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Figuras empíricas do homo sacer: aproximações ao fenômeno neoliberal
Homo sacer’s empirical figures: approaches to the neoliberal phenomenon
Figuras empíricas do homo sacer: aproximações ao fenômeno neoliberal
Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 3, pp. 162-182, 2022
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepción: 22 Abril 2022
Aprobación: 01 Octubre 2022
Resumo: Na obra Multiculturalismo: examinando a política do reconhecimento de Charles Taylor, a ideia de identidade Este artigo propõe uma leitura e aplicação do conceito metafísico do homo sacer, central no pensamento de Giorgio Agamben. Deste modo, pretende-se depurar de contextos históricos, sociais e políticos figuras empíricas que refletem traços fundamentais da vida nua, estendendo a aplicação de tal paradigma. Para tanto, é preciso considerar algumas críticas – expostas na introdução do trabalho – ao pensamento de Agamben, que norteiam o empreendimento sem, no entanto, afastar-se absolutamente do arcabouço agambeniano, mas sim provendo novo fôlego às suas construções filosóficas. Basicamente, trabalhar-se-á com três autores críticos: Judith Butler, Thomas Lemke, e Ludueña Romandini. Com isso em mente, propõe-se um modo de leitura do paradigma do homo sacer que permita análises mais precisas da facticidade, garantindo sensibilidade às nuances biopolíticas em seus contextos específicos – ou seja, evitando que todo o corpo social se reduza à sacralidade da nuda vita. Na primeira seção duas figuras são depuradas: as minorias nacionais, a partir das análises políticas de Hannah Arendt; e os detentos indefinidos da Baía de Guantánamo, investigada por Judith Butler. Em um segundo momento, pretende-se aproximar a razão econômica neoliberal ao paradigma de exceção e extrair uma nova figura contemporânea do homo sacer, o homo oeconomicus, ou o sujeito-empresa. Por fim, evidencia-se as consequências neoliberais, desta forma de vida econômica, para a proposta filosófico-política de Agamben, isto é, de implementação de uma comunidade e política inoperosa. Ainda, as consequências para a democracia vigente e as limitações do arcabouço agambeniano para tal contexto político.
Palavras-chave: Agamben, Biopolítica, Homo sacer, Neoliberalismo, Exceção, Homo oeconomicus.
Abstract: This paper propose a reading and application of the homo sacer metaphysical concept, central to the Giorgio Agamben thought. Thus, aims to debug from historical, social and political contexts empirical figures who reflect fundamental bare life features, extending the application of that paradigm. Therefore, is needed to consider some criticism – exposed in the introduction of the work – to the Agamben’s thought, which guide the enterprise, however without to depart absolutely from agambenian framework, but providing a new breath to his philosophical constructions. Basically, will be worked with three critical authors: Judith Butler, Thomas Lemke and Ludueña Romandini. With this in mind, propose a reading mode of the homo sacer paradigm that allows more precisely analysis of facticity, ensuring sensitivity to biopolitical nuances in their specific contexts – in other words, avoiding that the entire social body be reduced to the nuda vita sacredness. In the first section two figures is debugged: the national minorities, from Hannah Arendt political analysis; and the undefined inmates of Guantanamo Bay, investigated by Judith Butler. In a second moment, has the intention to approximate the neoliberal economic reason to the exception paradigm and to extract a new empirical figure of homo sacer, the homo oeconomicus, or enterprising subject. Finally, it is evidenced the neoliberal consequences, of that economic way of life, to the Agamben’s philosophical-political proposes, i. e., the implementation of an inoperative community and politics. Furthermore, the consequences to the actual democracy and the limitations of agambenian framework for such political context.
Keywords: Agamben, Biopolitics, Homo sacer, Neoliberalism, Exception, Homo oeconomicus.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo utilizar o arcabouço agambeniano para ler fenômenos políticos não tratados por Agamben – alguns apenas mencionados, como o caso da Baía de Guantánamo. O ponto principal é pensar o paradigma2 do homo sacer3 na concretude, como faz o autor em sua análise do muçulmano em Auschwitz e outros Lager nazistas. Deste modo, o que se pretende identificar são figuras (figuren) ou representações do homo sacer provenientes do paradigma de exceção, destacando principalmente três conjunturas políticas: primeiramente, a zona na qual o poder do Estado-nação não alcança a concretização dos direitos humanos e produz fragilização das minorias nacionais. Em um segundo momento, o funcionamento da exceção no interior de uma democracia liberal, especificamente a norte-americana, a partir das investigações de Judith Butler sobre a Baía de Guantánamo. Por fim, a tentativa de pensar o homo oeconomicus neoliberal como nova e principal figura do homo sacer na contemporaneidade – para tanto, é preciso partir do pressuposto de que o registro econômico é suficientemente capaz de impor um paradigma de exceção que atravessa necessariamente o Estado, mas vai para além deste.
O trabalho não preconiza uma leitura exegética do pensamento agambeniano. Na verdade, busca-se ir para além do próprio autor, apontando alguns desafios e fronteiras, voltadas em maior medida ao paradigma do homo sacer, mas que podem nos ser útil para repensar a própria filosofia de Agamben. Ou seja, é preciso deixar claro que não se vincula à proposta filosófico-política do autor em sua totalidade. Deste modo, algumas críticas ao autor são levadas em consideração, sendo a proposta deste artigo apontar caminhos alternativos que contornem tais críticas e que, simultaneamente, não descartem o arcabouço desenvolvido pelo italiano. Assim, é necessário algumas considerações metodológicas e críticas antes de adentrar ao desenvolvimento do tema, isto é, à elaboração de figuras do homo sacer. O arcabouço teórico de Agamben possibilita uma leitura sofisticada do evento biopolítico. Entretanto, o autor parece obscurecer as próprias fronteiras, e mesmo capacidades, de tais operadores conceituais. Para que isso fique mais evidente, utilizar-se-á três autores críticos de Agamben: Judith Butler, Romandini Ludueña e Thomas Lemke.
Lemke é enfático ao dizer que não há em Agamben nivelação entre democracia e ditadura, confusão que pode ocorrer devido à aproximação realizada entre ambas as formas de governo na obra homo sacer: poder soberano e vida nua. Entretanto, há presença da vida nua em ambas as conjunturas políticas (LEMKE, 2018, p. 84). É aqui que surgem alguns problemas, pois como afirma o autor, Agamben está preocupado na identificação das dinâmicas biopolíticas de produção do homo sacer, mas não se interessa pelas diferenças com relação às formas de vida daí decorrentes, no interior mesmo dos modos específicos de governo. Ao fim e ao cabo, Agamben chega mesmo a sustentar que a totalidade dos cidadãos se apresentam virtualmente como homines sacri, ofuscando em larga medida a capacidade analítica do autor em identificar as peculiaridades das conjunturas políticas práticas. Conforme Lemke, o autor italiano não evidencia “o mecanismo de diferenciação que distingue entre os ‘valores da vida’”; e prossegue de maneira precisa: “não fica claro o que exatamente há em comum entre os pacientes em coma na UTI e os encerrados dos campos de extermínio”. Assim, a análise de Agamben é caracteristicamente dramatizada e “presa da objeção de uma trivialização”, pois cai numa generalização e nivelação dos fenômenos biopolíticos exagerada, fragilizando uma “avaliação sóbria” da realidade (LEMKE, 2018, p. 86). É precisamente essa análise gradativa e valorativa – mas não hierarquizada – que se pretende construir a partir da extração de figuras empíricas do homo sacer – respeitando seu contexto histórico-temporal –, revitalizando o pensamento agambeniano.
