Resumo: Neste texto, o nosso objetivo é indicar, seguindo o horizonte proposto por Primo Levi em Os afogados e os sobreviventes [1986], que é possível comunicar ou diminuir a distância entre o expressar e o compreender. Como hipótese, argumentaremos que embora não nos seja permitido sentir no lugar do outro, é-nos possível compreender a sua expressão; essa compreensão se daria a partir de uma conversão do olhar, fundamentada em uma vontade de comunicar. Para isso, utilizaremos – no horizonte da problemática de Levi – alguns elementos da filosofia de Simone de Beauvoir, em especial a sua noção de situação, e de Ludwig Wittgenstein, com ênfase em sua noção de apresentação panorâmica. Ambas as noções mencionadas sugerem, a nosso ver, atitudes metódicas, das quais Levi se aproximou.
Palavras-chave: Expressão, Compreensão, Primo Levi, Simone de Beauvoir, Ludwig Wittgenstein.
Abstract: In this paper, aims to indicate, following the horizon proposed by Primo Levi in The drowned and the saved [1986], that it is possible to communicate or decrease the distance between expressing and comprehending. As a hypothesis, we will argue that although we are not allowed to feel in the other's place, it is possible for us to understand their expression; this understanding would be based on a conversion of the gaze, founded on a desire to communicate. For this, we will use – in the horizon of Levi's problematic – some elements of Simone de Beauvoir's philosophy, especially her notion of situation, and of Ludwig Wittgenstein, with emphasis on his notion of panoramic presentation. Both notions mentioned suggest, in our view, methodical atitudes which Levi approached.
Keywords: Expression, Comprehension, Primo Levi, Simone de Beauvoir, Ludwig Wittegenstein.
Artigos
Primo Levi, Simone de Beauvoir e Wittgenstein: uma apologia da comunicação
Primo Levi, Simone de Beauvoir, Wittgenstein: an apology for communication
Recepción: 01 Agosto 2022
Aprobación: 17 Octubre 2022
Não é fácil nem agradável examinar esse abismo da maldade, mas penso que se deva fazê-lo, porque o que foi possível perpetrar ontem poderá ser novamente tentado amanhã, poderá envolver a nós mesmos e a nossos filhos. Experimenta-se a tentação de virar o rosto e afastar o pensamento: é uma tentação que devemos resistir (Primo Levi).
Em seu ensaio Os afogados e os sobreviventes [1986], Primo Levi nos descreveu a condição paradoxal da testemunha dos campos concentracionários (Lager), cuja caracterização se deu mediante o fato de que só poderia testemunhar quem não sentiu o fundo do Lager, porque quem o sentiu, não pôde voltar para contar2. A partir dessa condição, tornou-se-lhe possível uma diferenciação entre os sobreviventes e os afogados. Estes – descritos no jargão dos Lager como “mulçumanos” (Muselmann) – à diferença daqueles, seriam as verdadeiras e integrais testemunhas, por terem, segundo a metáfora do autor, “fitado a górgona”. E ao fitarem-na, calaram-se ou com a morte ou com a petrificação: “não voltaram para contar, ou voltaram mudos” (LEVI, 2016, p. 66). Os “mulçumanos”, a seu ver, seriam “testemunhas integrais, cujo depoimento teria um significado geral” (LEVI, 2016, p. 66, grifos nossos). Diferentes estudiosos da obra de Levi, dessa condição paradoxal, enfatizaram essa ausência de integralidade do testemunho do sobrevivente, reduzindo, em certo sentido, a qualidade da testemunha, dentre as quais ele se encontraria, ao dizer no lugar do e pelo outro3. O testemunho do sobrevivente, por essa perspectiva, perderia a sua “autoridade”, por não poder expressar o significado geral da situação de Auschwitz. É bem certo que os testemunhos dos sobreviventes não seriam os “verdadeiros” testemunhos por não serem integrais; mas é certo também que há uma verdade neles, se o lermos conforme eles são, isto é, parciais, situados e contextuais.
Ao indicar que os sobreviventes não seriam as testemunhas integrais, Levi, citando Alexander Soljenitsin, pontuou-nos que não deveríamos nos esquecer de que os “Lager foram de extermínio”. Os sobreviventes, felizmente, não se tornaram “muçulmanos”; mas enquanto prisioneiros dentro do Lager o seu destino não era outro. A górgona estava sempre à espreita. O “muçulmano”, aliás, conforme a definição do autor, era um “prisioneiro irreversivelmente exausto, extenuado, próximo à morte” (LEVI, 2016, p. 79). O sobrevivente, na situação de prisioneiro, vivenciou “uma escravidão análoga e diferente” (LEVI, 2016, p. 66, grifos nossos). Ele foi “tocado pela sorte”. Não fitou a górgona, mas viu o “muçulmano” que, paulatinamente, caminhava em direção dela. Por isso, a nosso ver, qua testemunha, Levi se apresentou como uma síntese entre testis e superstes: como alguém que viu algo, apesar de não ter vivenciado o que viu; e como alguém que vivenciou algo, sobreviveu e sentiu necessidade de expressá-lo e comunicá-lo. Mesmo que ele não possa – e nem tenha tentado – expressar o “significado geral” de Auschwitz, não se limitou a narrar uma experiência vivida simplesmente de caráter pessoal, uma vez que situou a sua narrativa dentro de um contexto compartilhado por outros sobreviventes. Ocorre que, ao ter tentando comunicar o que significava ter sido um prisioneiro de um campo concentracionário nazista, sentiu que, cada vez mais, a distância entre os fatos narrados e a sua compreensão por parte das e dos ouvintes aumentava. Disso, surgiu-lhe uma inquietação, que se converteu em um problema: como fazer-se compreender? Como comunicar fatos que, a princípio, aparecem como “incomunicáveis”?
