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O papel do filósofo: uma perspectiva africana
The role of the philosopher: an african perspective
O papel do filósofo: uma perspectiva africana
Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 3, pp. 93-101, 2022
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepción: 22 Mayo 2022
Aprobación: 11 Octubre 2022
Resumo: O desejo de compreender o que, afinal de contas, cabe à filosofia realizar e, como consequência disso, qual papel está reservado ao filósofo, no jogo da vida e do conhecimento, embora bastante antigo (no Fédon, Platão já havia se esforçado para definir o que compete ao filósofo fazer), tendo recebido muita atenção ao longo do século XX, continua se mantendo bem atual. Assim, nesta exposição, nós também trataremos disso, entretanto, fazendo um recorte, o continente africano. Desse modo, o nosso objetivo principal aqui é discutir a práxis filosófica, partindo do princípio de que esse tipo de intelectual, apesar de suas ligações próprias com o ambiente teórico, é indissociável da vida concreta, experimentada pelo homem em seu cotidiano. Nesse debate, dialogaremos com pensadores africanos (como Kwasi Wiredu, que destaca a importância do conhecimento filosófico para a modernização da África) e ocidentais.
Palavras-chave: Intelectual engajado, África, Desenvolvimento humano.
Abstract: The desire to understand what, after all, it is up to philosophy to accomplish and, as a consequence, what role is reserved for the philosopher, in the game of life and knowledge, although quite old (in the Phaedo, Plato had already to define what a philosopher is supposed to do), having received a lot of attention throughout the 20th century, continues to be very current. So, in this exhibition, we will also deal with that, however, making a cut, the African continent. Thus, our main objective here is to discuss philosophical praxis, based on the principle that this type of intellectual, despite its own connections with the theoretical environment, is inseparable from the concrete life experienced by man in his daily life. In this debate, we will dialogue with African thinkers (such as Kwasi Wiredu who highlights the importance of philosophical knowledge for the modernization of Africa) and Western thinkers.
Keywords: Engaged intelectual, Africa, Human development.
Considerações iniciais
É falsa a tese segundo a qual a filosofia é um tipo de conhecimento desconectado da realidade, pois, se observarmos com atenção, veremos ser preciso afirmar exatamente o oposto disso, ou seja, ela trata da existência concreta, do cotidiano das pessoas, do mundo sensível etc. Dito de outra maneira: seu interesse se volta para questões que afetam, de um modo ou de outro, as nossas vidas. Continuando nessa direção, podemos afirmar também que entender o que afinal de contas a realidade é representa uma questão central para a filosofia.
Aliás, já a filosofia egípcia antiga, em sua metafísica, mostrava isso. Assim, a nível de ilustração, destaquemos alguns de seus pontos relevantes: o universo resulta de dois princípios: o material (Caos) e o espiritual (deus); O ser humano é constituído desses dois princípios: corpo (matéria) e espírito (consciência); para os egípcios, a consciência se mantém ligada ao corpo enquanto durar a nossa existência terrestre; para eles, a morte corporal libera a consciência deste mundo, permitindo que ela passe para o transcendente, na esperança de ser divinizada.
Entretanto, há divergências sobre qual seria a posição defendida pelos antigos egípcios a respeito da reencarnação. Segundo Heródoto, eles acreditavam na reencarnação dos mortos. O Livro dos mortos (o seu verdadeiro título é Palavra de sair para a luz do dia) fala do percurso deste mundo rumo à divinização.
O julgamento dos mortos era presidido pela deusa Maat,2 que pesava o coração do falecido para saber se ele havia sido justo em sua existência terrestre. Na balança, colocava-se o coração em um dos pratos e era depositada a pena da verdade, que seria usada para escrever o nome do morto, no outro. Se os dois objetos tivessem o mesmo peso, o defunto iria festejar com as divindades e os outros mortos. Contudo, caso o seu coração fosse mais pesado do que a pena, o finado seria devorado por Ammut, a Grande Devoradora. Platão, no Górgias, define a morte como o julgamento da alma para saber se o indivíduo viveu de acordo com o princípio do Bem. Se isto tivesse ocorrido, a alma seria enviada para o mundo inteligível, onde ela seria divinizada. Se, ao contrário, a alma portasse as marcas da injustiça e da desordem, ela seria lançada no Hades.