No que concerne à Butler, a autora parece corroborar com as observações de Lemke. Na realidade, a autora afirma que as análises de Agamben não são suficientes para descobrir como o “poder funciona de modo diferencial para administrar e direcionar certas populações, para desrealizar a humanidade de sujeitos que poderiam pertencer a uma comunidade vinculada a leis comumente reconhecidas” (BUTLER, 2019, p. 92). Ou seja, Agamben parece não se preocupar com as peculiaridades do funcionamento biopolítico, ou mesmo do poder soberano, principalmente no interior do Estado democrático. Ele parte da realidade dos Estados totalitários do século XX e transpõe a dinâmica para a conjuntura política contemporânea. Segundo Lemke, “Agamben não compreende que a biopolítica é essencialmente uma economia política da vida”, ele está focado no banimento e exclusão da vida política dos sujeitos e, além disso, mantem-se no poder soberano e cego à mecanismos que “operam aquém ou além do direito” (LEMKE, 2018, p. 89).
Outro ponto crítico, que ambos autores parecem compactuar, deriva da crítica institucionalizada de Agamben, isto é, o foco crítico do autor para análise das máquinas-dispositivo e seus respectivos paradigmas é, em substancial grau, o Estado. Deste modo, segundo Lemke, Agamben se esquece de que a biopolítica, principalmente hoje, está muito além do Estado-nação: “Cada vez menos é o Estado que, por cuidado com a saúde do ‘corpo do povo’ decide soberanamente sobre o valor ou desvalor da vida” (LEMKE, 2018, p. 90). Deste modo, Agamben se impõe uma limitação analítica, pois não se torna capaz de pensar os campos de tensões políticas, sociais e econômicas a partir das quais uma “vida nua”, uma figura do homo sacer possa derivar, mas simplesmente nivela todos os sujeitos à sacralidade. Por exemplo, não seria possível pensar um “modelo de privatização do ‘cuidado’” proveniente da racionalidade neoliberal que, por sua vez, cerceia a própria mobilidade da práxis política dos cidadãos (BUTLER, 2019b, p. 20).
No mesmo sentido, retomando o problema da sacralidade, Butler realiza um importante apontamento, pois Agamben parece cindir em absoluto a zoè da bios no início de seu projeto, negando à vida nua uma faceta política remanescente. Para a autora, se se pensar que ambos os polos se conjuntam na cidadania, restringe-se o domínio analítico do biopoder. Segundo a autora, o movimento biopolítico de Agamben pode e deve ser reconhecido por outros modos de governamentalidade, não “facilmente reduzíveis a atos soberanos” (BUTLER, 2020, p. 43). Acrescento que mesmo a proposta da forma-de-vida não permite uma apurada analise dos dispositivos governamentais no interior da comunidade inoperosa, isso pelo simples fato de Agamben buscar unicamente um espaço não-governamental, no qual não há relação do direito e violência. Não se atentando até mesmo aos problemas decorrentes da unificação público/privada no sujeito sem identidade. Deste modo, lutas e resistências identitárias são, ao menos em Agamben, completamente inexistentes.
No que concerne à Romandini, sua construção esboça uma crítica com maior amplitude, pois não atinge apenas o pensamento de Agamben, mas toda uma tradição de pensamento que compactua com a cisão zoè e bios. O autor sustenta que a divisão entre oikonomía e politikè foi uma resposta de Aristóteles à “definição platônica da política como poder sobre a vida” (ROMANDINI, 2013, l. 134). Isso pelo fato de que para Platão todo exercício do poder soberano coincide com a administração do vivente. De acordo com Romandini “a ciência política, diz Platão, não é senão uma subespécie da ‘produção e criação de seres viventes’” (ROMANDINI, 2013, l. 152). O autor demonstra que até mesmo em Aristóteles tal divisão não pode ser realizada da forma como Agamben a sustenta, e o faz utilizando o mesmo texto (a Política) em que Agamben se apoia. Não cabe aqui detalhar toda a construção argumentativa-teórica que Romandini desenvolve, o relevante é o resultado alcançado: tanto para Platão quanto para Aristóteles, o homem não é mais que um animal que decidiu exercer um certo tipo de ação reguladora sobre sua vida biológica, ação esta denominada como política. A fim de tornar a posição deste autor mais clara, vale citar uma passagem mais extensa de sua obra:
Precisamente, o que Aristóteles tenta assinalar com o sintagma zôon politikòn é que a substância mesma do homem, enquanto distinto dos outros animais, consiste em ter sua existência biológica essencialmente politizada. Ou seja, quando um animal politiza a sua existência surge então, imediatamente, um homem. Não é possível, assim, isolar algo como duas dimensões da vida, dado que a política não é um suplemento da vida – agora chamado bíos – que se agregaria a posteriori a um substrato constituído por uma zoè primária como sustenta Agamben. [...] Se não há uma verdadeira distinção categorial entre zoè e bíos, então a política é, em Aristóteles, desde seus primórdios, uma política da vida. Não existe, em consequência, uma política que transcenda a vida biológica da espécie. O homem é chamado político simplesmente porque é o único animal que toma em seu encargo a direção consciente de sua própria zoè de acordo com os critérios do justo e injusto. Porém, o substrato sobre o qual a política se aplica não é outro que a zoè original. (ROMANDINI, 2013, l. 308/319).
Deste modo, Romandini pretende negar a distinção absoluta realizada por Agamben entre zoè e bios. Segundo o autor, a leitura agambeniana não leva em consideração o corpus platônico, brevemente assinalado acima. De todo modo, é preciso destacar que, diferentemente da forma como Agamben pensa e constrói sua interpretação da política Antiga, na qual a zoè, a vida da oikos era destituída de caráter político, voltado em absoluto para a esfera privada, Romandini aponta que a zoè é o objeto originário de toda política (ROMANDINI, 2013, l. 277). Resgatando o texto Carta sobre o humanismo de Heidegger, o autor sustenta que este fora o “primeiro filosofo do século XX a ter reconhecido com absoluta claridade aquela dimensão zoopolítica fundamental que marca o começo da cidade dos homens e determina de forma perdurável o desenvolvimento ulterior da metafísica” (ROMANDINI, 2013, l. 338). Portanto, a política originária não é biopolítica, mas zoopolítica, remetendo-se à oikos e à administração dos seres viventes.
