempre em suspenso na liberdade, dado que toda realização é uma possibilização, uma efetuação de uma possibilidade do que a restituição de uma fundamentação. Pois “todo ultrapassamento ulterior, longe de suprimir as facticidades originais, as conservam nele como exigência própria que qualifica a ação e esboça o conteúdo das mudanças” (SARTRE, 1985, p. 214). Essa qualidade própria do movimento de liberdade implica que o garçom não realiza indiferentemente seu esforço, nem também sucumbe a um universal abstrato na ilusão de ser algo, mas sim que ele se faz este garçom, e coloca nessa atividade toda uma singularidade que remete a um modo singular de ser, que por um lado reflui sobre o mundo do qual ele parte lhe dando sua contextura e por outro, sendo uma forma que ao mesmo tempo que ele a assume, ele ultrapassa sua condição pela singularidade que ela engendra. E a faz única não somente porque ele é um indivíduo localizado num tempo e num espaço específico, mas porque se torna a síntese de um ultrapassamento que envolve, desde a história individual até a história global, uma estratégia única para seu ultrapassamento:
Ser para-si é transcender o mundo e fazer com que haja um mundo transcendendo-o. Mas, transcender o mundo é precisamente não o sobrevoar, é comprometer-se nele para dele emergir, é necessariamente fazer-se ser esta perspectiva de transcender. Nesse sentido, a finitude é condição necessária do projeto original do para-si (SARTRE, 2007a, p. 366, negritos nossos).
Deste modo, a marca própria da finitude do Ser passa a ser o projeto do para-si. Mas um projeto que, desde Questões de método ao Idiota da família, demarca na liberdade a apreensão do indivíduo inteiro, pois o projeto existencial nada tem a ver com projeções futuras e empíricas, ele é o processo de finição enquanto totalização lançada para o que ainda não é, para o outro. Por isso o projeto é o para-si em sua liberdade e em sua paixão, entre aquilo que o aliena e a superação singular dessa alienação, que não é senão outra forma de assumi-la na medida mesma em que esta outra forma é a sua superação. Essa exigência leva Sartre a confluir o projeto de ser com a personalidade do indivíduo. Da consciência impessoal e translúcida se enfoca agora na determinação pessoal engendrada por uma negatividade que assume desde seu surgimento todo o peso do mundo e da história como parte e solo pelo qual se constitui a singularidade desta negação: “não há indivíduo a não ser por esta finitude, pela singularidade deste ponto de vista” (SARTRE, 1985, p. 214). Assim sendo, ao reclamar a concretude do indivíduo, a finitude passa a ser inteligível em sua condição de finito. Mas o que ela revela já não é nem unicamente o nada como princípio ou sua estranha analogia ao ser, nem o ser opaco da exterioridade de indiferença, nem um mero indivíduo particular de um universal. Nem exclusivamente a angústia e a consciência infeliz, nem a má-fé e a seriedade. Nem a liberdade de um lado e a alienação de outro. Mas, sim, de todo esse processo, aquilo que permanece irredutível ao ser e a História e ao mesmo passo que é sua expressão própria e marca da liberdade, ou seja, é uma diferença que tal singularidade expressa a partir dessa qualidade singular:
De qualquer maneira, a ação e a vida do homem que devemos estudar não podem ser reduzidas a essas significações abstratas, a essas atitudes impessoais. Pelo contrário, é ele que lhes dará força e vida pela maneira como se projetará através delas [...] O sentido do nosso estudo deve se aqui “diferencial”, como diria Merleau-Ponty. Como efeito, é a diferença entre os “comuns” e a ideia ou a atitude concreta da pessoa estudada, seu enriquecimento, seu tipo de concretização, seus desvios, etc., que devem antes de tudo nos iluminar sobre nosso objetivo. Essa diferença constitui sua singularidade (SARTRE, 2002, p. 105 e 106, negritos nossos).
A negatividade, se se quer ser apreendida na elucidação da finitude do finito, deve expressar-se sempre como uma diferença, com uma forma singular. Essa diferença que implica essa singularidade é o que recobramos em cada finitude. Finito, assim, é tudo, mas o que se resguarda desse processo, justamente porque é processo, é o seu máximo de ser. E se a finitude é máximo de ser, então é o máximo desse processo que denota a força dessa diferença, dessa nova forma, dessa qualidade a repousar sobre a História como forma que elas devem assumir no refluxo da exteriorização. Só aí há enriquecimento e positividade, só aí a liberdade não se perde na alienação, só aí a seriedade já não é um abismo cujo único fim é a volta a uma angústia originária. Não que agora venha a ser fonte de júbilo, mas são condições para o processo de singularização e criação no campo dos possíveis como horizonte histórico da liberdade.
