Artigos
Recepción: 20 Abril 2022
Aprobación: 18 Septiembre 2022
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v22i3.2931
Resumo: Na Crítica da razão prática, Kant desenvolve o fundamento da lei moral em seus aspectos objetivo e subjetivo. Depois de afirmar ser plausível postular a determinação da vontade tão somente por meio da razão pura em seu uso prático, foi necessário ao filósofo demonstrar como ela se torna consciente e aceitável para o agente moral. Neste passo, ele examina o sentimento de prazer e desprazer, ao qual associa, de início, a humilhação da vontade entregue ao agrado dos sentidos, de modo que no sujeito emerge uma qualidade nova de sentimento, o respeito, também denominado de sentimento moral. A mesma estratégia encontra-se na terceira crítica, onde o constrangimento, desta vez, atua sobre a imaginação, impossibilitada de abarcar a imensidão sublime com o auxílio do entendimento. O desprazer daí proveniente conduz ao reconhecimento da razão como faculdade superior e, desta, ao prazer proveniente da consciência da lei moral como destinação superior. A considerar a forma como o subjetivo assimila a lei moral, pretende-se aqui pensá-la sob a hipótese de ser ela, antes, por meio do constrangimento e do desprazer, não apenas fundada na liberdade, mas também na humilhação da presunção. O argumento segue as obras de Kant sobre a ética, a começar pela Fundamentação da Metafísica dos costumes, em seguida, segue o caminho da segunda para a terceira crítica. Neste percurso, pretende-se examinar o lugar que o sentimento de prazer ocupa no fundamento a priori da lei moral, seja na analítica da razão prática seja na analítica do belo e do sublime.
Palavras-chave: Kant, Lei moral, Desprazer, Sublime, Sentimento moral.
Abstract: In the Critique of practical reason, Kant develops the foundation of moral law in its objective and subjective aspects. After claiming that it is plausible to postulate the determination of will only through pure reason, it was necessary for the philosopher to demonstrate how it becomes conscious and acceptable to the moral agent. In this step, he examines the feeling of pleasure and displeasure, to which he associates, at first, the humiliation of the will given to the satisfaction of the senses, so that in the subject emerges a new quality of feeling, respect, also called moral sentiment. The same strategy is found in the third critique, where the constraint, this time, acts on the imagination, unable to encompass the sublime immensity with the help of understanding. The displeasure that comes from it leads to the recognition of reason as a higher faculty and, from it, to the pleasure that comes from the conscience of the moral law as a higher destination. To consider the way in which the subjective assimilates the moral law, here it is intended to think it under the hypothesis of being it, rather, through embarrassment and displeasure, not only founded on the freedom, but also on the humiliation of presumption. The argument follows Kant’s works on ethics, beginning with the Groundwork of the Metaphysics of Morals, then follows the path of the second to the third criticism. In this journey, we intend to examine the place that the feeling of pleasure occupies in the a priori foundation of the moral law, whether in the analytical of practical reason or in the analytical of the beautiful and the sublime.
Keywords: Kant, Moral law, Unpleasure, Sublime, Moral sentiments.
Introdução
Tanto a Fundamentação da metafísica dos costumes quanto a Crítica da razão prática, as duas principais obras de Immanuel Kant sobre a ética, investigam o fundamento da lei moral. Embora esteja aí um dos pontos que as aproxima, necessário também seria pontuar o que as distingue, ao empreenderem o mesmo propósito. Enquanto uma o faz por meio da criação de uma nova disciplina, a Metafísica dos costumes, a outra está diretamente ligada à Crítica da razão pura e a possível ampliação do conhecimento. Também digna de nota, a metodologia empregada tem a sua relevância, pois, em ambas, está em jogo o exame das formas de determinação da vontade, a fim de abrir caminho para uma vontade mais pura, sem as marcas da sensibilidade, sob a hipótese de que também a razão a determina. Não obstante, a esses aspectos outro pode ser sugerido como fio condutor de uma reflexão sobre a ética do filósofo setecentista, a saber, o sentimento de prazer e desprazer, com o qual será conduzida a presente argumentação.
A guiar-se pela segunda crítica, o sentimento de prazer ocupa lugares diferentes na analítica de Kant, segundo a sua divisão em fundamento objetivo e subjetivo. De início, faz-se o trabalho negativo, o qual consiste em afastar a influência dos sentidos e, por conseguinte, a recusa do prazer como finalidade das ações. Num segundo momento, depois que a objetividade da lei moral está garantida e estão postas as bases da determinação superior da vontade, era preciso completar a análise, perscrutando como ela seria reconhecida pelo sujeito moral – neste ponto, a analítica migra do fundamento objetivo para o efeito subjetivo. E como se trata de indagar as possibilidades do seu reconhecimento pelo sujeito, ou o que internamente neste se produz, o fio que conduz a investigação se ocupa do sentimento de prazer e desprazer, uma dialética que impulsiona o sujeito das determinações externas para os impulsos internos do agir.