As implicações dessa leitura são vastas, não cabendo aqui ser esmiuçadas. Entretanto, é preciso destacar que a gênese da questão biopolítica não deve se concentrar na modernidade – ou mesmo em Aristóteles, como dito. Romandini demonstra com clareza como a questão da relação entre vida e política já pode ser encontrada em Platão, por exemplo na República. Além disso, observa que a zoopolítica – respeitando seu léxico – “não é produto de uma sacratio penal”, como pensa Agamben – a estrutura jurídico-política, a relação direito e violência. Trata-se de um “princípio eugênico que busca regular o corpo biológico da cidade através do ius exponendi” (ROMANDINI, 2013, l. 1178). A partir disso, já fica evidente que Romandini sustenta outra corrente de interpretação dos textos clássicos, principalmente do fenômeno político originário. Uma investigação minuciosa sobre o impacto do trabalho do autor sobre o empreendimento agambeniano é uma abertura de pesquisa imprescindível que não pode ser aqui realizada.
Com isso, pretendeu-se assinalar críticas, aqui consideradas lúcidas, ao pensamento de Agamben e que podem, entretanto, auxiliar na produção de desdobramentos positivos do próprio arcabouço filosófico do autor italiano. A crítica de Romandini vai além do que o artigo se propõe a contornar. Isso pelo fato de que, se se parte da negação da cisão entre zoè e bíos, todo o desenvolvimento biopolítico de Agamben deve ser relido e reinterpretado, podendo ou devendo ser modificado em grande medida. Se a cisão basilar do empreendimento agambeniano é colocada em cheque, ou seja, se a vida natural (zoè) não é totalmente excluída da pólis e confinada à reprodutibilidade e economia da oîkos, portanto toda a dinâmica biopolítica traçada por Agamben deve ser revista, pois não se trata precisamente de uma cisão política qualitativa, mas uma cisão proveniente de outros termos. O zôon politikòn não seria mais “uma diferença específica que determina o gênero zôon” (AGAMBEN, 2017, p. 10), distinguindo a política humana – suplementada pela linguagem e sua politização – da política de outros seres viventes, mas propriamente aquilo que nos distingue de tais entes animados. Não cabe aqui realizar tal empreendimento, a intenção é ater-se ao paradigma do homo sacer a partir, principalmente, das críticas de Butler e Lemke.
Primeiramente, deve-se ter em mente que tal paradigma não é imanente, ou seja, não existem homines sacri como dado e assim nascidos naturalmente no mundo. É, portanto, uma figura deontológica, uma construção artificial, sempre inacabada e inacabável, por isso mesmo, amorfa. Trata-se de uma atribuição desqualificativa externa ao sujeito, pois retira o indivíduo da esfera humana, a denominada dupla exclusão – da vida dos homens e da eternidade dos deuses. Além disso, é importante ressaltar o perigo da leitura dogmática desse recurso metafísico-político, o homo sacer; não se podem subsumir sem reservas as figuras empíricas ao paradigma, nem este àquelas; isso provocaria distorções significativas, por exemplo: abarcar os apátridas e refugiados como muçulmanos e, assim por diante; ou restringir a vida sacra a apenas uma forma de vida. Do mesmo modo, não é adequado produzir uma categorização das figuras do homo sacer, pois isso provocaria cisões e, consequentemente, hierarquizações, resultando em outras problemáticas discriminatórias4.
Deve-se compreender o homo sacer na medida da transfiguração qualitativa de suas figuras fáticas; a partir de suas concretas e únicas diferenças, que promovem, por sua vez, a vida sacra específica de cada uma delas. As alteridades encontram respaldo na igualdade metafísica do homo sacer, na perda da qualidade humana da vida do ser, no tornar-se não-homem. Outro ponto fundamental é que a vida sacra possibilita a abertura para uma outra dinâmica do poder, que se denominou tanatopolítica, pois somente a partir do momento em que a morte perde sua dignidade, em que se torna um fenômeno banal, é que se vislumbra uma produção ou fabricação em massa da morte, sem qualquer preocupação com a dignidade humana, este é o ápice do horror promovido no e pelo campo. Ainda no que concerne à produção e banalização da morte, vale ressaltar que há diferença entre o fazer e o deixar morrer, ou seja, entre uma conduta comissiva e outra omissiva; clivagem esta que pode oferecer lampejos para diferenciar as dinâmicas biopolíticas existentes nas diversas formas de organização do Estado-nação, i. e., entre um Estado Totalitário ou Autoritário de um Democrático de Direito, possibilitando uma análise mais própria e aguçada da biopolítica em cada paradigma.
Figuras empíricas do homo sacer
Agamben trabalha o capítulo de Hannah Arendt, “O declínio do Estado-nação e o fim dos direitos do homem”, que compõe a obra Origens do Totalitarismo, assinalando a problemática dos refugiados, existente desde a primeira metade do século XX, reconhecendo, com razão, que tais sujeitos representam o rompimento com a “continuidade entre homem e cidadão, entre nascimento e nacionalidade” (AGAMBEN, 2007, p. 138). Arendt, por sua vez, não trabalha com o paradigma da biopolítica, nem aprofunda as teses por ela lançadas, no entanto, não deixa de produzir uma rica investigação histórico-política muito útil ao presente empreendimento. A autora demonstra que, após a Primeira Guerra Mundial, no período do entre guerras, os movimentos de migração tornaram-se fenômeno problemático, principalmente na Europa. Uma vez que os sujeitos deixavam de ser reconhecidos por seu Estado de origem, tornavam-se apátridas, sem lar, sem proteção, não mais alcançados pelos direitos humanos, tornando-se o “refugo da terra” (ARENDT, 2012, p. 369). Ressalta-se o status político-social dos apátridas, das minorias, dos refugiados, que não tinham nem mesmo a possibilidade de trabalho e o direito à propriedade, em tese definidos como inalienáveis; viviam sob o umbral das leis de exceção derivadas do Tratado das Minorias, que pretendia contornar o problema a partir de dois movimentos, basicamente: ou criando novos Estado-nação a partir do amalgama heterogênico dos povos sem Estado; ou os agregando a países recém-criados, por exemplo, a partir de desmembramentos (ARENDT, 2012, p. 373/374). De qualquer maneira, os Tratados de Paz e de Minorias, nestes moldes, foram incapazes de solucionar o problema, deixando cristalina as limitações dos Direitos do Homem e dos próprios Estados-nação, principalmente aqueles fragilizados pela guerra.
Os Tratados de Paz e Minorias eram produzidos e garantidos pela Liga das Nações, entidade internacional que, na medida do possível, uma vez que não possuía grande força imperativa sobre os Estados-nação, objetivava solucionar o problema sem significativo apoio destes. Arendt pontua que, em realidade, sempre existiram minorias, mas não enquanto grupo significativamente numeroso5, sem amparo legal, jurídico, necessitando de “proteção” suplementar de órgãos externos aos Estados; tampouco se reconheceu que tal status não era temporário, mas permanente e que, portanto, tais tratados buscavam construir um novo modus vivendi. A autora reconheceu o problema e as limitações do Estado-nação e dos direitos do homem, pois “somente os ‘nacionais’ podiam ser cidadãos, somente pessoas da mesma origem nacional podiam gozar de toda proteção das instituições legais”; por sua vez, aquelas minorias, os apátridas e refugiados, os indivíduos sem Estado, “precisavam de alguma lei de exceção”. O Estado se tornou um instrumento da nação e não mais da lei, “a nação havia conquistado o Estado, e o interesse nacional chegou a ter prioridade sobre a lei” (Arendt, 2012, p. 378/379), conjuntura essa que mostra os primeiros traços daquilo que iria encontrar sua máxima forma na ideologia Nazista: “o direito é aquilo que é bom para o povo alemão”.