O que temos retratado aí são questões fundamentais relativas à morte, vida ética, compreensão do que é o homem, vida social etc., portanto, à existência concreta das pessoas.
A respeito dessa “concretude” do conhecimento filosófico, deve-se admitir não faltar exemplos ao longo da história da filosofia. Um, que pode ser mencionado, é o próprio surgimento do conhecimento filosófico, no formato em que ele ocorreu por volta do final do século VII, na periferia da Grécia3, procurando entender a natureza/tudo o que existe (φύσις). Sem nenhuma dúvida, podemos citar o pensamento de Platão e Agostinho de Hipona para ilustrar esta tese, e até mesmo pensadores escolásticos como Tomás de Aquino. Sem falar na filosofia renascentista, filosofia moderna, bem como nos debates e embates filosóficos dos séculos XIX e XX.
Apesar disso, de quando em quando, o conhecimento filosófico é instigado a se explicar, a mostrar a sua razão de ser, a justificar o seu direito a existir. Assim, se por um lado, Hegel destaca a Filosofia (Wissenschaft) como a principal forma de saber, colocando-a acima tanto da religião como da arte, por outro lado, para o positivismo e o neopositivismo (séculos XIX e XX), a ciência é o único conhecimento válido, apenas ela teria condições de afirmar o que a realidade é de fato. Diante de um mundo encantado com a ciência, o que sobraria, então, para a filosofia?
Adorno, em Wozu noch Philosophie? (1986), problematiza a utilidade do conhecimento filosófico. No texto, ele defende que o Absoluto é um sonho a ser esquecido pela filosofia. A mesma pergunta será posta por Habermas poucos anos depois. Observemos:
a crítica da razão, certamente em sentido kantiano, implica para Habermas se ocupar da pergunta que Adorno havia feito já em 1962 e que ele repete quase 9 anos más tarde, na Rádio do Estado de Hessen, em 4 de janeiro de 1971: Para que ainda filosofia? ― Wozu noch Philosophie? ― (HABERMAS, 1971a, p. 11-36). O texto, confessa Habermas, pretende “oferecer um inventário muito mais sóbrio, diferentemente da resposta nostálgica dada por Adorno, que ao se despedir da metafísica, sem dúvida quer conservar-lhe fidelidade” (2009, p. 14). Aqui, não é o lugar para resumir as teses de Adorno, e basta indicar como para ele a filosofia quanto mais inútil for tanto mais filosofia será: “Justamente por não servir para nada, por isso a filosofia ainda não está caduca” (1972, p. 23). (VÁSQUEZ, 2010, p. 237)
Em A atualidade da filosofia (1991), Adorno diz que a pessoa, desejosa de trabalhar no campo da filosofia, precisa abandonar a antiga pretensão filosófica de que podemos, pelo pensamento, dar conta da totalidade do real. Habermas, no entanto, não vai tão longe assim. Buscando esclarecer qual deve ser o papel da filosofia, ele desloca o foco do Absoluto para a própria razão (uma razão desinflacionada, situada).
O tema fundamental da filosofia é a razão. A filosofia vem se esforçando, desde suas origens, para explicar o mundo em seu conjunto, a unidade na diversidade dos fenômenos, com princípios que precisam ser procurados na razão, e não na comunicação com uma divindade situada fora do mundo [...]. Se as doutrinas filosóficas têm algo em comum, é sua intenção de pensar o ser ou a unidade do mundo através de uma explicitação das experiências que a razão realiza no trato consigo mesma (HABERMAS, 1995, p.15).
Assim, respondendo à indagação a respeito do papel da filosofia na atualidade, o filósofo de Düsseldorf propõe pensarmos o mundo como totalidade por meio do trabalho que visa tornar claro a auto experiência da razão (VELASQUEZ, 2010).
