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Recepción: 13 Mayo 2022
Aprobación: 03 Octubre 2022
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v22i3.2974
Resumo: O presente artigo tem como objetivo indagar e talvez responder – com auxílio dos comentadores – dois pontos relevantes na lógica de Hegel. O primeiro, diz respeito à concepção de fundamentação de um sistema filosófico sem um começo: a ideia de um pressuposto incondicionado. O segundo, concerne à condiçõe das modalidades de necessidade e contingência numa lógica que se propõe absoluta. Como método absoluto, a ciência da lógica expõe o devir como condição do puro pensamento e Aufhebung [suprassunção] aparece como um conceito central, pois é o motor que impulsiona a dialética. Isso pode ser observado tanto na Ciência da Lógica (2016) – com as determinações do pensamento – como na Fenomenologia do Espiríto (2018) – com as figuras da consciência –. Observa-se que há uma relação entre os conceitos de Aufhebung, necessidade e início absoluto. Por tanto, a partir dessa relação, objetiva-se expor a condição das modalidades de necessidade e contingência num sistema absolouto.
Palavras-chave: Inicio absoluto, Necessidade, Contigência, Aufhebung, Devir, Lógica absolouta.
Abstract: This article aims to ask and perhaps answer – with the help of commentators – two relevant points in Hegel's logic. The first, concerns the conception of the foundation of a philosophical system without a beginning: the idea of an unconditioned presupposition. The second, concerns the condition of the modalities of necessity and contingency in a logic that proposes to be absolute. As an absolute method, the science of logic exposes becoming as a condition of pure thought and Aufhebung appears as a central concept, as it is the engine that drives dialectics. This can be observed both in the Science of Logic (2016) – with the determinations of thought – and in the Phenomenology of the Spirit (2018) – with the figures of consciousness –. It is observed that there is a relationship between the concepts of Aufhebung, necessity and absolute beginning. Therefore, from this relationship, the objective is to expose the condition of the modalities of necessity and contingency in an absolute system.
Keywords: Absolute beginning, Necessity, Contingency, Aufhebung, Becoming, Absolute logic.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo esclarecer duas questões relevantes na filosofia de Hegel. A primeira, diz respeito à fundamentação de um sistema filosófico sem um começo: a ideia de um pressuposto incondicionado. A segunda, concerne às modalidades de necessidade e contingência na lógica hegeliana. Abordarei tais questões à luz da Ciência da Lógica (2016) e da Fenomenologia do Espírito (2018), objetivando estabelecer uma conexão entre a concepção de um início absoluto e os conceitos de Aufhebung [suprassunção]2 e necessidade. Esclarecido o problema do início da filosofia, juntamente com a solução proposta por Hegel, pressuponho ser possível assimilar as modalidades de necessidade e contingência no sistema hegeliano de forma coerente. Até que ponto a dialética é determinada necessariamente ou até que ponto ela tem espaço para a contingência. Melhor ainda, em que sentido a contingência pode ser compreendida a partir da própria lógica interna do sistema. Creio que a partir da conexão dos conceitos de inicio absoluto e Aufhebung será possível compreendermos adequadamente a questão da necessidade e da contingência num sistema que se propõe absoluto ou ao menos clarificar algumas questões. Ademais, há um caloroso debate entre os comentadores hegelianos acerca das duas modalidades. Necessidade e contingência são conceitos importantes, pois circundam o âmago de dois dos temas debatidos em demasia na filosofia: liberdade e determinismo. Não obstante, vê-se que apesar da exaustiva quantidade de produções no que tange aos conceitos de liberdade e determinismo, pode-se considerar que há um terreno fecundo para novas abordagens. As distintas interpretações oferecidas por comentadores abrem espaço para novas interpretações referentes ao tema. Cirne-Lima (2012), Lardic (1994), Utz (2005) e Luft (2012, 2001) por exemplo, expõem compreensões distintas sobre o assunto.
Como iniciar um sistema filosófico sem um começo?
O propósito hegeliano, grosso modo, consiste na intenção de desenvolver uma filosofia do pensamento puro. Esta apareceria liberta de qualquer conhecimento externo que fosse estabelecido como fundamento para seu desdobramento. O projeto filosófico de Hegel não partiria de nenhuma pressuposição, tão somente desvelaria que o pensamento é conceito para si mesmo, e a partir de si mesmo se desenvolve. Para Iber, a centralidade da concepção de autofundamentação do pensamento na Ciência da lógica e sua proposta de supremacia perante as demais posições filosoficas norteiam o projeto hegeliano (IBER, 2020).
A autofundamentação da lógica, para Hegel, a torna uma ciência verdadeiramente crítica, porquanto o pensamento é responsável por realizar um autodesdobrar a partir de seu interior, sem com isto depender de qualquer mediação dada exteriormente, conforme comenta Iber “a Ciência da Lógica é, portanto, teórico-validacionalmente uma ciência sem pressuposto; e isso ela é, porque ela pode se fundamentar para Hegel reflexivamente a si mesma. ” ( 2020, p. 64.). Nesta perspectiva, a lógica de Hegel expõe que o pensamento é fundamento de toda filosofia verdadeiramente crítica e científica, pois é responsável por inquirir acerca de suas próprias pressuposições e o único capaz de refutá-las. De acordo com Luft (2012) “a fundamentação última só seria possivel tendo em vista o caráter estritamente circular do processo de justificação do Conceito” e mais “todos os pressupostos que constituem o ponto de partida da Lógica deveriam ser repostos e provados na inamencia do proprio desenvolvimento dialético.”(LUFT, 2012b, p. 102, grifo do autor).3
No tocante aos métodos tradicionais de filosofia, para Hegel, o problema diz respeito à determinação de um pressuposto do qual derivam os resultados do processo metodológico. Hegel (1995) considera que os métodos tradicionais possam principiar de pressupostos inadequados e reforça sua conjectura com a contundente afirmação acerca da escolha arbitraria do método por parte da filosofia. Destarte, – em decorrência de suas inadequações iniciais e arbitrariedades –, Hegel chega à conclusão de que o resultado último da filosofia recai numa incorreção. O filosofo demonstrou singular preocupação com a aplicação dos métodos tradicionais e com o conceito de verdade empregado pela filosofia.
Por sua vez, seu método lógico seria capaz de realizar uma exposição correta da verdade, pois seu método não somente é o “único verdadeiro”, como também é a conformidade do objeto e do conteúdo, “pois é conteúdo em si, a dialética que ele tem nele mesmo que o move progressivamente” (HEGEL, 2016, p. 57, grifo do autor). Com isso, ele não somente demonstrou preocupação com o início da filosofia, mas igualmente com o seu resultado. Ou seja, com todo o processo de desenvolvimento do pensamento filosófico, desde o momento mais abstrato expresso pela tríade inicial ser-nada-devir, ao seu ápice na Ideia absoluta. Hegel procurou eliminar qualquer método dualista estabelecendo como princípio para o desenvolvimento da filosofia o próprio pensamento ou o puro ser. Destarte, a lógica hegeliana é a ciência primeira da qual todas as outras se desenvolvem. O pensamento não depende de um pressuposto externo que sirva como ponto de partida para seu desenvolvimento. Pelo contrário, pressupõem-se e engendra mediante si todas as categorias necessárias para a exposição da totalidade da realidade.
Até aqui foram resumidos e explicados os problemas do início da filosofia, a saber, a arbitrariedade residente na escolha dos métodos e o presente dualismo. Também a proposta de Hegel em estabelecer o pensamento como fundamentação de todo o conhecimento científico. Contudo, não explicamos como iniciar um sistema filosófico sem um começo. Isso é mesmo possível? O que Hegel nos diz acerca do início da filosofia? Primeiramente, devemos ter em mente que a questão está imbricada ao conceito de verdade, porquanto ao se determinar um princípio, consequentemente, determina-se uma verdade. E se essa verdade já foi determinada, o que se está procurando afinal? Ou qual o conteúdo que se busca quando já partimos de um pressuposto determinado? De acordo com Hegel (1995), os métodos tradicionais não somente separavam o sujeito do objeto, como também abriam um abismo de distinção entre o ponto do qual se partiu e o resultado que se alcançou. Ou seja, o conteúdo do conhecimento obtido por tais métodos não poderia ser o conteúdo verdadeiro do conhecimento. À vista disso, Hegel (1995) entende que a verdade deve ser a conformidade de um conteúdo consigo mesmo, e escreve:
Quanto ao começo que a filosofia tem de se instaurar, parece igualmente que a filosofia em geral começa com uma pressuposição subjetiva, como as outras ciências. A saber: tem de fazer de um objeto particular o objeto do pensar. Como nas outras [ciências] esse objeto é o espaço, o número, etc. aqui [na filosofia] é o pensar [mesmo]. Porém o ato livre do pensar é isto: colocar-se no ponto de vista em que é para si mesmo, e por isso se engendra e se dá seu objeto mesmo. No mais, esse ponto de vista, que assim aparece como imediato, deve, no interior da ciência, fazer- se resultado; e na verdade o resultado último da ciência, no qual ela alcança de novo seu começo e retorna sobre si mesma. Dessa maneira a filosofia se mostra como círculo que retorna sobre si, que não tem começo – no sentido das outras ciências – (HEGEL, 1995, p. 58, grifo do autor).