A considerar esse segundo passo, refletir sobre o sentimento de prazer e desprazer parece tornar problemáticos os contornos que dão consistência à lei moral. Não apenas ela se sustenta sob a ideia de liberdade, como também se acomoda, de modo especial, internamente. Primeiro, como humilhação da presunção e do amor de si, sendo, consequentemente, causa de desprazer; a seguir, como saída para o constrangimento, ao ser reconhecida pelo sujeito. Se objetivamente a lei moral torna-se defensável porque o homem é, além de sensível, também inteligível; subjetivamente, ela se ampara na humilhação da presunção e, somente depois, manifesta-se ao agente como saída para a dor e o sofrimento. Neste sentido, trata-se no presente artigo de examinar o lugar que o prazer ocupa no itinerário da fundamentação da lei moral, de modo a sugerir não apenas outra chave de interpretação do fundamento proposto por Kant, sobretudo, problematizar o efeito que se espera da lei moral para obter o êxito da determinação da vontade pela razão.
A fim de realizar este propósito, a exposição segue o caminho da Fundamentação da metafísica dos costumes à Crítica da razão prática, quanto ao fundamento objetivo da lei moral; em seguida, nesta última, analisa a relação entre desprazer e prazer, na tomada de consciência, pelo sujeito, de uma lei que o humilha, quanto à busca do agradável das sensações, e ao mesmo tempo o liberta, quando somente pela lei poderá surgir o prazer capaz de o retirar do constrangimento. Como se trata de investigar o movimento interno que conduz a lei moral ao seu reconhecimento, num terceiro momento, ajunta-se aos dois textos sobre a ética a Crítica da faculdade do juízo, onde Kant examina o prazer nas suas diferentes relações, purificando-o, do mesmo modo que o fez com a vontade, e ao final reencontra a lei moral.
1. O fundamento objetivo da lei moral e o sentimento de prazer
A começar pela Fundamentação da metafísica dos costumes, o aspecto negativo que abre a definição da boa vontade – ela não reside nas inclinações naturais nem nos dons da fortuna – é o caminho para, em seguida, afirmá-la como engenho da razão prática, motivo pelo qual teria sido dada ao homem a razão. Na primeira seção, de início, afasta-se a natureza da determinação da vontade, e permite, na segunda, também banir da investigação da moralidade as regras que, mesmo que tenham origem na razão, permanecem reféns dos objetos dos sentidos. É onde reside uma das diferenças entre os imperativos hipotéticos e o imperativo categórico. Primeiro a natureza é isolada, o mesmo se dando, em seguida, com as normas que prescrevem os meios para os bons fins, de modo que esteja aberto o caminho para uma vontade pura, a qual será também denominada “boa vontade” ou “vontade santa”. Eis o porquê da análise dos imperativos que ordenam a ação: era preciso não somente limpar o campo da simples vontade, também se fazia necessário afastar qualquer mácula dos objetos que a subordinam. Aos poucos, o banimento das impurezas da vontade perfaz a busca pelo fundamento a priori da moralidade. Mas neste itinerário também estará implicado o sentimento de prazer, que melhor se observará na Crítica da razão prática.
Conforme de início se explicita, a segunda crítica demonstra a determinação da vontade por meio da razão pura, por meio do exame da razão prática em geral. A tarefa consiste em perscrutar as suas impurezas, com os seus princípios e regras, para a qual têm máximo valor os objetos da apetição, segundo o prazer que proporcionam. Com isto, a faculdade de desejar será dividida, a fim de encontrar uma vontade tão pura quanto a lei que ela própria para si engendra, segundo a sua legislação, em inferior ou superior. A partir delas dois princípios “morais” serão constituídos e analisados, a saber, para a inferior reserva-se como fundamento o princípio do amor de si ou princípio da felicidade, que se mede segundo o prazer ou desprazer proporcionado pelos objetos; para a superior, o princípio da moralidade, cujo fundamento residirá na influência suficiente da razão pura, para a qual o prazer será deslocado, não antes de ser purificado.
A hipótese da existência de uma faculdade de apetição superior se sustentaria com a analítica da razão prática em geral, aqui compreendida não como determinação pura, sobretudo como o que abarca todos os âmbitos das motivações humanas. É nesta linha que se evidencia uma compreensão que coloca o prazer como efeito esperado das formas mais elementares de uma vontade ainda ligada aos sentidos. Seja como dado da natureza seja na perspectiva das regras que implicam não tanto os objetos, sobretudo, em primeiro lugar, as ações que visam ou a habilidade ou a busca da felicidade. Consequentemente, o princípio da felicidade ou do amor de si se estende das formas da afecção sensível até as formas de normatização das regras práticas ou dos zelos da prudência.
Mantendo a perspectiva da tríade das formas da vontade, oriundas da natureza e das regras, e a finalidade da empresa analítica, a segunda crítica melhor estrutura as duas primeiras sob o princípio oposto ao da moralidade. O percurso seguido até a moralidade seria, por conseguinte – quando está em questão a universalidade ética –, o modo de retirar da busca pela felicidade, ou da busca pelo prazer, a sua dignidade, o que permite afirmar que a lei moral se ergue sobre a negação da felicidade ou do prazer. As máximas subjetivas se opõem às leis objetivas práticas, mas dentre estas também há oposições: quando prescrevem ações boas em consideração do efeito, são designadas como regras práticas, quando observam o mero querer, sem que nenhum objeto constitua um fim, aqui residiriam as leis práticas, cuja fonte seria a priori. As máximas subjetivas, mas também as regras práticas, mesmo que objetivas, serão reunidas, em virtude do apelo aos objetos dos sentidos, sob o princípio universal do amor a si ou da felicidade própria (KANT, 2016, p. 38).
