Artigos

Visitando a terra gêmea moral

Visiting moral twin earth

Ísis Esteves Ruffo 1
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Visitando a terra gêmea moral

Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 3, pp. 102-115, 2022

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepción: 01 Junio 2022

Aprobación: 11 Octubre 2022

Resumo: Este texto pretende examinar os pressupostos da Terra-gêmea-moral, argumento formulado por Terence Horgan e Mark Timmons com intenção de refutar a proposta realista naturalista da moral conhecida como realismo de Cornell. A Terra-gêmea-moral fornece alguma evidência intuitiva de que termos que nomeiam tipos morais não são designadores rígidos de propriedades naturais e que, portanto, não é possível oferecer uma definição naturalista para eles, o que deveria ser um comprometimento do realismo de Cornell. Entretanto, neste texto, procuramos demonstrar que o realismo de Cornell não se compromete com relações de designação rígida entre termos para tipos morais e propriedades naturais para sustentar sua postura naturalista. Em vez da relação de identidade entre tipos morais e naturais que seria trazida pela designação rígida, o realismo de Cornell mantém apenas a tese metafísica segundo a qual tipos morais são constituídos ou realizados por propriedades naturais deixando aberta a possibilidade de múltipla realização dos tipos morais. Como o realismo de Cornell não se compromete com a tese semântica que Horgan e Timmons criticam, então a Terra-gêmea-moral não parece oferecer uma objeção à posição realista.

Palavras-chave: Realismo de Cornell, Terra Gêmea Moral, Designação Rígida.

Abstract: This paper aims to examine the assumptions of Moral Twin Earth, an argument formulated by Terence Horgan and Mark Timmons with the intention of refuting the realistic naturalistic proposal of moral known as Cornell’s realism. The Moral Twin Earth provides some intuitive evidence that terms naming moral kinds are not rigid designators of natural properties and, therefore, it is not possible to offer a naturalistic definition for them, which is supposed to be a Cornell’s realism claim. However, in this paper, I try to demonstrate that Cornell’s realism does not assume rigid designation relations between terms for moral kinds and natural properties to support its naturalistic thesis. Instead of the identity relation between moral and natural kinds that would be brought about by the rigid designation, Cornell’s realism maintains only the metaphysical thesis that moral kinds are constituted or realized by natural properties which leaves it open the possibility of multiple realization of moral kinds. As Cornell’s realism does not commit itself with the semantic thesis that Horgan and Timmons criticize, then the Moral Twin Earth does not seem to offer an objection to this moral realism.

Keywords: Cornell’s realism, Moral Twin Earth, Rigid Designation.

Introdução

A Terra Gêmea Moral é um experimento mental que oferece um desafio ao Realismo de Cornell, uma versão naturalista de realismo moral. Em geral, o realismo moral se compromete com a tese que asserções morais expressam proposições que são verdadeiras ou falsas e que, em pelo menos alguns casos, elas são verdadeiras. Quando são verdadeiras, as asserções morais descrevem adequadamente fatos e propriedades morais que independem de crenças, avaliações ou sentimentos. Esses fatos e propriedades morais, no realismo de Cornell, são entendidos como constituídos a partir certos arranjos específicos de tipos naturais que podem realizar propriedades de segunda ordem essencialmente morais. Como fatos e propriedades morais são realizados por tipos naturais, o realismo de Cornell sustenta que a moralidade é parte de um mundo completamente especificado de modo naturalista.

Terence Horgan e Mark Timmons, entretanto, argumentam que a proposta naturalista de Cornell somente pode ser sustentada caso seja possível oferecer uma definição naturalista dos tipos morais. A definição naturalista necessária deve envolver a adoção de alguma teoria semântica que seja capaz de relacionar termos tipicamente morais como ‘certo’, ‘bom’, ou ‘errado’ com a instanciação de tipos naturais, de modo que termos morais signifiquem tipos naturais e possam ser incluídos em uma descrição puramente naturalista da realidade. Uma forma de alcançar esta redução naturalista é assumir que termos morais designam rigidamente as propriedades naturais que realizam, em cada caso, as propriedades morais. A objeção da Terra-gêmea-moral, entretanto, fornece forte evidência de que termos morais não designam rigidamente propriedades naturais.

A objeção é construída por meio de um experimento de pensamento que propõem a existência da Terra Gêmea Moral, um planeta muito similar a Terra em todos seus aspectos. Entretanto, apesar das semelhanças iniciais, as propriedades naturais relevantes na realização das nossas propriedades morais seriam distintas daquelas relevantes na realização de propriedades morais na Terra Gêmea Moral. Desde que termos morais designam rigidamente as propriedades naturais que realizam os tipos morais, os termos morais na Terra Gêmea Moral selecionariam propriedades naturais distintas e, portanto, nossos termos morais e os termos-morais-gêmeos não possuíram o mesmo significado.

Uma vez que terráqueos e seus gêmeos se referem a coisas distintas com os seus respectivos termos morais, dificilmente poderíamos conceber um debate moral genuíno entre eles e todas as discussões, aparentemente morais, que poderiam surgir seriam reduzidas a meros desacordos linguísticos. O realista de Cornell pode aceitar esta conclusão, mas com o ônus de que a posição se torna contrária às intuições comuns sobre o discurso e a prática moral. Por outro lado, para admitir que os termos-morais-gêmeos são boas traduções para os nossos termos morais e que podem existir desacordos morais genuínos entre os habitantes da Terra e da Terra Gêmea Moral, seria necessário admitir que termos morais não designam rigidamente propriedades naturais. Entretanto, sem uma ligação necessária entre o discurso moral e propriedades e fatos naturais, o realismo de Cornell não poderia acomodar a moralidade em uma leitura puramente naturalista do mundo.

O argumento da Terra-gêmea-moral, entretanto, não parece considerar adequadamente que na relação de constituição dos tipos morais postulada pelo realismo de Cornell, as propriedades e fatos naturais determinam metafísica e causalmente os tipos morais, mas as propriedades morais não são idênticas à propriedade, ou ao conjunto de propriedades não-morais que formam sua base natural. Propriedades e outros tipos morais, portanto, são irredutíveis a tipos puramente naturais. Dada a irredutibilidade e a possibilidade de múltipla realização dos tipos morais, é compatível com a proposta realista de Cornell que, embora na Terra algum arranjo específico de propriedades seja responsável pela presença de alguma propriedade moral, essa não precisa ser a única base possível de realização dessa propriedade moral. Na Terra Gêmea Moral, outro conjunto de propriedades naturais pode ser o mais relevante na composição de algum tipo moral. Portanto, os termos morais não podem designar rigidamente nenhum arranjo de propriedades naturais.