Isto posto, ao longo deste texto, o nosso objetivo é indicar, seguindo Levi, que é possível comunicar ou diminuir a distância entre o expressar e o compreender. Como hipótese, argumentaremos que, embora não nos seja permitido sentir no lugar do outro, é-nos possível compreender a sua expressão; essa compreensão se daria a partir de uma conversão do olhar, fundamentada em uma vontade de comunicar. Para isso, utilizaremos – no horizonte da problemática de Levi – alguns elementos da filosofia de Simone de Beauvoir, em especial a sua noção de situação, e do “segundo” Wittgenstein, com ênfase em sua noção de apresentação panorâmica. Ambas as noções mencionadas sugerem, a nosso ver, atitudes metódicas, das quais Levi se aproximou, no que concerne ao narrar-se e ao ouvir, que permitem diminuir a distância diagnosticada por ele. “Nunca se está no lugar de um outro” (LEVI, 2016, p. 47), escreveu; mas disso não se seguiu uma defesa da “incomunicabilidade”. Por mais que não possamos habitar a pele de outrem, superar a condição humana de ser um ser separado, a comunicação se torna possível se existir vontade de comunicar e compreender. É, exatamente, a distância que separa um ser humano de outro que torna, paradoxalmente, possível o conversar, o dizer e o ouvir. Levi, quem vivenciou no campo concentracionário “a incomunicabilidade de modo mais radical” (LEVI, 2016, p. 73), em que saber ou não o alemão se tornou questão de vida e morte, foi movido por essa vontade.
Embora os três autores não sejam colocados, frequentemente, no mesmo quadro, eles possuem uma semelhança em um aspecto essencial de suas perspectivas. Levi, se é-nos permitido dizer, realizou um movimento de deseufemizar4 os eufemismos nazistas, cuja função era não somente “iludir as vítimas e prevenir suas reações de defesa: também valiam, nos limites do possível, para impedir que a opinião pública, bem como os próprios destacamentos das forças armadas não diretamente implicados, tivessem conhecimento do que ocorria em todos os territórios ocupados pelo Terceiro Reich” (LEVI, 2016, p. 24-25). Esses eufemismos, tais como “solução final”, “tratamento especial”, “esquadrão especial”, consequentemente, serviram para aumentar a distância entre o que significa os Lager e a compreensão dos que não o sentiram na pele. Simone de Beauvoir, ao longo de sua vida, assumiu a tarefa de desmistificar a realidade. “Dissipar as mistificações, dizer a verdade, eis um dos objetivos que mais obstinadamente persegui através de meus livros” (DE BEAUVOIR, 1982, p. 501), escreveu ela. Essa desmistificação funcionaria como um desvelamento, em que se traz à tona não algo novo, mas o que foi velado pela mistificação. E a mistificação não se trata de qualquer mentira, mas de uma que se pretende necessária, universal, absoluta. Wittgenstein defendeu o dissolver como o movimento adequado para o filosofar. Essa dissolvição estaria vinculada com o seu diagnóstico de que os problemas filosóficos adviriam de confusões derivadas de problemas linguísticos, de modo que se deveria tratar uma questão filosófica como se estivesse a tratar uma doença (WITTGENSTEIN, 1975, § 255). E, como sabemos, não existe um remédio universal que cure todas as doenças.
A semelhança entre Levi, Simone de Beauvoir e Wittgenstein se encontra, pois, no fato de que eles assumiram a concreticidade da vida, em sua multiplicidade, como condição para o pensar. Os verbos – deseufemizar, desmistificar e dissolver – indicam, antes de tudo, maneiras de responder a um problema. E nesse horizonte, seguiremos.
A estrutura da narrativa de Levi nos é significativa, ao escrevermos sobre a relação entre o expressar do autor e o compreender da leitora ou do leitor. Antes de trazer à tona o seu capítulo sobre os estereótipos – no qual se é apresentado, entre outros temas, o diagnóstico do distanciamento maior entre os sobreviventes e as gerações de ouvintes que surgiram após o acontecimento do nazismo – elaborou descrições que constituem uma visão do conjunto do universo concentracionário. Para isso, baseou-se não somente na sua experiência direta no Lager, mas também na sua “experiência indireta através de livros lidos, das narrativas ouvidas e dos encontros com os leitores de [seus] primeiros livros” (LEVI, 2016, p. 15). Ele acautela-nos: seu livro “está embebido de memória”, de “memórias distantes”. Por esse motivo, há nele “mais considerações do que lembranças” (LEVI, 2016, p. 26). Quanto às suas recordações pessoais e aos episódios que citou, examinou-os “todos com cuidado: o tempo os desbotou um pouco, mas não destoam do contexto (sfondo) e [lhe] parecem a salvo das derivações que descreveu” (LEVI, 2016, p. 26, grifos nossos). A expressão de Levi não possui um fim em si mesma, não é um expressar por expressar, ela visa uma comunicação com o outro, um compartilhar de um universo que existiu e, por isso, tornou-se possível. Ainda que, felizmente, não tenha se tornado um “muçulmano” enquanto estava encarcerado no Lager, ele objetiva nos criar uma “imagem” na qual as práticas nazistas tenham um sentido. Certamente, não “tocou o fundo”. Todavia, em que medida um ser humano particular pode expressar o significado geral de um acontecimento? O que seria um significado geral, quando ele envolve diferentes indivíduos singulares que o vivenciaram à sua maneira? Levi, não visou expressar esse geral de Auschwitz, mas apresentou uma “generalidade” dentro de seus próprios limites; essa generalidade é a situação do prisioneiro não-muçulmano, do prisioneiro “comum”.
Simone de Beauvoir nos permite compreender essa relação entre a generalidade e a singularidade, para além das dicotomias, mediante a sua noção de situação. Para entendermos essa noção, precisamos movimentar outras correlatas a ela, haja vista que não elaborou a sua filosofia em forma de sistema; consequência disso, é que seus conceitos não são fechados; eles só possuem sentido em relação com os outros. Sua filosofia é como um tecido no qual as suas noções se encontram entrelaçadas, constituindo uma totalidade-destotalizada, em que não pode ser reduzida em uma única direção; não há nela um “conceito supremo” por meio do qual os outros seriam derivados (ANDRADE, 2022, p. 39). Para ela, o mundo (tal como a sua filosofia) é uma totalidade-destotalizada. O que significa dizer que ele não pode ser desvelado, de uma só vez, por apenas uma forma de expressão e compreensão, em sua totalidade. Embora o mundo seja o mesmo para todos os seres humanos, estes sempre se relacionam – em situação – com ele. “E cada situação envolve de uma maneira ou de outra o mundo inteiro” (DE BEAUVOIR, 2012, p. 335, tradução nossa). Ele é constituído por um “turbilhão de experiências singulares que se envolvem enquanto permanecem separadas” (DE BEAUVOIR, 2012, p. 335, tradução nossa). E esse “envolver” o mundo, porém, “não significa apenas conhecê-lo, e sim refleti-lo, resumi-lo ou expressá-lo” (DE BEAUVOIR, 2012, p. 336, tradução nossa). A unidade do mundo, em sua concepção, é expressada, singularmente, de forma destotalizada, por meio das situações humanas em relação a ele. Tais situações são abertas umas às outras. À diferença da mônada leibniziana, os seres humanos, para a filósofa, são aberturas ao mundo e aos outros: envolvem-se e são envolvidos.