No entanto, para além da presença do objeto como critério de distinção do que pertence ou não à lei moral, importa considerar, ainda, o prazer derivado da sensação ou da representação. Ou seja, a busca pelo fundamento da moral implica não apenas nas formas distintas de determinação da vontade, também problematiza o sentimento de prazer proveniente da matéria. Se o fundamento da moral está diretamente ligado ao sentimento de prazer como efeito dos princípios materiais de determinação da vontade, consequentemente, a analítica da razão pura prática tem de necessariamente passar pelo gozo. Não bastando apenas pontuar a presença dos objetos, faz-se importante olhar para a satisfação ou o agrado que tais objetos proporcionam e para o efeito subsequente que deles se espera.
Apesar de os dois graus da faculdade de desejar serem assim delimitados, quanto à presença ou ausência de objetos, o mesmo não ocorre quando se trata do sentimento de prazer. É indiferente que a representação seja dos sentidos ou do entendimento, o que importa é se numa ou noutra é do prazer que se trata, se é o prazer que constitui um fim. Leia-se: “quer as representações dos objetos sejam heterogêneas, quer sejam representações do entendimento [...] apesar disso o sentimento de prazer [...] é da mesma espécie” (KANT, 2016, p. 39). Em seguida, esta afirmação se completa: “se a determinação da vontade depende do sentimento de agrado ou desagrado que ele por algum motivo espera, então é indiferente através de que modo de representação é afetado” (KANT, 2016, p. 40).
O sentimento de prazer, como percepção interior ou, conforme Kant exprime em Antropologia de um ponto de vista pragmático, o “sentimento de promoção da vida” (KANT, 2006, p. 128), circunscreve-se ao restrito âmbito da faculdade de desejar inferior, de modo algum, nesses inícios, sendo aproximado da superior. O que sugere que para onde Kant conduz a sua analítica não somente os objetos serão afastados, como também o será o prazer que deles se possa esperar, nem mesmo com a alegação da existência de um prazer superior ao dos sentidos, como a busca de “satisfações e gozos mais finos” (KANT, 2016, p 40). Supor a existência de uma faculdade superior implica em que a razão pura determine a vontade sem a medicação dos objetos, mas também, defende Kant (2016, p. 41) “sem pressuposição de nenhum sentimento, por conseguinte sem representações do agradável ou desagradável”.
Sem perspectivar os objetos e o prazer destes proveniente, a faculdade de desejar superior pode então ser assegurada, assim como a questão que atravessa a analítica de Kant, a saber, o fundamento a priori da lei moral. A abstração da matéria e do gozo mantem a forma legisladora como “a única coisa que pode constituir um fundamento determinante da vontade” (KANT, 2016, p. 49), cujo resultado será a formulação da lei condizente com uma vontade assim instituída, a lei moral como lei da razão pura prática.
2. Humilhação da presunção e fundamento subjetivo da lei moral
Quanto ao fundamento objetivo da lei moral, o sentimento prazer se restringe ao âmbito da faculdade inferior de desejar, o qual se rege pelo princípio da felicidade, logo, situa-se entre os princípios subjetivos da vontade, os quais cedem lugar ao princípio objetivo. A razão pode, sem as impurezas da vontade, sustentar-se como força eficaz na sua determinação – esta é a hipótese da segunda crítica –, bem como a esta oferecer de si a lei moral. O problema residirá, em seguida, em justificar a eficácia dessa lei, para além do que resulta do exercício analítico, onde Kant destina outra perspectiva para o sentimento de prazer. O pressuposto do ser racional como, também, necessidade natural e sujeito aos estímulos empíricos parece tornar pouco convincente a lei moral, o uso prático da razão pura. Kant deve dar um passo adiante, e investigar a consolidação interna da lei, como ela aí se produz, ou seja, como será, para a vontade, motivo. Uma coisa seria afirmar a determinação superior da vontade, dela afastando o sentimento produzido pelo deleite ou gozo dos sentidos, outra bem diferente consistirá em investigar o sentimento que a lei de si mesma produz.
A limitação acerca da plausibilidade da lei moral e, por conseguinte, da destinação da razão em relação à vontade aparece na Fundamentação em dois momentos. Na primeira seção, quando Kant pergunta sobre o porquê de a razão ter sido dada ao homem, uma vez que a vontade seria suficiente aos seus propósitos (KANT, 2005, p. 25); e na terceira, quando é colocado o problema da demonstração empírica para uma lei que muito mais exige sacrifícios ao gozo, à qual, a princípio, nenhum interesse estaria ligado (KANT, 2005, p. 97). Em que pese a saída dada pelo filósofo na Fundamentação – ao homem empírico ele sobrepõe o racional, ao qual acrescenta o ideal do reino dos fins –, importa para o problema que aqui se levanta a maneira como, do fundamento objetivo, Kant investe no seu efeito subjetivo. Trata-se de ir além da lei com a qual a razão determina a vontade, de início, suspeita de ser apenas uma quimera, e, sobretudo, colocar em questão como seria essa determinação em termos de efeito sobre o ânimo.