O ponto de interesse é que mesmo com a diferença de propriedades naturais, ainda seria possível existir a mesma propriedade moral na Terra e, também, na Terra Gêmea Moral. Se as propriedades morais, elas mesmas, é que fixam o significado dos termos morais, então não é preciso postular diferenças de significados entre termos morais e termos-morais gêmeos. O argumento da Terra-gêmea-moral, portanto, não parece capaz de demonstrar que a proposta naturalista do realismo de Cornell leva a conclusões incompatíveis com a prática e discurso moral cotidiano, pois é possível explicar casos de desacordo como o da Terra-gêmea-moral sem tomá-los como puramente linguísticos.

Visitando a terra gêmea moral

O objetivo deste texto é apresentar e oferecer um contraponto à objeção ao realismo de Cornell elaborada por Terence Horgan e Mark Timmons por meio do experimento de pensamento a Terra Gêmea Moral (1992). A objeção trazida pela terra-gêmea-moral pretende inviabilizar a construção de uma teoria sobre a moral que explique e acomode práticas e discursos morais cotidianos em uma perspectiva que seja, ao mesmo tempo, realista e naturalista dos fatos morais. Assim, o realismo de Cornell só seria viável abrindo mão da ontologia naturalista que pretende endossar (Cf. TIMMONS, 1999, p. 60 – 61).

Antes de apresentar o experimento e a objeção da terra-gêmea-moral, entretanto, é oportuno introduzir a tese geral do realismo moral e, em especial, do realismo de Cornell. Realismo moral é o rótulo dado às posições metaéticas que se comprometem com a tese de que existem fatos e propriedades morais que, por sua vez, são os objetos dos nossos discursos e julgamentos morais. Então, entendidos na perspectiva realista, enunciados sobre o domínio moral, quando literalmente construídos, podem ser verdadeiros ou falsos e serão verdadeiros quando coincidirem com o estado de coisas que pretendem descrever. Além de possuírem condições de verdade e serem bem-sucedidos em alguns casos, o realista moral também precisa sustentar que essas condições de verdade são objetivas, ou seja, que os fatos e propriedades morais que são instanciadas em agentes, ações ou instituições existem de modo independente das crenças particulares ou coletivas que se possa ter sobre tais fatos ou propriedades, ou mesmo dos sentimentos positivos ou negativos que eles invoquem em seus observadores (Cf. SAYRE-McCORD, 1988, p. 14-15).

A natureza dos tipos morais, propriedades ou fatos invocados pelo realista, entretanto, é um problema à parte. É possível sustentar, nesta questão, uma postura naturalista ou antinaturalista. O naturalismo ético sustenta que fatos e propriedades morais devem ser incluídos em uma leitura puramente naturalista do mundo que exclua propriedades não-naturais ou sobrenaturais2. Por outro lado, o antinaturalismo assume a independência metafísica de fatos e propriedades morais que devem ser compreendidas como únicas em seu gênero e não derivadas de outras propriedades.

Há muitas formas de se construir uma teoria realista combinando uns ou outros destes elementos com as teses principais do realismo, mas o realismo de Cornell deve ser compreendido como uma versão naturalista que sustenta que tipos morais são tipos naturais, em alguma medida. Metafisicamente, a relação entre tipos morais e naturais pode ser entendida de dois modos: ou fatos morais são idênticos ou são realizados/constituídos por estes fatos mais elementares que compõem a base ontológica da realidade. Se são idênticos, cada tipo moral que identificamos com nossos termos morais é estritamente relacionado a presença de uma propriedade ou conjunto de propriedades naturais N, o que permite que sejam feitas inferências a partir de N para a instanciação do tipo moral associado3.

Por outro lado, em uma via de constituição, não temos uma relação de identidade estabelecida a priori entre propriedades morais e propriedades naturais. Nas relações de constituição, assume-se que uma miríade de propriedades e fatos, que podem ser fixos ou não, realizam ou são os responsáveis causais por outra propriedade ou fato. No caso do realismo de Cornell, propriedades e fatos tipicamente estudados pelas ciências seriam responsáveis, do ponto de vista causal, mas também metafísico, pela realização de propriedades morais, portanto, a relação é de constituição:

Fatos e propriedades morais, assim construídos, são constituídos, compostos ou realizados por combinações organizadas de fatos científicos e propriedades naturais e sociais [...] Esta asserção naturalista deve ser entendida aos moldes de outras asserções de constituição comuns: por exemplo, mesas são constituídas por certas combinações de micropartículas físicas; eventos sociais de larga escala tais como guerras e eleições são constituídos por combinações altamente complexas de eventos sociais e processos de escala menor; processos biológicos tais como a fotossíntese são compostos de eventos físicos causal e temporalmente relacionados de certos modos (BRINK, 1989, p. 159)4.

A relação de constituição se assemelha, em muitos aspectos, a relação de superveniência em que se A supervém a B, mudanças em A refletem mudanças em B. Mas é importante ressaltar que isso não implica que mudanças em B levem, necessariamente, a mudanças em A, ou seja, a relação de superveniência não é simétrica. Do mesmo modo, a relação de constituição também não é uma relação simétrica e, portanto, podemos admitir que a constituição de fenômenos morais, nesta posição, autoriza certa plasticidade de realização.

A plasticidade é a capacidade de um evento, estado ou processo de ser multiplamente realizado (BOYD, 1980, p. 87). A forma como a realização múltipla acontece depende da natureza do estado, evento ou processo em questão. Existem estados que são multiplamente realizados com relação ao tipo de fatores causais ou substanciais que o constituem, ou seja, há mais de uma forma material de se chegar ao mesmo resultado – plasticidade composicional. Por outro lado, há eventos que são multiplamente realizados a partir de seus componentes estruturais e, deste modo, mais de um arranjo, desde que das mesmas propriedades ou da maioria delas, é capaz de nos oferecer o mesmo resultado, neste caso, uma plasticidade configuracional5 (BOYD, 1980, p. 88).

