Resumo: Utilizaremos o conceito de sociedade sem mediações, calcada no racismo estrutural, tal como pro-posto por Frantz Fanon, para explicar a tendência regressiva própria às sociedades de moderni-zação periférica, mormente o Brasil. A partir de uma crítica a Gilberto Freyre e a Florestan Fer-nandes, os quais assumem uma noção de objetivismo sociológico necessitarista com caráter apolí-tico-despolitizado para explicar o desenvolvimento e as contradições da sociedade brasileira hodi-erna (o sadismo-masoquismo de Freyre; a incapacidade negra para a ética protestante do traba-lho, por causa do escravismo), recusando, ambos, seja o racismo estrutural, seja o branqueamen-to racial, apontaremos exatamente para (a) a evolução sistêmica como um projeto político inten-cionado e planificado do branco/colonizador sobre o negro/colonizado enquanto o efetivo mote e dinâmica práticos da formação e do desenvolvimento da sociedade colonial; (b) a inexistência ou a fragilidade das mediações jurídicas, institucionais e normativas entre essas realidades comparti-mentadas e estanques da raça (branco sobre o – e contra o – negro); (c) a violência direta e a re-gressão permanente como as tendências estruturais da constituição e do desenvolvimento de uma sociedade de modernização periférica e racializada, inclusive com o apagamento e a falsificação da história colonial; e, finalmente, (d) a correlação intrínseca, mais uma vez negada por Freyre e Fernandes e, ao contrário, afirmada por Fanon, de raça e classe, raça como classe, classe como raça.
Palavras-chave: Descolonização Africana, Racismo Estrutural, Democracia Racial, Ausência de Mediações.
Abstract: We will use the Fanon’s concept of society without mediations, based on structural racism, to explain the regressive tendency proper to societies of peripheric modernization, especially Brazil. From a criticism to Gilberto Freyre and Florestan Fernandes, who both assume a notion of ne-cessitarian sociological objectivism with an apolitical-depoliticized character in order to under-stand the development and the contradictions of current Brazilian society (Freyre’s sadism-masochism; Fernandes’ idea of Black incapability to protestant ethics due to slavery), both re-fusing structural racism and racial whitening, we will point exactly to (a) the systemic evolution as a White’s or colonizer’s intentioned and planified political project over the Black/colonized, which is, according us, the effective practical core and role of the formation and development of the colonial society; (b) the inexistence or the fragility of juridical, institutional and normative mediations between these divided and ossified realities of race (Whites over/against Blacks); (c) the direct violence and the permanent regression as the structural tendencies of the constitution and development of a society of peripheric and racialized modernization, including here the eras-ing and falsification of colonial history; and, finally, (d) the intrinsic correlation, once denied by Freyre and Fernandes, and on the contrary affirmed by Fanon, of race and class, race as class, class as race.
Keywords: African Decolonization, Structural Racism, Racial Democracy, Absence of Mediations.
Artigos
Um mundo sem mediações: descolonização africana como teoria política da modernização periférica
A world without mediations: african decolonization as a political theory of the peripheral modernization
Recepción: 14 Abril 2022
Aprobación: 19 Agosto 2022
Gilberto Freyre, o grande clássico da teoria social brasileira, nega que o racismo estrutural seja a tônica constitutiva e dinamizadora da formação da sociedade brasileira em termos da relação entre casa-grande e senzala, uma vez assumir (a) que o português, já mestiço de Europa e África, de branco e negro, de muçulmano e cristão, em nenhuma hipótese pode ser acusado de racista, quando muito um fundamentalista de araque, amaciado pela “quentura” negro-indígena como sexualidade aberta e desregulada (cf.: FREYRE, 2006, p. 71-72); (b) que simplesmente “as condições objetivas” dessa terra inóspita e a incapacidade dos indígenas selvagens para o trabalho sistemático obrigaram o português a assumir um estilo de colonização agrária (latifúndio e monocultura), escravocrata (mas sem racismo!) e patriarcal (mas desde um fundamentalismo de araque), não havendo outra alternativa que esta (cf.: FREYRE, 2006, p. 65-69, p. 91, p. 138 em nota de rodapé, p. 269-270, p. 322-323); e, finalmente, (c) que houve confraternização racial entre colonizadores e colonizados, casa-grande e senzala, com a consequente miscigenação e formação de uma democracia racial que encontraria na mestiçagem e no mestiço/mulato, na metarraça ou na morenidade metarracial sua grande condição atual e abertura para um futuro antirracista (cf.: FREYRE, 2006, p. 116-117; FREYRE, 2010, p. 25-43).