Ora, mas isso não é o mesmo que afirmar que o pensamento é posto como ponto de partida, isto é, como pressuposto inicial de toda filosofia? Sim, no entanto, a grande diferença em relação aos métodos tradicionais reside na indeterminidade do puro pensamento, o que o torna absoluto. O puro pensamento não se desenvolve de um conceito definido e determinado como nos métodos tradicionais, pois “o ser puro constitui o começo, porque é tanto puro pensamento quanto é o imediato indeterminado, simples; ora, o primeiro começo não pode ser algo mediatizado e, além do mais, determinado.”(HEGEL, 1995, p. 175, grifo do autor). Ademais, o puro pensamento não necessita de um método externo que realize uma crítica acerca de sua validade. Não obstante, ele mesmo é capaz de sozinho realizar todas as etapas de um método, na medida em que se autopressupõe, autocontrapõe e autojustifica. Por conseguinte, seu resultado final é a ciência de que é conteúdo para si mesmo.
O início da filosofia deve ser absoluto. Isso significa que, conforme Hegel (2016), o início não deve pressupor nada, ser mediado por nada. Nele, não deve haver nenhum conteúdo ou determinação, muito menos algo externo que o fundamente. Antes, deve ser fundamento para si mesmo. Sobre isso, Cirne-Lima comenta: “Como fazer o começo? Filosofia que ser quer crítica, após Descartes e Kant, não pode fazer nenhum pressuposto determinado. Se o faz, deixa de ser crítica e fica dogmática.” (2012b, p. 22).
Partindo do que foi dito, podemos fazer as seguintes afirmações acerca da perspectiva hegeliana: para a filosofia ser verdadeiramente crítica, não se pode pressupor um início, pois ter-se-ia que escolher um dentre vários, o que provavelmente resultaria em equívocos. Também não se deve chegar até esse princípio por meio de outro – o método –, pois dentre tantos, qual se deve usar? Igualmente, o princípio não deve ter nenhum conteúdo, pois ter conteúdo já o torna um determinado. Por fim, ele não pode ser fundamentado por nada, pois o fundamento passaria a ser princípio.
Diante de tantas objeções para se estabelecer um princípio para a filosofia, o que nos restou? Como Hegel pretende resolver tal impasse? Como encontrar um princípio que satisfaça todas as exigências de Hegel, sem que com isto ele seja determinado? O que Hegel propõe? O filosofo explica que o início da filosofia é o ser puro, ou seja, o puro pensamento em sua total vacuidade. Ele similarmente afirma que é Deus antes da fundação do mundo, conformidade do método com o seu conteúdo, conciliação de sujeito e objeto. O início da filosofia é a própria verdade, pois só assim o resultado do seu processo será verdadeiro. Logo, a verdade é o puro pensamento, visto que dele toda a estrutura da realidade se desenvolve. Contudo, devemos lembrar que o puro pensamento não é inerte; ele é impelido pela Aufhebung a justificar cada categoria que emerge. Na Ciência da lógica, através das categorias inicias de ser e de nada, observamos que o pensamento se desdobra e avança, alcançando a ciência de que seu fim é igualmente seu início. Por meio da dialética ser-nada-devir compreendemos que o pensamento é um vir-a-ser. Por isso, o início é indeterminado, já que o puro pensamento abarca em si toda a dicotomia de forma conciliada, por conseguinte é absoluto. De acordo com Paredes-Martín:
Por consiguiente, el devenir se basa en la unidad del ser y la nada, que se presenta bajo una nueva perspectiva; el devenir supone también una transformación del concepto de ser, coherente con su status de ser solo comienzo o punto de partida del avance de la ciencia y, en tercer lugar, el devenir es posible en virtud de un concepto dinámico y positivo de la nada. Hegel se sitúa en este horizonte de pensamiento y, por así decirlo, convierte el devenir en el tercer elemento del marco conceptual desde el que se desarrolla la Lógica, un tercer elemento que es también el primero (2020, p. 137).
Hegel encontrou no devir a solução para o problema de um início determinado e escreve: “Pertence à natureza dialética imanente do próprio ser e do próprio nada o fato de que eles mostram sua unidade, o devir, como sua verdade.” (2016, p. 109). Na dialética ser-nada-devir, a transição do ser ao nada e do nada ao ser revela-se como movimento intrínseco e necessário da própria condição do pensamento. A indeterminação inicial do puro ser desvanece gradativamente, pois tudo que o pensamento pressupõe como verdade é dissolvido pela reflexão interna que este faz, de modo que continuamente e incessantemente uma nova pressuposição é posta. O pensamento é um vir-a-ser que está sempre sendo, e cada categoria que emerge demonstra o devir do pensamento. O devir contém todas as etapas do pensamento que foram pressupostas e suprassumidas, engendrando assim novas categorias “El devenir, como unidad del ser y de la nada, es el marco conceptual que constituye el comienzo de la Ciencia de la Lógica. (PAREDES-MARTÍN, 2020, p. 125, grifo do autor).
No devir, não há pressuposição, apenas a exposição de que o puro ser está se desenvolvendo e enriquecendo, vindo a ser um ser-aí e um algo. Cirne-Lima esclarece: “O devir pressupõe dentro de si sua qualidade e sua quantidade em movimento de autodeterminação; esta, dobrando-se sobre si mesma, se descobre como medida” (2012b, p. 24). Hegel demonstra porque o puro pensamento deve ser o início de toda filosofia, visto que o pensamento se mostrou como devir e o devir como um sempre sendo do pensamento; pode-se atestar que não há um algo determinado do qual o pensamento possa partir. Seu início é essa indeterminação que vai se autodeterminando por meio da crítica interna que o próprio pensamento faz de suas pressuposições. Nessa perspectiva, Hegel conseguiu estabelecer um sistema filosófico sem pressuposto determinado. O devir mantém toda a diferença entre sujeito e objeto, método e conteúdo. Todas as oposições até então problemáticas para a apreensão de um conhecimento verdadeiro foram superadas e conciliadas no devir. Segundo Paredes-Martín, “de este modo, Hegel entiende el comienzo de la filosofía como una unidad de contrarios que son a la vez idénticos y diferentes.” (2020, p. 133). Hegel demonstrou que é possível fazer filosofia sem um pressuposto determinado ao estabelecer o pensamento como fundamento, e este como devir. Sendo assim, Hegel satisfez suas inquietudes acerca do início da filosofia. Creio que o ponto dissonante em relação às pressuposições dos métodos tradicionais diz respeito não necessariamente à não pressuposição de um momento inicial, pois tal coisa Hegel o fez, mas, sim, de um pressuposto que que não foi mediado por nenhum algo que não ele mesmo. Se essa fundamentação deve ser considerada arbitrária como nos demais métodos, ou se a partir dela se desenvolve de fato toda “ciência verdadeiramente crítica” como propunha Hegel, é outro assunto, o qual pretendo adentrar posteriormente. Por ora, atentemo-nos ao fato de que Hegel estabeleceu uma fundamentação filosófica, a qual procedeu mediante um conceito incondicionado: o devir.
Fenomenologia do espiríto, figuras da consciência e o conceito de ciência
Aqui, proponho deixarmos – por ora – a Ciência da lógica e adentrarmos à Fenomenologia do espírito e o conceito de ciência. A segunda precede a primeira e se propõe como introdução a uma filosofia absoluta e científica, a saber, a Ciência da lógica. No prefácio da Fenomenologia do espírito, Hegel comunica que realizará a exposição da experiência da consciência ao logo do seu percurso progressivo de autorrealização. Ele fará uma apresentação da consciência enquanto fenômeno, sua exteriorização no mundo sensível. Hegel igualmente informa que tal exposição procederá da consciência em sua própria manifestação. Contudo, ele ressalta que “seu entrar em cena não é ainda a ciência realizada e desenvolvida em sua verdade” (HEGEL, 1992, p. 32). Por isso, a consciência precisa liberta- se “dessa aparência” de verdade e alcançar, neste itinerário, a verdade efetiva, ou seja, seu conceito de ciência. Sobre isso, ele escreve:
O que esta “Fenomenologia do espírito” apresenta é o vir-a-ser da ciência em geral ou do saber. O saber, como é inicialmente – ou – o espírito imediato é algo carente- de-espírito: a consciência sensível. Para torna-se saber autêntico, ou produzir o elemento da ciência que é seu conceito puro, o saber tem de se esfalfar através de um longo caminho (HEGEL, 2014 p. 38, grifo do autor).