No caso dos tipos morais, podemos admitir certa plasticidade composicional, ou seja, podemos admitir que as propriedades de nível mais elementar constituem-se como base para realização de fenômenos de segunda ordem quando se organizam em arranjos específicos e apresentam o tipo certo de interações causais entre elas e com o ambiente. Em muitos casos, o tipo especifico de arranjo e as circunstâncias em que ele ocorre pode determinar que uma propriedade de segunda ordem seja instanciada, ainda que na ausência de algumas propriedades de base. Ou, em outros casos, a falta do arranjo característico pode determinar que a propriedade de segunda ordem não seja instanciada, apesar da presença das propriedades de primeira ordem.

Por exemplo, tanto a propriedade da injustiça quanto as instanciações particulares de injustiça, em qualquer condição social e econômica em que elas sejam atualmente realizadas, poderiam ter sido realizadas por várias configurações diferentes de propriedades econômicas e sociais [...] propriedades morais poderiam ter sido realizadas por um número indefinido e, talvez, infinito de conjuntos de propriedades naturais (BRINK, 1989, p. 158)

Em muitos aspectos, a teoria do realismo de Cornell é análoga a uma teoria funcionalista da mente em que, também, é possível sustentar a realização de estados mentais como dor, medo ou alegria, a partir de estados físicos em uma realização de “muitos-para-um”. Como no funcionalismo da mente um mesmo estado mental pode ser realizado a partir de diferentes estados físicos, a melhor forma de individualizar os estados mentais, portanto, não recorre a esses estados físicos, mas ao papel desempenhado pelos estados mentais em uma teoria sobre a mente e a psicologia que é verdadeira para humanos (TIMMONS, 1999, p. 58). Analogamente, as propriedades morais podem ser compreendidas como propriedades de estrutura complexa, tal como propriedades funcionais, em que o papel desempenhado por elas em uma teoria normativa é mais relevante na sua individualização do que as propriedades naturais que, contingentemente, as realizam em um dado cenário (BRINK, 1989, p. 171).

A múltipla realização dos tipos morais a partir de tipos naturais elimina a possibilidade de identidade entre os dois domínios, o que desautoriza a redução de tipos morais a tipos naturais. Entretanto, apesar de não serem redutíveis, as propriedades morais são parte da configuração de um mundo completamente especificado de modo naturalista e dele dependem, o que atende à demanda naturalista de que fatos e propriedades morais são partes do mundo natural.

Entretanto, quando se perde a identidade direta entre tipos morais e tipos naturais, pode ser importante, para uma teoria naturalista, que exista algum mecanismo que permita relacionar os tipos morais com as propriedades e fatos naturais que os realizam. Uma forma de sustentar a relação de realização natural de propriedades morais é recorrendo a uma teoria da referência causal que nos forneça uma ponte epistemológica entre os usos acertados de termos morais, como ‘bom’, ‘correto’ ou ‘errado’ e o reconhecimento da presença de certas propriedades ou fatos naturais. A estratégia é sugerida por Boyd:

[...] Para casos não degenerados, um termo t se refere a um tipo (propriedade, relação etc.) k apenas se existe mecanismos causais cuja tendência é garantir que o que é predicado do termo t seja aproximadamente verdadeiro de k (deixando de lado, neste aspecto, a distinção de uso-menção). Tais mecanismos, tipicamente, incluirão a existência de processos que são aproximadamente acurados para reconhecimento de membros ou instanciações de k (pelo menos em casos fáceis) que governam de modo relevante o uso de t. [Estes mecanismos envolvem] a transmissão social de certas crenças relevantes e aproximadamente verdadeiras sobre k formuladas como asserções usando t (mais uma vez, deixando de lado a distinção entre uso-menção), um padrão de deferência aos experts sobre k com respeito ao uso de t, etc. [...] Quando relações deste tipo ocorrem, nós podemos pensar que as propriedades de k regulam o uso de t (via relação causal) e nós podemos pensar que o que é dito usando t nos fornecesse acesso epistemicamente coordenado a k e não a outros tipos (BOYD, 1988, p. 195).

Para o caso dos termos morais, podemos sustentar que existe uma família de propriedades mais básicas (naturais) que em muitos casos ocorrem simultaneamente e que desempenham, em uma configuração específica, o mesmo papel funcional que associamos a alguma propriedade moral em práticas e discursos ordinários. E existe um termo t, estabelecido dentro de uma teoria normativa, que é corretamente aplicado a certas ações, pessoas ou instituições que apresentem a estrutura configuracional relevante (Cf. Boyd, 1988, p. 196). Com esta caracterização, torna-se possível a construção de uma ligação epistêmica que justifica o naturalismo, pois correlaciona a instanciação de propriedades morais com a presença de certos arranjos de propriedades e fatos naturais que seriam os responsáveis mais elementares pela realização da propriedade ou fato moral associado. As propriedades e fatos naturais poderiam figurar em uma descrição naturalizada de fenômenos morais, desde que se ressalve a possibilidade de múltipla realização.

Em resumo, o realismo de Cornell é junção de teses metafísicas, epistêmicas e semânticas que podem ser esquematizadas da seguinte forma:

Metafisicamente, o realismo de Cornell se compromete com duas teses, uma realista e outra naturalista:

● M1: Propriedades morais existem e são independentes de nossas crenças ou desejos sobre elas;

● M2: Propriedades morais são constituídas ou realizadas a partir da instanciação de propriedades e fatos naturais.

Sendo que qualquer forma de realismo moral se compromete com M1. Se além de realista, a teoria for também naturalista, alguma forma de relação entre tipos morais e fatos naturais, como M2, deverá ser postulada. M2, entretanto, por estabelecer uma relação de constituição, mas não de identidade, confere robustez às propriedades morais indicando que elas não podem ser simplesmente reduzidas às propriedades ou fatos naturais que as realizam.

Epistemologicamente, o realismo de Cornell sustenta que:

● E1: Empiricamente, podemos estabelecer quais propriedades naturais são comumente instanciadas na base das propriedades morais.