O status socio-político em que tais sujeitos se encontram é aquele no qual sua vida nua foi completamente isolada da sua vida qualificada, de sua bíos, e capturada pelo âmbito de exceção no qual paira a incerteza, a indiscernibilidade, o liame entre a vida e a morte. Não se trata mais de um humano, já não se possui mais esta qualificação, trata-se apenas de uma vida biológica. Arendt aponta o ápice desse quadro ao trabalhar o criminoso e o apátrida; a fragilidade deste é tão profunda que se torna preferível cometer um crime e, portanto, tornar-se criminoso, uma vez que, desta maneira, estará em alguma medida amparado por um ordenamento legal, não podendo ser “tratado pior que outro criminoso, isto é, será tratado como qualquer outra pessoa (seja cidadão ou não) nas mesmas condições”. O apátrida qualifica-se tornando criminoso, retornando assim à esfera humana, retirando sua vida da sacralidade; não é mais o “refugo da terra”, está protegido, regulamentado sob a lei que o julgará, tem os mesmos direitos de um acusado qualquer (Arendt, 2012, p. 390). A autora sustenta que, inicialmente, acreditava-se que os Direitos do Homem independiam de uma ordem jurídica, i. e., derivavam do indivíduo em si, devido a um sistema de “valores sociais, espirituais e religiosos” derivados do arcabouço jusnaturalista; todavia, a partir da sociedade secularizada houve uma ruptura que colocou em ruína os pressupostos originais, sendo tais direitos ontologicamente “inalienáveis” “irredutíveis” e “indeduzíveis” absorvidos pelo moderno Estado-nação, o homem sendo diluído no povo (ARENDT, 2012, p. 395/396). Tais direitos não são intrínsecos, ontológicos, mas deontológicos, construídos artificialmente pelos próprios homens:
O fator decisivo é que esses direitos, e a dignidade humana que eles outorgam, deveriam permanecer válidos e reais mesmo que somente existisse um único ser humano na face da terra; não dependem da pluralidade humana e devem permanecer válidos mesmo que um ser humano seja expulso da comunidade humana. Quando os Direitos do Homem foram proclamados pela primeira vez, foram considerados independentes da história e dos privilégios concedidos pela história a certas camadas da sociedade. (Idem, p. 405)
O apontamento realizado por Arendt sobre as minorias nacionais, os apátridas e refugiados, demonstra que as conjunturas problemáticas em torno do humanismo, no sentido de suas fragilidades e limitações, já estavam delineadas antes mesmo da ascensão dos movimentos nazifascistas e o fomento do antissemitismo. Deste modo, antes do muçulmano se apresentar como figura central do autor para suas análises sobre a vida nua do homo sacer, é forçoso apontar que tais minorias nacionais já apresentavam traços ou elementos da nuda vita, que seriam exacerbados nos campos nacional-socialistas. Vale destacar, ainda, uma distinção quanto à leitura que ambos autores realizam sobre este mesmo fenômeno político. Arendt parece ainda apostar num modelo de Estado, evidentemente não totalitário, capaz de constituir uma política capaz de gerar igualdade não através do registro bio-fisiológico, mas a partir da ação política. Agamben, por sua vez, apesar de seguir Arendt na leitura histórica, não compreende o problema nestes termos dialéticos entre nacionalidade e humanidade. Para o autor o problema central é biopolítico, voltado ao funcionamento da máquinas-dispositivo responsáveis por produzir a exceção e a vida nua. Portanto, seja no interior do Estado-nação, seja fora dele, figuras do homo sacer serão produzidas caso não haja a estagnação desta maquinaria – proposta que o autor alimenta principalmente ao final da obra O uso dos corpos.
Todavia, não se trata apenas de fenômenos próprios do século XX, e Agamben pontua alguns acontecimentos do início do século XXI, mas não chega a trabalhá-los com profundidade. Temos o caso da Baía de Guantánamo, que recebe atenção em algumas obras de Judith Butler. Após o atentado terrorista do 11 de Setembro, a autora chama a atenção para a acentuação de alguns aspectos da ideologia política tanto do Estado (EUA) quanto da população que, de maneira sintética, pôde ser observada pela intensificação dos discursos nacionalistas de proteção à soberania do Estado, consequentemente, em favor da suspensão de direitos e garantias constitucionais, o que provocou o estreitamento da liberdade de opinião – especialmente àqueles que buscavam compreender o ocorrido – bem como o aumento da censura e do anti-intelectualismo (BUTLER, 2019, p. 09/11). Não é possível percorrer neste trabalho toda a extensão dos escritos da autora, o que interessa observar é o fenômeno da “detenção indefinida”, relativo à Baía de Guantánamo e sua práxis jurídico-política.
Butler deixa claro que, a partir de uma medida securitária em prol da defesa do Estado-nação e sua soberania, a lei foi efetivamente suspensa, instaurando um paradigma de exceção – que não é idêntico ao que houve na Alemanha nazista, por exemplo – que está presente no âmbito das tomadas de decisões políticas do governo e até mesmo na confusão dos poderes, no crepúsculo do Legislativo e do Judiciário pelo Executivo6; por exemplo, na publicação de novos regulamentos, na criação de tribunais militares específicos para o “julgamento” dos prisioneiros de Guantánamo e, inclusive, na prática omissiva do não julgamento de tais sujeitos, ou seja, na detenção indefinida dos presos, práticas estas que violam a Convenção de Genebra e os direitos de defesa por ela, em tese, assegurados (BUTLER, 2019, p. 73/74). Os presos de Guantánamo são os prisioneiros decorrentes da guerra contra o terrorismo, contra o Afeganistão (2002), são os sujeitos que ameaçam violar a segurança nacional dos Estados Unidos. A guerra é, portanto, uma forma de minimizar a precariedade para alguns e maximizá-la para outros. Os detentos de Guantánamo, presos indefinidamente, sem julgamento ou, na melhor das hipóteses, julgados a partir de uma regulamentação executiva7, administrativa-militar e sem legitimidade, pois não respeita os princípios constitucionais nem mesmo os diplomas humanistas internacionais, estão sob o signo da vida sacra, são torturados, mortos e sua morte não é passível de luto (BUTLER, 2018, p. 91).