Nesse ponto, momento em que Kant (2016, p. 117) diz ser forçado a admitir uma vinculação entre sentimento e conhecimento, o sentimento de prazer ou desprazer, porque subjetivo, novamente será analisado, a fim de dar lugar a outro sentimento cuja fonte será o reconhecimento da razão. Quanto aos princípios, vê-se que, em havendo uma lei pura ancorada na faculdade superior de desejar, da razão pode-se afirmar que ela exerce influência sobre a vontade. No entanto, é preciso pensá-la quanto ao sentimento, consequentemente, que a razão pura não apenas produz a lei moral, desta também deriva uma qualidade distinta de sentimento, a saber, o sentimento moral. Assim, determinado o fundamento objetivo, a pergunta a ser feita é que tipo de motivo a lei moral representa para a vontade. Da percepção exterior que a mobiliza e fundamenta, segue-se para a interioridade do sujeito, a fim de compreender o que nele se passa, e dar lugar ao reconhecimento de uma lei que põe rédeas à busca de satisfação empírica. No dizer de Kant (2016, p. 117): “não temos que indicar a priori o fundamento a partir do qual a lei moral produz em si um motivo, mas na medida em que ela o é, o que ela efetiva (ou, para dizer melhor, tem de efetivar) no ânimo”.
A tese do efeito subjetivo da lei moral se desdobra em dois momentos: primeiro como constrangimento, segundo, como afirmação da lei e da razão. Ao sentimento originado nas inclinações, Kant opõe o constrangimento dos sentidos ou a humilhação da presunção, um prejuízo inicial somente tido como negativo, necessário ao reconhecimento da razão como determinante moral, a qual, aqui, aparece como aniquilação do amor próprio e da busca da satisfação. O efeito do constrangimento logo se mostra positivo, e dele origina-se um novo sentimento, o do respeito. “A lei moral abate a presunção”, diz Kant (2016, p. 119), e, continua ele imediatamente a seguir, na medida em que a enfraquece e humilha, “é ao mesmo tempo um objeto de respeito”.
Kant amplia o alcance da lei moral, estendendo-a para além do fundamento objetivo, e fixa-a no interior do sujeito, quando a entende como motor subjetivo. É pela via do constrangimento dos sentidos, portanto, da frustração do sentimento de prazer, que a lei moral pode assentar como soberana, não mais apenas uma doação da razão para o sujeito, sobretudo como produção do sentimento de respeito. A lei moral, dirá Kant (2016, p. 120), “a qual, unicamente, é verdadeiramente [...] objetiva, exclui totalmente a influência do amor de si sobre o princípio prático supremo e rompe infinitamente com a presunção”, sendo ela, por conseguinte, “também subjetivamente um fundamento do respeito” (KANT, 2016, p. 121). A humilhação da presunção, pode-se dizer, da vontade patológica, é o efeito negativo necessário ao que em seguida faz emergir: o efeito patológico sobre o sentimento de prazer, a humilhação, conduz ao surgimento, e eis o efeito positivo, do sentimento moral. À diferença da Fundamentação, não é apenas porque o homem é, além de sensível, inteligível que a lei interessa; o interesse vem muito mais como possibilidade de supressão do desprazer.
Em relação ao sentimento de prazer, em cuja consciência reside a felicidade, por conseguinte, toda busca subjetiva pelo agradável, ora ele será secundarizado, em função do fundamento objetivo, ora será constrangido, em função do seu fundamento subjetivo. Seja para afirmar a que se destina a razão pura no seu uso prático, influência da vontade para a qual origina a lei moral, seja para a esta dá sustentação no sentimento, não apenas na inteligência, o prazer será considerado como o que tem de ser desviado. A maneira como neste plano Kant lida com o sentimento de prazer torna mais agudo o interesse da presente reflexão, pois a relação estabelecida com o sentimento moral, onde não mais se trata de uma relação de objetos, sobretudo, põe em jogo a interioridade do ser racional ou do sujeito moral. Neste sentido, a lei moral não apenas emerge em seu fundamento objetivo como produto da razão, também ela busca sentar morada no interior do sujeito, no jogo dialético entre desprazer e prazer.
O importante neste momento é o trabalho interno da lei moral sobre o sujeito, primeiro, de constrangimento dos sentidos, em seguida, de reconhecimento de uma forma mais elevada dos motivos subjetivos da vontade, introduzindo-se aqui o respeito. A humilhação das inclinações constitui, por assim dizer, uma inibição do prazer dos sentidos, o que dá lugar a outro sentimento como efeito da razão, que, de um desprazer, faz surgir a supressão da dor. Tem-se aí um desprazer que apenas pode ser sanado pelo reconhecimento da lei moral, conforme a temporalidade expressa em Antropologia de um ponto de vista pragmático, a saber, a que traça a anterioridade do desprazer em relação ao prazer, que resultaria do abandono da dor sentida num estado presente (Kant, 2006, p. 128). Como efeito subjetivo ou, noutras palavras, como causa de desprazer e constrangimento, a lei moral segue a lógica do abandono do prazer, a fim de compelir o sujeito à consideração de uma determinação superior à das inclinações.