O ser humano, então, sempre está em situação no mundo. Ele se encontra situado no tempo, no espaço e na história. Essa situação é constituída não apenas por um lugar no mundo que o indivíduo ocupa, mas também pelo como esse indivíduo se relaciona com esse lugar. A situação envolve tudo o que forma a individualidade do existente situado, o seu passado, a sua classe, a sua condição, os seus projetos (DE BEAUVOIR, 2012, p. 335). O próprio ser humano é também uma totalidade-destotalizada. Ele não pode apreender e nem expressar a sua totalidade de uma só vez. A situação pode ser compreendida, em outros termos, como um entrelaçamento de todas as ambiguidades e experiências vividas do ser humano em relação situada com o mundo (DE BEAUVOIR, 2018, p. 140). Em cada atitude sua se reflete a totalidade de seu ser, de maneira destotalizada, situada. Por mais que duas pessoas, por exemplo, estivessem em uma mesma circunstância, as suas situações poderiam não ser as mesmas.
A noção de situação, por conseguinte, reflete a concepção beauvoiriana de condição humana, que possui como essência a ambiguidade. E por ambiguidade, Simone de Beauvoir compreende o paradoxo que habita o cerne da existência humana de ser, a um só tempo, facticidade e liberdade, subjetividade e objetividade, objeto e sujeito, imanência e transcendência, corpo e espírito, singularidade e generalidade, parte e totalidade. Sem criar uma dualidade, cuja consequência seria uma relação hierárquica ou de englobamento, entre corpo e espírito, entre mundo e ser humano, que atravessou a história da filosofia, ela buscou explicitar a relação de coexistência paradoxal entre eles (DE BEAUVOIR, 2005, p. 15). A situação entrelaça a exterioridade que se apresenta ao existente e a reação subjetiva dele para com ela. A dicotomia exterior/interior, aqui, é desfeita; a “interioridade” só é na medida em que aparece no mundo. É sempre enquanto exterioridade que ela se define – quer na reação quer na expressão. Em vez de uma dicotomia, teríamos uma dialética entre a “exterioridade” e a “interioridade”, “segundo a qual ocorreria uma negação dessa interioridade qua interioridade, convertendo-a em exterioridade no mundo, mediante uma ação” (ANDRADE, 2022, p. 168). Dito isso, podemos compreender que a noção beauvoiriana de situação não é sinônimo de circunstância, uma vez que “definir o ser humano por meio de suas circunstâncias é defini-o somente a partir da exterioridade, o que não é a proposta do existencialismo; ao passo que defini-lo mediante a sua situação é reconhecer, simultaneamente, a sua liberdade e a sua facticidade” (ANDRADE, 2022, p. 168). E disso se segue que “não podemos definir um indivíduo sem definir sua relação com o mundo, porque somente no meio do mundo ela é realizada. O mundo, porém, não é uma massa indistinta; é habitado por consciências individuais” (DE BEAUVOIR, 2019, p. 170, grifos nossos). À luz disso, podemos evidenciar alguns aspectos da narrativa de Levi, que o aproxima dessa perspectiva.
Se o ser humano está sempre em situação, e essa situação é constituída não somente por um lugar, mas também pela maneira que um indivíduo se relaciona com ele, tendo esse indivíduo uma trajetória singular, então podemos dizer que a forma de como Levi se relacionou no e com o Lager não foi idêntica às de outros prisioneiros, ainda que, em alguns casos, tenha sido semelhante. Nos Lager, houve uma tentativa de transformar os indivíduos singulares em uma massa indistinta; sem nomes, padronizados, eram somente números. Levi tornou-se o prisioneiro número 174517. Acontece, ainda assim, que a todo instante, essas singularidades – que o sistema nazista tentava velar – viam à tona. O fato de Levi ser um poliglota, um químico, um quase incapaz de dar um soco na cara de alguém, fê-lo se relacionar com Lager de determinada maneira, tal como o sistema nazista para com ele. Afinal, a sua profissão de químico o “salvou” da morte, para a qual estava “destinado”, mas não somente isso; a sua formação o fez adquirir “hábitos mentais que derivam da química e áreas relacionadas” (LEVI, 2016, p. 114). Ele contraiu o hábito de “não permanecer jamais indiferente aos personagens que o acaso [lhe] apresenta. São seres humanos, mas também ‘amostras’, exemplares de um catálogo, a serem reconhecidos, analisados e sopesados” (LEVI, 2016, p. 114). No Lager, olhou e aprendeu a ver. Isso, certamente, fez toda diferença em sua narrativa. Diferente de Jean Améry, por exemplo, que tinha um ponto de vista “voltado para o alto” (LEVI, 2016, p. 115), ele enxergava aquela multidão que habitava o Lager; enxergava as práticas cotidianas lá dentro.