A autora traz alguns poemas da coletânea Poems from Guatánamo que permitem iluminar os maus-tratos, as torturas, as explorações sobre o corpo daquelas vidas espectrais, daquelas vidas sacras. Retornando indiretamente às considerações sobre a ontologia social, afirma que o corpo revela duas “verdades”: o fato da “sobrevivência de uma pessoa estar tão estreitamente relacionada com o outro constitui o risco constante da sociabilidade” e é, portanto, sua promessa e sua ameaça (BUTLER, 2018, p. 96). Pela precariedade podem-se desenvolver métodos políticos de resolução de conflitos e governamentalização das populações que não impliquem em uma violência, no uso do paradigma de exceção e na composição de vidas sacras; mas, por outro lado, é a brecha que se abre ao domínio do poder soberano, às subjugações e crueldades diversas de determinadas formas de poder8. Voltando a Agamben, sua proposta não é o desenvolvimento de outras formas de governamentalidade ou de diretrizes do Estado-nação que primem pela não-violência, mas sim em um poder capaz de destituir a faceta operativa, instrumental e teleológica presente na política contemporânea. Como visto, a política que o autor busca é estritamente não-governamental, é uma política e comunidade inoperosa.
No momento da exceção, a Constituição vigente deixa de possuir uma força real e normativa, torna-se uma simbologia para aparência de normalidade. O filme The Report, lançado em novembro de 2019 e baseado em fatos reais, retrata o trabalho de Daniel J. Jones, investigador do Senado – especificamente o denominado Senate Select Committee on Intelligence –, responsável pela investigação sobre o Programa de Detenção e Interrogação da CIA utilizado amplamente na Baía de Guantánamo. Na obra ficam claras as torturas e crueldades, bem como o paradigma da exceção que constantemente manipula, corrompe, contorna a lei vigente, instaurando uma norma sem legitimidade.
Minha opinião pessoal é que uma versão contemporânea da soberania, revitalizada por uma nostalgia agressiva que procura se livrar da separação de poderes, é produzida no momento dessa retirada, e que precisamos considerar o ato de suspensão da lei como emblemático, dando vida a uma configuração contemporânea da soberania ou, mais precisamente, revitalizando uma soberania espectral dentro do campo da governamentalidade. O Estado produz, pelo ato de retirada, uma lei que não é lei, uma corte que não é corte, um processo que não é processo (BUTLER, 2019, p. 85).
Em todos os casos acima trabalhados, o que se pode observar é uma transposição à facticidade de todo arcabouço teórico desenvolvido por Agamben, assim como a dinâmica que o explicita. Há uma relação muito própria entre o paradigma da exceção e o campo, incluindo sua virtualidade, que se insere e se modifica na constituição do Estado moderno, i. e., para além da trindade ordenamento-território-população (nascimento) acrescenta-se o que Agamben denomina de localização deslocante, ou seja, o próprio campo enquanto um “resíduo” ou resto. Em outros termos, o paradigma de exceção se caracteriza como um espaço sem localização onde a lei é suspensa; em correspondência, o campo é uma localização sem ordenamento jurídico, um ambiente no qual o sistema político é capaz de capturar tudo aquilo que lhe excede (AGAMBEN, 2007, p. 182). É a partir dessa conjuntura que se torna possível a produção do homo sacer. É exatamente pelo fato da relação nascimento-nação estar tão impregnada nos modos de vida dos sujeitos e na estrutura do ente estatal que o campo se torna um fenômeno a ser utilizado a fim de capturar todo um espectro da vida que foge da polis. Fica assim mais clara a afirmação de que o paradigma de exceção é um dispositivo necessário da política contemporânea, sendo o campo o produto do embate entre os polos heterogêneos, nomos e phýsis. Tanto no caso dos apátridas e refugiados de Arendt, dos detentos indefinidos e das vidas não enlutáveis da Butler, quanto no caso dos Lager nazistas e dos programas de execução do partido nacional-socialista alemão, o que se produz é, em algum nível, um feixe de exceção que foge dos limites jurídico-políticos do Estado, a incidência de um campo virtual – que pretende estender o âmbito de ação do poder soberano, capturar aquilo que está fora e excluí-lo a partir de tal inclusão – sobre determinado espectro social que, imediatamente, tem sua natureza sócio-política e ontológica alterada, modificada a partir de um poder capaz de atingir as capilaridades mais diversas da vida, resultando no correspondente fático do homo sacer.
Homo sacer e o homo oeconomicus neoliberal.
A intenção, agora, é trazer à luz mais um lugar a partir do qual o funcionamento dos dispositivos biopolíticos podem ser contemporaneamente observados. Isso pressupõe indicar tanto um novo dispositivo de implementação e manutenção da exceção, quanto uma nova figura empírica do homo sacer, dela resultante. É preciso ter em mente que a organização política a partir da qual Agamben extrai suas teses, ou seja, em maior grau, aquela do nacional-socialismo alemão, é incompatível com a atual realidade política, presente na maioria dos países – ao menos ocidentais – no qual o Estado-nação moderno é caracterizado como uma democracia liberal ou um Estado democrático de direito. Ou seja, de certa forma não se pode afirmar que tais arranjos institucionais do Estado se enquadram como uma ditadura ou totalitarismo, no sentido rigoroso do termo. A dinâmica biopolítica e/ou tanatopolítica se apresenta de maneiras distintas, por exemplo, no Estado Autoritário e no Estado Democrático, diferença que pode ser notada pelo modo de ação: por um lado, uma conduta comissiva e, por outro, omissiva. A forma de interpretação da conjuntura política não deve ser a mesma, exigindo, no mais das vezes, adaptações ou reinterpretações teóricas que proporcionem novo fôlego ao arcabouço conceitual.
No decurso desta seção, não é possível compreender o paradigma de exceção contemporâneo sem colocar em questão o registro econômico, o qual perpassa e determina tanto o agir político do Estado-nação quanto as interações sociais, ou seja, o agir individual e intersubjetivo. Optou-se assim por um afastamento do arcabouço agambeniano que se justifica pelas críticas anteriormente abordadas. Principalmente pelo fato de que o pensamento deste autor ainda se encontrar, em grande medida, apegado ao poder soberano e sua análise biopolítica voltada estritamente ao âmbito estatal, como mostra a máquina jurídico-política9. Além disso, seguindo Butler, Agamben parece possuir um déficit no que concerne à leitura das dinâmicas de poder sobre os corpos sociais e individuais; o que, em última análise, acaba por impedir uma apuração das conjunturas políticas especificas, levando a uma generalização do corpo social sacralizado. Portanto, a obra Nascimento da biopolítica, de Michel Foucault, será de fundamental importância para a investigação crítica, uma vez que trabalha uma forma de governamentalidade de populações com base na racionalidade econômica.