Gilberto Freyre não só se contrapõe a isso que ele chama de arianismo sociológico, do qual Minha Luta, de Adolph Hitler, é o promotor fundamental, e que encontrou no Brasil, por exemplo em Nina Rodrigues, em Silvio Romero e em Monteiro Lobato, defensores de peso, no sentido de que a miscigenação destrói a pureza e a supremacia raciais, levando ao ocaso civilizacional, como também, imbuído da tese da democracia racial, recusa inclusive o próprio movimento da Negritude, a própria tônica, dos grupos negros no contexto seja da descolonização africana, seja da militância social brasileira e norte-americana, de luta antirracista a partir da positivação política do conceito de raça, de negro/a, como negro/a, afirmado agora não como menoridade e negatividade, mas como potência crítico-emancipatória, como voz-práxis estético-política, como lugar de fala político-politizante a desnaturalizar, historicizar e politizar esse mesmo racismo estrutural sistemático como escolha política. No caso de Gilberto Freyre, portanto, tem-se a colocação em uma mesma sopa indiferenciada tanto do arianismo político, isto é, do racismo dos brancos contra os negros, quanto, e isso é impressionante, do próprio movimento da Negritude, isto é, no que se refere a este último ponto, na ideia de que há racismo invertido, dos negros sobre os brancos (cf.: NASCIMENTO, 2016, p. 52-53)! A luta em nome da raça é, sempre, para este autor, racismo, ainda que invertido, ainda que raça, no movimento da Negritude, não seja utilizada em sentido biológico, mas exatamente político-normativo, o que é totalmente diferente do arianismo. Nesse sentido, para Gilberto Freyre, a explicação para nossa instabilidade social permanente possuiria dois momentos estruturais, a saber, como dissemos acima: a culpa do sistema econômico concebido em termos de objetivismo sociológico, isto é, de ontologia necessitarista; e, mais uma vez, a relação difícil de se explicar (já que racista ela não é) entre casa-grande e senzala, em termos de sadismo do senhor e de masoquismo do escravizado. Ele diz, quanto ao primeiro aspecto:
Na realidade, nem o branco nem o negro agiram por si, muito menos como raça, ou sob a ação preponderante do clima, nas relações do sexo e de classe que se desenvolveram entre senhores e escravos no Brasil. Exprimiu-se nessas relações o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um deus todo poderoso, em senhores e escravos. Dele se deriva toda a exagerada tendência para o sadismo característica do brasileiro, nascido e criado em casa-grande, principalmente em engenho; e a que insistentemente temos aludido neste ensaio (FREYRE, 2006, p. 462).
Note-se, portanto, essa explicação ontológica (na exata medida de um objetivismo sociológico radical que recusa isso que Jean-Paul Sartre chamava a atenção como a escolha político-normativo-moral do sujeito, esteja ele no passado, no presente ou no futuro) relativa à fratura social existente no Brasil, a qual, de todo modo, não é uma verdadeira fratura social, porque não haveria a rigor, não obstante o sadismo-masoquismo, assimetria entre casa-grande e senzala. Perceba-se, por conseguinte, que o mandonismo, o familismo, o nepotismo, o autoritarismo e, assim, o poder oligárquico, caudatários da casa-grande em sua relação com a senzala, seriam pura e simplesmente consequências do sistema social objetivo que, qual um deus todo poderoso, imporia diretamente comportamentos singulares a grupos sociopolíticos pré-determinados, sendo manifestado antropologicamente como sexualidade desregrada e doentia, ou seja, sadismo-masoquismo, a qual extravasa o nível individual e a esfera privada e adentra no nível coletivo e na esfera público-política. Não se trata de projeto político, mas apenas de necessitarismo sociológico, de destino ontológico, materializado como órgãos fálicos em uma febre sexual sem fim. E, por isso mesmo, ele vê a evolução da história brasileira como a eterna repetição desse fardo, desse destino do sistema econômico objetivo qual deus iracundo que, mais uma vez, se manifesta objetivamente em termos do sexo doentio, isto é, sadismo-masoquismo entre senhor e escravizado:
Mas esse sadismo de senhor e o correspondente masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual e doméstica, têm-se feito sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e político. Cremos surpreendê-los em nossa vida política, onde o mandonismo tem sempre encontrado vítimas em quem exercer-se com requintes às vezes sádicos; certas vezes deixando até nostalgias logo transformadas em cultos cívicos, como o do chamado marechal de ferro. A nossa tradição revolucionária, liberal, demagógica, é antes aparente e limitada a focos de fácil profilaxia política: no íntimo, o que o grosso que se pode chamar “povo brasileiro” ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático. Mesmo em sinceras expressões individuais – não de todo invulgares nesta espécie de Rússia americana que é o Brasil – de mística revolucionária, de messianismo, de identificação do redentor com a massa a redimir pelo sacrifício de vida ou de liberdade pessoal, sente-se o laivo ou o resíduo masoquista: menos a vontade de reformar ou corrigir determinados vícios de organização política ou econômica que o puro gosto de sofrer, de ser vítima, ou de sacrificar-se (FREYRE, 2006, p. 114).
A dinâmica da sociedade brasileira, nessa sua perspectiva instável e regressiva, nesse sentido, vai do líder autoritário que quer bater e mandar e do povo que quer apanhar e obedecer, do político populista que quer salvar e ser seguido/adorado e do povo ignaro e abandonado que quer ser salvo, que quer seguir/adorar – herança do senhor de engenho que quer chicotear o negro escravizado e do negro escravizado que quer servir como mula de carga ao seu senhor, herança ainda do senhor que engenho que quer estuprar e da negra escravizada que quer ser estuprada, tudo isso descambando para uma perspectiva missionária e messiânica com caráter antissistêmico, anti-institucional, antijurídico e infralegal em que as instituições, a ordem normativa constitucionalizada, juridificada e positivada e a separação, a intersecção e a sobreposição do sistema jurídico em relação ao sistema político simplesmente são arrasadas em sua integridade (se é que algum dia a tiveram). Note-se, portanto, no caso da passagem acima, que há uma tendência à instabilidade e à degeneração que é própria à díade sadismo-masoquismo, mas ela também – a exemplo de sua base, a relação simétrica e não-racializada entre casa-grande e senzala – não é autoexcludente e, principalmente, não leva propriamente à desestruturação radicalizada, mas a uma dialética profundamente conciliadora. Dito de outro modo, a instabilidade e a regressão são causadas pela lógica extra-humana do sistema econômico que se manifesta antropologicamente em termos de sadismo do senhor e de masoquismo do escravizado, mas, na verdade, não se trata de uma contradição e de uma autoexclusão, senão que de uma mística altamente integradora, conciliadora e homogeneizadora, muito própria à colonização portuguesa do Brasil, demarcada pela convivência e pela integração plenas dos contrários.