Certamente, o trabalho da filosofia é produzir pensamento, mas essa atividade não é privilégio dela. Todavia, não se deve confundi-la com os outros saberes. A forma de criação do conhecimento é o elemento que a diferencia dos demais saberes. Vejamos como eles procedem: a ciência cria pensamento criando funções; a arte por meio da criação de sensações; a filosofia através da criação de conceitos (DELEUZE-GUATTARI, 2005).
Nesse sentido, portanto, a tarefa do filósofo não é descobrir algo, mas inventar, criar aquilo que ainda não existe. Sendo assim, então, como ele cria conceito? “Talvez não possamos fazer a pergunta O que é filosofia? senão tarde, quando chega a velhice, e o tempo de falar concretamente” (DELEZEU; GUATTARI, 2005, p. 7).
O papel do intelectual
O século XVI molda a ideia de domínio da natureza por parte do ser humano. Francis Bacon, em 1626, escreve o seu romance Nova Atlântida (1999), obra póstuma e inacabada. Nela, o autor recorre ao gênero utópico para apresentar o maravilhoso mundo novo a ser criado pela ciência. O pensador, considerando a possibilidade da natureza ser controlado pelo homem, entendia que, para esse objetivo ser alcançado, os segredos dela precisavam ser desvendados. Assim, o pensador concluiu que o conhecimento é em si mesmo um poder ("Nam et ipsa scientia potestas est"), em sua obra de1597 Meditationes Sacre (1996).
Essa vontade de potência gerou a ideia de progresso, que produziu a nossa sociedade em rede denunciada por Manuel Castells (2005). Mas, no meio do caminho, ao longo dos séculos, o progresso se misturou com sangue de milhões de indígenas das américas; de negros escravizados e, desterrados de sua pátria africana, trazidos à força para as colônias dos europeus nas américas; ao suor e às lágrimas de mulheres, crianças e idosos humilhados pela pobreza e, muitas vezes, pela miséria estrema, seja nas fábricas ou nos campos da África, Europa ou dos outros continentes. Na verdade, para muitos a modernidade não trouxe nenhum progresso. Ao contrário, o que ela lhes fez foi encurtar a vida e ampliar, das mais variadas formas, o seu padecimento. Além disso, essa tentativa histórica de subjugar as forças da natureza já demonstrou que os cálculos precisam ser refeitos, pois são muito mais complexos do que se imaginava, ficando já sobejamente claro que essa tarefa revisional não poderá ser realizada com os esforços apenas do conhecimento científico, mas, pelo contrário, esse é um trabalho que, para ser feito, exige as competências das ciências humanas em geral e, especificamente, da filosofia.
No século XIX, ocorreram três fatos que, desde a sua realização, passaram a desafiar e a envolver os esforços de boa parte da intelectualidade, sobretudo, aqueles pensadores ligados às chamadas ciências do espírito. Trata-se da abolição da escravidão (na Inglaterra, ocorrida em 1833 e, no Brasil, em 1888); da Conferência de Berlim, realizada entre novembro de 1884 e fevereiro de 1885, resultando na partilha do continente africano por países da Europa; e, finalmente, a reação das ciências humanas em busca do solo perdido no campo epistemológico (Destaque para Dilthey, especialmente, a sua luta em proveito da autonomia de método das Geisteswissenschaften, ou seja, ciências humanas. Em relação a este ponto, notável foi a sua obra Introdução às ciências humanas: tentativa de uma fundamentação para o estudo da sociedade e da história, de 1883).
Esses eventos mencionados, somados a outros como a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a destruição atômica das cidades japonesas de Hiroshima (6 de agosto de 1945) e Nagasaki (9 de agosto de 1945), revelam as limitações do conhecimento científico, pondo em xeque o mito positivista da deusa Ciência. Outros episódios – como a Guerra Fria (1947-1991); a permanência da fome, atingindo enormes parcelas da população mundial; a manutenção de um continente inteiro como colônias da Europa – contribuíram para elevar ainda mais a desconfiança em relação às capacidades da ciência de melhorar a vida humana e de aperfeiçoar as condições da vida no planeta. A crítica à ciência faz o século XX perguntar pela licitude do agir científico, colocando em pauta a questão da técnica. Nessa discussão, temos uma pergunta norteadora: tudo o que é tecnicamente possível é também lícito?