Por isso não se trata do resultado da relação total de todos os “lagos de não-ser” que rodeiam o para-si e o determinam como não sendo isto, mas sobretudo este isto irradiando uma singularidade que determina toda a tessitura nova enquanto situação e mundo. A autodeterminação é constitutiva do mundo e não surge como resultado senão como princípio desta perspectiva, isto é, surge como finitude. Porém tal finitude não é um ser positivo dado, mas uma negatividade que se forma. A análise da finitude do finito revela o finito enquanto processo que culmina no seu ser como singularidade realizada por sua diferença, essa irredutibilidade que surge com o indivíduo e adquire uma dimensão trans-histórica. A negatividade se transforma em diferenças qualitativas, fazendo do ser uma qualidade e do fenômeno seu sentido singular, de modo a refletir na forma como os homens se compreendem, ao mesmo passo que possibilita o sentido do discurso sobre si e sobre o mundo.
Por isso que seria estranho ver na origem da liberdade apenas dimensões transfenomenais numa tensão irresoluta, pois isso, no fundo, não diz nada sobre a liberdade. Não que a tarefa crítica não seja necessária, já que explicita esse campo como livre, além de que, como o mostra Sartre, ela serve como instrumento da cultura no seu anseio de liberdade e mudança. Mas tal cultura já se realiza por sua própria existência, não fora fruto da reflexão, e para a qual o conhecimento pode até chegar tarde dado que numa totalização a síntese nunca é acabada, mas um movimento constante. É por esta condição que Sartre afere a liberdade como uma relação de compreensão, não apenas de conhecimento. E se é a compreensão que alude ao tempo das singularidades e a malha da História, são as noções que devem dar a tessitura do universal singular e não unicamente os modos de ser que a ontologia revela. É pelas noções que se subsumi as três vias de análise e se conglomeram ontologia, História e psicanálise existencial numa antropologia existencial. E é nelas, por esta forma de antropologia existencial, que se é apreendido o finito em sua finitude, em sua concretude. É só na medida em que se tornam concretos que conseguem salvaguardar a finitude do finito, restituindo ao homem seu discurso próprio e impedindo-o da queda ao mutismo do ser e o do nada. Temos ainda uma ontologia, mas uma ontologia sempre criada, sempre reinventada, sempre com uma nova imagem do homem, pois não se trata somente do sujeito egotista, mas de toda uma atmosfera humana (e esta enquanto sentido do ser) que se cria: tal é o peso do universal singular, o modo como o ser se possibiliza por tal aventura humana. Uma finitude diz sua diferença e seu tempo, por elas temos a imagem do homem e sua liberdade, sua história, seu peso e sua leveza, sua qualidade fundamental.
Essa explicitação da finitude como qualidade é mais bem expressa com aquilo que Sartre chama de seu teor metafísico (SARTRE, 2007a, p. 650). Ora, mesmo que Sartre apele sempre para a diversidade dos istos e pela diversidade de formas possíveis, infinitas, por certo, pelas quais a liberdade do para-si pode realizar a indiferença do ser (Idem, p. 241), e ainda que quando ele começa a analisar a qualidade recuse qualquer subjetivação da qualidade (Idem, p. 236), ela finda sua análise numa associação da qualidade com o gosto pessoal e o estilo objetivo da pessoa. Assim sendo, “o para-si também se qualifica a partir dessa negação, pois ele não é dado de início para depois se constituir como negação” (MOUTINHO, 2003, p. 125). Por isso, desde seu surgimento a negação não é indiferente (Idem, p. 122) e não sendo indiferente, implica toda essa constituição diferencial da singularidade7. Por isso que a falta não é qualquer falta (SARTRE, 1983, p. 161), mas “este ser como falta” (Idem, p. 547). Passa a haver, então, uma isomorfia entre sujeito e mundo pela qualidade, sendo esta raiz de toda coloração (Idem, p. 544) da singularidade. Sendo, assim, uma forma de “revelação intuitiva do ser” (SARTRE, 2007a, p. 650), tomada na sua totalidade constitutiva, essa qualidade deverá revelar por um lado essa qualidade mesma, como o “coeficiente metafísico do limão, da água, do azeite” (Ibid.), mas sobretudo a singularidade que o acompanha: “Porque Pedro ama laranjas e tem horror à água, por que saboreia tomates e recusa em comer vagens, porque ele vomita se for forçado a engolir ostras ou ovos crus” (Ibid.).