A presente investigação se desenvolve a partir de um movimento duplo, mas inteiramente congruente: primeiramente, a partir da aproximação do paradigma de exceção ao campo econômico, precisamente aquele de racionalidade neoliberal; depois, extrair deste campo uma nova figura empírica do homo sacer a partir da forma de vida vigente neste paradigma, sendo por ele produzida. No que concerne ao primeiro movimento, não será possível realizá-lo em profundidade no presente empreendimento. Uma análise mais profunda exigirá pesquisa de maior fôlego, uma vez que se mostra extensa e próxima à filosofia do direito, pelo fato da racionalidade neoliberal primar por uma estrutura jurídico-legal com base na common law. Já em Lippmann a política liberal e a governamentalidade do Estado são essencialmente judiciárias, ou seja, a administração da justiça se pauta não tanto pela legislação em si, mas pela dinâmica jurisprudencial (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 96). Deste modo, um caminho possível de investigação aprofundada do tema, para averiguar em detalhes o paradigma de exceção e sua relação com o neoliberalismo, emerge do modo como a estrutura do direito do Estado se organiza e atua frente à conjuntura econômica neoliberal. Por este caminho, ao menos no cenário brasileiro, um foco importante de discussão é o realismo jurídico10. Dito de modo expresso, trata-se de pensar a estrutura jurídico-legal sendo utilizada pela racionalidade neoliberal como técnica jurídica para implementação e manutenção de um paradigma de exceção, mesmo sem rompimento institucional e constitucional aparente.
O escopo delineando na presente etapa deste trabalho volta-se, por sua vez, ao segundo movimento: precisamente aquele que lança luz sobre o conceito de homo sacer e a nova figura empírica deste em um novo paradigma de exceção, constituído com base na racionalidade neoliberal. Lido a partir da chave dupla – ontológica e jurídica – o homo sacer diferencia-se do soberano, apesar do abandono em que ambos se encontram jogados, pois tem sua vida, e mesmo sua morte, excluídas da preocupação ético-política devido ao paradigma de exceção, ou campo virtual de exceção, em que se encontra. Deste modo, foi possível distinguir dentre aqueles que operam o dispositivo da exceção – soberanos – e aqueles que são direta e indiretamente por ele afetados. Uma questão surge no horizonte: seria possível conceber uma figura empírica do homo sacer que se autopreservasse no interior mesmo do campo de exceção virtual?
A biopolítica, ou mais precisamente, a tanatopolítica presente no paradigma de exceção nacional-socialista alemão, e nos Lager nazistas, pode obscurecer a questão, tendendo a negá-la quase de imediato. No entanto, é preciso recordar que a política nazista estava disposta para assassinar, em massa, até mesmo alemães e membros do próprio partido nazista, em prol da realização “absoluta” do princípio eugênico da raça superior. Essa tendência, que frutificaria caso o regime nazista persistisse no tempo, pode ser observada no próprio programa de eutanásia – Euthanasie-Programm filr unheilharen Kranken – que vigorou durante 1940 a 1941 e que produziu mais uma figura empírica do homo sacer – as vidas indignas de serem vividas: doentes físicos e mentais, idosos, etc. – e mais de sessenta mil mortes (AGAMBEN, 2017, p. 147). Ou seja, não é de forma alguma implausível que os próprios operadores deste paradigma de exceção e dos campos de concentração fossem, eventualmente, vítimas da própria máquina biopolítica que sustentaram.
Deste modo, é possível pensar que a diferenciação e a qualificação, no âmbito do estado totalitário, entres as massas populares e os próprios operadores do Estado, com relação ao homo sacer, por exemplo os muçulmanos, se pautaria unicamente por uma decisão soberana. O totalitarismo possui uma estrutura de poder fluida, isso pelo fato de que toda a sociedade e os sujeitos que a compõem serem supérfluos aos olhos do estado totalitário, e não apenas as vidas inseridas nas malhas dos campos de concentração: “se fossem capazes de dizer a verdade, os governantes totalitários responderiam: o aparelho parece supérfluo unicamente porque serve para tornar os homens supérfluos” (ARENDT, 2012, p. 606). Para Arendt os campos de concentração possuíam um propósito mais profundo e longínquo: a formação de determinada “natureza humana” modificada e adaptada estritamente à realidade totalitária. De qualquer maneira, isso apenas mostra que o questionamento anteriormente levantando, acerca de um sistema de produção de vidas sacras que se mantêm no interior do campo que as produz, não é um absurdo, já encontrando vestígios significativos no totalitarismo do século XX. No entanto, a dinâmica biopolítica presente nesta conjuntura totalitária não se verifica no âmbito do Estado democrático, ou seja, há uma substancial transformação nos dispositivos de poder. A pergunta deve ser, portanto, especificada: a partir de qual dispositivo biopolítico torna-se possível, na realidade democrática vigente, produzir um sujeito supérfluo, meramente subsistente, detentor de uma vida nua, constituindo-se assim mais uma nova e determinada representação ôntica do homo sacer?
Tendo como pressuposto a aproximação do paradigma de exceção ao âmbito econômico, é interessante destacar alguns traços da racionalidade neoliberal, a fim de proporcionar o cenário a partir do qual uma nova figura empírica do homo sacer será produzida. Assim, apenas os fundamentos de sustentação da hipótese serão abordados. O primeiro é: “a economia é criadora do direito público” (FOUCAULT, 2008b, p. 114). Esta afirmação surge a partir da leitura de Foucault sobre a economia liberal da Alemanha e dos E.U.A ainda na primeira metade do séc. XX. A programação (neo)liberal apresenta-se neste quadro histórico sob duas ancoragens: a alemã, remetendo à República de Weimar, à crise de 29, ao movimento nacional-socialista e ao pós-guerra; e a americana, remetendo-se à política econômica do New Deal. A partir deste primeiro fundamento, a economia neoliberal produz legitimidade para o Estado, este que se posiciona como um “avalista”. Foucault sustentará que, na Alemanha da época, a economia, seu desenvolvimento, produz soberania política a partir da instituição e do jogo institucional que a produz e mantem. A raiz política dessa legitimidade soberana deriva do consenso de todos aqueles inseridos no jogo econômico do mercado livre, ou que podem nele se inserir e se beneficiar – ao menos em tese. Assim, o consenso de tais sujeitos econômicos, destes agentes, produz um consenso político (FOUCAULT, 2008b, p. 114).
A partir deste primeiro arranjo econômico-político e do consenso político derivado da própria instituição econômica de caráter neoliberal, outro fundamento deve ser mencionado: diferentemente de uma economia mercantilista, preocupada com o gerenciamento da troca, uma vez que nela se sustenta, a econômica neoliberal preocupa-se com os mecanismos da concorrência: “São esses mecanismos que devem ter o máximo de superfície e de espessura possível, que também devem ocupar o maior volume possível na sociedade” (FOUCAULT, 2008b, p. 201). Assim, a sociedade e a política estão submetidas à dinâmica concorrencial e, portanto, desenvolve-se uma sociedade empresarial, pois a figura dos sujeitos inseridos neste cenário é a do homo oeconomicus, que se caracteriza como o “homem da empresa e da produção”. Não é mais o consumidor a figura central, pois este, apesar de permanecer na ordem econômica, é apenas um sintoma inevitável, um fenômeno ainda raso. O homo oeconomicus acaba por consumir a si mesmo uma vez que é simultaneamente empregado e empregador. Os sujeitos atomizados e individualizados compõem uma sociedade empresarial, no sentido de fragmentos de um todo que se estrutura apenas pelos mecanismos de concorrência e pautados pelo lucro. Isso leva a outro ponto crucial: tendo em vista esta dinâmica social concorrencial, de tendência atomizante dos sujeitos e multiplicação das empresas, é primordial que esta “arte de governar” neoliberal necessite e realize modificações no sistema jurídico-legal, nas instituições jurídicas, pois, conforme Foucault, há uma multiplicação nas “superfícies de atrito entre cada uma dessas empresas” (FOUCAULT, 2008b, p. 204).