Por sua vez, a teoria semântica do realismo de Cornell é composta de duas teses:

● S1: Propriedades morais são individualizadas a partir do papel que ocupam em teorias morais normativas, portanto, embora propriedades naturais possam figurar em uma descrição naturalizada de propriedades morais, o aspecto configuracional das propriedades morais é mais relevante em sua individualização.

● S2: Termos morais são empregados para denominar características morais (realizadas naturalmente) de ações, pessoas ou instituições.

O argumento da terra-gêmea-moral formulado e apresentado por Horgan e Timmons em vários trabalhos (1992; 1999; 2000) é construído, especialmente, como uma objeção às teses semânticas e epistemológicas do realismo de Cornell. Como tais teses sustentam os comprometimentos metafísicos do realismo, a objeção se configura como uma rejeição à possibilidade de sustentar M1 e M2, conjuntamente. Segundo a caracterização que Timmons oferece do naturalismo, é necessário, para o naturalismo ético, que sejam oferecidas definições para os termos morais em que se figure apenas termos para tipos naturais. Uma definição nestes moldes necessitaria de uma conexão necessária entre a instanciação de certas propriedades naturais, ou a presença de certos fatos naturais, e os usos corretos dos termos morais. Uma conexão necessária como a pretendida só pode ser mantida se os termos morais designam rigidamente alguma configuração específica do mundo natural (TIMMONS, 1999, p. 58).

A conexão necessária entre termos específicos de uma disciplina e a instanciação de fenômenos de um tipo x é a base das relações de necessidade metafísica, muito utilizadas em definições científicas e que são exploradas por Saul Kripke (1980) e Hillary Putnam (1975) em uma teoria sobre o funcionamento dos termos para tipos naturais. Brevemente, a semântica para tipos naturais explorada por Kripke e Putnam permite revelar empiricamente quais são as identidades metafisicamente necessárias, pois estabelece uma relação causal entre o uso de um termo que denomina um tipo natural, como ‘água’, e certa estrutura presente no mundo natural que constituiria a essência daquilo que se chama de ‘água’, neste caso, sua fórmula química, H2O. A fórmula química da água foi descoberta empiricamente, por meio de uma investigação científica, portanto, a identidade “água é H2O” foi estabelecida a posteriori. Entretanto, como ter essa estrutura é condição necessária e suficiente para ser água, podemos sustentar que a identidade é uma definição daquilo denominado por ‘água’ – uma definição sintética a posteriori (Cf. Kripke, 1990 [1980]).

Há um teste bastante eficiente para verificar a validade de definições sintéticas no caso de tipos naturais como a água: o experimento de pensamento de terra-gêmea formulado, originalmente, por Putnam (Cf. PUTNAM, 2003, p. 222 – 227). No argumento da terra-gêmea, devemos imaginar que existe um planeta idêntico à Terra em quase todos os aspectos, com a única diferença de que, neste duplo da Terra, o líquido que é chamado ‘água’ apresenta uma estrutura molecular distinta de H2O. A fórmula da água da Terra Gêmea é uma estrutura muito complexa, mas que poderia ser abreviada como XYZ. Apesar desta diferença, a água da Terra Gêmea compartilha as mesmas qualidades físicas superficiais e sensoriais da água terrestre, algo como “um líquido sem cheiro ou sabor, consumido pelos animais, usado para controle de temperatura e que preenche rios e oceanos etc.”.

Se a estrutura química da água-gêmea for desconhecida, é natural supor que ‘águaTG’ se refere à mesma substância que nós denominamos ‘água’. Porém, uma vez que seja revelada a diferença das fórmulas químicas, percebemos que ‘águaTG’ não é um equivalente linguístico de ‘água’, pois o que realmente importa para que uma substância seja água é a sua composição química específica. Assim, o significado de ‘água’ não é o mesmo que o significado de ‘águaTG’, pois ‘água’ significa H2O e ‘águaTG’ significa XYZ.

O cenário da Terra gêmea permite concluir, portanto, que existe uma conexão necessária entre o termo ‘água’ e certa substância de forma que ‘água’ é um designador rígido de H2O6. Essa conexão é fixada, inicialmente, por meio de um ato de batismo – “Isto (o que quer que seja) é água” – e, posteriormente, é possível descobrir, empiricamente, a natureza mais elementar daquilo que foi nomeado. O significado do termo ‘água’, portanto, foi estabelecido a posteriori, por meio de investigações científicas. Desde que nossas teorias químicas sejam acuradas, podemos dizer que H2O é uma definição natural para o termo ‘água’ e que, em muitas descrições que interessam às ciências, podemos falar de água como sendo nada além de H2O.

O funcionamento semântico típico dos termos para tipos naturais permite a construção de definições sólidas entre campos de discursos que não estão originalmente conectados. Por exemplo, no caso de uma teoria moral naturalista, uma definição sintética a posteriori poderia relacionar o uso de algum termo moral como ‘bom’, ou ‘correto’ com a instanciação de certas propriedades naturais como “prazeroso”, ou “condutivo da sobrevivência da espécie humana”. A identificação permitiria eliminar o uso dos termos morais fornecendo o tipo de panorama naturalista pretendido por teorias que defendem que tipos morais não são nada além dos familiares fatos do mundo natural.

Entretanto, existe uma forte evidência de que a semântica dos tipos naturais de Kripke e Putnam não pode ser adaptada para termos morais, o que compromete a acomodação naturalista que o realismo moral precisa (TIMMONS, 1999, p. 34). A estratégia desenvolvida por Horgan e Timmons consiste em mostrar que casos paradigmáticos de definições sintéticas naturalistas são reforçados pelo experimento mental da Terra-gêmea, conforme apresentado. Entretanto, para termos que nomeiam tipos morais, um experimento mental análogo fornece contraevidências à designação rígida e, portanto, contraevidências às definições naturalistas de termos morais.