Ora, impossível tomar isso tão somente como uma imagem do negativo. Ela remete, antes, à estrutura a priori de nossa afetividade (SARTRE, 2007b, p. 95). Por isso que ela alude à compreensão do sujeito em seu projeto e modo de existência. Daí que tenha de ser objeto de um estudo psicanalítico existencial para se conhecer e tematizar tal afetividade, de porque o mundo foi escolhido ser possuído por tal isto particular (SARTRE, 2007a, p. 645). Assim, “equívoco estrutural, o teor metafísico da qualidade se encontra diretamente ligado a um projeto original de apropriação, cujas opções individuais (gostos e desgostos) formam a expressão singular” (MOUILLIE, 2000, p. 123). Entre o teor metafísico e o ato poético, a qualidade se torna a forma própria da aventura:
Ser finito, com efeito, é se escolher, isto é, se fazer anunciar o que é e se projetando rumo a um possível, que exclui os outros. O ato mesmo de liberdade é, portanto, assunção e criação da finitude. Se eu me faço, eu me faço finito e, por este fato, minha vida é única. (SARTRE, 2007a, p.591)
Por certo, Sartre privilegia os homens das letras, os artistas e escritores, e mesmo os engenheiros no Cahiers. Porém, todo homem é criador da cultura na medida da sua liberdade. Por isso que não podemos aceitar como resultado de O idiota da família a apresentação de “um homem comum, vagamente doente” (BORNHEIM, 1998, p. 39). Trata-se, antes, de entender que homem, de que tempo, com quais gostos, criador de quê, com quais gestos. Ademais, como reconhece o próprio Bornheim, “o processo da verdade total de um homem termina sempre tropeçando num dado irredutível” (Idem, p. 40). Ora, nesse dado encontramos a originalidade dessa negatividade formada e que chamamos liberdade, isto é, a maneira pela qual alguém se faz. Por um lado, objetivamente se sabe dos gostos e da forma, por outro, esse irredutível, essa diferença específica permanece indecifrável por completo, pois é uma qualidade, um sabor, ainda que calcado na materialidade, sobretudo como obra escrita. É esta sensação de insuficiência que Bornheim tem quando Sartre termina seu extenso estudo sobre Flaubert: “muito restaria ainda a ser explorado, que certos aspectos são mais sugeridos que analisados, uma frase perdida poderia talvez suscitar um novo livro, e que para isso teria que surgir nada menos que um novo Sartre” (Idem, p. 13). Daí que não desvelamos Flaubert, como um dado objetivo, mas compreendemos Flaubert, assim como compreendemos Kierkegaard e Sartre por sua letra, cujo fim não é o resgate desses indivíduos, mas a compreensão de nós próprios (SARTRE, 1972, p. 186). Não importa que tenha existido um Sartre e não outro, é por este Sartre que nos compreendemos ao procurarmos compreender Flaubert. É o acaso constitutivo na composição de todo teor singular. Como se forma desde seu surgimento, em algum momento isto se deixa transmitir por tal sabor, e aí já não importa se é uma nova frase a surgir e metamorfosear algo ou repetir a mesma sinfonia – o irredutível está dado; a partir daí ele se intensifica, se distende, se faz singularização a partir de sua existência, de seu fato poético. Desta liberdade ficará seu teor trans-histórico e metafísico, como o que foi e não pode mais não ser, pois foi aquilo que cultura era capaz de engendrar ao mesmo passo que foi suscitado pela originalidade singular de um indivíduo único. Esse sabor diferencial denotará a época e o sentimento único dos que a vivem, suas opressões e transgressões.
Assim sendo, o irredutível não depende da inesgotabilidade do homem, e as angústias do Autodidata, de “Quem pode esgotar um homem?” (SARTRE, 2006, p. 152), tomadas por Bornheim pela insuficiência que tal estudo pode apresentar, já não desanimam a investida. Por certo, não há a condensação objetiva e analítica do estilo de Flaubert, razão do desanimo de Bornheim: as análises de Sartre “não conseguem explicar, não digo as ideias de Flaubert, que ele nem as teve, mas o seu famoso estilo, enquanto processo criador; tudo motiva, tudo são condições, mas o “salto qualitativo” permanece inextirpável” (BORNHEIM, 1998, p. 40). Isso porque sendo vivência, essa qualidade própria só pode ser ela mesma vivida como qualidade de sua época. E se sua condição trans-histórica nos suscita hoje Flaubert é porque suscita a nossa própria compreensão ante um gosto e uma atmosfera que a invade sem que possamos reduzi-la à materialidade circundante numa espécie de nudez selvagem. Daí que ela se dá a compreender na medida em que nos colocamos por nossa própria liberdade na investida do mundo. Por isso que ela jamais é objeto de uma tematização, mas conflui para a minha própria liberdade e criação. A angústia de Kierkegaard conflui à minha, mas a vivo à minha maneira. Mas quando leio Kierkegaard, a compreensão dele é assumida à minha levando-me a uma tonalidade que eu não tivera antes, e que não é somente a dele. Cada singularidade permanece irredutível, ao mesmo tempo em que sua relação é singularização na sua própria condição irredutível. Não imito Kierkegaard, não faço como Sartre, não basta ler e citar Flaubert. Enquanto singularidade, na compreensão do outro e de mim mesmo, me faço a partir desta relação sem deixar de ser quem eu sou sem, no entanto, me reduzir a um ser já feito. A finitude é irredutível, mas sua irredutibilidade enquanto qualidade é sempre processo, movimento de singularização.