O pensamento indeterminado apresentado na lógica se autodesenvolveu na forma do conceito, neste momento é consciência pura e precisa pôr-se para fora. Carece de exteriorizar- se para além do pensamento para, enfim, ser um algo efetivo no mundo. O processo narrado por Hegel é a dialética do progredir4 do espírito no palco do tempo histórico. Por isso, é correto afirmar que a Fenomenologia do espírito é o relato da história de autodesenvolvimento do espírito finito. A obra traça as linhas do espírito carente, que decide filosofar e lança seus olhos ingênuos para a certeza imediata do mundo sensível. Na Fenomenologia, o sujeito individual passará pelo conflitante embate entre a certeza da verdade de si mesmo e a certeza da verdade de um outro. Mas, como isso ocorre? Retornemos por um instante à Ciência da lógica. Foi afirmado que, na lógica, Hegel expôs o pensamento em seu autodesenvolvimento; cada categoria que emerge expressava o progredir dialético do puro pensamento. O mesmo ocorre na Fenomenologia do espírito, mas nesta temos o que Hegel denomina “figuras da consciência” – semelhante às categorias do pensamento da lógica –; estas são momentos de desenvolvimento da consciência: certeza sensível, percepção, força e entendimento, etc. Nestas, a consciência comum passará pela experiência de se deparar com outro que não ela: o objeto. Por conseguinte, cada figura expõe momentos do desdobramento e da suprassunção da contradição que é posta entre consciência e o objeto visado.
O processo de desenvolvimento do espírito finito ou do indivíduo que decide filosofar abre início a uma série de figurações da consciência que desencadeará um processo dialético histórico, sistemático e necessário. A partir disto, as histórias dos indivíduos convergem para o desenvolvimento do espírito absoluto e, de acordo com Vaz, “o caminho para a ciência deve penetrar na significação das iniciativas de cultura que traçam a figura do mundo histórico colocado sob o signo da própria ciência e que nela deve decifrar seu destino” (2014, p. 20). A dialética das figuras da consciência resultará no ápice do conhecimento, isto é, no saber absoluto como resultado consumado de toda a experiência da consciência. Neste, todas as não-verdades que a consciência confrontou são suprassumidas, e esta abraça todos os saberes que pensava serem exteriores a si. O exame que a consciência faz procedente de sua experiência no mundo a levará ao entendimento de que toda a contradição encontrada a partir da oposição da certeza sensível é uma contradição existente nela mesma, portanto somente ela pode apaziguar tal contradição. Por conseguinte, a história é a história do espírito que se desenvolve, despindo-se de toda forma de aparência, para enfim alcançar seu saber de si mesmo, ou seja, a ciência de si. Sendo assim, as representações culturais, religiosas e governamentais são consideradas a exteriorização da consciência-de-si. Estas representações marcam, de acordo com Hegel (2008), o processo histórico progressivo, em que cada etapa histórica é um estágio de evolução do espírito que se desdobra a partir de cada consciência individual. O conceito de ciência não é uma mera “consciência”, antes uma autoconsciência adquirida através de um logo percurso histórico de autorrealização. O espírito finito refletiu acerca de suas representações e retornou a si com o conhecimento de que tais representações não passam de sua própria exteriorização. Segundo Kojéve:
A Fenomenologia (em seus sete primeiros capítulos) mostra a oposição entre a consciência e o objeto, e só descreve a consciência; o aspecto metafísico da Fenomenologia descreve a consciência como reveladora do objeto, mas não o próprio objeto revelado pela consciência. Trata-se apenas de compreender como pôde nascer a identificação da consciência com o objeto que caracteriza a ciência. E compreender isso é rever todas as etapas da revelação do objeto por uma consciência que se sente ainda oposta a ele (2002, p. 299, grifo do autor).
A verdade do espírito não é a consciência como suposta verdade, mas sim todo o desdobrar desta. Dito de outro modo, a verdade do espírito é consumada após um longo trajeto de autoexame crítico das figuras da consciência. A ciência do espírito é a conciliação plena deste com o objeto. Não somente isso, é a conformidade absoluta do espírito com o mundo sensível e todas as suas formas de representações, bem como o saber de que não há nenhum outro além dele. Como resultado necessário do processo dialético, o espírito terá a total ciência ou o saber absoluto de que toda a experiência narrada partiu do desdobramento de si mesmo, “seu movimento, que nesse elemento se organiza em um todo, é a Lógica ou Filosofia especulativa” (HEGEL, 2016, p. 44, grifo do autor).
À vista do que foi exposto, o conceito de ciência pode ser compreendido na imanência do saber de si que o espírito alcançou – necessariamente – em decorrência do autodesdobrar dialético. Tal saber suprassume toda e qualquer oposição que se imponha como um outro para a consciência. Por conseguinte, o espírito absoluto – última figura exposta na Fenomenologia – constitui-se na concordância, e suprassunção, de todas as consciências individuais. No espírito absoluto estão conciliados o saber de si e o saber para si da consciência exteriorizada, pois “a consciência, ao abrir caminho rumo à sua verdadeira existência, vai atingir um ponto onde se despojará de sua aparência: a de estar presa a algo estranho, que é só para ela, e que é como um outro” (HEGEL, 2016, p. 79).
Doravante, a partir do conceito de ciência retornemos à Ciência da lógica. Já foi declarado que a Fenomenologia do espírito consiste numa pretensa introdução ao que Hegel considera uma filosofia científica e verdadeiramente crítica. Em consequência, esta deve abrir caminho rumo à ciência verdadeira. Na lógica foi revelado que o conhecimento científico verdadeiro deve ser aquele em que método e conteúdo estão conciliados. Hegel exprimiu isso por meio das categorias do puro pensamento. Contudo, para que a lógica fosse a fundamentação do sistema, Hegel, de antemão, desvelou a contradição imanente da consciência ao expô-la em sua manifestação fenomênica. O caráter de autoexame, que visa validar as determinações do pensamento na lógica, foi precedido pelo autoexame realizado nas figuras da consciência. Os princípios de autojustificação e autovalidação foram pressupostos como condição intrínseca da consciência fenomênica. De acordo com Luft:
A filosofia – entendida por Hegel como idealismo absoluto – só poderá legitimar-se se provar sua própria confiabilidade a partir do confronto imanente com as diversas formas de saber disponíveis. Sua legitimação tem de brotar da crítica imanente do saber que se pretende alternativo. O que significa: não partimos do apelo a um fundamento suposto como seguro, mas do diálogo com certo saber (qualquer que ele seja) que se pretende legitimo a partir do apelo a algum pressuposto, sujeito a exame. Se tal pressuposto não resistir à crítica interna, mostrar-se-á incapaz de reivindicar a pretensão de ser princípio da filosofia. Na verdade, a prova via crítica imanente deverá mostrar que nenhum dos elementos propostos pelas formas alternativas do saber, examinadas na Fenomenologia, é fundamento no sentido estrito do termo, pois todos mostrar-se-ão suscetíveis de modificação, alteração, no contexto do devir fenomenológico. São apenas pressupostos entre outros pressupostos, considerados fundamentos de uma perspectiva, mas logo esvaindo dessa pretensão ao sofrer os impactos da dúvida: na caminhada fenomenológica, o fundamento vê-se dinamizado (2012a, p. 145-146, grifo do autor).
O sistema de Hegel revelou que a realidade é dialética, ao revelar a natureza dialética da consciência. Com efeito, ao demonstrar que todo fundamento é dialético, ele nos introduz a uma lógica igualmente dialética: a ciência da lógica. Mas, se o caráter do método hegeliano se desvelou dialético, em que sentido pode-se compreender a Fenomenologia como introdução à Lógica? A Lógica é dialética pois a realidade se mostrou dialética, ou a realidade é dialética pois a Lógica é dialética? Quem precede quem, a ontologia exprimida na Ciência da lógica ou a epistemologia expressa na Fenomenologia do espírito?
Na Introdução à Ciência da Lógica, é por três vezes salientado o facto de que a oposição da consciência está ultrapassada, [nomeadamente pela Fenomenologia do Espírito] e que o facto de partir do puro saber, do puro conceito, não é algo de assumido arbitrariamente ou meramente asseverado, mas foi justificado, foi demonstrado como o resultado necessário da Fenomenologia do Espírito” (VIEWEG, 2020, p. 27, grifo do autor).