Por outro lado, a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em ‘princípio de Autoridade’ ou ‘defesa da Ordem’. Entre essas duas místicas – a da Ordem e da Liberdade, a da Autoridade e a da Democracia – é que se vem equilibrando entre nós a vida política, precocemente saída do regime de senhores e escravos. Na verdade, o equilíbrio continua a ser entre as realidades tradicionais e profundas: sadistas e masoquistas, senhores e escravos, doutores e analfabetos, indivíduos de cultura predominantemente europeia e outros de cultura principalmente africana e ameríndia. E não sem certas vantagens, as de uma dualidade não de todo prejudicial à nossa cultura em formação, enriquecida de um lado pela espontaneidade, pelo frescor de imaginação e emoção do grande número e, de outro lado, pelo contato, através das elites, com a ciência, com a técnica e com o pensamento adiantado da Europa. Talvez em parte alguma se esteja verificando com igual liberalidade o encontro, a intercomunicação e até a fusão harmoniosa de tradições diversas ou, antes, antagônicas de cultura, como no Brasil. É verdade que o vácuo entre os dois extremos ainda é enorme; e deficiente a muitos respeitos a intercomunicação entre duas tradições de cultura. Mas não se pode acusar de rígido, nem de falta de mobilidade vertical – como diria Sorokin – o regime brasileiro, em vários sentidos sociais um dos mais democráticos, flexíveis e plásticos (FREYRE, 2006, p. 115).
Essa passagem apresenta dois aspectos surpreendentes e, antes de tudo, consequentes ao necessitarismo sistêmico manifestado antropologicamente como sadismo-masoquismo sexual. Primeiramente, que, se a tradição política liberal assume o lugar simbólico-normativo do masoquismo do escravizado enquanto postura missionária e messiânica de salvação das massas acéfalas e abandonadas por esse líder abnegado qual macho salvador, a tradição conservadora, qual macho dominador, assume, de sua parte, a herança do sadismo do senhor de engenho, isto é, o pulso de ferro do chicote senhorial e do afago paternal. De todo modo, o que ambas querem é foder com o povo (o qual quer ser estuprado por elas) e, por isso mesmo, não há nenhuma dificuldade, para Gilberto Freyre, seja em assumir esse necessitarismo sociológico apolítico-despolitizado ramificado na mística política do sexo forte que preenche virilmente o sexo frágil, seja, finalmente, em condenar a Negritude, em sua práxis em torno à identidade negra e em termos de racismo estrutural, colocando-a no mesmo balaio que o arianismo, reduzindo as relações sociopolíticas à mera reprodução dessa lógica necessitarista como objetivismo ontológico materializado no – e pulsante como – órgãos fálicos. Em segundo lugar e por via de extensão, o próprio necessitarismo histórico-sociológico é, no fundo, uma imensa sopa indiferenciada, fundida e insossa que apaga as contradições sociais e deslegitima os conflitos políticos, de modo que a nossa instabilidade institucional e a nossa tendência autoritário-regressiva é, na verdade, apenas uma lógica conturbada, mas ainda assim direta, progressiva e imparável, de profunda aclimatação social como hibridismo ou miscigenação racial – inclusive porque não é invulgar e nem antinatural o sadomasoquismo, individual e coletivo! Aqui, portanto, já não teria lugar nem a cisão social e nem o conflito político, mas exatamente o amalgamento apolítico-despolitizado como suruba antropológico-moral. Se o modelo antropológico do futuro, no caso do Brasil, é a miscigenação como sopa racial indiferenciada, da qual o mulato é o grande exemplo, o modelo político-social dali resultante é a relação casa-grande e senzala sempre rediviva, “o eterno retorno do mesmo”, qual lógica necessitarista que, não obstante algumas especificidades próprias a cada momento histórico-político, está lá sempre pulsante como essa curiosa relação anti-dialética brasiliensis como sexo coletivo sob a forma de sadomasoquismo.