Assim, o projeto é o elemento totalizador de uma singularidade, por isso ele reflete em cada gesto a totalidade singular no seu processo de singularização, de modo que essa totalidade-totalização enquanto singularidade é tomada pela compreensão como um gosto, um sabor, uma qualidade de ser que nos afeta e nos dá a compreender nós mesmos, mais que ao outro. Assim, a relação entre liberdades é uma relação de compreensão, de contemporaneidade (SARTRE, 1972, p. 154, 185). Ademais, quem não só pode esgotar um homem, mas esgotar a si? Esse salto qualitativo irredutível é a singularidade da criação da liberdade, tal como Sartre atribuí como vindo do coração em Genet, fazendo com que ele seja esta escolha e esta seja a sua vida, seu drama. Não há razão e fundamento ali, não há dedução, e basta para uma elucidação da finitude do finito que tal criação seja apenas tomada na sua singularidade. Buscar ali uma razão é voltar à contingência ou à abstração dos princípios. Buscar uma razão analítica para a liberdade seria destituí-la de sua dimensão própria, sua singularidade. Temos, assim, pela singularidade, uma imagem do homem, imagem que faz com que eu me compreenda enquanto criação singular de minha própria imagem sob o fundo do mundo8. E é por compreender Flaubert me compreendendo que, neste momento, seu vivido não me é por absoluto estranho, disperso e perdido na contingência:
Eu quis dar a ideia de um conjunto cuja superfície é ao mesmo tempo consciente e cujo resto é opaco à esta consciência e, sem ser do inconsciente, é escondida. Quando eu mostro como Flaubert não se conhece por ele mesmo e como ao mesmo tempo ele se compreende admiravelmente, eu indico o que eu chamo de vivido, isto é, a vida em compreensão consigo mesma, sem que seja indicado um conhecimento, uma consciência tética. Essa noção de vivido é uma ferramenta que eu me sirvo mais que eu ainda não teorizei. Eu o farei em breve. Se vocês querem, em Flaubert, o vivido é quando ele fala das iluminações que ele tem e que o deixam em seguida na sombra sem que ele possa reencontrar os caminhos. De uma parte, ele está na sombra antes e na sombra depois, mas, de outra parte, há o momento onde ele vê ou compreende alguma coisa sobre si mesmo (SARTRE, 1976, p. 111).
Por isso que não se trata de conhecer o vivido, mas de compreendê-lo, e compreendê-lo não significa “trazer o obscuro à expressão clara, mas encontrar um equivalente tal que a obscuridade não seja ausência de clareza, mas revelação da especificidade do vivido” (MOUILLIE, 2000, p. 93), especificidade essa que chamamos de qualidade fundamental. Ademais, essa qualidade não é tomada em seu estado puro, na forma de um objeto ou de descrição definida e completa. Por sua condição trans-histórica ela exige seu inacabamento e transformação no mundo, sem jamais deixar de ser o que é, sem se destituir de sua finitude, pois é sua diferença que resguarda sua finitude. Ademais, “como poderia o biógrafo, sobretudo num trabalho de maior profundidade, deixar de reinventar o seu biografado? O que não quer dizer arbitrariedade, e sim reconstrução de um mundo baseado na empatia, na compreensão” (BORNHEIM, 1998, p. 43). Não se trata tão somente de resgatar algo perdido ou de manter a originalidade da genialidade de Flaubert. É Sartre, um existencialista e marxista que fala sobre Flaubert. Não há aqui neutralidade, nem tentativa e necessidade disso: “A pretensão de estabelecer um conhecimento exato revela-se aqui inexequível, e empobrecedor” (Ibid.). Por isso que o resultado, visto sobre esse ponto de vista que faz da liberdade um objeto, não pudesse trazer à tona senão mais que um homem comum e doente, sem restituir o sabor qualitativo.
Ora, mas uma vez que este vivido é irredutível, é um não-saber, e afere unicamente à compreensão, não o apreendemos objetivamente por Sartre, mas na sua própria compreensão. Assim, o vivido não é algo oculto ou objetivável, mas alude ao modo como se dá a ultrapassagem da chaga primeira, da invenção da liberdade por esta vida. A qual só entra no horizonte existencial de Sartre não apenas como universal opaco, efeito de um movimento de abstração e inércia sobre o vivido como signo objetivo de uma época e uma situação, mas pela liberdade de Sartre. Este indivíduo aparece como objeto privilegiado para Sartre, tal como Kierkegaard, justamente pelo tratamento que dá a essa questão ao expressar a insuficiência da linguagem na pretensão de objetificar aquilo que escapa à palavra já posta na cultura:
A revolução flaubertiana decorre do fato de que, desconfiando da linguagem desde a infância, esse escritor, ao contrário dos clássicos, começa por postular o princípio da não-comunicabilidade da vivência. Nele, as razões dessa atitude são, ao mesmo tempo, subjetivas e históricas. Já sabemos o que foram as palavras para ele desde a primeira infância. Mas ele não poderia ter transformado essa relação negativa com a linguagem em concepção positiva do estilo se o problema não fosse da época, e se a geração anterior, cantando as paixões, não tivesse se posto a tônica na subjetividade. O páthos romântico implica uma substituição de significados: já não se trata de descrever as paixões como processos com articulações rigorosas, momentos conceituáveis, mas de encontrar palavras para traduzir sua significação, uma vez que elas são realidade vivenciadas (SARTRE, 2014, p. 1998 e 1999).