Para abordar tal questão devemos ter em mente dois pontos: a pretensa intenção de Hegel de superar o dualismo cético e dogmático, e a natureza dialética do método. Para resolver o problema do dualismo e sua insuficiência crítica, Hegel demonstrou que a filosofia não pode iniciar por nenhum pressuposto determinado. Partindo disso, a solução viável é não começar por nada externo, e sim pelo próprio pensamento, o qual se revelou como devir dialético. O caráter dialético do método supera a não suficiência científica dos métodos dualistas. Com isso, na perspectiva hegeliana, foi resolvido o problema epistemológico que tanto o incomodava, a saber, a fundamentação de uma teoria do conhecimento sem um pressuposto determinado. Ao estabelecer o devir como fundamento, bem como expor seu movimento essencial de suprassumir-se, Hegel desenvolveu a concepção de um conhecimento incondicionado, portanto absoluto. Por isso, partindo do devir e intrinsicamente da Aufhebung como autofundametação do sistema, torna-se evidente que Ciência da lógica e Fenomenologia não podem ser compreendidas separadamente. Se assim fosse, estaríamos tratando de dois sistemas, logo o dualismo não seria superado e o trabalho hegeliano teria sido vão.
Dito isso, trazemos o conceito de ciência como chave para compreendermos tal questão. O entendimento adquirido pela consciência ao longo de sua experiência é de que a verdade é seu conceito de ciência. Ao percorrer seu trajeto, a consciência se liberta de sua aparência de verdade caminhando progressivamente rumo ao não-fenomenal, ao seu momento lógico. A ciência expressa a experiência que a consciência experimenta na certeza sensível e, ao fim do processo, a obtenção da ciência desta experiência. Dito de outra forma, a ciência compreende de modo efetivo todos os momentos do processo como sendo seus. Não obstante, a ciência da consciência se desenvolve por meio de sua aparição fenomênica, mas sua concretude e efetivação somente se consolidam ao fim de sua marcha, quando se despe de toda aparência de verdade e retorna ao seu momento abstrato ou puro, “a experiência que a consciência faz sobre si mesma não pode abranger nela, segundo seu conceito, nada menos que o sistema completo da consciência ou o reino total da verdade do espírito.” (HEGEL, 2016, p. 79). Ao atingir o conceito de ciência, a consciência penetra o absoluto lógico, porquanto ao fim do processo a ciência da consciência revelou que pensamento e realidade estão unificados numa identidade conciliada pelo devir. Por isso, toda diferença expressa nas figuras da consciência são apenas sombras da verdade chegando ao conhecimento de que não há de fato oposição alguma. Segundo a interpretação de Utz:
A partir disso já fica claro qual será o topos, o “lugar” da ciência: só pode ser o espírito, o pensar, porque essa é a única realidade que pode efetuar um auto- relacionamento pleno. A identidade visada só pode ser alcançada se seus momentos, desde o início, encontram-se numa unidade, i.e., se a diferença entre eles é imanente a uma identidade (2010, p. 80, grifo do autor).
Isso posto, Ciência da lógica e Fenomenologia do espírito devem ser compreendidas em sua inter-relação. O fim do desdobramento da consciência recai no momento lógico como verdadeira ciência de si, o saber absoluto. Esse, por sua vez, somente foi alcançado porque o pensamento na forma da Ideia exteriorizou-se no mundo, saiu de si para experimentar o mundo sensível. Lógica e Fenomenologia revelam que o resultado do desdobramento do pensamento conciliado com o desdobramento da consciência resulta na síntese integradora de todos os momentos da dialética: a Ideia absoluta. Na verdade, ela não resulta meramente como um aparecer final distinto do começo. Antes, revela que o fim é igualmente o início, porém de modo desenvolvido. Dessa forma, o método dialético supera todo o dualismo. Primeiro, porque ele não é um pressuposto que “medeia” o pensamento, mas que foi revelado como intrínseco ao pensamento. Segundo, porque o método concilia toda oposição entre pensamento e realidade, pois uma vez que todo o sistema aponta para a conciliação plena destes, o método desvela seu caráter identitário. Por fim, o método concilia ontologia e epistemologia, uma vez que ser e conhecer estão conciliados no devir.
Necessidade ou contingência ?
Ao longo do texto, foi exposta a patente presença da Aufhebung tanto nas determinações do puro pensamento quanto no desenvolvimento das figuras da consciência. Diante disso, concluiu-se que aufheben [suprassumir] é condição necessária para o desdobramento de todo sistema hegeliano. Uma vez que a lógica se revelou com devir, Aufhebung foi consolidada como força motora intrínseca ao próprio conceito de devir. Contudo, ainda nos resta uma questão a ser esclarecida: o papel das modalidades de necessidade e contingência no sistema hegeliano.
A natureza dialética do método e a indiscutível presença da Aufhebung compelem ao entendimento de que todo o movimento havido no ser é movimento necessário. Ademais, Hegel deixou pré-determinado qual deve ser o resultado do desdobramento em geral, a saber, a Ideia absoluta. Dito isso, por ser condição imanente do ser autodesdobrar-se e autodesenvolver-se, este aponta para um trajeto cujo fim almejado revelou-se como objetivo certo. Com efeito, pode-se asseverar que a lógica dialética tem um propósito, e a verdade concreta só pode ser a satisfação dessa falidade em sua totalidade. De acordo com Hegel “o verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se implementa através de seu desenvolvimento. Sobre o absoluto, deve-se dizer que é essencialmente resultado; que só no fim é o que é na verdade (2016, p. 33, grifo do autor).
A explícita necessidade dialética da lógica em alcançar um ponto específico, para assim satisfazer seu desígnio – atingir sua verdade concreta –, a priori aparenta atribuir um caráter determinista ao método. Conforme comenta Hegel: “O caminho pelo qual se atinge o conceito do saber torna-se igualmente, por esse movimento, um vir-a-ser necessário e completo” (2016, p. 43). O pôr-se para fora do espírito na natureza meramente desvela que esta é emanação do espírito, logo não é um outro. Por isso, o espírito pode retornar a si, pois a natureza é necessariamente espírito.
Na Ciência da lógica, Hegel declara que a progressão do conceito é necessária, assim como é necessária a progressão do espírito exposta na Fenomenologia. O conceito lógico se mostrou como intrínseco e necessariamente compelido a desenvolver-se, o que podemos constatar na interpretação de Luft (2012b, p. 98) quando afirma: “A necessidade absoluta emana do caráter incondicionado do processo de autodeterminação ou autofundamentação do Conceito”. Por outro lado, o próprio Hegel aponta para a presença de um momento de contingência na lógica, quando comenta que o vir-a-ser do espírito se desenvolve “na forma do livre acontecer contingente” (HEGEL, 2014, p. 530, grifo do autor). Segundo Hegel, é próprio do conceito ser livre e, por isto tem em sua liberdade a verdade da necessidade. Destarte, mesmo que o espírito precise necessariamente enriquecer para sair da sua aparência e entrar no reino da verdade, este realiza tal ação livremente. Já que o ato de sair de si do espírito é a consumação de sua liberdade (HEGEL, 2014). A liberdade do Conceito posta por Hegel comunica que a contingência – aparentemente – seria uma condição da própria necessidade. Embora seja necessário o desdobrar da lógica, esta o faz em sua total liberdade. Com base nisso, segundo a interpretação de Lardic (1994) há sim contingência no método dialético, e mais, há “uma verdadeira necessidade da contingência” (LARDIC, 1994, p. 96). Ele nos explica melhor tal afirmação quando escreve:
Hegel reconhece a necessidade da contingência para a própria necessidade, enquanto, habitualmente, quando se toma a contingência como objeto da análise filosófica, é para mostrar que ela se reduz ao necessário, e que o ser contingente é, na verdade, necessário em si. A filosofia hegeliana é a única que afirma essa duplicação da modalidade: uma necessidade da contingência, e é importante compreender bem o alcance disso (LARDIC, 1994, p. 96-97).
Segundo o Lardic (1994), necessidade e contingência são modalidades que não devem ser compreendidas numa mera relação de oposição, mas a partir da própria reflexão dialética. Para ele, “é preciso compreendê-las pela mediação dialética que testemunha a própria reflexão essencial delas uma na outra” (1994, p. 98, grifo do autor). Lardic também afirma que o ser absoluto é ser efetivo e a realidade não é meramente construída a partir do ser, mas sim como emanação deste. Isso não deve ser de outro modo, pois ao se postular a realidade como construída a partir de conceitos esta seria pressuposta por algo, o que retornaria ao dualismo. Nessa perspectiva a dialética é a solução, pois mantém a diferença e a identidade do ser e da natureza, de modo que a negação é a verdadeira positividade.
Destarte, “o contingente (zuffallig) é o que está fadado a cair (zu fallen), não cansa de nos lembrar Hegel. Essa existência carregada de negatividade constitui, portanto, uma das ocasiões privilegiadas para o exercício da dialética” (LARDIC, 1994, p. 95, grifo do autor). Ainda para ele, o absoluto concreto é a realização das modalidades de necessidade e contingência. Isso é assim pois é a negação dialética o motor do processo, porquanto a negação é o que abre o verdadeiro espaço para o ser contingente. Logo, a necessidade da dialética partiu da contingência da negação absoluta, do não ser do absoluto enquanto negação da negação de si. O absoluto contém a verdadeira contingência a partir da negação da negação. Lardic nos esclarece sua interpretação quando afirma:
É esta negação da negação que é, na verdade, o motor do processo. Se a negação primeira é a determinação que o infinito se dá, o finito está, desde o início, fadado à negação que consiste em ser outro que não ele mesmo, já que ele é o outro do si que é o infinito. Ele está, portanto, minado em seu próprio fundamento, e é porque o infinito passa para o finito que este trespassa. É essa a expressão de um autêntico pensamento da contingência (LARDIC, 1994, p. 96).