Interessantemente, essa oscilação entre o objetivismo sociológico como ontologia necessitarista e a assimetria antropológica própria à relação casa-grande e senzala demarca também a obra de Florestan Fernandes, especialmente A integração do negro na sociedade de classes. Com efeito, nela, assim como na obra de Gilberto Freyre, o negro e o mulato recebem centralidade político-normativa (correlatamente ao português, no caso deste último pensador), no sentido de que se tornam a categoria normativo-antropológico-factual a partir da qual a constituição e o desenvolvimento da sociedade colonial (Gilberto Freyre e sua aplicação como filosofia da história a todo o desenvolvimento posterior de nossa sociedade) ou para a exemplificação das condições próprias à passagem de uma sociedade de castas (regime colonial-imperial) para uma sociedade de classes (república, modernização propriamente dita), inclusive em termos de avaliação desse mesmo processo de modernização. Entretanto, mais uma vez, vemos a análise sociológica transitar, como dissemos acima, entre um necessitarismo sistêmico que explica condicional e subsidiariamente os papeis sociopolíticos consequentes e, ao mesmo tempo, uma avaliação político-normativa dessa relação de instrumentalização própria à dialética entre senhores e escravizados. Quanto ao primeiro caso, é impactante percebermos que, para Florestan Fernandes, não há, na emergência da sociedade de classes, racismo estrutural em nossa sociedade e, portanto, de que a perspectiva do branqueamento racial – que, por exemplo, Abdias Nascimento denuncia de modo tão veemente em O genocídio do negro brasileiro (cf.: NASCIMENTO, 2016, p. 47-48) – não tem comprovação empírica ou factual. Ele diz, ao explicar os motivos da (não)integração do negro na sociedade de classes:
Representava uma exigência e, sobretudo, um desafio ao “negro”, para que se despojasse da natureza humana que adquirira anteriormente e adotasse os atributos psicossociais e morais do “chefe de família”, do “trabalhador assalariado”, do “empresário capitalista”, do “cidadão” etc. Entenda-se que sociologicamente a exclusão teria caráter especificamente racial se o negro ostentasse essas qualidades e fosse, não obstante, repelido. Os dados expostos sugerem o inverso. Em proporção com a posse de rudimentos desses atributos ou em que se revelasse capaz de adquiri-los com certa intensidade, o “negro” encontrava o caminho aberto, classificando-se socialmente (FERNANDES, 1965, p. 67-68).
O que Florestan Fernandes disse, na passagem acima, está em que os negros recém-libertos não encontraram lugar na sociedade de classes porque a deformação a que foram submetidos no contexto do regime escravocrata lhes impediu de, como grupo social e como indivíduos, desenvolverem exatamente a ética protestante e a perspectiva, digamos, jurídico-liberal própria ao indivíduo burguês. Note-se, acima, que os negros recém-libertos não conseguiram despojar-se da natureza humana diminuída, gerada por sua escravização, e assumir os papeis sociais próprios ao chefe de família, ao trabalhador assalariado, ao empresário capitalista e ao cidadão – por isso, ficaram fora das oportunidades econômicas de trabalho e de inserção socioeconômica, perdendo-as para os imigrantes europeus. Perceba-se, mais uma vez, esse ponto: foi a incapacidade de o negro – como grupo social e como sujeito – desenvolver a ética protestante do trabalho que lhe impediu de integrar-se na sociedade de classes, e não o racismo estrutural (e a culpa por essa deformação da natureza humana se deveu à escravização); se ele tivesse – e quem tivesse – desenvolvido tais virtudes próprias à ética protestante do trabalho, imediatamente teria um lugar na nova ordem social, econômica, jurídica e política. Por isso, tem-se a conclusão, por parte de Florestan Fernandes, de que não houve, no Brasil contemporâneo, a tendência ao branqueamento racial. Analisando o número de nascimentos e de mortos no estado de São Paulo de 1890 a 1930, ele conclui exatamente que a redução do número de negros e de mulatos na população geral e o aumento explosivo de brancos, entre imigrantes (principalmente) e nacionais, se deveram exatamente ao melhor acesso às oportunidades de trabalho e de mobilidade socioeconômica por parte do estoque social branco, que levaram a uma sua reprodução mais acentuada e a uma sua diminuição da mortalidade populacional (entre recém-nascidos e idosos) em relação ao estoque social negro, mais afetado pela tendência à depopulação devido à miséria e à marginalização. Ele diz, relativamente a essa inexistência de branqueamento racial nos primórdios de nossa ordem moderno-republicana:
A principal consequência das descobertas de Mortara consiste em que elas alimentam uma sadia “relativização” dos pontos de vista de que se poderiam analisar os problemas demográficos brasileiros, segundo a cor dos contingentes da população. Comparando a velocidade do incremento de cada contingente com os demais, conseguiu observar melhor a influência direta do crescimento vegetativo e compreender objetivamente a importância específica das diferenças de mortalidade na determinação das tendências de crescimento de cada estoque racial. À nossa análise, interessa particularmente a conclusão de que a predominância numérica progressiva dos brancos não se produz em consequência da diminuição contínua e fatal dos não-brancos. Mas em virtude de diferenças na intensidade ou na rapidez do incremento natural de cada grupo de cor da população brasileira. Em outras palavras, isso significa que todos os contingentes dessa população participam das tendências de crescimento rápido, que ela revela. As diferenças entre os grupos negro e mulato em relação ao grupo branco, embora consideráveis, seriam meramente de grau (FERNANDES, 1965, p. 89).