É nesse sentido que “a biografia se torna crítica” (BORNHEIM, 1998, p. 41), pois não se trata de narrar a aventura de Flaubert ou tematizar ipsis litteris tal vivido singular, impossível por certo, mas, uma vez sendo ele mergulhado por toda essa condição histórica e tendo inventado um modo de a superar, se trata, então, de Sartre retomar essa não-comunicabilidade e a reformular por sua conta. Por um lado, Sartre revela tanto o espírito da época quanto a qualidade própria de Flaubert, pois “a empatia pela vivência leva à compreensão, que gera por sua vez a noção” (Idem, p. 19) como modo de figurar tal vivência em seu sentido universal e seu gosto e estilo singular; por outro, é o próprio Sartre na sua empreitada de escritor na construção de seu estilo que interioriza toda essa mudança e a assume segundo sua singularidade. Essa extrapolação que demanda a invenção do outro e a criação de si, ao tomar o outro na compreensão, leva não ao esgotamento da ideia ou mesmo à transparência do indivíduo (ainda que efetue, como no caso de Genet, uma espécie de conversão), mas à compreensão desse “sabor qualitativo” (Idem, p. 43), dessa irredutibilidade que a singularidade aponta, a qual não pode ser descrita em absoluto, mas que nos impele a dela experimentar, posto que é compreensão; a isto Sartre chamou de participação:
o não-comunicável: pois em última instância, posso dar nome a meu sofrimento ou à minha alegria, dá-los a conhecer em suas causas, mas não transmitir seu sabor singular. No entanto, se – como deixou claro o romantismo para seus sucessores – o que estiver em questão for esse próprio sabor, e se o sensível, em sua própria idiossincrasia, sustentar estruturas não-conceituáveis, mas objetivas, no próprio âmago da subjetividade (o gosto “de um pudim de ameixas” é ao mesmo tempo uma singularidade vivenciada, não-conceitual, e uma sensação comum cuja lembrança pode ser despertada naqueles que o provaram), esse não-comunicável, apesar de tudo, será passível de ser transmitido de certa maneira. Seria possível dizer que é preciso desistir de fazer da linguagem um meio de informação ou, em todo caso, que é preciso subordinar a função informativa a essa função nova que poderia ser chamada de participação. Em outras palavras, não se deve apenas dar nome ao gosto do pudim de ameixas, mas dá-lo a sentir (SARTRE, 2014, p. 1999, negritos nossos)
Não se trata, portanto, de nomear, mas de dar a sentir. Ora, mas sendo uma terminologia nocional que carrega tal possibilidade, que envolve o universal e o singular num tempo e situação irredutível, ela não direciona a uma espécie de repetição, pois é impossível para aquele a quem faz tal experiência por esse sentimento meramente reviver tal como viveu Kiekegaard ou Flaubert. Por isso que ao se fazer o uso de noções certamente o que se procura com elas é expressar tal singularidade, esse gosto diferenciado. É, ainda, fazer inserir o indivíduo na trama histórica, mas apenas na medida em que tal gosto seja revelado e experimentado não como fato irredutível, mas enquanto questão para nós mesmos. Por isso não se trata apenas de uma subjetividade fechada, mas também não se trata dela em sua condição absoluta e o sujeito sobre ela. Trata-se de uma finitude irredutível, mas cuja irredutibilidade é tal somente na medida em que é relação a todas as outras; em outras palavras, tal finitude apela a um campo relacional na medida mesma em que se faz na sua própria singularidade e irredutibilidade. É por isso que se trata, sempre, de nossa experiência, mas a qual só é possível pela irredutibilidade da experiência do outro. Assim, não conheço meramente a liberdade de Kierkegaard ou Flaubert, mas a sinto, faço a experiência dela a partir de minha liberdade para a minha liberdade.