Não obstante, acerca das modalidades, pode-se notar que a própria contingência estaria limitada ao caráter necessário do método, o que para Cirne-Lima seria um problema. Este, em sua interpretação, testifica que o caráter determinista do método aponta para uma das grandes objeções no que tange à dialética hegeliana. Tal objeção reside precisamente no que Cirne-Lima acredita ser a ausência de liberdade em Hegel. Para ele, embora Hegel utilize com frequência o termo liberdade, ele não deixa claro seu conceito. Além disso, o projeto filosófico hegeliano tinha como meta superar toda dualidade filosófica, o que inclui a oposição entre necessidade e contingência. Contudo, de acordo com Cirne-Lima (1012), Hegel não consumou o que pretendia em seu sistema. Ao invés de conciliar as modalidades acabou por negligenciar a contingência, eliminando do sistema qualquer possibilidade de liberdade. O problema observado por Cirne-Lima diz respeito especificamente à concepção de liberdade em Hegel. De acordo com ele, falta clareza quanto ao uso do termo, o qual em alguns momentos expressa o conceito de liberdade no sentido agostiniano de livre arbítrio, e em outros assume o sentido kantiano. Todavia, o âmago da questão reside no fato de que a liberdade em Hegel, de modo geral, pode ser compreendida como dependente do conceito de necessidade. O conceito de liberdade que se pode extrair da lógica é meramente liberdade que compreende seu caráter necessitário, portanto não é liberdade alguma. Além disso, o fato de a natureza emanar necessariamente da lógica exclui todo e qualquer caráter contingente desta. Pois, a natureza está submissa ao próprio processo necessário de emanação da lógica.
A lógica engendra necessariamente a natureza, e, já por isso, essa natureza não tem espaço para a contingência e a verdadeira historicidade, tornando todo o sistema uma construção determinista e necessitária. A passagem da lógica para a natureza é um movimento logicamente necessário, pensa e diz Hegel, de sorte que a natureza assim originada é, ela mesma, produto necessário de um processo inexorável (CIRNE-LIMA, 2012a, p. 77).
O círculo dialético aponta sempre para o caminho de autodesenvolvimento, e o resultado consumado é necessariamente um novo recomeçar. O fim é o início desdobrado que retorna para o seu início, e assim, mais uma vez, se autodesdobra. Esse círculo dialético necessário revelado na lógica é o que dissolve a presença da modalidade da contingência. Por consequência, atribui à filosofia de Hegel um caráter determinista. Pois, o fim alcançado ao longo do processo é necessariamente o retorno ao ponto do qual partiu. Dito de outro modo, a natureza necessariamente retorna ao seu momento não fenomênico, ao seu momento lógico. Diante disso, Cirne-Lima interpreta que não há espaço para a liberdade no método lógico hegeliano. Tanto a Lógica como a Fenomenologia expressam o caráter necessitário e determinista do método. O sistema em sua totalidade expressa de antemão que o resultado do seu autodesdobramento deve ser necessariamente o retornar ao seu início. O pensamento puro deve necessariamente atingir o conceito de Ideia, pois é de sua essência se autodesenvolver e, da mesma forma, ocorre com a consciência. Esta deve historicamente autodesdobrar-se e autorrealizar-se em seu saber de si do espírito. A história da humanidade é um progresso teleológico rumo ao saber de si e para si do espírito. Logo, é uma história determinada pelo próprio movimento de autodesenvolvimento inerente ao espírito. Com isso, segundo Cirne- Lima, “liberdade transforma-se, para Hegel, em consciência da necessidade” (2012b, p. 78)5.
Podemos observar um diálogo concordante entre Cirne-Lima e Luft no que se refere a uma interpretação que desvela o caráter circular e determinista do método – embora apresentem soluções distintas – . Segundo Luft (2012b), o caráter circular do método aponta para uma teleologia do incondicionado. Para ele, a necessidade lógica do método demonstra que o início do processo deve necessariamente culminar na consumação absoluta do Conceito. O caráter incondicionado de autofundadentação do Conceito deverá desembocar obrigatoriamente na plenificação do lógico. Assim, de acordo com Luft (2012b, p. 99, grifo do autor):
O movimento do Conceito é circular porque todas as três fases mencionadas – as rodas formal, real e absoluta – são do início ao fim o seu processo de autodeterminação; ele é teleológico porque o Conceito inicia em sua manifestação mais pobre e distanciada de si, e tende ao fim de sua plena realização.
A consumação do resultado do processo dialético conduz à categoria da Ideia absoluta como último estágio do desdobramento do pensamento. Esta, enquanto categoria integradora e sintetizadora de todos os momentos do método lógico, emergiu como condição necessária de toda a suprassunção dada no desdobrar do pensamento. Na Ideia absoluta todas as contradições expostas em cada categoria do pensamento e em cada figura da consciência foram suprassumidas, pois nela há o saber de si do pensamento (conceito) e do espírito (consciência) conciliadas na totalidade do processo. Ao fim, a Ideia absoluta tem ciência de sua contradição imanente e sabe que somente ela pode apaziguar toda a contradição existente. Portanto, ela é verdade para si. No entanto, se seguirmos as etapas lógicas expostas e aplicarmos a concepção de uma suprassunção necessária à categoria da Ideia absoluta, não deveria emergir, necessariamente, da própria Ideia absoluta uma nova categoria? Se sim, a Ideia não seria completa, nunca se satisfaria. Logo, não poderia ser considerada a categoria última, integradora e sintetizadora de todos os momentos da lógica. Se não, se dá Ideia absoluta não emergir, necessariamente, uma nova categoria, o conceito de devir seria desmanchado, pois a última síntese seria a conciliação plena. Logo, o devir como movimento intrínseco do pensamento seria anulado. Sendo a presença da Aufhebung o que garante o caráter autocrítico do método, considerar uma última categoria como conciliação plena seria o mesmo que destruir todos os conceitos postos anteriormente, como o de Aufhebung e devir. Nesse ponto, a lógica perderia sua dimensão crítica. Tal necessidade imanente de concretude plena do conceito ao fim do seu processo determina de antemão o exato “lugar” que a lógica deve alcançar. Esse fato, segundo Luft, suscita um grande problema ao sistema hegeliano. Devido à condição autocrítica do conceito, que prova e repõe seus pressupostos na imanência do seu desenvolvimento interno (LUFT, 2012b), o fim do processo, logicamente, não deveria atingir uma consumação plena. Porque, assim, ele iria se autocontradizer como um todo, e o sistema entraria em colapso.
Em contrapartida às interpretações de uma lógica da circularidade expostas por Cirne-Lima e Luft, Utz (2005) expõe o conceito de uma dialética do acaso. Ele não rejeita a necessidade lógica do método absoluto, mas vê no Aufbruch [iniciar-se] a possibilidade do novo a partir de uma dialética do acaso. Segundo Utz:
Em primeiro lugar, Aufbruch, compreendido como “iniciar-se”, tem o sentido de começar: na totalidade do Imediato e do Mediato na sua diferenciação originária, principia a dialética; em segundo lugar, Aufbruch tem o sentido de romper, de quebrar ou de arrombar (como se faz com uma fechadura e.g.): no “iniciar-se” a primeira unidade e simplicidade é rompida (é bom lembrar aqui, que mesmo para Hegel essa unidade primeira pode ser aquela de uma Aufhebung – quando o procedimento começa com o resultado de um procedimento metódico anterior. Assim o Aufbruch automaticamente tem o poder de romper não só alguma unidade imediata, mas exatamente aquela da Aufhebung. Então o “iniciar-se” tem o poder de pôr em questão a Aufhebung, lhe é eqüipolente.). Em terceiro lugar, o termo Aufbruch tem também o sentido de abrir-se e assim revelar algo, de mostrar algo novo ou dar luz a uma realidade nova (como e.g. faz o botão de uma flor) (2005, p. 181-182).