As causas da exclusão e da desintegração do negro na sociedade de classes, portanto, estão na antropologia do negro, deformada pela escravidão, mas não na reciprocidade e na relacionalidade entre negros e brancos, em termos de racismo estrutural. Nesse sentido, aparece a tese central do livro A integração do negro na sociedade de classes, ou seja, de que apenas indiretamente as condições histórico-sociais sistemáticas e objetivas da ordem capitalista emergente mantiveram uma constituição, uma mobilidade e uma estratificação racializadas, de modo que, mais uma vez, (a) a exclusão do negro e do mulato por motivos raciais se deram desde um prisma indireto, não como um projeto político-normativo pensado, assumido e implementado, mas como caudatárias do pano de fundo histórico-social amplo, bem como (b) a democracia racial se torna falsa ou inefetiva mais uma vez apenas indiretamente, posto que essa ordem social, econômica, política, cultural e jurídica não seria mais demarcada em termos de dualismo-maniqueísmo moral próprio ao racismo estrutural. Florestan Fernandes nos diz, tendo como quadro referencial a cidade de São Paulo:
[...] aquilo que se poderia chamar de “aptidão para a mudança” ou de “impulso básico para a modernização” tinha menos que ver com os conteúdos e a organização do horizonte cultural das pessoas e categorias de pessoas que com sua localização na sua estrutura econômica e de poder da cidade. O engajamento nas atividades práticas, com os proventos e as imposições daí resultantes, é que regulavam o grau de identificação, de neutralidade ou de repulsa diante das inovações socialmente necessárias. [...] Os que se inseriam no “mundo dos negócios” propendiam mais que os outros, voluntariamente ou sob a pressão de exigências inelutáveis, a tomar atitudes abertas em face da modernização. No entanto, as influências inovadoras ficaram mais ou menos confinadas, em grande parte por causa do padrão de isolamento sociocultural vinculado seja ao escalão elevado da vida das famílias abastadas “tradicionais”, seja ao estado de miséria e de desequilíbrio dos setores dependentes da plebe. Nos dois extremos, pois, o desligamento dos fluxos de renovação sociocultural tendia a ser acentuado. Esbatendo-se a situação do negro e do mulato sobre esse amplo pano de fundo histórico-social, obtém-se uma compreensão relativista e objetiva do “drama do negro” na cidade. As tendências históricas de diferenciação e de reintegração da ordem social não favoreciam, de per si, nenhum agrupamento étnico ou racial determinado. Todavia, isso acabava acontecendo por vias indiretas. O envolvimento imediato nos processos de crescimento econômico e de desenvolvimento sociocultural dependia de recursos materiais e morais. Ou, em outras palavras, de recursos econômicos, de meios técnicos e organizatórios; em suma, de aptidões para responder efetivamente às exigências da situação histórico-social. Como ex-agentes do trabalho escravo e do tipo de trabalho manual livre que se praticava na sociedade de castas, o negro e o mulato ingressaram nesse processo com desvantagens insuperáveis (FERNANDES, 1965, p. 191-192).
Note-se, na passagem, primeiramente, o fato de que tanto as elites econômicas quanto a plebe social (negros e mulatos, em geral) seriam e teriam exatamente uma condição e uma postura antimoderna e antimodernizante que reproduziria esse tipo de identidade entre raça e classe e esse déficit republicano-democrático na sociedade como um todo, ficando a opção pela modernidade em grande medida restrita às camadas “médias” da sociedade, que efetivamente conseguiam se inserir no processo econômico-laboral e, assim, ganhar mobilidade social ao longo do tempo (camadas altas e negros/mulatos não ganhariam com a modernização; esse ganho de modernidade estaria com as classes médias). Ao contrário, negros e mulatos como plebe, de um lado, e as elites brancas, por outro, mantinham-se apegados a uma ordem pré-moderna e tradicional com caráter antimoderno (os primeiros porque foram deformados por ela, os segundos porque ganhavam com ela), mas, e isso é muito importante, seja essa ordem pré-moderna, seja mesmo a perspectiva de não-inserção na modernidade por parte das classes dirigentes brancas e dos negros e mulatos não seriam demarcados pela segmentação racial, a não ser indiretamente, dado o lugar e o papel – ou o não-lugar e a ausência de papel – dos sujeitos sociopolíticos na ordem sistêmica moderna (“acontece” que negros e mulatos eram paupérrimos e as classes altas eram exatamente ricas, logo seria quase que um acaso, ou no máximo uma conjuntura extemporânea aos próprios negros e aos próprios brancos, que negros fossem pobres e pobres fossem negros, assim como que brancos fossem ricos e ricos fossem brancos!). Essa passagem final é muito importante: a sociedade de classes apenas indiretamente reproduzia a sociedade de castas, e por causa da conjuntura da sociedade de castas, ou seja, negros e mulatos, como grupo-sujeitos deformados pela escravidão, seriam os pobres da sociedade de classes; e elites brancas, privilegiadas pela escravidão, seriam os ricos da sociedade de classes, não obstante a saudade do retorno à ordem pré-moderna.
O primeiro ponto importante que a descolonização africana, na voz-práxis de Frantz Fanon, nos traz para pensarmos a correlação entre racismo estrutural, luta de classes (racializada) e instabilidade e regressão do Estado democrático de direito diz respeito à própria intersecção político-normativa entre colonizador e colonizado, branco e negro. Com efeito, eles são gerados e retroalimentados como e por meio de uma relação assimétrica imposta e sustentada na correlação de sobreterminação biológica da antropologia/cultura/normatividade (portanto, produção sistemática e intencionada de menoridades político-culturais) e de instrumentalização socioeconômica ampla, que, ao desumanizar, inferiorizar e animalizar o grupo-sujeito pré-humano, permite contra ele o exercício da submissão direta, da exploração material continuada e, então, quando necessário, a realização do etnocídio-genocídio. Por isso mesmo, essa produção do negro pelo branco – e essa é a tônica da expansão global da modernidade europeia em termos da tríade eurocentrismo-colonialismo-racismo e/como fascismo, isto é, produção de minorias político-culturais decaídas normativamente – se dá de modo prático-intencionado, ou seja, não é exterior, não é sobreposta e nem é inevitável à relação sociopolítica assimétrica entabulada como eurocentrismo-colonialismo-racismo e/como fascismo. É por isso que, ao conceber a proposta-práxis da descolonização, Fanon pode argumentar que o objetivo dela está exatamente em constituir uma luta revolucionária que elimina com o racismo estrutural que serve de pilar fundacional e de lógica dinamizadora da sociedade colonial. Por outras palavras, a descolonização é um movimento revolucionário ativo, de destruição da ordem colonial e de construção de uma sociedade universalista (porque não mais racializada, compartimentada e assimétrica), porque a colonização é um movimento ativo, propositivo e sistematicamente implementado.