Na virada do século XX para o XXI, o cenário é composto por elementos como: um mundo globalizado; sociedades organizadas a partir de uma dependência tecnológica altamente elevada e em crescimento constante; a inteligência artificial (IA) que vem ampliando a sua área e nível de influência nos afazeres cotidianos dos humanos (a nível individual e coletivo); mas também por setores significativos da população mundial sem acesso à luz elétrica, água potável, sistema de esgotos, analfabetos, atormentados pela fome, discriminados (por questões religiosas, étnicas, suas opções políticas ou sexuais, por serem estrangeiros etc.); além disso o modus operandi da política externa no planeta continua marcado pelos interesses de cinco países, ou seja, Estados Unidos, China, Rússia, França e Inglaterra4, cuja atuação limita ou ameaça a soberania de outras nações; finalmente, a grande quantidade de regimes totalitários ou autoritários espalhados pelo planeta que criam dificuldades de toda sorte aos direitos humanos.
Essa trajetória, em seu conjunto, nos trouxe a tese atual de que os diferentes tipos de conhecimento (mítico, filosófico, teológico e científico) precisam dialogar a fim de podermos encontrar respostas às nossas demandas, sejam de que ordem forem. Nesse sentido e diante desses imensos desafios, os intelectuais, enquanto seres coletivos e membros de suas respectivas coletividades, são convocados a saírem de possíveis isolamentos e a não se omitirem na busca de respostas às questões que se apresentam.
A figura do intelectual engajado está presente na história da filosofia desde os seus primórdios. Autores como Platão, Marx, Gramsci, Sartre e a filosofia africana das últimas décadas podem ser apontados como bons exemplos nessa direção.
O papel do filósofo
Aqui, cabe perguntar: o que compete ao filósofo, enquanto intelectual, realizar? Ao contrário do que esperamos de outras categorias de intelectuais, devemos esperar dele feitos diferenciados, quase heroicos (ou mesmo heroicos)? Afinal, que tarefas devemos atribuir à filosofia? Seria talvez:
a) Orientar o ser humano em sua jornada constante em busca do conhecimento? Aqui, ela funcionaria como uma teoria do conhecimento. Neste caso, tratar-se-ia de um esforço epistêmico dedicado a encontrar a clareza e a verdade.
Não creio que os filósofos devam procurar um papel social ou político ou pensar neles próprios como intelectuais públicos ou sequer que tenham a responsabilidade de o ser. A sua responsabilidade principal é em relação à clareza e à verdade e à compreensão. Julgo que é muito importante ter isso sempre em mente, pois, de outro modo, todo o seu trabalho fica corrompido e infundido de objetivos e ideias que são contrárias ao seu objetivo natural. (FRANKFURT, 2006)
b) Um tipo de conhecimento com o escopo de orientar a humanidade a encontrar o seu fim último/destino (Deus, o transcendente etc.) e dar sentido ao próprio existente? Contribuições a esse respeito são fartas, por exemplo, na filosofia asiática e islâmica.
c) A perfeiçoar o indivíduo que, tendo decidido enfrentar o árduo e incerto caminho do filosofar, foi capaz de concluir a jornada, tornando-se um filósofo, portanto, uma pessoa melhor, diferente das demais por ter encontrado a verdade, realizando assim o destino do próprio homem? Na perspectiva de Platão, quando isso acontece, o indivíduo precisa colocar os seus novos conhecimentos a serviço da coletividade, retornando à sua comunidade, ele deve ajudar aos seus concidadãos a se libertarem também eles das antigas amarras, passando a viver melhor. Nesse sentido, podemos citar também Marx: “Ich unterstelle natürlich Leser, die etwas Neues lernen, also auch selbst denken wollen” (MARX, 1998, p. 12) (“Eu presumo naturalmente leitores, que queiram aprender algo de novo, portanto também a pensar por si mesmos). No pensador alemão, este aperfeiçoamento individual deve ser posto para aprimorar a vida coletiva.