Certamente pode se encontrar aí algum lastro imaginário. Mas não em absoluto, como mera fantasia ou encenação repetitiva, isto é, como se resumisse em se parecer como Flaubert ou Sartre, retomar seus os gestos, características e as formas já constituídas e fazê-las seu analogon para o campo imaginário. Trata-se, antes, de tomá-lo como contemporâneo, como algo que se insere no atual campo dos possíveis e não apenas como objeto inerte no campo prático-inerte, mas sim segundo sua potencialidade de abertura, de criação. É como se, ao ver a liberdade na História, a liberdade seja restituída como motor da História, motor esse que não é outro que a práxis individual na singularidade do agente. Assim, experimentar esse gosto que se dá a sentir é assumi-lo como condição fáctica para além da sua irredutibilidade, pois só posso assumir isso que foi vivido, vivendo-o por minha conta, isto é, singularizando-o. A biografia de Flaubert por Sartre não quer esgotar um homem, mas dar a compreender o homem hoje a partir da questão do que é para Flaubert a sua própria vida e situação histórica. Assumir e assimilar o que houve com o outro nessa interiorização e esforço de gesto é uma reprodução, mas por minha conta, portanto, é um ato ainda singularizador, ainda que haja pessoas ou momentos em que tal singularidade seja abafada e diluída no universal. Eu faço a mim mesmo me singularizando, diferenciando-me a partir da minha finitude irredutível na relação com o outro em sua irredutibilidade, mas a qual só pode entrar no meu campo por minha singularização, e se isso é possível é justamente por sua condição de irredutibilidade. Daí que podemos também aqui dizer que a finitude, antes que limitação, é relação de ser, e o mundo como campo da liberdade e pela liberdade é todo um jogo dos irredutíveis:
O Ser puro não é amável na sua total exterioridade de indiferença. Mas o corpo do Outro é amável enquanto ele é a liberdade na dimensão do Ser. E amar significa aqui absolutamente outra coisa que desejo de apropriar. É, a princípio, desvelamento-criador: aqui, também, na pura generosidade eu me assumo como perdendo-me para que a fragilidade e a finitude do Outro existam absolutamente como reveladas no mundo [...] Mas eu não me limito a dar-lhe uma outra dimensão de ser: em outras palavras, eu me faço o guardião da sua finitude (SARTRE, 1983, p. 523, negritos nossos).
Por isso a biográfica crítica como instrumento de psicanálise existencial é um empreendimento de invenção e criação antes que de adequação, de libertação antes que de restituição. Daí que para liberar o máximo possível tal singularidade os artifícios sejam múltiplos para tal empreitada e a necessidade de reinvenção daquele gosto antigo às condições de experiência atual implicam a singularidade da situação atual. Assim, Flaubert é inesgotável na medida em que afere às necessidades de determinadas situações, o que pode fazer com que sua obra se sobressalte em algum momento histórico e outros não, de modo que aquilo que é restituído, afinal, seja o atual campo dos possíveis. Por isso, como conclui Bornheim, (1998, p. 41, negritos nossos) “a verdade biográfica só se faz possível com um certo exagero. E não penso tão-somente na obsessão burguesa da subjetividade, mas principalmente nesse exagero mais radical e necessário, que distende o indivíduo numa realidade outra e constituinte”. Essa distensão do indivíduo implica todo esse remanejamento trans-histórico da sua qualidade. Trata-se de experimentar segundo a passividade de Flaubert, a angústia em Kierkegaard, a maldade de Genet, a liberdade em Sartre, o gosto singular das nossas próprias experiências. É, de algum modo, um reconhecimento e, por ele, essa compreensão do que somos, do que podemos nos fazer.
Não se trata de analisar vidas paralelas: trata-se de conhecer sempre o mesmo homem, mas que é sempre outro que não ele mesmo. Ou seja, todo homem é irredutível, e todo homem é apenas um exemplo. Conhecendo Flaubert, o homem se conhece; e a tentativa autobiográfica apresenta como principal objetivo a exigência de tornar transparente o humano do homem (BORNHEIM, 1998, p. 27).
Assim sendo, compreendemos que a negatividade não apele somente ao nada como princípio vazio e geral, mas que este não pode ser tomado senão pela compreensão de certa qualidade singular: eu mesmo na História. Por isso que a finitude não figura uma ilha isolada, um ser fechado, mas uma relação e um conjunto de relações. O sujeito é, assim, uma mediação que aponta, por um lado, ao dado concreto e histórico do qual se pode abstrair um conhecimento universal e que se resguarda no saber objetivo como signo e/ou materialidade inerte e, por outro lado, à singularidade, ao irredutível que só é passível de compreensão. Nem irredutibilidade isolada, nem universal abstrato, a liberdade é a mediação enquanto universal singular, de modo que só a podemos compreender como relação (negação) a si e ao mundo. Pois,
se se pretendesse a irredutibilidade absoluta dos componentes do real, dos níveis em que ele se constitui, cair-se-ia na diferença absoluta e nada mais apresentaria nexo, ou seja, far-se-ia do absurdo da incomunicabilidade absoluta o impossível princípio de inteligibilidade do real; mas se se admitisse, ao contrário, o princípio de redutibilidade total toparíamos com um monismo que esquece as diferenciações e deixa esvair a realidade (BORNHEIM, 1998, p. 84).