A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente antagônicas que extraem sua originalidade precisamente dessa espécie de substantificação que segrega e alimenta a situação colonial. Sua primeira confrontação se desenrolou sob o signo da violência, e sua coabitação – ou melhor, a exploração do colonizado pelo colono – foi levada a cabo com grande reforço de baionetas e canhões. O colono e o colonizado são velhos conhecidos. E, de fato, o colono tem razão quando diz que “os” conhece. É o colono que fez e continua a fazer o colonizado. O colono tira a sua verdade, isto é, os seus bens, do sistema colonial (FANON, 1968, p. 26; os destaques são de Fanon).
Note-se, na passagem acima, que não foi o sistema que, desde uma ontologia necessitarista, criou e recriou, produziu e reproduziu papeis sociais ao longo do tempo, mas exatamente a relacionalidade e a reciprocidade políticas, no sentido, mais uma vez, de que a colonização é um projeto intencionado de menorização, instrumentalização, exploração e assassinato com caráter planificado. Entre tantas outras possibilidades históricas de intersecção, a Europa escolheu o eurocentrismo-colonialismo-racismo e/como fascismo. No mesmo diapasão, é por isso que, em primeiro lugar, Fanon chama a atenção para o fato de que colonização e descolonização são forças congênitas e antagônicas cuja matriz original é exatamente a perspectiva correlata do colonialismo econômico-cultural e do racismo estrutural: o branco produz o negro como menoridade – até porque não existem nem o negro em si, nem o negro genérico, contra os quais se insurgem Frantz Fanon, Aimé Césaire, Albert Memmi e Achille Mbembe de modo tão intenso – e, nesse sentido, branco e negro devem seu sentido a um núcleo axiológico-político que se reproduz ativamente como papeis sociais em relação assimétrica por causa do racismo estrutural. Não é mero acaso, nesse sentido, e esse seria o segundo ponto da passagem acima, que Fanon nos fale exatamente de que o colono fez e continua a fazer, produziu e continua a produzir o negro – e, portanto, também a si mesmo – como racialidade biológica, como sobreterminação biológica da antropologia, da cultura e da normatividade. Ora, sem esse tipo de relacionalidade e de intersecção político-normativa permanente, intencionado e planificado, simplesmente não se sustenta o regime colonial (e aqui reside a tentativa corriqueira, por parte do colonizador branco, em falsificar a história e em destruir as tradições culturais e normativas do colonizado). É por isso que Fanon concebe a descolonização como um combate e, assim, a erradicação do colonialismo como ruptura revolucionária:
Exposta em sua nudez, a descolonização deixa entrever, através de todos os seus poros, granadas incendiárias e facas ensanguentadas. Porque, se os últimos devem ser os primeiros, isso só pode ocorrer em consequência de um combate decisivo e mortal entre dois protagonistas. Esta vontade de fazer chegar os últimos à cabeça da fila, de os fazer subir com cadência (demasiado rápida, dizem alguns) os famosos escalões que definem uma sociedade organizada, só pode triunfar se se lançam na balança todos os meios, inclusive a violência, evidentemente (FANON, 1968, p. 27).
O combate decisivo e mortal, de que fala Fanon, é nada mais e nada menos que a antítese do tipo de relacionalidade própria ao eurocentrismo/colonialismo/racismo e/como fascismo, isto é, a produção permanente do negro como menoridade, instrumentalidade e animalidade, a qual depende de um projeto político de implementação permanente e sistemática da violência simbólico-material, que só pode se manter hegemônico enquanto exatamente intensificá-la ao longo do tempo. Não é mero acaso, com isso, que, se repararmos para o desenvolvimento filosófico da modernidade, o perceberemos completamente conectado com essa expansão global da cultura/epistemologia/economia europeia exatamente sob a forma da tríade eurocentrismo-colonialismo/racismo, desde a perspectiva de um dualismo antropológico e de um racismo biológico com caráter estrutural (o estado de natureza e o estado civil hobbesiano são, como ele mesmo declara, uma inspiração da condição dos indígenas do “novo mundo”; a distinção entre natureza e cultura, em Kant e Hegel, é caudatária do “homem natural” representado pelo negro africano enquanto ausência de objetividade e, portanto, como ilimitação, imoderação e bizarrice práticas; a diferenciação e a supremacia racial, em Darwin, se deve ao fato da monogamia entre os brancos e da poligamia, do infanticídio e da escravização da mulher entre os negros africanos etc. – note-se, inclusive, a geopolítica da raça, isto é, branco como Europa, negro como África, indígena como América) (cf.: CÉSAIRE, 1978, p. 13-50, sobre o complexo intelectual colonialista-racista). Ou seja, conforme queremos significar, o eurocentrismo-colonialismo-racismo, mais do que uma necessidade sistêmica, é um projeto política e normativamente construído, com intencionalidade, orientação e sentido sistemáticos, não podendo subsistir sem essa motivação dos próprios sujeitos sociopolíticos envolvidos – e envolvidos permanentemente. Nesse sentido, a descolonização, como erradicação dessa relação assimétrica que, por meio do racismo, recebe uma base naturalizada, a-histórica e despolitizada, assume o caráter relacional, interseccionado e, portanto, conflituoso, como guerra de independência em primeiro lugar, como erradicação da compartimentação racial e formação de uma sociedade universalista em