Em suma, Utz explica que Aufhebung é responsável por suspender e conservar o “imediato” e a “mediação”, mas que a suprassunção enquanto momento superior ao momento anterior não é uma garantia necessária. Nessa perspectiva, aparentemente há uma quebra no método, em que a Aufhebung parece não ser suficiente para seu desenvolvimento, para que esse avance. Pois, da suprassunção emerge a possibilidade de um novo iniciar-se, e esse novo iniciar-se se mostra como acaso. Em cada suprassunção o seu resultado seria um novo começo, e de todo novo começo, uma nova possibilidade. Utz mantém a absolutização do método; no entanto, ao invés de uma suprassunção que move e eleva suas etapas, ele propõe uma quebra no momento da suspensão de cada estágio lógico. Assim, após ser postulada uma nova categoria, o que há é um novo iniciar-se [Aufbruch], o qual conta com a possibilidade do acaso. Nessa proposta, não há uma determinação necessária que engendra necessariamente uma nova categoria, como no método original. Aufhebung abre espaço para Aufbruch, e a cada Aufbruch há uma nova possibilidade. Apesar do novo iniciar proposto por Utz, o método ainda permanece em seu caráter absoluto. Segundo ele, o acaso que está no âmago de cada Aufbruch obedece à determinadas leis lógicas, portanto, não deve ser compreendido como um caos, mas como condição que mantém previsões dentro das possibilidades históricas.
Diante do que foi exposto, podemos observar que as interpretações dos comentadores no que concerne às modalidades de necessidade e contingência não são consenso. São diversas as possibilidades de interpretação no tocante ao tema, desde a necessidade da contingência exposta por Lardic, passado pela lógica da circularidade necessária e pela dialética do acaso, apresentadas por Cinre-Lima, Luft e Utz, respectivamente. A interpretação de Lardic propõe que, através de uma dialética negativa do absoluto, pode-se oferecer uma solução de conciliação das modalidades por meio da negação da negação, estabelecendo a primeira negação como o momento para a contingência no método. A conciliação recai na dialética negativa entre ser e natureza; todavia, o espaço para a contingência reside no início lógico-ontológico do método, a saber, na primeira negação determinada do absoluto, porém não se estende ao seu desenvolvimento. O desenvolvimento lógico é condição necessária da contingência inicial, mas não aparece ao longo do processo. Logo, a explicação de Lardic não soluciona o problema da contingência no que diz respeito à história, pois abstrai dessa seu caráter contingente.
No tocante à interpretação de Utz, a inserção da ideia de um novo “iniciar-se” a cada etapa lógica e a presença do acaso como cerne dialético rompe como a própria natureza do método hegeliano. O momento da contingência é posto no próprio desdobra-se da lógica, de modo que, há uma ruptura no emergir de cada categoria que Aufhebung não é capaz de sustentar ou até mesmo vislumbrar como momento elevado. Pois, o “iniciar-se” causa uma quebra entre cada categoria, o que significa o desmanche da própria ideia de método absoluto. Em relação às interpretações de Cirne-Lima e Luft, creio serem as mais coerentes com o sistema de Hegel. Partindo dessa coerência, ambos apresentam objeções problemáticas para o método.6
Início absoluto, Aufhebung e necessidade
Ao longo do artigo procurei demonstrar como Hegel “realizou” seu projeto de estabelecer para a filosofia um começo incondicionado, não determinado e livre de qualquer fundamentação precedente. Ao estabelecer o pensamento enquanto início de todo pensar filosófico, e este enquanto devir dialético, Hegel “livrou-se” de toda pressuposição determinada e arbitrária7. Pois, em sua perspectiva, não foi ele quem definiu o pensamento como fundamento, muito menos como devir, tampouco como absoluto, mas o próprio pensamento revelou-se como tal. Assim, conforme comenta Pippin:
O ápice da posição teórica de Hegel é uma doutrina sobre o que ele chama de "o Absoluto". Esta é uma posição que deve servir à mesma função que a doutrina platônica das Idéias, o Deus Cristão, e as descrições de substâncias de Descartes, Leibniz e Spinoza. Podemos dizer que, para Hegel, o Absoluto é o Conceito, onde ele entende a conceitualidade em si, não como algum conceito em particular, mas um conceito entre muitos (2019, p. 35, tradução nossa)8.
Com base na manifestação fenomênica da consciência e de suas figurações, o projeto de Hegel expôs que a realidade é dialética. Por sua vez, esta revelou que o Conceito é igualmente dialético. Dessa forma, ao exteriorizar a progressão dialética da consciência comum através do pôr-se para fora, Hegel desvelou a capacidade inerente que a consciência tem de autodesdobrar-se. Além disso, a condição de autodesdobramento da consciência a conduz necessariamente ao saber de si e para si, adquirido no fim do processo, como afirmado na Fenomenologia do espírito. Doravante, Hegel evidenciou que a ciência da consciência só pode ser Conceito para si mediante si. Dessa forma, a consciência retorna ao Conceito, revelando que todo o desdobrar proveio dele – Ciência da lógica.
Com isso, a realidade é Conceito e este encontra sua verdade absoluta na consumação do vir-a-ser de sua aparição fenomênica. O mesmo retorna a si completo e ciente de que seu trajeto desvelou sua marcha inexorável rumo ao saber absoluto. Dito isso, o Conceito revelou, por meio de sua aparição fenomênica, que ele é essencialmente movimento, processo, um vir-a-ser incessante, isto é, o Conceito é devir. Isso quer dizer que todas as determinações postuladas na lógica dialética aparecem como devir – ser, nada, vir-a-ser, ser- aí, algo, outro, ser para si, ideia, consciência, consciência-de-si, saber absoluto. Todas essas determinações são suprassumidas e sustentadas no devir dialético. É partindo da concepção do devir como início indeterminado que Hegel acredita ter encontrado a solução para o início de uma filosofia sem pressuposições determinadas. Sua lógica é indeterminada, contudo é realidade efetiva, porque no devir o pensamento é sempre um atualizar-se.
A reivindicação hegeliana que serve como cerne da crítica à tradição filosófica diz respeito precisamente ao estabelecimento do protagonismo do pensamento. O qual não apenas constitui-se em um mero movimento abstrato, mas como constituinte da realidade enquanto emanação do puro pensamento. Para Hegel, o momento contingente do método consiste na independência do pensamento que não é condicionado a nenhum outro. O devir é a liberdade do atualizar-se imanente do Conceito. Pippin nos esclarece adequadamente esse ponto:
Este tipo de reivindicação tem várias dimensões em Hegel. Ela se refere à Lógica como a pura autodeterminação do pensamento pelo pensamento (sendo assim autônoma, totalmente autodeterminante), e abrange uma descrição da lógica da liberdade e de sua realidade. Isto é, a liberdade no sentido da autodeterminação é, embora um conceito puro, real. O ponto culminante do curso da demonstração na Lógica maior é a lógica do Conceito, sobre a qual Hegel diz que tendo chegado a este reino, chegamos ao reino da subjetividade e da "liberdade" (SL21.409) (2019, p. 19, grifo do autor, tradução nossa)9.
Diante do que foi exposto, podemos afirmar que o devir aparece como resolução dos problemas ontológicos e epistemológicos da tradição filosófica tão criticada por Hegel. Mediante o devir, Hegel acredita não somente ter concebido uma filosofia sem pressupostos, como também julga ter conciliado uma teoria do ser e uma teoria do conhecimento. Sobre isso, Schlitt comenta:
Enquanto momento da verdade, o devir traz consigo, para Hegel, a estrutura dialética fundamental da automediação que o próprio Conceito prova ser, através da posição de seu outro. Entretanto, para Hegel, o devir é paradigma dessa estrutura na forma de instabilidade lógica. Ela afunda novamente na imediatidade do ser, que, uma vez enriquecido pela superada presença do nada, é agora a categoria lógica do ser determinado, Dasein. A realização final da estrutura da verdade automediadora, a Ideia absoluta, é o devir em sua plena concretude lógica. Ela é a verdade completa do Conceito automediador em seu retorno, no interior da esfera da lógica, à imediatidade enriquecida do ser inicial e, na esfera da alteridade externa, à imediatidade da natureza. Do devir à Ideia, todas as determinações lógicas e especialmente os terceiros membros das tríades lógicas são, à sua maneira e em seus próprios níveis, formas cada vez mais concretas de devir. O primeiro desses devires cada vez mais concretos, qualificados por Hegel como uma verdadeira negação da negação, é o Etwas, um devir cujos momentos superados, do Dasein e da qualidade, são ambos concretos em contraste com a abstração do ser e do nada. Estes últimos constituem categorias especiais cuja abstração imediata deve ser apreciada no contexto do movimento lógico geral do pensamento puro, da forma absoluta. O momento axial que possibilita essa diferenciação no interior da continuidade é o devir. O derradeiro fundamento da unidade do movimento do puro pensar é o retorno da Ideia absoluta ao ser, ao momento inicial do próprio Conceito (2021, p. 150-151).