No argumento de Horgan e Timmons, se um termo moral como ‘bom’ designa rigidamente alguma propriedade natural como “condutivo da sobrevivência da espécie humana”, então deveria ser possível construir um cenário de terra-gêmea em que “as reflexões neste cenário gerariam julgamentos intuitivos que são comparáveis àqueles que concernem ao cenário original de Putnam [e] [...] teríamos a impressão de que ‘bom’ funciona, semanticamente, como a teoria causal diz que ele funciona” (TIMMONS, 1999, p. 60 – 61). Se, por outro lado, o cenário de terra-gêmea-moral mostrar que os julgamentos intuitivos mais comuns tendem à rejeição da tese da regulação causal dos termos morais, então teremos uma evidência de que a tese da regulação causal não se aplica a tipos morais e, consequentemente, que a proposta naturalista sustentada por definições sintéticas é pouco plausível.

O experimento ao estilo da terra-gêmea pode ser formulado por meio da suposição de que exista um planeta em algum lugar distante, muito similar à Terra chamado de Terra Gêmea Moral. Neste duplo da Terra, encontramos seres muito similares aos humanos e, também, organizações sociais semelhantes. Em especial, há entre os nativos da Terra Gêmea Moral um vocabulário que funciona de modo muito similar ao nosso vocabulário moral em português: Há, neste vocabulário, os termos ‘certo’, ‘bom’, ‘mau’, ‘errado’ etc., que são empregados quando os habitantes de Terra Gêmea Moral desejam avaliar pessoas, comportamentos e instituições, recomendando alguns e reprovando outros. Os termos morais também são usados para racionalizar sobre considerações acerca do bem-estar humano em geral e discursos que contenham esses termos são tomados com muita seriedade pelos nossos gêmeos.

Se for possível enviar uma expedição de exploração a este planeta-gêmeo, é provável que os exploradores terrestres fiquem inclinados a traduzir os termos morais do português-gêmeo pelos nossos próprios termos morais. Contudo, após algumas investigações empíricas mais aprofundadas, os exploradores poderiam descobrir que o uso dos termos-morais-gêmeos é regulado por propriedades naturais distintas daquelas que regulam nossos próprios usos de termos morais. Em ambos os casos, os exploradores perceberiam que estamos diante de propriedades funcionais individualizadas a partir de teorias normativas. Entretanto, na Terra, a teoria normativa cuja generalização é capaz de abarcar a essência das propriedades morais relevantes é uma teoria consequencialista, TC. Já na Terra Gêmea Moral, a teoria normativa capaz de capturar a essência das propriedades é deontológica (portanto, não-consequencialista), TD (TIMMONS, 1999, p. 61).

TC e TD atribuem papéis específicos (e semelhantes) para os termos morais nelas contidos. Porém, quando procuramos mapear na Terra e na Terra Gêmea Moral quais propriedades naturais são selecionadas pelos termos morais descobrimos, empiricamente, que são propriedades diferentes. Caso os termos morais e os termos-morais-gêmeos designem propriedades naturais distintas, como no caso de ‘água’ e ‘águaTG’, eles não possuem o mesmo significado e, portanto, não são equivalentes linguísticos (TIMMONS, 1999, p. 62). Os significados diferentes, entretanto, nos levam a uma situação que entra em conflito com alguns dos nossos pressupostos básicos sobre o discurso moral. Por exemplo, em um caso particular em que um dos exploradores, Jeremias, se envolva em um diálogo com um habitante do planeta-gêmeo, Emanuel, poderíamos ter algo como o seguinte diálogo:

● O consequencialista Jeremias diz: “Mentir, em algumas situações, é moralmente correto”.

● O deontologista Emanuel, por sua vez, diz: “Mentir, em qualquer situação, é sempre moralmente errado (não-correto).

De acordo com o uso cotidiano do discurso moral, há um desacordo entre Jeremias e Emanuel sobre o que é moralmente correto, ou seja, o que deve ser feito e o que deve pesar em seus julgamentos em situações práticas. Entretanto, semanticamente, se foi estabelecido que termos morais como ‘correto’ são designadores rígidos, então ‘correto’, quando enunciado por Jeremias, refere-se a certo conjunto de propriedades capturadas originalmente pelo termo dentro da teoria consequencialista – C. Por outro lado, quando Emanuel usa o termo ‘correto’, o conjunto de propriedades capturadas é diferente – D, pois o referente deste termo na Terra Gêmea Moral foi fixado em uma história causal distinta e a partir de outra teoria normativa.

A diferença de referentes torna possível que tanto Emanuel quanto Jeremias estejam enunciando sentenças verdadeiras sobre a mesma ação de mentir. Neste caso, enquanto um se refere a presença de certas propriedades C, o outro se refere a ausência de certas propriedades D (HORGAN; TIMMONS, 2000, p. 143) e, embora pareça acontecer um desacordo moral genuíno entre eles, trata-se apenas de uma confusão linguística. Uma vez que seja esclarecido que Emanuel está se referindo às propriedades D e Jeremias às propriedades C, o desacordo seria dissolvido.

Tratar o desacordo de Emanuel e Jeremias como meramente linguístico, entretanto, é altamente contraintuitivo. Ao que parece Emanuel e Jeremias estão engajados em um desacordo moral genuíno e que, inclusive, esse desacordo assemelha-se muito a outros desacordos comuns das práticas morais. Portanto, para adotar para os termos morais o mesmo funcionamento semântico dos termos para tipos naturais, o realista de Cornell deve abandonar esse pressuposto básico, amplamente compartilhado, sobre o discurso e a prática moral. É possível seguir por um caminho revisionista do discurso moral, entretanto, para isso, será necessário explicar porque nossas intuições são falhas no caso da terra-gêmea-moral, embora sejam bons guias em outros cenários não-morais de terras-gêmeas. Por outro lado, mesmo que seja possível oferecer uma revisão das práticas morais, o realista ainda perderia o suporte empírico da sua posição (TIMMONS, 1999, p. 64 – 65).

A segunda opção é manter a prática moral cotidiana, mas, para isso, é preciso defender que a termos morais não funcionam de modo semelhante a termos para tipos naturais. Rejeitando uma teoria semântica unificada, torna-se possível assumir que os termos-morais-gêmeos são boas traduções para os nossos termos morais e as diferenças que existem entre Jeremias e Emanuel caracterizam desacordos morais genuínos. Entretanto, neste caso, devemos recusar que termos morais designam rigidamente o conjunto de propriedades naturais que originalmente fixaram o uso do termo em uma teoria normativa e, consequentemente, a possibilidade de definições sintéticas a posteriori dos termos morais. Sem as definições sintéticas, entretanto, o realismo de Cornell não cumpre seu projeto naturalista (TIMMONS, 1999, p. 62). Portanto, qualquer que seja o caminho tomado diante da terra-gêmea-moral, o realismo de Cornell parece incapaz de acomodar em um cenário naturalista seus comprometimentos metafísicos e epistemológicos (TIMMONS, 1999, p. 67).