d) Auxiliar a teologia, conforme propõe a filosofia escolástica? “Philosophia ancilla theologiae est” (a filosofia é serva da teologia) significa dizer que ela tem por tarefa servir de suporte para o conhecimento teológico poder realizar o seu trabalho, ou seja, contribuir a fim de que a vida das pessoas, neste mundo imanente, ocorra de acordo com os desígnios de Deus. Devemos ter muita atenção ao contexto histórico em que esta tese foi defendida. Trata-se de uma sociedade, em plena Idade Média, teocêntrica, organizada a partir da crença no Deus cristão (Trindade5). Você pode não concordar com o modelo de sociedade adotado por eles como referência, mas é preciso admitir que também aqui está em jogo a melhor forma de se viver coletivamente.
Nos exemplos “c” e “d”, aparece com clareza o compromisso do pensamento filosófico em trabalhar para o melhoramento da vida em sociedade.
Uma perspectiva africana
Antes de atrelarmos o pensamento filosófico a um gentílico, seja este qual for, devemos ter sempre presente que se trata de filosofia, portanto, um tipo de conhecimento universal. As regras de funcionamento, a natureza o status dessa espécie de saber são os mesmos, não importando se ele esteja sendo produzido na Europa, Ásia, África ou em qualquer outro lugar. Afinal, o que vai definir se um determinado conhecimento é filosofia não é nem o local de sua produção nem mesmo quem o está produzindo.
Uma das características da filosofia, que deve ser sublinhada aqui, é o seu caráter humano, coletivo e constante. Trata-se de um esforço cognitivo realizado pelo homem (isto a separa do conhecimento revelado), estabelecendo um diálogo incessante com as outras pessoas (que podem ser de tempos e lugares diferentes). É este colóquio insistente que realiza a crítica necessária para o aprimoramento do conhecimento humano. Diálogo que não pode ficar restrito apenas a intelectuais individuais, mas, ao contrário, deve dar-se também entre sociedades e culturas diferentes.
Assim, considerando o fazer-filosófico, no que diz respeito à filosofia produzida em solo africano ou por pensadores africanos sobre a África, fora daquele continente, acredito ser importante acrescentar cinco aspectos úteis à compreensão da questão:
- Qual o papel da filosofia acadêmica produzida ali? Mais especificamente, o que esperar dos departamentos de filosofia daquele continente? A esse respeito, a atuação de filósofos como Anta Diop, Obenga e Oruka (produzindo filosofia a partir de pesquisas cujo foco de estudo era o pensamento tradicional africano), ou Boulaga, Gyekye e Menkiti (estudando e problematizando o comunitarismo africano) são bons exemplos;
- A crítica ao invasor não deve impedir o diálogo com as culturas dele. Wiredu, Bachir Diagne, Jhon Mbiti, Achille Mbembe e Appiah são nomes importantes da boa capacidade de abertura ao diálogo com o Ocidente por parte da intelectualidade africana.
- A necessária e desafiante modernização da África.
José Flávio Saraiva, em A África no século XXI: um ensaio acadêmico (2015), destaca: “A ideia do aproveitamento de oportunidades inéditas abertas pela quadra histórica da primeira década do século XXI permeia o novo discurso interno da inteligência africana” (SARAIVA, 2015, p. 36). A respeito disso, merece uma atenção especial as significativas parcerias estabelecidas entre os países africanos e a China, desde o início do século.