Nem pluralidade, nem monismo, a filosofia de Sartre apresenta um conjunto dialético das relações segundo a lógica da finitude enquanto processo de singularização como tecido do real. Dialética essa inventada por estes sujeitos singulares e que faz da História uma construção humana. Assim, se restituímos a nadificação não como relação frustrada entre o ser e o nada e o real como impossibilidade do fundamento, mas como síntese finita num campo plural cuja relação é sempre singularização, já que implica relações de relações, o próprio real se firma como campo e horizonte de possíveis, cujo movimento é de constante abertura e transformação. Nesse caso, na finitude não se trata de um jogo entre ser e nada, mas entre os irredutíveis como construção histórica da liberdade. É a este jogo que aludimos à finitude do finito e a tarefa de uma filosofia enquanto antropologia existencial que se posicione historicamente como empreendimento de libertação. A exemplo disso,
O interesse de Sartre está finalmente no retrato, visto que ele pretende uma crítica totalizante. Mas a totalização nada tem a ver com a totalidade estática, inerte, e o mérito de Sartre está precisamente em ter estabelecido, no interior da totalização, o jogo dialético das irredutibilidades. A obra de arte não é redutível nem à subjetividade do artista, nem ao social, nem à História, ainda que a sua práxis transformadora, sem isso tudo, permaneça ininteligível. A unidade da História se faz no plural, ela é feita de histórias, e a arte só pode dizer o mundo com a condição de dizer-se a si própria: nessa franja do irredutível institui-se, qual orgulhoso pavão, a história da arte na força de sua especificidade, de seu ser (BORNHEIM, 1998, p. 103, negritos nossos).
Assim, a dialética não é a do ser e do nada, não é sobre eles que se totaliza, mas sobre as maneiras de ser que ela subsume. Se a dialética, por fim, reclama e aponta às irredutibilidades, as diferenciações exigidas pelo método progressivo-regressivo nos dão não o ser como fundamento, mas a finitude. Com ela resolve-se o problema metafísico porque, tal como resulta toda filosofia de Sartre, “só tem sentido falar em conaturalidade a partir da dialética das diferenciações, do confronto, digamos, entre o singular e o universal” (BORNHEIM, p. 86). Assim, tanto a tarefa do filósofo é a de totalizar quanto o de buscar essas irredutibilidades, pois só consegue de fato realizar a primeira realizando a segunda, e isso sobretudo incluindo a si na empreitada, uma vez que faz isso como formação da sua própria singularidade. Daí que uma crítica da História implique uma crítica e um exame de nós mesmos. E se nos perguntávamo-nos sobre a elucidação da finitude do finito, podemos agora responder que ela consiste justamente na elucidação dessas irredutibilidades pela dialética do universal singular.
Assim sendo, passamos do vazio do nada às formas diferenciadas que essa potência subsume, potência que só pode ser elucidada na sua concretude, como modo singular pelo qual ela se faz como esta privação singular. Só aqui a ontologia de Sartre adquire o teor prático reclamado por comentadores como Jeanson e Cox. É aqui que encontramos o concreto absoluto, o universal singular, universal cuja raiz é a finitude, e finitude cuja forma é sua singularidade trans-histórica. Portanto, “o aspecto forte do pensamento de Sartre está precisamente no ato de sublinhar as diferenciações, o que implica a recusa de um fundo comum entendido como princípio de explicação do real” (BORNHEIM, 1998, p. 86).
Desta feita, à esteira de Bornheim, (1998, p. 87, negritos nossos) “o que importa seria fazer o inventário das diferenciações, das irredutibilidades”. Inventário não na forma analítica e enumerada, mas dinâmica. Pois na medida em que o inventariante também é considerado, e sendo ele o fim maior, já que se trata de uma crítica dialética do presente e não a instituição do clássico, essa topologia variaria tanto quanto é suscitada na conjuntura de uma situação sempre atual. Aqui a elucidação visa os homens concretos e não a modos de vida fundamentais. O fundamento convertido no ser finito elege a finitude do finito e não o finito em si como solo próprio do humano. O que se estabelece nesse jogo é “um comércio pluridimensional entre as camadas da realidade; poder-se-ia dizer que tudo está em tudo, e que a dialeticidade do real põe à mostra sua inquietação e a diversidade interminável de suas configurações” (BORNHEIM, 1998, p. 87). É nessa dialética que o homem atual encontra o mundo histórico e o outro na história, é nela que há enriquecimento e profundidade histórica. Se esse enriquecimento é o fruto e a condição da profundidade, esta explicita não a verdade do ser, mas o limite do homem, fazendo da verdade humana a possibilidade da liberdade.