Levi estava na situação de prisioneiro número 174517. Essa situação de prisioneiro lhe foi, simultaneamente, genérica e singular. Ele, qua prisioneiro, estabeleceu uma maneira de vivenciar, de sentir, essa situação, mas essa situação tinha também elementos genéricos, que se constituíam pelas práticas nazistas. Ao expressar a situação de prisioneiro, a partir de sua experiência, ele revelou também aspectos genéricos dela. E a maneira singular de como um indivíduo se relaciona com uma situação genérica só pode ser reconhecida, como vimos, enquanto expressada. Dizer que o ser humano é um ser situado, em termos beauvoirianos, implica também dizer que ele não é definido por uma essência, por um caráter fixo, ao contrário, é somente por meio da compreensão da situação em que um indivíduo se encontra que podemos falar a respeito sobre o seu “caráter”; e isso ocorre mediante uma análise de suas reações situadas. O próprio Levi utiliza5 esse procedimento “beauvoiriano”, sem o saber, talvez, ao analisar, por exemplo, o caráter de Chaim Rumkowski a partir da situação que ele se encontrava, considerando os elementos que formavam a individualidade de Rumkowski – um homem que “ambicionava receber não só obediência e respeito, mas também amor” (LEVI, 2016, 49); ou quando mostrou que, o fato de Améry ser um intelectual e filólogo e amante de sua língua – o alemão – o fez sofrer, de maneira diferente da dele e de outros prisioneiros que foram reduzidos à condição de surdos-mudos, com a mutilação da linguagem (LEVI, 2016, p. 109). Para Améry, “o alemão do Lager era um jargão bárbaro, que ele compreendia, mas lhe esfolava a boca se tentava falá-lo” (LEVI, 2016, p. 109). A partir disso, estar na situação de prisioneiro implica, aqui, duas maneiras – que são interdependentes – de compreendê-la e expressá-la: 1) desde o ponto de vista de como o prisioneiro a sentiu e a vivenciou; 2) desde um ponto de vista da lógica nazista. Levi fez uso das duas. Para ele, parecia claro que o Lager “continha em si elementos diferentes, e em proporções diferentes para cada indivíduo singular” (LEVI, 2016, p. 59). “Deve-se recordar”, diz-nos, “que cada um de nós, seja objetivamente seja subjetivamente, viveu o Lager a seu modo” (LEVI, 2016, p. 59).
Se Simone de Beauvoir nos ajuda a entender a relação entre a generalidade da situação do prisioneiro e a singularidade que o prisioneiro pode ter para com ela, permitindo-o expressar aspectos singulares e genéricos de sua vivência, o “segundo” Wittgenstein nos permite compreender a gramática que constitui os jogos de linguagem e as formas de vida nazista, que são indispensáveis para compreender a situação do prisioneiro conforme a lógica nazista, ou melhor, a gramática nazista. Como Simone de Beauvoir, Wittgenstein também não construiu um sistema filosófico; consequentemente, seus conceitos não são também atomísticos. De maneira análoga ao nosso procedimento precedente, só compreenderemos a sua concepção de apresentação panorâmica, relacionando-a com outras noções correlatas a ela. Para Wittgenstein, não devemos mais perguntar pela essência da linguagem, mas buscar compreender os seus múltiplos usos; somente pelo uso, por exemplo, de uma palavra, de um gesto, será possível entender o seu significado. A sua concepção de linguagem já não parte de um pressuposto ou fundamento metafísico de uma lógica universal; já não há A linguagem, mas sim jogos de linguagem, que expressam os seus múltiplos usos, de modo que ela não se limita ao contexto sintático-semântico, inclui também outras formas de expressão, tais como os gestos. Esses jogos de linguagem constituem “uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (WITTGENSTEIN, 1975, § 23.). Essa forma de vida seria uma espécie de o ancoradouro último da linguagem, o fim da cadeia, mas que não exigiria nenhum tipo de fundamento ulterior, de acordo com Mauro Condé que concordara com Spaniol (CONDÉ, 1998, p. 104).
A forma de vida não se situa no contexto do que deve ser ou não justificado, ao contrário, precisa ser assumida como algo dado, para que o jogo de linguagem possa ser jogado e tenha sentido. Ela pode ser compreendida como uma certeza enquanto dobradiça, como uma certeza instalada6. Essa certeza, segundo Wittgenstein, seria de uma categoria diferente da do conhecimento, ela não seria uma crença que precisa ser verdadeira e justificada, demonstrada ou verificada (WITTGENSTEIN, 1969, § 308). Ela simplesmente é. A forma de vida se expressaria sempre em uma maneira de agir, da qual o jogo de linguagem faz parte. Com isso, podemos afirmar que a base da linguagem não seria o conhecimento, mas a certeza, que funciona como a dobradiça de uma porta (WITTGENSTEIN, 1969, §§ 340, 342). Quando jogamos xadrez, por exemplo, aceitamos as regras do jogo, que não pode ser jogado com outras regras que não as dele. Não podemos duvidar dessas regras, se quisermos jogá-lo. Por isso, para Wittgenstein, a certeza precede a dúvida. “As perguntas que formulamos e as nossas dúvidas dependem do fato de certas proposições estarem isentas de dúvida serem como que as dobradiças em volta das quais as dúvidas giram” (WITTGENSTEIN, 1969, § 341). Na nossa linguagem, segundo o filósofo, estaria “assentada toda uma mitologia” (WITTGENSTEIN, 2007, p. 202), não em um sentido de inferiorização em relação ao conhecimento, mas no sentido de que a própria mitologia parece ser a condição para a nossa linguagem. As nossas certezas enquanto dobradiças, nesse contexto, seriam semelhantes às crenças religiosas dos “primitivos”. O ser humano, por essa razão, poderia ser concebido como uma espécie de “animal cerimonial” (WITTGENSTEIN, 2007, p. 198).
Se não é mais possível falarmos de uma linguagem universal, tampouco é possível dizermos que existe somente uma mitologia. Para cada jogo de linguagem haveria uma espécie de gramática, por meio da qual poderíamos compreender certos ritos. Essa gramática expressaria a própria lógica de determinado jogo de linguagem e, por sua vez, de uma forma de vida, que não poderia ser “explicada”, demonstrada ou verificada, mas tão somente utilizada, vivida e descrita. Essa gramática seria semelhante às regras do jogo de xadrez, com a diferença de que as regras dos jogos de linguagem vividas no cotidiano não são estáticas, mas dinâmicas. Nesse contexto, Wittgenstein, ao analisar a obra de Frazer, mostrou que o método explicativo dele seria insatisfatório, uma vez que Frazer tentou explicar o que só é passível, objetivamente, de descrição. Por não tentar compreender os ritos dos “primitivos” conforme a sua própria gramática, ele os apresentou como se fossem “erros” (WITTGENSTEIN, 2007, p. 194). Ao invés de descrevê-los, buscou explicá-los com uma gramática diferente da dos primitivos que estava a estudar, esquecendo-se de que toda explicação já seria uma hipótese (WITTGENSTEIN, 2007, p. 192). Em contraposição a essa perspectiva, Wittgenstein apresentou o seu “método” da “apresentação panorâmica”, a sua maneira de ver o mundo, que seria indissociável da prática da “dissolução de problemas”. “Essa apresentação panorâmica proporcionaria o compreender que consiste, precisamente, em ‘ver as ‘concatenações’” (WITTGENSTEIN, 2007, p. 201). Nesse sentido, a ausência de uma visão panorâmica do uso de nossa linguagem seria “fonte principal de nossa incompreensão”, pois somente ela “permitiria a compreensão, que consiste ‘ver as conexões’. Daí a importância de encontrar e inventar articulações intermediárias” (WITTGENSTEIN, 1975, § 122). A apresentação panorâmica, desse modo, estaria diretamente vinculada à compreensão. Ela não seria uma visão de cima, mas uma busca por encontrar pontos de intermediações, ou melhor, de referências que nos permitiria ver as conexões e, por sua vez, compreender determinado jogo de linguagem.