O capitalismo chinês foi na última década e seguirá nesses anos da segunda década do século XXI o maior agente de modernização econômica do continente africano. Colabora com a socialização da riqueza, em lugar de alimentar o patamar histórico de apenas ampliação de pobreza e insegurança econômica. Esse é certamente um setor importante para os críticos da presença chinesa na África. (SARAIVA, 2015, p. 71)
Esse conjunto de coisas põe às claras desafios os mais variados. Entretanto, a meu juízo, o maior deles é fazer com que os esforços empreendidos para a modernização daquele continente levem à construção de uma África para os seus filhos, quer dizer, resultem na partilha do poder e das riquezas africanas, em cada um dos cinquenta e quatro países, entre o conjunto da população; que a paz se imponha, no interior de cada país e de cada nação, assim como, externamente, entre os distintos países e as diferentes nações.
[...] há que lembrarmos as simples e eternas mensagens de Mandela e Ali Mazrui: prover consciência aos atos, avançar a África na combinação da cidadania com o desenvolvimento, forjar uma África para os africanos, saber que a cor da pele não é condição natural e automática para a libertação humana. (SARAIVA, 2015, p. 7)
A nefasta experiência colonial, deixou inúmeras marcas negativas no continente africano. O queniano Ali Mazrui aponta essa interferência europeia na região como importante fator gerador da dependência da África em relação a forças estrangeiras. O professor alerta para a necessidade de superar essa situação de subordinação (MAZRUI, 1980).
O artigo La démocratie en Afrique: l’ascendant platonicien (NZINZI, 2000), de Pierre Nzinzi, chama a nossa atenção para o perigo da instrumentalização da democracia pelas potências ocidentais. Quando isso acontece, ela é reduzida a uma mera ideologia. Na visão desse teórico, uma democracia universal seria útil para a África. Ele defende: “Teremos sucesso em estabelecer uma verdadeira democracia na África simplesmente fazendo uma boa democracia universal. [...] ela também seria lógica, a vitória da substância sobre o predicado, do conteúdo sobre a forma” (NZINZI, 2000, p. p. 77).
Na visão de Kwasi Wiredu, cabe à filosofia um lugar todo especial nos esforços para a modernização da África. Segundo o autor, essa modernização deve levar ao desenvolvimento daquele continente, mas para isso, faz-se necessário realizar investimentos em ciências, tecnologia e educação. Nesse sentido, ele defende que as ciências sociais e a filosofia são mais importantes do que as ciências duras, pois “Seria de pouco proveito para nós ganhar toda a tecnologia do mundo e perder a essência humanística de nossa cultura” (WIREDU, 1980, p. 21).
- A decolonização conceitual é um desafio irrenunciável para o pensamento africano. Esta afirmação já é um tópos entre a intelectualidade do continente. Certamente, há uma consciência bem ampla, nos filósofos africanos, a respeito da exigência que se impõe sobre a filosofia produzida por eles de contribuir na elaboração de ferramentas teóricas (métodos, categorias, conceitos, teorias, sistemas etc.) próprias, para a independência epistêmica de África em relação ao Ocidente6. Isto significa a África relatar o mundo, descrever a si mesma, contar a história com sua própria voz, em seu sotaque pessoal. Nomes como Achille Mbembe, Paulin Hountondji, Kwame Appiah, Motsamai Molefe, Ebénezer Njoh-Mouelle e Valentin Yves Mudimbe, para citar apenas alguns, ilustram bem essa atitude.
- A filosofia Ubuntu é uma expressão original da epistemologia africana.
Em Ubuntu, temos: uma metafísica que apresenta o ser em movimento constante; uma antropologia ligada à ideia de mostrar o ser humano (muntu) em sua plenitude e constituindo-se a partir das interações com os outros (humanos e a natureza/kintu); uma cosmologia caracterizada pela interdependência entre os seres; uma filosofia social marcada pelo comunitarismo como elemento definidor do conceito de pessoa; uma filosofia moral orientada por esse mesmo comunitarismo, constituindo-se em uma ética-política; uma filosofia da história que apresenta uma combinação sui generis entre imanentismo e holismo; uma filosofia política que se rege pela certeza de que o bem comum deve ser buscado coletivamente, pois não faz sentido um membro da comunidade procurar ser feliz se o preço a pagar for a desgraça de sua comunidade; uma lógica definida pelo holismo e comunitarismo, que apontam para a construção coletiva do saber e o diálogo como caminho (VASCONCELOS, 2017).