segundo lugar – eliminar a clausura da raça, eis, para Achille Mbembe, o grande mote e a orientação fundacional da descolonização africana, que a torna um movimento, uma condição e um valor universalistas (cf.: MBEMBE, 2014a, p. 21-99; MBEMBE, 2014b, p. 13-60). E por que a tônica no combate ao racismo? Porque ele sustenta e legitima três núcleos basilares no que se refere à constituição e à expansão permanentes da sociedade colonial, a saber, (a) uma sociedade sem mediações, regressiva, instável e autoritária, demarcada por violência direta; (b) a cisão racial inultrapassável e, assim, tanto a imutabilidade e a imobilidade das relações sociais, com uma sociedade e sujeitos ossificados no espaço e no tempo histórico-político-culturais, quanto a correlação intrínseca entre raça e/como classe, classe e/como raça, em que os papeis raciais são os papeis sociais e estes se remetem sempre àqueles; e (c) a perspectiva da autoexclusão recíproca calcada no dualismo-maniqueísmo político-jurídico-moral, do qual o apartheid é o maior e mais emblemático exemplo. Quanto ao primeiro ponto, Fanon nos diz:
O mundo colonizado é um mundo cindido em dois. A linha divisória, a fronteira, é indicada pelos quarteis e delegacias de polícia. Nas colônias, o interlocutor legal e institucional do colonizado é o gendarme ou o soldado. Nas sociedades de tipo capitalista, o ensino religioso ou leigo, a formação de reflexos morais transmissíveis de pai para filho, a honestidade exemplar de operários condecorados ao cabo de cinquenta anos de bons e leais serviços, o amor estimulado da harmonia e da prudência, formas estéticas de respeito pela ordem estabelecida, criam em torno do explorado uma atmosfera de submissão e inibição que torna consideravelmente mais leve a tarefa das forças da ordem (FANON, 1968, p. 28).
A sociedade moderna – isto é, europeia, da Europa central e, depois, em termos de capitalismo tardio, também da América do Norte – é, na imagem normativa estilizada que demos dela na filosofia e na ciência política, uma sociedade de mediações estruturantes, que (a) começam pelos direitos e pelas garantias fundamentais e pela segurança, pela isonomia, pela simetria e pela horizontalidade jurídicas, (b) passam pelo Estado de direito enquanto ordem constitucionalizada, juridificada, positivada e textualizada como realidade efetiva, substantiva e objetiva, (c) se dinamizam por uma sociedade civil altamente pluralizada, diferenciada, heterogênea e complexa e (d) chegam a um sistema público de direito demarcado pela intersecção, mutualidade e sobreposição entre poderes, o sistema jurídico sobre o sistema político (em termos de controle de constitucionalidade e responsabilização jurídico-social) e, no caso do sistema político, o legislativo bicameral sobre o executivo, todos esses poderes centralizados e manifestados intersubjetivamente apenas por meio do devido processo legal. Ou seja, e é isso que vemos permanentemente na teoria política contemporânea (pense-se em John Rawls, Norberto Bobbio, Jürgen Habermas, Axel Honneth etc.), sociedades modernas são sociedades totalmente mediadas, com poder indireto, demarcado por forte reflexividade e moderação. É esta imagem estilizada que Fanon está assumindo (não sem certa ironia, obviamente) e é a partir de tal quadro normativo que ele pode, ao contrário, chamar a atenção para o fato de que a sociedade colonial, dada a centralidade do racismo estrutural, possui uma cisão interna que não apenas é inconciliável, autoexcludente e naturalizada, mas que também leva exatamente à inexistência de mediações, à inefetividade dessas mediações, à possibilidade de sempre se violá-las nessa e por essa relação racializada entre brancos e negros.
Nas regiões coloniais, ao contrário, o gendarme e o soldado, por sua presença imediata, por suas intervenções diretas e frequentes, mantêm contato com o colonizado e o aconselham, a coronhadas ou com explosões de napalm, a não se mexer. Vê-se que o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não torna mais leve a opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as, manifesta-as com a boa consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência à casa e à consciência do colonizado (FANON, 1968, p. 28).
Perceba-se que, no contexto dessa sociedade sem mediações fundada no – e legitimada pelo – racismo estrutural, é o gendarme ou soldado quem realiza a mediação entre o colono e o colonizado, ou seja, é a violência simbólico-material direta que unifica e intersecciona esses dois mundos interdependentes e ao mesmo tempo paralelos, assimétricos. A linguagem colonial não é a linguagem do direito, mas da bala e do cassetete, a qual se ramifica em uma ordem institucionalizada como apartheid e em um processo capilarizado de menorização, de segmentação e de violência simbólico-material permanentes, levado a efeito planejada e sistematicamente pelos colonos, pelos brancos. E, com isso, emerge o segundo ponto que comentamos acima, ou seja, a correlação de raça e classe, de lugar racial e de lugar socioeconômico – a sociedade sem mediações, por meio da violência direta, como vimos acima, “ensina” o colonizado a permanecer no seu lugar. Qual lugar? O da raça como classe, o da classe como raça. Nesse caso, portanto, o fato de que negros são pobres e de que pobres são negros, bem como de que ricos são brancos e de que brancos são ricos, não é mera conjuntura sistêmica, mas o tipo de relacionalidade consequente ao racismo colonial implementado como sociedade sem mediações.