O cenário formulado por Horgan e Timmons para construção da terra-gêmea-moral, entretanto, tem algumas diferenças com a proposta realista que apresentamos inicialmente. É possível que essas diferenças sejam fundamentais o bastante para que o experimento mental não ofereça, de fato, uma objeção ao realismo de Cornell. Para explorar esta possibilidade, retomemos os pressupostos básicos da postura realista em questão:

● M1: Propriedades morais existem e são independentes de nossas crenças ou desejos sobre elas;

● M2: Propriedades morais são constituídas ou realizadas a partir da instanciação de propriedades e fatos naturais.

● E1: Empiricamente, podemos estabelecer quais propriedades naturais são comumente instanciadas na base das propriedades morais.

● S1: Propriedades morais são individualizadas a partir do papel que ocupam em teorias morais normativas.

● S2: Termos morais são empregados para denominar características morais (realizadas naturalmente) de ações, pessoas ou instituições.

Nenhuma dessas teses está em conflito direto com o resultado do experimento proposto por Horgan e Timmons. O cerne do argumento da terra-gêmea-moral parece ser resultado, na verdade, de uma confusão entre a teoria semântica e metafísica explorada por Putnam, que é a base de argumentos do estilo terra-gêmea, e a teoria do realismo de Cornell. Retomando, Kripke e Putnam se comprometem com uma tese de funcionamento semântico dos termos naturais segunda a qual:

● Cada termo para tipo natural t designa, por meio de uma relação causal, uma propriedade ou conjunto de propriedades essenciais N descobertas empiricamente.

● Esta designação é rígida e, portanto, o conjunto de propriedades N é a definição a posteriori para o tipo denominado por t. Metafisicamente, isso significa que a identidade entre t e o conjunto N é necessária.

Se uma teoria moral naturalista desejar aplicar os mesmos pressupostos aos termos morais, deverá sustentar que termos morais designam rigidamente uma propriedade natural específica tal como “prazeroso”, ou “condutivo da sobrevivência da espécie humana”. Mas o experimento da terra-gêmea-moral mostraria que a teoria é contraintuitiva independente das propriedades naturais escolhidas, pois termos morais poderiam selecionar propriedades distintas em diferentes realidades. Por outro lado, apesar de selecionarem propriedades distintas, termos morais e termos-morais-gêmeos ainda parecem equivalentes linguísticos para qualquer falante competente. A conclusão de Horgan e Timmons é que essas propriedades naturais, portanto, não são boas definições para os termos morais, uma vez que elas implicariam uma variabilidade de significados para termos que são, aparentemente, iguais.

Contudo, não é um pressuposto do realismo de Cornell que termos morais designem rigidamente as propriedades ou fatos naturais que realizam os tipos morais. Pelo contrário, tal critério de identidade é rejeitado justamente pela suposição de múltipla realização das propriedades morais:

[...] a múltipla realização dos fatos e propriedades morais pode fornecer outra razão para resistir à identificação de propriedades morais e naturais. Uma asserção plausível sobre uma variedade de propriedades-tipo e tokens é que elas poderiam ser realizadas em muitas diferentes formas. Teorias funcionalistas da mente, por exemplo, são baseadas, parcialmente, neste tipo de asserção sobre a relação um-para-muitos entre estado mental e sistemas físicos. [...] Uma visão similar pode ser plausível sobre propriedades morais (BRINK, 1989, p. 158)

A robustez do realismo de Cornell deriva desta ausência de uma identidade simples entre propriedades naturais e morais, o que elimina a possibilidade de reduções, como nas palavras de Brink, “a organização e combinação particular de propriedades físicas que, de fato, realizam estas propriedades de ordem superior não precisam figurar em nenhuma generalização interessante e, certamente, em nenhuma daquelas que as propriedades de segunda ordem figuram” (BRINK, 1898, p. 179 – 180).

Então, embora seja verdadeiro que propriedades naturais descobertas empiricamente possam figurar em descrições naturalizadas de propriedades morais, termos morais não estão relacionados rigidamente a essas propriedades. Termos morais designam, essencialmente, propriedades morais de ações, pessoas ou instituições e, acontece de tais propriedades morais serem realizadas por algumas configurações e arranjos de propriedades naturais. Entretanto, o que individualiza tipos morais é o papel causal-funcional que eles desempenham em teorias morais e não as bases naturais (BOYD, 1988, p. 218).

O realismo de Cornell afirma que propriedades morais são propriedades naturais em um sentido de constituição, o que admite a plasticidade composicional de sua base natural. Assim, quando uma propriedade moral é instanciada, existem (arranjos) de propriedades (não-morais) distintas N1, N2, …, Nn (onde n > 1) tais que, cada um dos Ni pode realizar uma propriedade moral em uma ação, pessoa ou instituição. Entretanto, cada um dos arranjos ou mesmo o conjunto disjuntivo de todos os arranjos não é o referente dos termos morais. A regulação da aplicação do termo moral depende, exclusivamente, da instanciação da propriedade moral.

O argumento estilo terra-gêmea de Horgan e Timmons não atenta a esta importante característica do realismo de Cornell. Mas, quando admitimos a múltipla realização das propriedades morais e rejeitamos que termos morais designem rigidamente propriedades naturais associadas, percebemos que é possível que existam desacordos morais genuínos mesmo quando fatos e propriedades naturais distintas realizam as propriedades morais. Neste caso, tanto Emanuel quanto Jeremias, quando enunciam seus julgamentos sobre a ação de mentir estão se referindo a presença ou ausência de certa propriedade moral – “ser correto”. Enquanto Jeremias afirma que, em algumas circunstâncias, mentir instancia a propriedade de ser correto, Emanuel nega que isto possa ser o caso.