A relação entre a sociedade empresarial, o homo oeconomicus e, por outro lado, as instituições jurídico-políticas do próprio Estado de direito já se tornam mais tangíveis, desvelando uma relação problemática de sobreposição da governamentalidade neoliberal sob o paradigma de Estado moderno em geral. Isso se cristaliza, ainda, ao final do curso, quando Foucault se dedica às relações do homo oeconomicus com o poder soberano e o sujeito de direito. Segundo o autor, a sociedade civil e o homo oeconomicus fazem parte do conjunto das tecnologias de poder governamental liberal (FOUCAULT, 2008b, p. 403). Em suma, o homo oeconomicus, e a sociedade por ele composta, não se subsumi ao sujeito de direito e sua respectiva estrutura, o movimento é precisamente o inverso. Este fundamento causa impactos relevantes que reverberam no poder soberano, pois, agora, este pode ser destituído pelas mecânicas neoliberais, estas assumindo o poder para si: “ante o homo oeconomicus, o poder soberano não se encontra na mesma posição que ante o sujeito de direito”; e continua: “o homo oeconomicus não se contenta em limitar o poder soberano. Até certo ponto, ele o destitui” (FOUCAULT, 2008b, p. 398). Esta destituição se traduz em uma incapacidade essencial em controlar, gerenciar, dominar a totalidade da esfera econômica; apresenta-se aqui o fluxo de fuga do poder. O homo oeconomicus é irredutível à esfera do direito e ao próprio Estado, em tese detentor do poder soberano e do monopólio do uso da violência. Assim, a teoria jurídica é incapaz de assumir esse problema: “como governar num espaço de soberania povoado por sujeitos econômicos” (FOUCAULT, 2008b, p. 400).
Estes são alguns fundamentos centrais que sustentam a hipótese acima mencionada e que pretende estender a aplicação do pensamento de Agamben para além do agir jurídico-institucional, para além das dinâmicas violentas do direito e do Estado-nação moderno. O vínculo econômico, nos termos neoliberais, produz uma forma de sociedade civil sustentada pelas convergências espontâneas dos sujeitos a partir do interesse econômico, a despeito de apresentar um caráter simultaneamente dissociativo, devido à dinâmica concorrencial. Vale ressaltar que a matriz do poder político é a sociedade civil, ou seja, o poder é pretérito ao Estado e à própria estrutura jurídica (FOUCAULT, 2008b, p. 411/13). Deste modo, a governamentalidade neoliberal e a estrutura por ela desenvolvida tende a assumir uma face de soberania diversa do poder soberano pensado até então. Apresenta-se, num primeiro momento, como âmbito mesmo de exceção – se a perspectiva adotada é a do Estado-nação moderno. Entretanto, a governamentalidade neoliberal pode ser interpretada como instituição capaz de usar e instituir o próprio paradigma de exceção e, assim, descolar-se em grande medida do Estado e de sua estrutura jurídica, para configurar-se como uma espécie de figura outra de governamento. Ressalta-se, portanto, a dimensão econômica, precisamente nos moldes neoliberais, como detentora de um poder soberano sui generis, pois, no sentido agambeniano, trata-se de um poder de bando. Este ponto pode ser sustentado se se compreender o Estado como não sendo “uma fonte autônoma de poder”, mas sim como o “efeito móvel de um regime de governamentalidades múltiplas” (FOUCAULT, 2008b, p. 106).
Trata-se de colocar em questão a economia enquanto um dispositivo, ou princípio ativo, para formação e modelo do Estado e para a produção de certa forma de vida da população. Ou seja, no neoliberalismo não trata simplesmente da sustentação de um livre mercado (laissez faire), absolutamente independente do ente estatal, mas sim da produção de polos intrincados, reciprocamente dependentes. A economia de mercado adere, portanto, a um caráter de dispositivo de regulamentação interna do Estado. Segundo Foucault: “Em outras palavras, um Estado sob a vigilância do mercado em vez de um mercado sob a vigilância de um Estado” (FOUCAULT, 2008b, p.159). Essa nova dinâmica econômica frente ao Estado corrobora para a aproximação do paradigma de exceção à economia.
Diferentemente do liberalismo clássico, para o neoliberalismo a essência do mercado encontra-se na concorrência. Para Foucault, a concorrência é uma espécie de eîdos que norteia, enquanto princípio de formalização, a conduta do mercado e dos sujeitos nele inseridos; além disso, esse princípio concorrencial sustenta um jogo baseado na desigualdade entre os concorrentes, evitando, evidentemente, o monopólio prejudicial à dinâmica da concorrência (FOUCAULT, 2008b, p. 163). Essa desigualdade traduz um caráter natural da dinâmica concorrencial, pois se trata de uma lógica eliminatória entre os sujeitos econômicos, uma “lei implacável da vida e o mecanismo do progresso por eliminação dos mais fracos” (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 53). É preciso salientar que este “caráter natural” do concorrencialismo não deve ser compreendido como crença neoliberal na essência natural do mercado – como pregava o liberalismo clássico. Pelo contrário, tanto Lippmann quanto os ordoliberais e outras correntes de regime liberal – como Von Mises e Hayek – distanciaram-se do naturalismo liberal, sustentando o liberalismo que então se desenvolvia como fruto de uma ordem legal, o que pressupõe um intervencionismo jurídico do Estado (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 75). Sustentar que o mercado, seja sob a forma da troca quanto do concorrencialismo, seja um dado natural, que se produz naturalmente e independentemente do Estado, para seu surgimento e manutenção, é uma forma de “ingenuidade naturalista” (FOUCAULT, 2008b, p. 163) que será colocada de lado rapidamente por tais economistas. Isso acontece justamente pelo fato de atribuírem significativamente as limitações e fracassos do liberalismo clássico ao fator naturalista.
A partir de Lippmann é possível afirmar que o não reconhecimento “da criação jurídica é o erro inaugural que se encontra no princípio da retórica de denúncia da intervenção do Estado” (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 84). Deste modo, o neoliberalismo, e seu modo capitalista concorrencial, não é de modo algum um produto da natureza, mas sim “uma máquina que exige vigilância e regulação constantes”, ou seja, o princípio de não-intervenção do Estado na economia, presente no liberalismo clássico, é posto de lado, e o sentido através do qual o intervencionismo deve se realizar entra em debate. Apesar da existência de peculiaridades entre os economistas que participaram do Colóquio Lippmann, da Escola de Friburgo, este é, de maneira geral, o ponto em comum, propondo-se nomear este novo modelo econômico de “liberalismo positivo”, isto é, intervencionista, desenvolvendo não apenas uma racionalidade econômica, mas precisamente uma racionalidade governamental (FOUCAULT, 2008b, p. 187).