Desse modo, o início é início absoluto, pois o devir é o constante movimento do pensamento. A lógica é dialética, sua circularidade pressupõe que o fim do processo seja igualmente seu início, e isto por causa do devir. Por esse motivo, nenhum algo a precede, nada a intermedeia e muito menos a determina. Logo, a lógica hegeliana apenas desvela a estrutura dialética do Conceito e da realidade como sendo identidade conciliada no devir. Ao demonstrar que o pensamento pressupõe a si mesmo, e que ele é capaz de realizar o autoexame crítico de suas suposições mediante a natureza autojustificativa de cada categoria, Hegel pôde estabelecer como fundamento um início indeterminado. Por isso, é possível afirmar que o devir não pode ser determinado. Pois, no devir, cada suposição é imediatamente reposta. O desdobrar do pensamento que necessariamente suprassume suas próprias contradições, culminará em uma última categoria que retorna, após um longo processo, ao seu ponto de partida. Cada autojustificativa presente na lógica caminha para a absolutização do sistema. Somente o devir é capaz de sustentar e conciliar todas as oposições do ser, de modo que integre a totalidade dos seus momentos na Ideia absoluta. Essa última categoria se mostrou como meta intrínseca do pensamento. Todo o percurso lógico é realizado com a finalidade de alcançar a verdade para si mesmo do Conceito. Portanto, é uma marcha necessária que o faz retornar a si consciente desse processo.
O começo da ciência filosófica não é para Hegel, portanto, algo provisório e hipotético, nem a ciência uma tarefa condicionada pelo tempo histórico, a ser repetidamente reiniciada em cada nova figuração histórica do próprio espírito: a Lógica é, pelo contrário, conhecimento absoluto e intemporal que o espírito absoluto tem de si mesmo (LUFT, 2001, p. 202).
A partir desse momento podemos conectar os conceitos de início absoluto, Aufhebung e necessidade. Início absoluto e Aufhebung podem ser a chave para uma melhor compreensão das modalidades de necessidade e contingência dentro da própria lógica interna do sistema. Como foi explicitado, o início é absoluto porque se mostrou como devir. O momento inicial do sistema encontrou no devir o suporte para a possibilidade de se estabelecer uma filosofia sem um pressuposto determinado. O vir-a-ser de cada categoria é o que suporta o caráter autorreflexivo do método, pois cada determinação postulada é imediatamente desmanchada na pressuposição de que outra categoria mais elevada é a verdade. Assim, continuamente, cada determinação do ser vai evanescendo, perdendo-se no vazio daquilo que ele acreditar ser sua verdade, a qual está sempre lhe escapando das mãos. Ao nascer de cada determinação, há um perecer que constata que tal determinação não é de fato a verdade. Assim, ele está sempre sendo um outro diante de seu momento anterior, por isto não lhe é atribuída nenhuma determinação capaz de se suster. A verdade é o devir, o estar sendo do pensamento. Este, por sua vez, tem como cerne do seu movimento a ação da Aufhebung, que pode ser considerada a responsável por impulsionar a suprassunção das contradições do pensamento fazendo girar o círculo dialético. Ademais, o movimento de aufheben pode e deve ser considerado o movimento necessário para a realização da autorreflexão crítica das categorias, porquanto já foi atestada a presença da Aufhebung em todas as etapas de desenvolvimento lógico. Esta surge necessariamente devido ao caráter dialético do método. Sem Aufhebung não há devir. Como isso, concluímos também que Aufhebung e devir são conceitos intrinsecamente relacionados, pois a Aufhebung apareceu como condição imanente do conceito de devir. Início absoluto é devir; este, por sua vez, é movido pela Aufhebung, sem a qual as categorias não avançam. Dito de outro modo, a dialética hegeliana apresenta uma lógica necessária, em que o ciclo dialético se fecha no retornar a si do Conceito por meio da Aufhebung que é inerente ao devir. Para o início ser absoluto, ele precisa circular sempre em direção a si mesmo, portanto cada suprassunção é necessariamente um passo que a lógica dá rumo a si mesma. Sobre isso Schlitt cometa:
Esse método dialético especulativo é movimento estruturado do Conceito desde o início (Anfang) como imediato e universal através da progressão dialética (Fortgehen) como negação do início como resultado (Resultat) como negação da primeira negação. Esse resultado é enriquecido retorno ao início, consequentimente imediatismo positivo, incluindo imediatismo e mediação (2012, p. 9, grifo do autor, tradução nossa)10.
Com isso, a lógica pressupõe que o fim é necessariamente o retorno ao começo, pois, se assim não fosse, não seria início absoluto, porquanto o resultado do processo seria um algo distinto do puro pensamento, retornando assim ao dualismo. Logo, para que o fim seja desvelado como começo, deve haver uma necessidade lógica que conduz ao fechamento do círculo dialético. Início absoluto pressupõe a presença da necessidade em todas as partes do sistema. A possibilidade da contingência em alguma etapa do processo – histórica, por exemplo – coloca em risco a consumação do projeto, principalmente se esta contingência for entendida em termos de livre escolha.
O espírito do mundo conduz a história no desenvolvimento necessário do processo de autodeterminação, e as figurações que ele deixa para trás no curso desse processo não são o espelho da livre-escolha dos indivíduos na luta pela realização da racionalidade nos variados contextos e nas diversas situações de sua realidade; elas são, pelo contrário, o reflexo da logicidade que reside como o fundamento e a força verdadeiramente efetiva da Ideia (LUFT, 2001, p. 195).
A contingência do método deve ser compreendida dentro dos limites da necessidade lógica inerente ao sistema. Por isso, é pertinente concordar com Luft (2001) quando afirma que a contingência em Hegel deve ser compreendida em concordância com os ditames da razão e não como livre arbítrio. De acordo com Luft: “Liberdade equivalerá ao processo de interiorização da necessidade proveniente da estrutura lógica da Ideia, com a correspondente identificação entre a ação individual e os desígnios do espírito” (2001, p. 191-192). Daí pode- se concluir que a lógica dialética hegeliana, ao se propor absoluta, precisa necessariamente consumar um processo de retorno a si mesma. Por consequência, ela revela o caráter dialético e determinista do método, bem como a concretude do Conceito, mediante o retorno a si mesmo, isto é, o fim deve ser igualmente o início. Sobre isso, Kojéve comenta:
Acho que Hegel foi o primeiro a encontrar uma resposta (não estou dizendo: a resposta) à seguinte pergunta: o conhecimento que se tem de si, e, por conseguinte, o conhecimento que se tem em geral, é ou não é total, intransponível, imodificável, isto é, universalmente e definitivamente válido ou absolutamente verdadeiro? Essa resposta é dada, segundo ele, pela circularidade do conhecimento ou do saber. O saber absoluto do sábio é circular, e todo o saber circular (aliás, só há um possível) é o saber absoluto do sábio. Ao fazer qualquer pergunta, chega-se inevitavelmente, depois de uma série mais ou menos longa de repostas-perguntas, a uma das perguntas que se encontra no interior do saber circular que o sábio possui. Partindo dessa pergunta e avançado com lógica, chega-se necessariamente ao ponto de partida. Fica assim evidente que foram esgotadas todas as perguntas-respostas possíveis. Ou, em outros termos, obteve-se uma resposta total: cada parte do saber circular tem por resposta o conjunto desse saber, que é – por ser circular – o conjunto de todo o saber. É conhecido o fato de Hegel ter afirmado que seu saber é circular, e que a circularidade é a condição necessária e suficiente da verdade absoluta, isto é, completa, universal e definitiva (ou eterna). Mas o que se costuma esquecer (e só se sabe disso pela Fenomenologia) é que a concepção da circularidade tem, como toda concepção hegeliana, duplo aspecto: um aspecto ideal ou abstrato, e um aspecto real ou concreto, existencial. É a junção dos dois aspectos que constitui o que Hegel chama de Begriff (o conceito-concreto) (2002, p. 275, grifo do autor).
Há um trajeto predeterminado que conduz a lógica à realização de sua consumação. Cada momento dela é o desdobrar de momentos estritamente necessários de autocrítica interna, mediante a Aufhebung de suas pressuposições. Sem as etapas desse processo, não há consumação lógica. Por isso, a contingência deve ser entendida em dependência da natureza necessitária do método. Dito isso, o fim do processo deve ser desvelado como começo, para assim ser possível abarcar em si a totalidade absoluta que Hegel propõe. A contingência não deve ser compreendida no sentido de livre escolha individual, visto que o trajeto histórico da humanidade está necessariamente condicionado aos desígnios da Ideia absoluta. A história é a marcha inexorável da Ideia rumo ao seu saber absoluto, e nada poderá frustrar sua satisfação plena.