Levi, de um modo próximo, buscou nos mostrar essas “concatenações”, essas “conexões”, a fim de que as práticas nazistas adquirissem um sentido; mas não o fez como um alienígena, como alguém que está a observar de fora, e sim como um indígena, como alguém que esteve dentro, que vivenciou tais práticas – sejam elas em palavras ou em gestos – que expressam a linguagem nazista. Levi quer tornar dizível o “fenômeno Lager”, ainda que soubesse que nesse tornar dizível sempre permanecesse algo de indizível. Para isso, ao invés de tentar encontrar, precipitadamente, explicações para esse fenômeno, ele o descreveu como alguém que descreve um jogo para uma pessoa que não o conhece. Nessa descrição, não se é realizada uma descrição de suas propriedades físicas, mas de suas regras, de seu funcionamento. Levi, ao longo dos capítulos precedentes ao do estereótipo, trouxe à baila diferentes descrições7, dentre as quais estavam a do percurso de deportação nos comboios, em que houve práticas nazistas de constrangimento vinculado aos excrementos e a nudez dos deportados; a do “ritual de ingresso”, em que se era praticado uma violência metódica: “os chutes e os murros desde logo, muitas vezes no rosto; a orgia de ordens gritadas com cólera autêntica ou simulada; o desnudamento total; a raspagem dos cabelos; a vestimenta de farrapos” (LEVI, 2016, p. 29); a do “rito de arrumar a cama”, que era “uma operação sagrada, a ser executada segundo regras férreas” (LEVI, 2016, p. 95); a do rito da “tatuagem”, cujo significado estava claro para todos os prisioneiros, segundo o autor: era um sinal indelével, de lá não sairiam mais (LEVI, 2016, p. 97). Todas essas práticas, gestos e ritos expressam a linguagem nazista, conforme a concepção wittgensteiniana de linguagem que estamos a assumir.
Diante disso, é-nos possível perceber que na linguagem nazista – excessivamente ritualística – houve uma espécie de regresso ao modo de expressão das linguagens “primitivas”, nas quais, como observou Wittgenstein (2007, 202), o uso de gestos era extremamente cultivado. Contudo, os nazistas não faziam somente o uso de gestos para aviltar moral e fisicamente as prisioneiras e os prisioneiros, mas também utilizavam um jargão próprio do Lager, que mudava, em alguns detalhes, de Lager para Lager8 (LEVI, 2016, p. 78). Um dos exemplos mais significativos a respeito disso, ao longo da narrativa de Levi, é o do jovem e inexperiente soldado que, ao enunciar a informação prescrita, afirmou: “‘comando 83, quarenta e dois homens’. Em sua perturbação, dissera exatamente zweiundvierzig Mann, ‘homens’. O soldado o corrigiu em tom severo e paterno: não se diz assim, diz-se zweiundvierzig Häftlinge, quarenta e dois prisioneiros” (LEVI, 2016, p. 74). Nesse jargão, bem como nos gestos e ritos, havia a expressão da certeza instalada nazista, que foi a “dobradiça” dos seus jogos de linguagem e formas de vida: o mito do arianismo, da “superioridade da raça ariana” em relação às outras, em especial, aos judeus. Essa certeza foi constituída pelos mitos nazistas, que fundamentaram todas as maneiras de expressão de sua linguagem. Um nazista ortodoxo, certamente, não se questionava o porquê de ele violentar cotidianamente outros seres humanos, porque para ele “devia ser óbvio, nítido, claro que todos os judeus tinham de ser mortos: era um dogma, um postulado” (LEVI, 2016, p. 97, grifos nossos). E, com isso, todos os sofrimentos causados “constituíam o desdobramento de um tema, aquele do suposto direito do povo superior de subjugar ou eliminar o povo inferior” (LEVI, 2016, p. 94).
“Estou tentando raciocinar com uma lógica que não é minha”, escreveu Levi (2016, p. 94), algumas vezes, ao longo de seu ensaio. Essa frase nos permite evidenciar que ele buscou nos mostrar o fenômeno Lager conforme a sua própria lógica, a sua própria gramática. Mas não fez somente isso, e nem o podia fazer, já que vivenciou e sentiu o Lager como um sujeito situado. Ora, em sua narrativa há tanto descrições da realidade compartilhada com outros sobreviventes quanto expressões de sentimentos, que podem sugerir sentimentos em quem o lê. Levi, com sua lucidez, estava consciente disso. Por isso, propôs que “à parte a piedade e indignação que suscitam, elas [descrições] devem ser lidas com o olho crítico” (LEVI, 2016, p. 11). Esse olhar crítico está diretamente vinculado com os seus objetivos: esclarecer alguns aspectos do fenômeno Lager; evidenciar que ele se tornou uma realidade possível; fazer-se compreender, mediante a comunicação, o compartilhamento de uma vivência com aquelas e aqueles que não a vivenciaram. Esses objetivos refletem o seu diagnóstico sobre o distanciamento entre a expressão do sobrevivente e a recepção da e do ouvinte, sobretudo, dos mais jovens. Levi, como Simone de Beauvoir e Wittgenstein, acreditou na comunicação. Quis comunicar. Para isso, precisou fazer-se compreender. Fez, cuidadosamente, o uso da simplificação, para tornar dizível a sua vivência singular que refletiu aspectos genéricos. Ele, porém, preveniu-nos lembrando que essa simplificação é “útil na medida em que seja reconhecia como tal e não confundida com a realidade” (LEVI, 2016, p. 28).