Objetivamente, a razão é fonte da lei moral, no entanto, apenas pode assentar esta lei produzindo o desprazer dos sentidos, por meio da humilhação e constrangimento das inclinações patológicas da vontade. Quanto ao fundamento subjetivo, ela exerce sobre a vontade uma tirania, mesmo que venha a dar lugar a outro sentimento, a qual obriga o sujeito a abandonar o prazer, doravante percebido como fonte de dor. Trata-se, neste ponto, de compreender que a ética de Kant, sob a dialética de desprazer-prazer, investe, também, na purificação do prazer, cuja forma mais acabada e elaborada ele desenvolverá na Crítica da faculdade do juízo.
O elo para o desdobramento do trabalho da razão sobre os sentidos, na terceira crítica, e, por conseguinte, sobre o sentimento de prazer, encontra-se na própria Crítica da razão prática, nos esforços de Kant para definir o respeito derivado do desprazer oriundo da humilhação das inclinações, onde ele associa ao respeito o sentimento de “admiração”. Leia-se: “algo que mais se aproxima deste sentimento é a admiração, e esta enquanto afeto, o assombro, também pode ter a ver com coisas, por exemplo, como montanhas que se elevam até o céu, a magnitude, o grande número e a distância dos corpos celestes” (KANT, 2016, p. 124). Também ao final da Introdução, uma relação entre a segunda e a terceira crítica será anunciada, com a hipótese de que o acordo nesta última buscado, entre o conceito de natureza e o de liberdade, teria como suplemento a promoção da “receptividade do ânimo ao sentimento moral” (KANT, 2008, p. 41).
Assim, para melhor compreender o laço subjetivo da razão, de posse da lei moral, com o sentimento de prazer, como imposição ao sujeito racional da sua existência prática, e do efeito que exerce sobre o ânimo, indagar sobre essa estrutura no sublime apresenta-se de todo importante. Inclusive porque, na terceira crítica, trata-se principalmente do prazer, não do prazer como o que deve ser evitado, uma vez que se associa às inclinações e ao agrado proveniente dos objetos, mas sobretudo quanto aos seus diferentes graus, entre os quais se inclui a mais elevada das fontes de prazer, proveniente e comunicado mediante o juízo de gosto. Também digno de nota é que, na segunda crítica, é a lei moral que humilha e constrange o amor de si, enquanto na terceira cabe à razão a produção do desprazer e da dor, dos quais deve o sujeito se desvencilhar. Esta distinção é de todo consequente para os propósitos da presente análise do texto, uma vez que permite levantar a hipótese de que a razão, quando se trata de pensar a lei moral, não apenas a elabora, como também tem de exercer certa tirania para que o sujeito a admita como faculdade superior.
3. Humilhação da imaginação e reconhecimento da lei moral
As definições iniciais do juízo de gosto já delimitam o seu âmbito. Trata-se dos produtos da imaginação cuja finalidade consiste em representar o sentimento de prazer ou desprazer com os recursos do entendimento. Como juízos subjetivos, estão implicados no sentimento de vida mais que na existência dos objetos. As investigações do juízo de gosto perscrutam o sentimento de prazer quanto aos seus graus nas relações do sujeito ora com os objetos dos sentidos, dos quais se pode deleitar, ora com as representações do entendimento, das quais aos objetos pode ser destinada uma finalidade prática. A análise avança até o ponto em que, da definição do belo, porque desinteressado nos objetos e sem a necessidade de conceitos, as suas características são delineadas, e um ânimo muito peculiar surge, sob a hipótese da comunicação de juízos subjetivos, por suposto, válidos para qualquer um.
Tem-se aí a descoberta de uma universalidade também peculiar, porque subjetiva, que apenas se resolve ao determinar o ânimo proveniente do livre jogo entre imaginação e entendimento, faculdades destinadas a um uso distinto da produção de juízos lógicos. Sobre o ânimo a ser comunicado em juízos estéticos, diz Kant (2008, p. 62): “o estado de ânimo nesta representação tem que ser o de um sentimento de jogo livre das faculdades da representação dada para um conhecimento em geral”, citação a qual complementa do seguinte modo: “a comunicabilidade universal subjetiva deste modo de representação em um juízo de gosto [...] não pode ser outra coisa senão o estado de ânimo no jogo livre da faculdade da imaginação e do entendimento” (KANT, 2008, p. 62).
A procura pelo prazer puro prescinde do prazer dos sentidos, este confinado ao agradável e ao bom, e converge para a universalidade subjetiva, possibilidade de comunicação do ânimo, mas de um ânimo resultado do reconhecimento das faculdades e da destinação delas para outro fim, a saber, à representação do sentimento de prazer e desprazer. O sentimento de prazer, protagonista da terceira crítica, aos poucos prescinde dos objetos e torna-se tão puro quanto a lei moral. Se o sentimento de prazer ou desprazer consiste na consciência da felicidade ou da dor, na segunda crítica; na terceira, ainda que inicialmente se trate do interesse nos objetos, porque agradam ou, mediante representação, são bons, ele será elevado à pureza do reconhecimento de um uso peculiar das faculdades, no propósito de expressar o sentimento de vida. Na terceira crítica o sentimento será retirado da empiria, purificando-se da imposição dos sentidos e das representações, o que não ocorre na segunda crítica, na qual ele se mantém no âmbito da sensibilidade, não tendo importância nem para o fundamento objetivo nem para o efeito subjetivo.