Considerações finais
A filosofia é um exercício do pensar, nisto consiste uma grande utilidade desta área do conhecimento humano. Podemos dizer que qualquer forma de saber é expressão da razão humana, mas a filosofia é esta manifesta em sua melhor forma. O tempo inteiro, o ser humano tem de tomar decisões sobre o que fazer e como agir. Contudo, antes de definir qual e como a ação deve ser realizada, ele precisa teorizar a respeito. Assim, quanto mais apurada e desenvolvida for a sua capacidade de pensar, tanto maior será a possibilidade de ele ter êxito no seu fazer e agir.
No Egito antigo, a filosofia expressa a compreensão do homem a respeito da realidade na qual ele está inserido. Na Grécia, no entendimento de Platão e Aristóteles, ela começa com o espanto diante da realidade que nos leva a fazer perguntas a seu respeito. No Teeteto, Platão situa o surgir do conhecimento filosófico no tò páthos (o patos), tò thaumázein (o espanto). Em Metafísica, Aristóteles sentencia: “Pelo espanto os homens chegam agora e chegaram antigamente à origem imperante do filosofar” (apud COSTA, 2015, p. 77-78)
A pergunta humana fundamental não é sobre o transcendente (Deus existe?) nem mesmo sobre o próprio homem (O que é o homem?), mas, a respeito do fato de existir algo ao invés do nada. A questão maior que atrai a nossa curiosidade, causando em nós espanto e maravilha, é saber o que é o real (tí tò ón, diziam os gregos, indagando pelo ser). À medida que avançamos na compreensão desta última pergunta, tornamo-nos cada vez mais capazes de responder àquelas duas anteriores.
Em Introdução à metafísica, a interrogação sobre porque há simplesmente o ente e não o nada é repetida amiúde pelo autor como se fosse um refrão (HEIDEGGER, 1980).
O que precisamente é a filosofia não é fácil dizer. A dificuldade reside no fato dela ser a expressão de nossa própria humanidade. Além disso, ao perguntarmos por sua identidade, abrimos as portas para que ela entre e se aproxime. De perto, percebemos que a filosofia nos revela quem somos nós. Nisto – imagino eu – reside a sua universalidade, beleza, perenidade e perfeição. Tão universal, bela, constante e imperfeita quanto o homem pode ser.
Referências
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Notas
2. Ela era responsável pela ordem do universo, o equilíbrio cósmico. O seu contraponto é Isfet (o caos). Trata-se aqui de forças complementares, pois ambos os princípios são necessários para que haja o equilíbrio. Existem relatos posteriores que a apresentam como a esposa do deus Toth, o patrono dos escribas. Maat representa a Lei (verdade, justiça), por isso, ela era diretamente ligada ao papel do Faraó e ao próprio Estado egípcio.
3. Acerca da influência egípcia sobre a filosofia grega, autores como Anta Diop, Théophile Obenga e Gregoire Byongo merecem ser visitados.
4. Neste exato momento, todos eles mantêm tropas em solo africano.
5. Depois de aproximadamente trezentos anos de debates e embates, o Cristianismo (religião surgida na periferia do Império Romano, a partir de um movimento originado no interior do Judaísmo e que soube, tomando uma certa distância do universo judaico, incorporar importantes elementos do mundo grego, inclusive a filosofia), no Concílio de Nicéia, em 325, define quem é o seu Deus. Ele é a Trindade, ou seja, um Deus (substância / ousia / οὐσία) em três pessoas (hipóstases / ὑπόστᾰσις). Assim, juntando o Uno ao múltiplo, dois elementos da tradição filosófica grega que remonta aos pré-socráticos, o Deus cristão traz em si uma síntese da realidade. Além disso, essa divindade traz nela mesma o modelo de como deve ser a vida humana em sociedade.
6. Em hipótese alguma, esta autonomia quer dizer que ela deva se fechar em si mesma e interromper o diálogo com a civilização ocidental.
Notas de autor