Dentro do Lager, conforme ele, a rede de relações era complexa, não podemos nos esquecer de que os “números” eram pessoas singulares, mesmo em situação de aviltamento, de cárcere. Essa foi uma das mensagens de Levi, que apercebeu a si e aos outros como seres singulares, o que nos permitiu uma aproximação com Simone de Beauvoir. Isso pode ser identificado, por exemplo, quando ele está a falar da “vergonha”, que é um termo utilizado para referir-se a um “mal-estar indefinido” (LEVI, 2016, p. 57): “continha em si elementos diferentes, e em proporções diferentes para cada indivíduo singular. Deve-se recordar que cada um de nós, seja objetivamente seja subjetivamente, viveu o Lager a seu modo” (LEVI, 2016, p. 59). Ao simplificar, Levi visa comunicar e, por sua vez, a possível compreensão de quem o lê ou o escuta. Para entendermos essa sua vontade de comunicar, precisamos, antes de tudo, entender o que a motivou. Embora essa motivação possa ser encontrada ao longo de toda a sua narrativa, ela se faz presente, com maior precisão, no capítulo “Os estereótipos”. Considerando isso, realizaremos nessa parte de nosso estudo, pressupondo os movimentos anteriores, dois breves movimentos: primeiro, mostraremos o diagnóstico de Levi sobre o distanciamento entre a narrativa do sobrevivente e a compreensão da ou do ouvinte; e segundo, uma possível resposta a esse problema com a hipótese da conversão do olhar da interlocutora ou do interlocutor.
Levi sentiu que a distância havia aumentado entre os fatos narrados pelos sobreviventes e a compreensão deles pelos que não habitaram os Lager. Esse aumento de distância, segundo ele, devia-se, em parte, tanto ao distanciamento no espaço e no tempo quanto aos estereótipos engendrados no imaginário das pessoas, sobretudo dos mais jovens, alimentados pela literatura, pelo cinema, pelos mitos, pela sabedoria popular. Esses estereótipos se revelavam nas perguntas – cada vez mais com tom de acusação – que as e os ouvintes realizavam aos sobreviventes (LEVI, 2016, p. 122). Como exemplo, expôs uma família de algumas dessas perguntas que são correlatas: “por que vocês não fugiram? Por que não se rebelaram? Por que não escaparam da captura ‘antes’?” A primeira expressava uma relação entre o encarceramento e a fuga, em que “a condição do prisioneiro seria sentida como indevida, anormal: como uma doença, em suma, que deveria ser curada com a evasão” (LEVI, 2016, p. 123). A evasão, a fuga, aparecia como um “dever moral”, como uma “consequência obrigatória do cativeiro” (LEVI, 2016, p. 123). Essa associação otimista entre o cárcere e a fuga era constantemente reiterada pela literatura romântica, pelo cinema, em que “o prisioneiro típico é visto como um homem íntegro em plena posse de seu vigor físico e moral, que, com a força nascida do desespero e com o engenho estimulado pela necessidade, arremete contra as barreiras, saltando-as ou transgredindo-as” (LEVI, 2016, p. 124). Contudo, essa imagem do “prisioneiro típico” pouco se assemelhava ao típico prisioneiro dos Lager, que foi completamente aviltado, enfraquecido, como mostrou-nos o autor, no percurso de sua narrativa. A segunda exprimiria, de maneira análoga, o nexo entre a opressão e a rebelião, que estava associada ao estereótipo encarceramento-fuga; e a terceira, uma “concepção estereotipada e a anacrônica da história” (LEVI, 2016, p. 131).
Essas perguntas dos “porquês” indicavam um distanciamento da ou do ouvinte em relação à narrativa, por trazerem consigo pressupostos estereotipados, que constituíam as suas certezas instaladas. Consequentemente, isso conduziu a uma incompreensão acerca do fenômeno Lager e da expressão da vivência do autor. Podemos analisar essa “incompreensão” tanto com Simone de Beauvoir quanto com Wittgenstein, que, nesse tema, complementam-se. Com a filósofa, a partir do que vimos no primeiro momento deste texto, é-nos possível dizer que os estereótipos em torno da figura do prisioneiro – e as perguntas e julgamentos que deles derivam – possuem um caráter a-situado, essencialista e generalista, que permitiu a ou o ouvinte olhar, anacronicamente, para os fatos narrados a partir somente de sua situação no tempo, no espaço e na história, ao invés de buscar compreender a situação a ser narrada dentro do espaço, do tempo e da história que ela fora realizada e vivenciada. Com o filósofo, à luz do que vimos no segundo momento, podemos esclarecer que a ou o ouvinte confundiu os seus jogos de linguagem com os jogos de linguagem que estavam a ser descritos pelo sobrevivente, esquecendo-se de que esses jogos são contextuais, sem conseguir se situar dentro da própria narrativa do autor, que a ou o permitiria ver as conexões e compreender os significados dos ritos nazistas. Ora, como diminuir esse distanciamento? Possivelmente, aprendendo e reaprendendo a perguntar e a distanciar-se de si; a perguntar, antes do “por quê?”, o como?
Os estereótipos, por alicerçarem-se em mitos, em crenças e, por sua vez, em certezas instaladas no imaginário de determinados indivíduos, não poderiam simplesmente serem abandonados pela via de uma hipótese científica. Por essa razão, uma proposta que nos parece razoável seria um exercício de um reaprender a ver, de um reeducar a vontade, cujo fim seria uma conversão do olhar. Ao propormos essa conversão do olhar, sugerida por Primo Levi, levamos em consideração também a noção de conversão tanto beauvoiriana quanto wittgensteiniana, cuja consequência é, no geral, uma mudança na perspectiva do indivíduo, que sempre se encontra em situação. Simone de Beauvoir, em Por uma moral da ambiguidade [1947] propôs uma “conversão existencialista” em que o indivíduo realizaria uma “suspensão” de seus juízos, para aprender a ver a sua condição de ser falta de ser, a fim de evitar, entre outras coisas, um dogmatismo em relação a si mesmo e aos outros; e Wittgenstein, nos §§ 92 e 671 de Da certeza [1969], apresentou uma ideia de conversão associada à persuasão da ou do ouvinte, que implicaria uma maneira de encarar o mundo de uma forma diferente. Esse ponto, em relação ao filósofo, foi explorado por Gordon Baker [2004], que evidenciou que um dos objetos da “apresentação panorâmica” é provocar uma mudança na maneira como vemos as coisas, em que se apresentada não somente as “concatenações”, mas também novas possibilidades, novos jogos de linguagens, que nos permitiria realizar comparações e enxergar as coisas de um modo diferente.