O que ocorre com o sentimento de prazer em relação ao belo pouco se assemelha quando se trata do sublime. Neste, não apenas está em questão um modo subjetivo de tratar os objetos, sendo estes apenas pretextos para representar o que no sujeito se passa internamente na sensação. O entendimento ainda mantém a sua primazia frente aos objetos, com a única diferença que ele será subordinado à imaginação, a fim de tornar possível a representação lógica do que somente poderia ser representado em juízos estéticos, a saber, o sentimento de prazer e desprazer. Com o sublime, o entendimento será prescindido em nome da razão, a única faculdade capaz de oferecer ao sujeito o trânsito da percepção para a representação do estado do ânimo na sensação.
Embora se trate, nos juízos estéticos, da representação do ânimo – o que a princípio teria a mesma função para o belo e para o sublime –, no sublime o ânimo a ser comunicado não reside na descoberta do uso livre das faculdades em função da representação de um sentimento. Antes, ele se constitui a partir da relação da sensibilidade com as ideias da razão. E, neste ponto, a diferença entre belo e sublime parece salutar, pois em vez do reconhecimento do uso livre das faculdades do conhecimento, tem-se o reconhecimento, primeiro, da razão como faculdade superior, do qual se segue, num segundo plano, o reconhecimento daquilo que a ela é atribuído no seu uso prático: a produção da lei moral.
Se o belo afasta o sentimento de prazer no agradável e no bom, para dar lugar ao prazer puro da comunicação do uso livre das faculdades; o sublime, antes, consiste no desprazer em face da grandeza, que permite elevar o sujeito ao reconhecimento da razão, do qual deriva, aqui também, um prazer de tipo novo. Apesar das diferenças concernentes aos dois tipos de sublime, ora pensado como grandeza, o caso do matemático-sublime, ora pensado como poder, o dinâmico-sublime, em comum, eles oportunam a tomada de consciência da faculdade da razão. Ambos impõem restrições aos sentidos, ou porque um aponta os seus limites ou porque o outro ameaça suprimir a força vital. E, do mesmo modo, são formas de dialetizar o sentimento de prazer, ou porque ao ambicionar os seus limites a imaginação abandona o auxílio do entendimento, antes, muito eficaz em relação ao belo, e descobre a razão como faculdade superior, ou porque o desprazer dos sentidos, em virtude do poder da natureza, gera a saída pela força moral.
O matemático-sublime é o absolutamente grande, ante o qual tudo o mais é tido como pequeno, mesmo que noutras comparações seja tido como grande. Nele a imaginação se vê diante da possibilidade de ampliar o seu alcance, e para tal ou pode recorrer aos sentidos ou ao entendimento, a fim de realizar o cálculo matemático da grandeza. Na imaginação, a “aspiração ao progresso até o infinito”, diz Kant (2008, p. 96) encontra paralelo na “pretensão à totalidade absoluta como a uma ideia real”. Esta proximidade não é gratuita, pois encontra aí guarida a imaginação, quando, nem por meio dos sentidos nem por meio do entendimento, ela, ante o incomensurável, vê-se contemplada na empreitada da ampliação de si mesma. É este o sentido de o sublime não residir nos objetos e estar mais próximo das ideias, sendo, portanto, subjetivo, ou seja, estar ligado ao ânimo. Leia-se: “sublime é o que somente pelo fato de poder também pensa-lo prova uma faculdade de ânimo que ultrapassa todo padrão de medida dos sentidos” (KANT, 2008, p. 96).
Já se vê como nessa modalidade do sublime também está em questão a humilhação dos sentidos, desta vez, no tocante à ambição de ampliação da imaginação sem sair dos limites da sensibilidade. Na avaliação da grandeza, porque se dá ou por conceitos numéricos (KANT, 2008, p. 99-100), a grandeza lógica, ou pela intuição, a grandeza estética, a faculdade do ânimo conduz o sujeito à razão como faculdade superior, ocasião de reconhecimento do suprassensível. A grandeza matemática é sempre relativa, dá-se com a comparação com outras grandezas, ao contrário da estética, na qual se introduz o estado de ânimo. Assim, falham as tentativas de com os sentidos ou com os conceitos numéricos do entendimento abarcar o absolutamente grande, duas limitações levadas a cabo a fim de encontrar o que mais se adequa à ampliação da imaginação.
Diante do sublime, surge o ânimo de uma faculdade superior, e desta o esgotamento da faculdade do entendimento para abarcar e definir a grandeza absoluta. O ânimo não recua e, ao “ouvir a voz da razão”, palavras de Kant (2008, p. 100), demonstra uma “faculdade do ânimo que excede todo padrão de medida” (KANT, 2008, p. 100), o que resulta na exigência de que exista no “ânimo humano uma faculdade que seja ela própria suprassensível” (KANT, 2008, p. 101). Embora o entendimento guie a imaginação na avaliação da grandeza, mostra-se impossível chegar ao infinito por meio das intuições. Semelhante embaraço, força a imaginação a supor como causa do ânimo a faculdade suprassensível, o qual se sente “apto a ultrapassar todas as barreiras da sensibilidade” (KANT, 2008, p. 101). A possibilidade de pensar o infinito suprassensível nas intuições, sem comparação, consiste numa intensificação do ânimo e nisto reside a condição de ampliação dos limites da sensibilidade.