Essa posição, entretanto, não exclui uma perspectiva naturalista do realismo de Cornell, pois propriedades morais ainda são constituídas ou realizadas a partir de fatos e propriedades naturais das quais dependem ontologicamente. Assim, o que faz emergir a propriedade de “ser correto”, por exemplo, é algum arranjo de propriedades naturais e suas interrelações, o que metafisicamente indica que propriedades morais não são independentes de propriedades ou fatos naturais, embora não sejam redutíveis a eles simplesmente. Podemos, empiricamente, discriminar quais são essas propriedades em casos morais específicos e parece plausível que, em muitos casos, esses arranjos de propriedades não sejam muito diferentes entre si. Mas, de todo modo, “ser correto” não deve ser individualizado extensionalmente a partir dessas propriedades naturais e sim, pelo papel que “ser correto” desempenha em uma teoria normativa. Talvez algo como “ser recomendado, gerar engajamento, termos atitudes positivas em relação a, estar associado com bem-estar humano, ou com florescimento de capacidades e sentimentos positivos etc.”. Em todo caso, a tese semântica e epistêmica acima não deve ser confundida com a tese metafísica de que “ser correto” é uma propriedade irredutivelmente moral e objetiva.

Por fim, o realista de Cornell ainda precisará explicar porque existem desacordos quanto à presença ou não de propriedades objetivas, como acontece no caso de Jeremias e Emanuel, ou mesmo em outros casos de desacordos mais comumente realizados, aqui, na Terra. Mas esta não é a objeção da terra-gêmea-moral. A terra-gêmea-moral oferece um desafio à possibilidade de que termos para tipos morais tenham o mesmo funcionamento semântico dos termos para tipos naturais e, de fato, termos morais não podem designar rigidamente as propriedades naturais que constituem a base mais elementar dos fenômenos morais. Entretanto, aceitar essa conclusão da terra-gêmea não compromete nenhuma das teses assumidas pelo realismo de Cornell e, portanto, não é uma objeção à postura7.

Considerações finais

O argumento da Terra Gêmea moral é formulado a partir da concepção de que o realismo de Cornell depende de aplicar uma teoria semântica típica dos termos para tipos naturais aos termos para tipos morais. Embora seja verdade que a adequação e uso dos termos morais sejam estabelecidos dentro de uma história causal e epistêmica que relaciona o uso do termo a instanciação do referente, não é verdadeiro que o referente dos termos morais sejam propriedades e fatos naturais. A tese semântica do realismo de Cornell não deve ser confundida com a tese metafísica de constituição dos tipos morais: Semanticamente, termos morais designam tipos morais por meio de uma relação causal que liga o uso dos termos e seus referentes. Metafisicamente, tipos morais são realizados por tipos naturais.

Empiricamente, é possível discriminar quais são as propriedades naturais que frequentemente figuram nas bases de certos tipos morais, mas tipos morais podem ser multiplamente realizados. Assim, é possível supor cenários como o postulado por Horgan e Timmons em que, na Terra, algum arranjo específico de propriedades seja responsável pela presença da propriedade “ser correto” e, em algum planeta-gêmeo, outro conjunto de propriedades morais seja relacionado a “ser correto”. Entretanto, nos dois planetas seria instanciada uma mesma propriedade moral, o que torna perfeitamente inteligível que existam conflitos morais, expressos usando termos morais, entre terráqueos e seus gêmeos.

Assim, o realista ao estilo de Cornell pode argumentar contra Horgan e Timmons que a forma como o argumento da Terra-gêmea-moral é construído está condicionada a tese de que termos para tipos morais designam rigidamente propriedades não-morais, o que não é um pressuposto do realismo de Cornell. Por outro lado, quando aplicamos o argumento da Terra-gêmea-moral à proposta realmente sustentada pelo realismo, percebemos que não há discrepâncias entre a teoria e nossas intuições morais e a base empírica do realismo não é perdida.

Ainda poderia ser possível argumentar contra o realismo de Cornell que a múltipla realização das propriedades morais abre a possibilidade de que a realização das propriedades morais se dê a partir de uma base não-natural, e, portanto, a proposta realista não poderia garantir o programa naturalista. Mas, há dois pontos a serem considerados sobre isso: Em primeiro lugar, embora as propriedades morais sejam individualizadas especialmente a partir de arranjos configuracionais, isso não precisa implicar que não exista uma base material mínima. Se assumirmos que o mais relevante na realização de uma propriedade moral é certo tipo de arranjo, isso não significa que qualquer propriedade possa figurar neste arranjo e, talvez, exista alguma convergência na realização de tipos morais.

Em segundo lugar, a possibilidade metafísica de um mundo possível não-naturalista em que a base dos tipos morais não sejam tipos naturais, não parece uma ameaça ao naturalismo, desde que ele seja verdadeiro neste mundo atual. E se o argumento da terra-gêmea-moral não enfraquece a teoria do realismo moral de Cornell, então temos pelo menos uma teoria naturalista e realista plausível para o fenômeno moral. Se a moralidade pode ser caracterizada de modo naturalista, como sustenta o realismo de Cornell, então o naturalismo torna-se mais plausível neste mundo atual e, aparentemente, isto é tudo o que é necessário.

Referências

BOYD, Richard. Finite Beings, Finite Goods: The Semantics, Metaphysics and Ethics of Naturalist Consequentialism. Part I. Philosophy and Phenomenological Research, vol. LXVI, nº03, Maio/2003, p. 505 – 553.

BOYD, Richard. Kinds as the Workmanship of Men: Realism, Constructivism, and Natural Kinds. In.: NIDA-RÜMELIN, J. MEGGLE, G. (orgs.). Rationality, Realism, Revision: Proceedings of the 3rd International Congress of the Society for Analytical Philosophy, 2000, p. 52 – 89.

BOYD, Richard. Kinds, Complexity and Multiple Realization: Comments on Millikan’s “Historical Kinds and the Special Species’. Philosophical Studies: An International Journal for Philosophy in the Analytic Tradition, vol. 95, nº 1/2, 1999, p. 67 – 98.

BOYD, Richard. How to be a Moral Realist. In.: SAYRE-MCCORD, Geoffrey. Essays on Moral Realism. Cornell University Press, 1988. p. 181 – 228.