Daí que a filosofia de Sartre redunde antes em uma antropologia existencial que em uma metafisica, que desvele homens e não somente o ser, porque a qualidade fundamental do ser não é senão uma vida humana. Por fim, uma análise biográfica como forma de psicanálise existencial visa tal qualidade singular. Esse modo pelo qual uma vivência se faz viver retrata em contrapartida a confluência entre essas diferenças, suas proximidades e distâncias, repetições e inovações, dispensando a busca por uma genialidade heroica, memorável e miraculosa, seja do homem, seja do fundamento. O jogo dos irredutíveis, na dialética da história, não tem por sentido senão o desvelamento da forma singular enquanto finitude do finito.
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STEIN, Ernildo. Melancolia: Ensaios sobre a finitude no pensamento ocidental. Editora Movimento, 1976.
Notas
2. Compreenda-se este termo com o mesmo teor que Stein apresenta o de “rescendência”: “a transcendência mostrar-se-á, progressivamente, como descida para o interior da finitude, ou como me permito dizer, como rescendência. O movimento da transcendência é um movimento do homem sobre si mesmo. É a exploração do peso positivo de sua finitude; A transcendência não será a grandeza do homem porque conduz para além de sua própria condição finita, mas porque volta o homem sobre si mesmo, em busca das dimensões radicais de sua própria e positiva condição de ser finito.” (STEIN, 1976, p. 25, negritos nossos).
3. Tal como o encontramos em Haar: “A razão da ingenuidade satriana deve-se a sua tomada não crítica dos termos da metafísica [...]Sartre retoma, repetindo ingenuamente, pois não pensa a essência da metafísica, os principais axiomas das filosofias pós-cartesianas: a presença transparente e autossuficiente do sujeito a si mesmo; a evidencia desta presença a si (o cogito) como fundamento último do ser do saber; a autoafeição pela qual o sujeito é assegurado da certeza de si; o dualismo do eu e do não-eu; e, por fim, um humanismo ou antropomorfismo, graças ao qual o sujeito humano elevado a absoluto é fonte única de todo sentido.” (HAAR, 1999, p. 56 e 55).
4. Pois, seguindo as críticas de Merleau-Ponty, o método ficaria estático, uma vez que “o progresso da investigação não modifica a ideia de nada, pois é ao mesmo nada que sempre se referiu. Há apenas um espectador, Sartre, que assiste ao progresso sem ser arrastado com ele; isso significa que o movimento é ilusório, pois o negativo puro continua inacessível, tendo o ser apenas como vizinho inalterado e que não o altera”. (SILVA, 2010, p. 208)
5. “No livro que eu escrevi sobre Flaubert eu substitui minha antiga noção de consciência – ainda que eu utilize muito esta palavra, pelo que eu chamo de vivido. Eu vou tentar neste momento explicar o que eu entendo por este termo, que não designa nem os refúgios do pré-consciente, nem o inconsciente, nem o consciente, mas o terreno sobre o qual o indivíduo é constantemente submergido por ele mesmo, por suas próprias riquezas, e onde a consciência tem a astúcia em se determinar, ela mesma, pelo esquecimento” (SARTRE, 1972, p. 108, negritos nossos).
6. É radical porque não é somente negação do ser, é também negação de si, pois não se trata de fazer da negação algo: “Sartre pretende que a negação não seja posta como tal, o que a converteria em ser, em um simples contrário seu; daí por que ela deve ser também negação de si mesma” (MOUTINHO, 2003, p. 144)
7. Assumimos o comentário de Moutinho (2003, p. 132) “Onde pode haver aí contingência? Sou eu, diz Sartre, “que faço que eu apreenda [a casca verde] como verde-rugosa ou como rugosidade-verde” (380). Eis aqui a gratuidade: a apreensão do verde remete a uma negação interna pela qual o para-si o realiza como forma e a rugosidade como fundo; nesse sentido, tal relação é “escolhida”.
8. Aqui é a singularidade que dá a imagem da liberdade e não meramente um tipo fundamental de existência como, por exemplo, sugere Merle (MERLE, 2005, p. 1). Não há tipologia fundamental. Pode existir condições gerais ou históricas, mas elas são sempre finitas e singulares. Acompanhamos isso em Flaubert: “Há, pois, segundo ele, um rigor da ficção que a torna profética. Será isso criar um “tipo”? Com certeza não: prova disso é que Madame Bovary permanece até o fim como indivíduo incomparável. Mas seu trabalho, visa, justamente, a criar um universal singular. A singularidade começa por dar segurança ao leitor, depois o fascina até que ele, por fim, perceba tarde demais que ela continha o universal, e que esse destino que lhe contavam, apesar das inúmeras e irredutíveis diferenças, é seu próprio destino” (SARTRE, 2014, p. 1510).
Notas de autor