Assim, haveria dois sentidos na complacência no sublime: por um lado, o reconhecimento da imaginação dos seus limites, ao tentar apreender o infinito por meio das intuições – algo que o sublime na imaginação desperta; por outro, o estado de ânimo na avaliação da grandeza, quando se apresenta o recurso ao suprassensível. Primeiro, constata-se um limite, em seguida, vem o pressuposto do suprassensível, de modo que a imaginação não abandona o que a ela se apresenta com o absolutamente grande, a saber, da sensibilidade alçar voo ao infinito. Entre o momento da inadequação por ela experimentada, quanto aos recursos disponíveis, e da saída pelo ânimo, está o sentimento de desprazer, que, para Kant, consiste numa imposição da razão a fim de se fazer presente na intuição sensível. Noutras palavras, a faculdade superior se utiliza da inferior para se tornar acessível ali onde a ela o acesso parece impossível; enquanto esta, servindo-se daquela, pode ambicionar ir além das restrições da sensibilidade.
Daí, Kant evoca o respeito como derivado da inadequação dos meios da imaginação à grandeza sublime. O sublime seria, ao mesmo tempo, embora aqui se busque esquematizar, sentimento de desprazer, na inadequação da imaginação à razão, e prazer despertado a partir da concordância da imaginação com ideias racionais (KANT, 2008, p. 104), no movimento feito pelo ânimo, da sensibilidade para o suprassensível. A inadequação, que a princípio é causa de temor de anulação da vida, resolve-se ao ser a imaginação conduzida pelas ideias da razão. Movimento que deriva o prazer em face da consequente repulsa da simples sensibilidade. O desacordo inicial ante as limitações constrangedoras da sensibilidade encontra saída com a descoberta de uma faculdade ilimitada, a qual salva a imaginação, a esta permitindo permanecer a sonhar com o infinito, mesmo sendo uma faculdade limitada ao sensível.
A temporalidade de desprazer e prazer muito se aproxima da ordem dos sentimentos que ocorrem no sujeito perante a lei moral. Na Crítica a razão prática, o constrangimento das inclinações, fonte de desprazer, teria conduzido o ser racional da influência dos sentidos para um sentimento novo, sob a injunção da lei moral. Lá como na terceira crítica o respeito surge como sentimento derivado de um desprazer – no caso da imaginação, por ela ambicionar ampliar-se da sensibilidade ao infinito, sem sair da sensibilidade. Mas esse respeito, como sentimento, primeiro revela que a razão exerce influência sobre a vontade, mas ainda não diz por qual meio se dá essa influência. É daqui que o sentimento moral ganhar lugar, pois o respeito de que se trata é o reconhecimento da lei moral. Ou seja, em face do constrangimento das inclinações, o sujeito somente pode libertar-se do desprazer ao e se reconhecer a razão como faculdade que sobre a vontade tem algum poder. O sentimento moral, consequentemente, vem a ser uma reconciliação da vontade com algo que a princípio a ela causa embaraços.
Também no sublime o sentimento moral se apresenta, desta vez, como movimento do sensível para o suprassensível, mas não apenas como reconhecimento da faculdade infinita, sobretudo como o que dessa faculdade parece ser o seu produto mais elaborado, a saber, a lei moral. O absolutamente grande não designa somente um desafio à imaginação, nele dá-se também o sentimento de supressão da vida, e, por isto, como poder de aniquilamento, a natureza “produz” o dinâmico-sublime. O constrangimento da imaginação também é percebido como ameaça à existência, e a passagem do sensível para o suprassensível será a transição da perspectiva da morte para a vida, em que o desprazer ante os limites da sensibilidade e a insuficiência dos conceitos numéricos do entendimento dá lugar ao prazer da destinação moral.
A análise do sublime dinâmico tem início com a distinção entre poder, a “faculdade que se sobrepõe a grandes obstáculos” (KANT, 2008, p. 106), e força, característica do poder diante de algo que por si mesmo tem poder. A natureza é poder, no entanto, no juízo estético, pouco representa este poder, uma vez que nestes ajuizamentos ela se defronta com outro poder, o do sujeito. A supressão do poder da natureza é o que, no entender de Kant, vem a constituir o dinamicamente sublime. Resta saber de que se trata o poder do sujeito, o qual opõe resistência ao da natureza, eliminando dessa maneira o medo que dela advém. É neste ponto que o sublime reelabora o sentimento de desprazer e prazer, num movimento que vai do medo à resistência ao poder da natureza. No juízo estético, a natureza deixa de causar medo, em virtude da descoberta no sujeito de um poder até então a ele inacessível porque desconhecido.