Este mundo dividido em compartimentos, este mundo cindido em dois, é habitado por espécies diferentes. A originalidade do contexto colonial reside em que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida não logram nunca mascarar as realidades humanas. Quando se observa em sua imediatidade o contexto colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é, antes de mais nada, o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. Nas colônias, a infraestrutura econômica é ao mesmo tempo uma superestrutura. A causa é consequência: o indivíduo é rico porque é branco, é branco porque é rico (FANON, 1968, p. 29).
A sociedade colonial, calcada no racismo estrutural, é dualista e dicotômica, tanto no que diz respeito à sua organização e ao seu funcionamento quanto no que se refere à própria lógica inerente a cada parte interna dela. No primeiro caso, tem-se o mundo dos brancos/colonos e o mundo dos negros/colonizados, o centro e a periferia, a civilização e o gueto-guetização; no segundo caso, tem-se a lógica do direito (“Aqui é Alphaville!”) própria ao mundo dos brancos/colonizadores e a lógica da bala e do cassetete (“Vá ser capitão do mato lá na favela!”). Note-se que a sociedade sem mediações é exatamente o tipo de princípio e de lógica político-jurídico-institucional-normativo assumido em termos de – e como – relação social assimétrica entre colono e colonizado, em que o colonizador, hegemônico em todas as esferas constitutivas da sociedade, impõe sua lei de ferro da duplicidade antropológica manifestada como esse dualismo-maniqueísmo moral. E essa lei de ferro da colonização é, então, a lei da raça, o que permite a Fanon realizar essa analogia entre estrutura econômica e superestrutura político-cultural, ou seja, apontar para o fato de que o lugar econômico é basicamente um lugar racial, político, normativo, e de que este gera e normaliza um papel socioeconômico específico. Dito de outro modo, a raça, aqui, é o lugar por excelência, que determina todos os outros lugares e papeis sociais, incluindo-se o fato de que a sociedade sem mediações está com a arma sempre engatilhada e o chicote sempre pronto para caírem sobre os colonizados como negros, como raça inferior e menorizada. Por isso mesmo, na sociedade colonial e em termos de racismo estrutural, se pertence a esta ou àquela espécie e, a partir dela, se possui este ou aquele lugar social e este ou aquele papel político. Chega-se, desse modo, ao terceiro ponto acima salientado, a saber, à imposição de um projeto político-normativo, por parte do colonizador, com caráter exatamente regressivo e autoritário, sempre pronto a esmagar os processos de transformação social desde baixo:
A discussão do mundo colonial pelo colonizado não é um confronto racional de pontos de vista. Não é um discurso sobre o universal, mas a afirmação desenfreada de uma singularidade admitida como absoluta. O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não basta ao colono limitar fisicamente, com o auxílio de sua polícia e de sua gendarmaria, o espaço do colonizado. Como que para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quintessência do mal. A sociedade colonizada não é apenas descrita como uma sociedade sem valores. Não basta o colono afirmar que os valores desertaram, ou melhor, que jamais habitaram o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética, ausência de valores, como também negação dos valores. É, ousemos confessá-lo, inimigo dos valores. Nesse sentido, é o mal absoluto. Elemento corrosivo, que destrói tudo o que dele se aproxima, elemento deformador, que desfigura tudo o que se refere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas, instrumento inconsciente e irrecuperável de forças cegas (FANON, 1968, p. 31. Cf., ainda: FANON, 2008, p. 26-47).
Como fechamento de abóboda da sociedade sem mediações, por conseguinte, o racismo estrutural implementado como projeto político-normativo pelas elites brancas incide diretamente na ossificação, na imobilização e no travamento da evolução social, mantendo pulsante – explícita e implicitamente – tanto a segregação social e a menorização moral quanto a participação política dos grupos-sujeitos racializados, os quais ficam confinados exatamente ao gueto e submetidos permanentemente a um processo de guetização ampla. Nesse sentido, portanto, o próprio ponto de partida da sociedade colonial, que é o dualismo-maniqueísmo moral próprio ao racismo estrutural, por ele gerado e sustentado, legitima a fragilização cotidiana das instituições públicas, do Estado de direito e, finalmente, seja dos direitos e das garantias fundamentais e da segurança, da isonomia, da simetria e da horizontalidade jurídicas, seja do devido processo legal e das mediações jurídicas estruturantes, os quais, se necessário, podem ser violados para manter-se a imutabilidade da ordem de castas como ordem de classe. No mesmo diapasão, a própria dinâmica política de classe, assumida e imposta diretamente, consiste na manutenção da compartimentação social, política, econômica e moral, ao ponto de, mais uma vez, se utilizar seja da politização do direito, seja da subversão do sistema político como freio ao processo de democratização ampla da sociedade. Afinal, quem está acostumado a chicotear, estuprar, instrumentalizar e a matar negros (e indígenas, igualmente racializados) pode abrir mão – e certamente o fará – de qualquer freio jurídico-institucional e de qualquer moderação moral.
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria Sá da Consta Editora, 1978.
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Editora da UFBA, 2008.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes (Vol. I): o legado da “raça branca”. São Paulo: Dominus Editora, 1965.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: a formação da família brasileira sob o regime patriarcal. São Paulo: Editora Global, 2006.
FREYRE, Gilberto. O mundo que o português criou. São Paulo: É Realizações, 2010.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. São Paulo: Perspectivas, 2016.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014a.
MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Lisboa, Edições Mulemba, 2014b.
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