“É preciso estar em guarda contra os juízos a posteriori e os estereótipos” (LEVI, 2016, p. 134), escreveu Levi. “É preciso evitar o erro que consiste em julgar épocas e lugares diferentes com o metro que prevalece aqui e agora: erro tão mais difícil de evitar quanto maior for a distância no espaço e no tempo” (LEVI, 2016, p. 134), continuou. A conversão do olhar adviria como uma possível consequência do reaprender a ver e do reeducar da vontade. Ela não implicaria um ver ou sentir pelo outro, mas em uma “revolução” no olhar da interlocutora ou do interlocutor, a partir de sua situação no mundo, a respeito um fenômeno que possui sua própria lógica, que é passível de comunicação e compreensão. Nessa conversão, pois, estariam presentes tanto a noção de situação beauvoiriana quanto a de visão panorâmica wittgensteiniana, que sugerem atitudes metódicas, aqui, complementares. Como toda conversão, ela resultaria em uma mudança no indivíduo, em específico; nesse caso, na maneira como ele enxergaria determinado fenômeno. Para que a leitora ou o leitor pudesse “ver” e “compreender”, o escritor ou a escritora, ao invés de explicar, descreveria. Essa descrição permitiria o surgimento de possibilidades de diferentes horizontes, não somente da compreensão.
Levi estava consciente disso, por isso, a estrutura de seu ensaio conduz a leitora ou o leitor comprometido a uma espécie de persuasão, ao mostrar as “concatenações” dentro de um quadro no qual as práticas nazistas adquirem sentido, conforme a própria gramática nazista. Essa persuasão, contudo, não depende só do escritor, mas, sobretudo, de quem o lê. A compreensão, nesse contexto, estaria vinculada, como vimos com Wittgenstein, à apresentação panorâmica. Mas para que ela se torne uma possibilidade concreta, a interlocutora ou o interlocutor precisaria, primeiramente, querer compreender a narrativa de quem a faz; para isso, seguindo a indicação de Simone de Beauvoir, ela ou ele deveria se reconhecer como um sujeito situado e, por consequência, que a narrativa do outro só pode ser compreendida através da compreensão da situação deste. A partir disso, a imagem mistificada do “prisioneiro típico” do imaginário popular poderia ser desmistificada, possibilitando uma compreensão do “típico prisioneiro do Lager” – que possui aspectos singulares e genéricos – conforme a sua própria gramática.
“‘Eu, em seu lugar, não teria resistido um dia’. A afirmação não tem um sentido preciso: nunca se está no lugar de um outro. Cada indivíduo é um objeto de tal modo complexo que é vão querer prever seu comportamento, ainda mais em situação extremas” (LEVI, 2016, p. 47, grifos nossos), escreveu o autor, ao comentar uma resposta frequente de suas e seus ouvintes, bem como o caso-limite dos “Esquadrões especiais”. Levi sentiu também uma distância em relação à situação do “muçulmano” e do prisioneiro que fez parte do “Esquadrão Especial”; ao invés de julgá-las, tentou compreendê-las. A ou o ouvinte está distante da experiência do sobrevivente e dessas outras situações análogas e diferentes. Ao longo de nosso estudo, limitamo-nos ao caso da distância entre o expressar do sobrevivente e o compreender da ou do ouvinte. Levi, como vimos, não propôs uma experiência de a leitora ou o leitor de se “colocar no lugar no outro”, que seria tanto abstrata quanto impossível: “nunca se está no lugar de um outro”. Ele sentiu no corpo o Lager. E o corpo do outro não podemos habitar. Há, sabemos, um certo abismo não somente entre o sentir e o expressar, tendo em conta que em todo dizível há algo de indizível, mas também entre o expressar e o compreender, haja vista que a expressão de um autor pode ser ou não compreendida conforme a sua própria intenção. Esse abismo, porém, não é intransponível. É o que acreditava Levi e, por esse motivo, buscou comunicar.
“Recusar a comunicação”, escreveu ele, “é crime” (LEVI, 2016, p. 71). O discurso da “incomunicabilidade”, em sua concepção, parece “uma lamentação que precede de preguiça mental” (LEVI, 2016, p. 71). Concordamos com isso; e talvez Simone de Beauvoir e Wittgenstein também. Não somos “mônadas, incapazes de mensagens recíprocas” (LEVI, 2016, p. 71), condenadas ao “silêncio existencial”. Somos aberturas aos outros e aos mundos. Envolvemos e somos envolvidos, no plano imediato e irrefletido de nossa existência, no plano dos sentimentos. Por isso, ao longo deste estudo, buscamos indicar, seguindo Levi, que é possível comunicar ou diminuir a distância entre o expressar e o compreender. Como hipótese, argumentamos que, embora não nos seja permitido sentir no lugar do outro, é-nos possível compreender a sua expressão; essa compreensão se daria a partir de uma conversão do olhar, fundamentada em uma vontade de comunicar. Para isso, dividimo-lo em três partes. Primeiro, apresentamos a noção de situação beauvoiriana com o objetivo de evidenciar que a expressão de um indivíduo revela não somente aspectos singulares de sua vivência, mas também que esses aspectos singulares refletem generalidades que não a contradizem; ao contrário, confirmam-na e possibilitam-nos compreendê-la dentro de um contexto compartilhado, ainda que, para aquela ou aquele que a sente e a vive, a experiência seja sempre original e única. Segundo, expusemos a noção de apresentação panorâmica wittgensteiniana, a fim de mostrar que a situação de prisioneiro – que Levi vivenciou de maneira singular – só pode ser compreendida conforme a própria gramática e, consequentemente, a própria lógica nazista, que constituem e são constituídas pelos jogos de linguagens e formas de vida nazista; a linguagem nazista, nesse sentido, expressar-se-ia de diferentes maneiras e jogos que só possuem sentido dentro do contexto que foram elaboradas. Terceiro, realizamos, considerando as duas partes precedentes, uma proposta da conversão do olhar como uma resposta possível ao diagnóstico de Levi sobre o distanciamento – cada vez maior – entre a expressão e a compreensão. Nessa conversão, as noções de situação beauvoiriana e de visão panorâmica wittgensteiniana seriam partes constituinte, sendo a sua finalidade não habitar a pele do outro, mas querer compreender a situação do outro, conforme a sua própria gramática.