De início, a natureza é o que suscita medo, mas é preciso distinguir o medo do objeto do medo de si mesmo, ou seja, uma coisa é o temor que o objeto suscita, outra, o medo de si mesmo em face do objeto. A partir de objetos que são temíveis, como vulcões, o oceano revolto, diz Kant (2008, p. 107): “denominamos estes objetos sublimes, porque eles elevam a fortaleza da alma acima de seu nível médio e permitem descobrir em nós uma faculdade de resistência de espécie totalmente diversa, a qual nos encoraja a medir-nos com a aparente onipotência da natureza”. Essa elevação consiste na descoberta da razão, que já teria resolvido os embaraços da imaginação, e, aqui, resolve o desconforto subjetivo. A natureza apresenta-se incomensurável e denuncia a insuficiência da imaginação ou do entendimento, mas também oportuna encontrar “em nossa faculdade da razão um outro padrão de medida” (KANT, 2008, p. 107).
Embora nesse ponto esteja em questão não a incomensurabilidade e sim o medo ante o incomensurável, a razão surge num papel novo, desta vez, como poder capaz de opor resistência face ao incomensurável. A natureza assim posta ante outro poder dá a ocasião de uma descoberta diferente em relação ao indivíduo. Não apenas como faculdade que salva a imaginação do constrangimento dos sentidos, elevando-a ao infinito na sensibilidade, sobretudo, ocasiona a descoberta de uma destinação superior, como poder no indivíduo de enfrentamento do que a ele se apresenta como ameaçador para a vida. No juízo estético, a natureza aparece como o que provoca a força para resistir e perseverar na vida. Daí ser ela sublime, “porque eleva a faculdade da imaginação à apresentação daqueles casos nos quais o ânimo pode tornar capaz de ser sentida a sublimidade própria de sua destinação, mesmo acima da natureza” (KANT, 2008, p. 108). A lei moral aqui se apresenta no seu aspecto sublime, a este conferindo uma dimensão subjetiva, não mais uma objetividade que apenas revela a perspectiva da aniquilação.
Mais uma vez, o desprazer se constitui como caminho para um prazer de ordem suprassensível, do constrangimento dos sentidos segue-se o prazer do reconhecimento de uma realidade suprassensível. No sublime matemático, a razão humilha a sensibilidade para fazer-se conhecer, para dar a ser conhecida como faculdade superior capaz de dar conta das ambições da imaginação ao infinito, sem prescindir, porque não pode, da sensação. No dinâmico, essa humilhação vem da natureza, mas nem por isto isenta a razão de alguma atividade. A razão aproveita-se mais uma vez das limitações da imaginação e sobre ela exerce uma violência que a impele para uma destinação diferente da sensibilidade e do desprazer. Ante a ameaça do poder da natureza, segue-se o prazer de saber que é possível a ela resistir, desde que reconheça o poder da razão – ou o poder que a razão é capaz de doar ao sujeito racional por meio da lei moral.
O sublime, diz Kant (2008, p. 111), “é uma violência que a razão exerce sobre a faculdade da imaginação somente para ampliá-la convenientemente para o seu domínio próprio, o prático, e proporcionar-lhe uma perspectiva para o infinito, que para ela é um abismo”. Essa violência inicialmente imposta, à semelhança do que a lei moral exerce sobre as inclinações, como se viu a partir da segunda crítica, conduz à compreensão de que ao sublime está associado o sentimento moral. Nas palavras de Kant (2008, p. 115): “não se pode muito bem pensar o sublime da natureza sem ligar a isso uma disposição de ânimo que é semelhante à disposição para o sentimento moral”. Mas também permite indagar se, na terceira crítica, em termos subjetivos, a razão não exerceria uma tirania sobre os sentidos, a fim de tornar aceitável a lei moral.
Considerações finais
Examinar o projeto ético de Kant sob o fio condutor do sentimento de prazer, como o filósofo o situa na analítica da razão prática, parece permitir ampliar o alcance da ética por ele fundada. Ao passo que a razão é a fonte da lei moral pura, teria ela de, antes, exercer o constrangimento dos sentidos e do amor de si, do contrário, a lei que ela de si produz encontraria resistências no patológico. Noutras palavras, sem comprometer a análise do fundamento da moralidade, parece ser também papel da razão humilhar as pretensões subjetivas, a fim de dar lugar à lei moral. Se assim for, é de todo plausível sugerir como pelo menos possível pensar a ética de Kant como a descoberta da atuação interna ou subjetiva da lei moral. Para além da faculdade superior de desejar, onde uma lei pura encontraria guarida, o que surge com o fundamento subjetivo e no modo como do sublime a consciência ascende ao suprassensível e, em consequência de, à lei moral, sobretudo está aí em jogo um processo de interiorização que faz emergir o sujeito ético, em que a autoridade exterior migra para o interior e, deste e neste, atua no convencimento da legitimidade e plausibilidade da lei.
Referências
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Paulo Quintela, Lisboa: 70, 2005.
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução Paulo Bezerra, São Paulo: Ícone, 2005b.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução Fernando Costa Mattos, São Paulo: Vozes, 2012.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de julgar. 2. ed. Tradução Valério Rohden e Antônio Marques, Rio de Janeiro: Forense, 2008.
KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Tradução Clélia Aparecida Martins, São Paulo: Iluminuras, 2006.
DELEUZE, Gilles. A filosofia crítica de Kant. Tradução Germiniano Franco, Lisboa: 70, 2009.
ROGOZINSKI, Jacob. O dom da lei – Kant e o enigma da ética. São Paulo: Discurso editorial, 2008.
Notas de autor