BOYD, Richard. Materialism Without Reductionism: What Physicalism Does Not Entail. In.: BLOCK, Ned (ed.). Readings in the Philosophy of Psychology. Harvard University Press, vol 1, 1980. p. 67 –106.

BRINK, David O. Realism, Naturalism, and Moral Semantics. Social Philosophy and Policy, vol. 18, 2001, p. 154 – 176.

BRINK, David O. Moral Realism and the Foundations of Ethics. Cambridge University Press, 1989. 353 p.

COPP, David. Milk, Honey, and the Good Life on Moral Twin Earth. Synthese, vol. 124, 2000, p. 113 – 137.

DAWSON, A. LAURENCE, S. MARGOLIS, E. Moral Realism and Twin Earth. Facta Philosophica, vol. 1, 1999, p. 135 – 165.

HORGAN, Terence. TIMMONS, Mark. Copping Out on Moral Twin Earth. Synthese, v. 124, p. 139 –152, 2000.

HORGAN, Terence. TIMMONS, Mark. Troubles for New Wave Moral Semantics: ‘The Open Question Argument’ Revived. Philosophical Papers, v. 21, 1992, p. 153 – 175.

KRIPKE, Saul. Naming and Necessity. 5. ed. Blackwell, 1990 [1980], 92 p.

SAYRE-MCCORD, Geoffrey. The Many Moral Realism. In.: SAYRE-MCCORD, Geoffrey (ed.). Essays on Moral Realism. Cornell University Press, 1988.

TIMMONS, Mark. Morality without Foundations: A Defense of Ethical Contextualism. New York: Oxford University Press, 1999, 280 p.

PUTNAM, Hillary. Mind, Language and Reality. Cambridge University Press, 2003 [1975], 457 p.

Notas

2. Uma vez que o realismo de Cornell se comprometa com o naturalismo, torna-se necessária alguma forma de delimitação do âmbito natural. Uma forma comum de caracterizar tipos naturais é defini-los como aqueles tipicamente estudados pelas ciências. As ciências relevantes, entretanto, podem se restringir apenas às ciências naturais estritas, como a química ou a física, ou podem incluir outras áreas de investigação normalmente chamadas de ciências humanas. O realismo de Cornell se compromete com a posição mais ampla sobre quais ciências são relevante para o naturalismo, assumindo que fatos morais devem ser compreendidos como fatos sociais ou naturais estudados por ciências como a psicologia, a biologia, antropologia e economia (BRINK, 1989, p. 156 -157), ainda que essas disciplinas não possam ser totalmente reduzidas às ciências naturais estritas. A postura mais licenciosa é um reflexo da posição de Richard Boyd (1999; 2000; 2003) sobre a natureza e o papel dos tipos naturais dentro da prática científica. Em especial, embora tipos naturais sejam tipicamente o resultado das observações e experimentos do mundo natural, a atividade científica não se constitui de uma simples e objetiva leitura do mundo, mas também de um exercício de categorização e organização dependentes de uma prática científica. Assim, mais do que serem descobertos, dentro de um corpo científico, tipos naturais são seleções de agrupamentos que permitem a formulação de boas hipóteses e predições dentro de uma ciência, em um ajustamento mútuo entre evidências observáveis e teorias científicas que operam como plano de fundo para essas observações delimitando quais predições estão autorizadas na área e para quais elementos. Naturalmente, isso não significa dizer que tipos naturais não sejam nada além de construtos teóricos, eles são o resultado de um arranjo de propriedades objetivas e independentes que existam no mundo natural, mas o modo como o corte dessas propriedades é feito é o resultado de uma prática e uma teoria (BOYD, 2003, p. 535 – 537). Por outro lado, as próprias teorias também são alvos de investigação e adquirem valor científico à medida que determinam corretamente quais predições são confiáveis e para quais tipos. A junção, então, de teoria e evidência é o que permite a criação daqueles agrupamentos de propriedades e características que levam a induções bem sucedidas e que podemos denominar tipos naturais. Observações empíricas, teorias e processos metodológicos caminham juntos, então, para a construção de agrupamentos favoráveis às projeções. Estes agrupamentos são o que, para Boyd, constituem os tipos naturais (Cf. BOYD, 1999, p. 69).

3. Normalmente, esta posição naturalista é contra-atacada com a falácia naturalista que indica que não existe derivação lógica possível como a pretendida.

4. Todas as citações neste texto foram traduzidas do original em inglês pela autora.

5. É possível caracterizar com um exemplo a diferença entre os dois tipos de plasticidade: aquela que é característica de um estado computacional, por exemplo, e aquela que é característica do ferro fundido. Estados computacionais possuem alta plasticidade composicional, pois um mesmo estado computacional parece poder ser realizado em um computador de silício ou em um cérebro humano (considerando algo simples como uma operação matemática básica). A definição de um estado computacional é dada em grande medida por seu estado configuracional, ou seja, por ser um programa que executa algum comando específico. Outros eventos possuem baixa plasticidade composicional como, por exemplo, ser ferro fundido, que depende, especialmente, de termos uma grande parte de ferro fundido na composição, mas do ponto de vista configuracional, podemos encontrar ferro fundido em diversos arranjos diferentes (BOYD, 1980, p. 88).

6. Quando apresentado por Putnam, o argumento da Terra-gêmea não deixa explícito se a Terra Gêmea é apenas um planeta distante, ou outro mundo possível. Para garantir que ‘água’ seja um designador rígido de H2O, é preciso que a Terra Gêmea se situe em outro mundo possível. Caso a Terra Gêmea seja apenas um planeta distante, mas neste mundo possível, então a conclusão será de que ‘água’ possui mais de um referente e não que designa rigidamente a substância H2O.

7. O problema da Terra Gêmea Moral é um tópico profundamente estudado e debatido em metaética, sendo possível mapear na bibliografia muitas soluções e discussões relevantes. Este texto não tem por objetivo oferecer um panorama sobre essas possíveis soluções disponíveis, mas discussões relevantes podem ser encontradas em Brink (2001); Copp (2000), DAWSON, A. LAURENCE, S. MARGOLIS (1999); Copp (2000) e Brink (2001).

Notas de autor

1 Doutorando(a) Em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.
HTML generado a partir de XML-JATS4R por