Paradoxalmente, a condição para a comunicação é próprio distanciamento do ser humano em relação ao outro, mas esse distanciamento deve ocorrer de forma refletida, ou melhor, deve-se fazer um uso da vontade de maneira refletida. Embora não possamos sentir no lugar do outro, podemos tentar compreender, a partir de uma vontade comunicar, a expressão de sua vivência. O problema, portanto, não é a distância em si, mas como ela ocorre e a assumimos.
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2. Esse ponto foi elucidado tanto por Giorgio Agamben, em O que resta de Auschwitz [2008], quanto por Oswaldo Giacoia, em Por uma ética da vergonha e do resto [2018].
3. Dentre entres, estão Agamben e Giacoia. Podemos perceber isso em diferentes momentos dos textos de ambos os autores. Agamben, por exemplo, escreve que “o testemunho vale essencialmente por aquilo que nele falta; contém, no seu centro, algo intestemunhável, que destitui a autoridade dos sobreviventes. As verdadeiras testemunhas, as ‘testemunhas integrais’ são as que não testemunham, nem teriam podido fazê-lo” (AGAMBEN, 2008, p. 43); e Giacoia, por sua vez, que “o muçulmano, enquanto testemunha integral, é o verdadeiro autor do testemunho; a testemunha (o sobrevivente), que, a despeito de tudo, permaneceu homem, é o sujeito que testemunha aquilo que ele próprio não viveu” (GIACOIA, 2018, 78); e ainda, que “ele [o sobrevivente] é o suporte da condição de testis, superstes, autor, daquele que vê, fala e age pelo outro, em nome do outro, que empresta seu ser e seu agir à atuação e efetivação de uma ausência” (GIACOIA, 2018, p. 78).
4. Apesar de Levi, ao longo de seu ensaio, não afirmar que está a realizar uma deseufemização da linguagem nazista, essa hipótese corrobora com um de seus objetivos – o de “contribuir para o esclarecimento de alguns aspectos do fenômeno Lager que ainda são obscuros” (LEVI, 2016, p. 15). Esclarecer alguns aspectos desse fenômeno envolve também esclarecer a gramática dos jogos de linguagem e das formas de vida nazista, na qual o próprio ato de eufemizar faz parte. E eufemizar significa, no horizonte nazista, substituir, por estratégia, o que não pode ser pronunciado ou não deve ser compreendido em sentido literal. Daí, essa deseufemização possibilitaria também diminuir a distância que há entre os sobreviventes e os seres humanos que não vivenciaram o Lager. O que vai ao encontro de seu outro objetivo – talvez, o principal – o de responder à pergunta angustiante: “em que medida o mundo concentracionário morreu e não retornará mais, como a escravidão e o código de duelos: em que medida retornou ou está retornando? Que pode fazer cada um de nós para que, neste mundo pleno de ameaças, pelo menos esta ameaça seja anulada?” (LEVI, 2016, p. 15), haja vista que para reconhecermos determinadas práticas nazistas, faz-se necessário, antes de tudo, compreender como elas funcionaram.
5. Isso pode ser observado com maior evidência no segundo capítulo, “A zona cinzenta”. Nele, Levi nos descreve a situação dos “prisioneiros-funcionários” e dos “esquadrões especiais”, que ultrapassam qualquer tentativa de interpretação reducionista, maniqueísta ou moralista. Poucos são os relatos acerca dessas situações, sobretudo em relação à dos prisioneiros que formavam o “esquadrão especial”, cuja função era organizar “os recém-chegados que deviam ser introduzidos nas câmaras de gás; tirar das câmaras os cadáveres; extrair o ouro dos dentes; cortar os cabelos das mulheres; separar e classificar as roupas, os sapatos, o conteúdo das bagagens; transportar os cadáveres e cuidar do funcionamento dos fornos; retirar e eliminar as cinzas”, haja vista que eles eram eliminados em pouco tempo, e os sobreviventes que exerceram essa função – apesar de não terem encarado a górgona à maneira dos “mulçumanos”, petrificaram-se também. São portadores de um outro tipo de segredo do Lager, que se tornou praticamente indizível, tendo em conta a escassez de testemunhos e de testemunhas.
6. No § 358, de Da certeza, Wittgenstein realiza uma associação entre uma certeza instalada e uma forma de vida, em que escreve “eu encararia esta certeza, não como aparentada com a precipitação ou superficialidade, mas como uma forma de viver (Lebensform).
7. As descrições das práticas, gestos e ritos nazistas podem ser encontradas ao longo de toda a narrativa de Levi, sobretudo no capítulo intitulado “violência inútil”. Ele mostra-nos que a maioria das violências praticadas pelos nazistas eram “inúteis”, porque tinham um fim em si mesmas, não visavam nada além da própria violência. Entre os exemplos citados, encontra-se o das sobreviventes de Ravensbrück, que narraram sobre as “jornadas intermináveis transcorridas durante o período de quarentena (ou seja, antes do enquadramento nas brigadas de trabalho em fábrica) a remover areia das dunas: em círculos, sob o sol de julho, cada deportada devia deslocar a areia de seu monte para o monte da vizinha da direita, num circuito sem meta nem fim, uma vez que a areia voltava para o lugar de onde era tirada” (LEVI, 2016, p. 98). Esse exemplo é muito simbólico e remete-nos a mitos conhecidos a respeito do esforço sem fim como castigo ou condenação, tais como o do tonel das Danaides e o de Sísifo, cuja implicação é a própria inutilidade da existência daquela ou daquele que realiza um trabalho sem fim, ou melhor, “inútil”.
8. Podemos identificar, por exemplo, uma variação linguística que, provavelmente, está ligada a questão da diferença sexual, do termo “mulçumano” no Lager de Ravensbrück, que era exclusivamente feminino; nele, era-se utilizado como equivalente, como pontuou Levi (2016, p. 80-81), que citara Lídia, os termos Schmutzstück e Schmuckstück, respectivamente, “imundície” e “joia de pouco valor”, para expressar o mesmo significado da pessoa aviltada que está próxima da morte, uma morta-viva, ou melhor, nem viva e nem morta.