Considerações finais
Expus a fundamentação do projeto hegeliano em iniciar um começo para filosofia sem pressupostos determinados, solucionando – de acordo com ele – as objeções da tradição filosófica dualista. Ao pôr o pensamento como realizador do autoexame crítico das categorias do pensamento e das figuras da consciência, Hegel estabeleceu este como o ponto a partir do qual a filosofa deve ser concebida. O exame autocrítico é possível, pois o pensamento é devir. Outrossim, a consumação da autorreflexão do pensamento deve resultar necessariamente no retorno a si do pensamento. Todavia, não mais como puro pensamento, antes como ciência efetiva, ou seja, ciência em si e para si do Conceito. No devir, o pensamento efetiva um círculo dialético em que seu resultado consumado é o retorno ao si mesmo do Conceito. Ao expor o desdobramento do puro pensamento na Ciência da lógica e da consciência na Fenomenologia do espírito, o método manifesta que a verdade do Conceito é essencialmente a passagem que retorna sempre para o momento inicial. Com isso, Hegel estabeleceu o devir como fundamento da filosofia. Por isto podemos afirmar ser esta uma filosofia sem pressuposto determinado, o que não quer dizer que seja uma filosofia “sem pressuposto”. O devir é o pressuposto, mas o que o difere dos pressupostos criticados anteriormente é seu caráter incondicionado e indeterminado. O devir mostra a absolutização do método hegeliano, em que início e fim consistem na realização do percurso circular do Conceito. No que diz respeito às modalidades de necessidade e contingência no método, conclui-se que a concepção de um círculo dialético que torna o método absoluto conflui para a ausência de espaço para a contingência. As representações do tempo histórico são manifestações do progresso do espírito, e as ações dos indivíduos convergem para realização do propósito deste. Há um caminho pré-determinado cuja origem se dá a partir da dialética ser-nada-devir, e que, segundo Hegel, terá como resultado final a categoria da Ideia absoluta. Todo o desdobrar revelado pelo método manifesta seu caráter determinista.
Para ser verdadeiramente crítico e científico, o resultado do processo precisa demonstrar que o conteúdo final é igualmente seu início. A marcha progressiva da lógica é necessária, pois somente avançando de etapa em etapa ela poderá sanar toda a oposição encontrada pelo caminho e, ao suprassumir toda contradição, alcançará necessariamente o seu ápice. Com isso, o caráter contingente do método deve ser compreendido como uma contingência que está limitada à natureza necessária e determinista do método. A contingência conflui necessariamente para a consumação da Ideia absoluta. A abertura de um espaço para a contingência, em termos de liberdade individual ou livre escolha fora de uma perspectiva circular, mina a proposta de Hegel de um método absoluto, pois sua consumação deve ser uma macha necessária de retorno ao início.
Referências
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Notas
2. O verbo aufheben e o substantivo Aufhebung, assumem o significado de “suprasumir” e “suprassunção” de acordo com a tradução de Pe. Paulo Meneses. Ambos utilizados indistintamente, não apresentam diferença gramatical não tendo qualquer implicação no significado filosófico. Podendo ser aplicado tanto a um quanto a outro.
3. Evoquemos que o projeto hegeliano tem sua gênese na inquietação do filósofo quanto à tradição filosófica precedente. Especificamente, no que diz respeito ao modo como os métodos filosóficos procediam, ou seja, sobre a apreensão de um conhecimento verdadeiro do mundo. Isso diz respeito diretamente à relação sujeito/objeto, e a como o primeiro, por meio de determinado método, alcançaria um conhecimento verdadeiro. Assim, o âmago de suas preocupações diz respeito diretamente ao problemático início da filosofia. Hegel assevera que “apenas em época mais recente, surgiu a consciência de que há uma dificuldade em encontrar um início na filosofia e o fundamento dessa dificuldade, bem como a possibilidade de solucioná-la, foi discutido de modo variado.” e continua: “O início da filosofia precisa ser ou algo mediado ou algo imediato e é fácil mostrar que ele não pode ser nem um nem outro; então, ambos os modos de iniciar encontram sua refutação (HEGEL, 2016, p.69, grifo do autor). Além disso, o conceito de verdade ou de um conhecimento verdadeiro apoderou-se da mente hegeliana, sendo igualmente o cerne de suas preocupações. Hegel procurou definir um novo conceito de verdade imbricado ao conceito de método. Quando comenta sobre Anaxágoras e sua concepção de verdade, Hegel concorda quando este afirma que o pensamento deve ser o princípio do mundo, o Nus. Segundo Hegel, “com isso ele pôs o fundamento de uma visão intelectual [Intellektualansicht] do universo, cuja figura pura tem de ser a lógica.” (2016, p. 53, grifo do autor). Destarte, o pensamento deveria estar em sua total pureza, expressando toda a verdade a partir de si mesmo e mediante si mesmo: “Nela, não se trata de um pensar sobre algo, que estaria por si mesmo, no fundamento, fora do pensar, nem de formas que deveriam fornecer meras características da verdade; mas as formas necessárias e as próprias determinações do pensar são o conteúdo e a própria verdade suprema.” (HEGEL, 2016, p. 53, grifo do autor). Contudo, Hegel afirma que para ser possível assumir tal posição acerca do pensamento, “tem que ser deixada de lado a opinião de que a verdade tem de ser algo palpável” (2016, p. 53).
4. Hegel apresenta uma visão teleológica da mesma. Esta seria o autodesenvolvimento do espírito por meio da suprassunção das contradições das figuras da consciência individual que resultara em um progresso histórico na forma da Religião, Cultura e Estado (HEGEL, 2001).
5. Cirne-Lima nos oferece uma solução para o problema da ausência de contingência em Hegel. Segundo ele, o sistema hegeliano deve ser reformulado com o objetivo de corrigir tal problema. Para isso, ele desenvolve seu próprio sistema. Neste, propõe solucionar as objeções observadas por ele no sistema lógico de Hegel. Não é objetivo da presente pesquisa expor a solução dada por Cirne-Lima, mas apenas sua interpretação acerca da condição das modalidades de necessidade e contingência na Lógica dialética. Para maiores detalhes, a solução oferecida por Cirne-Lima pode ser encontrada em Ideia e Movimento (2012) e em Dialética para principiantes (1997).
6. Ambos decidem pelo caráter determinista e necessário do método, embora como já dito, tenham procurado soluções distintas. Cirne-Lima, ao expor o caráter determinista do método, recorre a uma filosofia negativa em busca de uma solução. Esta se aproxima da interpretação de Lardic, quando afirma que a negação da negação determinada contém o momento da verdadeira contingência. No entanto, Cirne-Lima vai além da interpretação; ao propor corrigir o sistema de Hegel ele desenvolve a concepção de uma Totalidade Absoluta como negação da negação, desenvolvendo seu próprio sistema. Luft, por sua vez, segue por outro caminho. Diferente de Cirne-Lima, que se dispõe a realizar as possíveis correções do sistema, Luft insere o método em sua própria lógica interna e segue até as últimas consequências o resultado de suas objeções. Para ele, o próprio método dialético é capaz de autorrefutar-se. A Ideia absoluta, ao conter a conciliação plena de todos os momentos lógicos, aniquila o próprio conceito de devir, pois ela se estabiliza enquanto verdade absoluta, colapsando. Embora corroborem com as objeções expressas por Cirne-Lima, as reflexões desenvolvidas por Luft vão um pouco além. A aparente profundidade crítica de Luft acaba gerando grandes obstáculos para a efetivação do projeto hegeliano. As consequências que surgem daí em diante comprometem todo o sistema; sobre isso, Luft comenta que: “A refutação da dialética hegeliana não pode senão trazer consequências como um todo, já que o método não vem a ser aqui apenas o instrumento capaz de sustentar conhecimento verdadeiro, mas a estrutura lógico-ontológica que constitui o âmago de tudo o que há.” (2001, p. 208).
7. Hegel não consegue escapar de uma escolha arbitrária para o início da filosofia. Segundo Luft (2001) fosse por onde ele começasse – o pensamento, a consciência, o indivíduo filosofante – todas partiram de escolhas arbitrárias.
8. “The culmination of Hegel’s theoretical position is a doctrine about what he calls “the Absolute.” This is a position that is supposed to serve the same function as the Platonic doctrine of Ideas, the Christian God, Descartes’sand Leibniz’s and Spinoza’s accounts of substance. We can say that for Hegel, the Absolute is the Concept, where he means conceptuality as such, not any particular concept but a concept among many” (PIPPIN, 2019, p. 35).
9. “This sort of claim has several dimensions in Hegel. It refers to the Logic as the pure self-determination of thought by thought (which is thereby autonomous, wholly self-determining), and ranges over an account of the logic of freedom and of its actuality. That is, freedom in the sense of self determination is, although a pure concept, actual. The culmination of the course of the demonstration in the greater Logic is the logic of the Concept, about which Hegel says that having reached this realm, we have reached the realm of subjectivity and “freedom” (SL21.409)” (PIPPIN, 2019, p. 19, grifo do autor).
10. “This speculative dialectical method is structured movement of the Concept from beginning (Anfang) as immediate and universal through dialectical progression (Fortgehen) as negation of the beginning on to result (Resultat) as negation of the first negation. This result is enriched return to the beginning, consequently positive immediacy inclusive of immediacy and mediation” (SCHLITT, 2012, p. 9, grifo do autor)
Notas de autor