Apesar deste distanciamento e negação do naturalismo de mercado, a origem do concorrencialismo revela uma profunda proximidade com o evolucionismo social. É relevante pontuar que não se trata de um darwinismo social, mas sim de um evolucionismo biológico baseado no pensamento de Spencer (spencerismo). Spencer será um autor importante para o pensamento liberal, primeiramente, por sustentar um não-intervencionismo do Estado a partir de uma lei de evolução que já mostra traços do concorrencialismo, pois a proteção legislativa aos mais vulneráveis é compreendida como um entrave à perfectibilidade da raça humana (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 46). Spencer realiza uma leitura muito particular do pensamento de Darwin, especificamente aquele de A origem das espécies, aproximando a teoria darwiniana ao laissez faire liberal, ou seja, estabelecendo um paralelismo entre o evolucionismo biológico e um “evolucionismo econômico”, ou, melhor dizendo, entre uma seleção natural biológica e uma suposta seleção natural econômica. Para Dardot e Laval: “Esse paralelo conduziu diretamente a uma deformação profunda da teoria da seleção”; e continuam: “A problemática da competição levava a melhor sobre a da reprodução, dando origem, assim, ao que foi chamado de maneira muito imprópria de ‘darwinismo social’” (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 52).
Tais autores não se encontram isolados neste posicionamento. Em realidade, uma gama de darwinistas compactuam com o posicionamento de que o pensamento de Darwin foi deformado a fim de atender a uma necessidade de caráter político-econômico11. Spencer parece não levar em consideração algo que Darwin sustenta em The descent of Man: para o autor, as sociedades civilizadas buscam neutralizar os aspectos da seleção natural, ou seja, a eliminação do mais fraco, a partir de um instinto natural de simpatia que enaltece um sentimento de preocupação e cuidado em relação aos mais vulneráveis; vale mencionar, ainda, que este “instinto de simpatia” (Sympathetic instincts) é um produto da própria seleção natural (PAUL, 2009, p. 224). Esse elemento é no mínimo problemático para se pensar uma “seleção natural econômica”.
A discussão sobre o darwinismo social é extremamente ampla e complexa, não sendo possível – nem mesmo necessário – entrar em detalhes nesta pesquisa. No entanto, as interpretações sobre a teoria darwinista e seus desdobramentos sociais, políticos e, como se vê, econômicos, variam imensamente, cobrindo um leque ideológico vasto, por exemplo, desde a fundamentação de um modelo de luta de classes marxista, até o laissez faire do livre mercado liberal (PAUL, 2009, p. 230). O foco é o evolucionismo de Spencer, que não trata especificamente sobre um concorrencialismo, mas pugna por um modelo evolutivo baseado na competição entre os homens. Para o spencerismo, a competição é um elemento que impele as criaturas a trabalharem mais e de maneira mais incisiva, trazendo melhoramentos ao organismo. No ponto final deste processo não haveria mais Estado, o governo tornar-se-ia supérfluo e desapareceria. Entretanto, no meio tempo, o Estado não deveria intervir para aliviar os sofrimentos dos inaptos. Para autores como Peter Bower, Spencer atribui maior ênfase no espírito competitivo do capitalismo do que propriamente ao princípio de seleção natural de Darwin (PAUL, 2009, p. 232).
Nesse caminho, Spencer desloca o pensamento liberal do modelo de divisão do trabalho ao do concorrencialismo como “necessidade vital”; consequentemente, o progresso não se realiza pela especialização, mas por uma seleção. Enquanto na divisão do trabalho a especialização dos sujeitos impõe uma lógica de complementariedade entre si, a competição econômica, ou concorrencialismo, enquanto razão do mercado, impõe um processo de “eliminação seletiva” daqueles que não conseguem sobreviver ao jogo do mercado. A concorrência, enquanto razão norteadora da ação do mercado e dos sujeitos, não é mais compreendida como elemento natural presente nas trocas de mercado, mas sim como uma “lei implacável da vida e o mecanismo do progresso por eliminação dos mais fracos” (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 53).
Com isso, Spencer proporcionou à doutrina liberal deslocar-se, diante da crise do liberalismo, do modelo da troca ao da concorrência – neoliberalismo. Ressalte-se que, atualmente, boa parte desta raiz evolucionista biológica do concorrencialismo é desprezada pelos neoliberais, uma vez que se mostra “datada”. No entanto, temos aqui uma parte constituinte do modus operandi da racionalidade neoliberal, ou seja, a concorrência e a competição são características essenciais e ainda presentes nessa lógica econômica. A partir de Patrick Tort, Dardot e Laval apontam como esse “darwinismo social” é melhor caracterizado como “concorrencialismo social” – a leitura de Tort mostra com clareza que o concorrencialismo diverge substancialmente do darwinismo, a partir das “tecnologias de compensação” que buscam reduzir artificialmente as desigualdades e debilidades entre os sujeitos inseridos em uma sociedade civil (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 54). Deste modo, Tort, diferentemente de Spencer, não ignora o instinto de simpatia, acima mencionado, mas busca ressaltá-lo como elemento do pensamento darwiniano que o distancia do evolucionismo social baseado na competição econômica.
É neste sentido que deve ser lida a “economia social de mercado” ou a “política de sociedade” (Gesellschaftspolitik) tratada por Von Rüstow e Müller-Armack (FOUCAULT, 2008b, p. 200). Em linhas gerais, essa economia social de mercado significa organizar mecanismos tanto econômicos quanto estatais – a partir de intervenções – para o fomento da concorrência entre os sujeitos, uma vez que o progresso social tem por base essa dinâmica competitiva, ou seja, ao “social” adere um significado distinto daquele encontrado no Estado de bem-estar social. É nesse sentido que se compreende a sociedade empresarial. De acordo com Foucault: “A Gesellschaftspolitik deve, portanto, anular, não os efeitos antisociais da concorrência, mas os mecanismos anticoncorrenciais que a sociedade poderia suscitar [...]” (FOUCAULT, 2008b, p. 222). A integração desta forma de racionalidade à estrutura do Estado, passando a nortear suas diretrizes, tem como resultado o denominado “Estado-empresa”, comportando consequências importantes para a dinâmica do ente estatal e sua relação com a sociedade e os atores privados: “É essa nova concepção ‘desencantada’ da ação pública que leva a ver o Estado como uma empresa que se situa no mesmo plano das entidades privadas” (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 274).
É precisamente deste arranjo da sociedade empresarial que se depura o homo oeconomicus entendido como produtor de seus rendimentos e capital, o sujeito econômico empresário de si mesmo. A governamentalidade neoliberal possui um modo particular de condução dos sujeitos baseado largamente num governo de si que tais indivíduos devem realizar sobre si próprios a fim de organizar todos os campos de sua vida nos moldes empresariais, ou seja, em termos da concorrência. Esse “autogoverno” pode ser denominado de empreendedorismo (entrepreneurship), sendo este o dispositivo discursivo de poder que concilia tanto um processo de intervenção e controle social em prol do desenvolvimento do mercado, e teoricamente do próprio meio social e dos sujeitos, quanto a não-intervenção do Estado como projeto que requer ações estatais de desregulamentação. Trata-se, portanto, de um elemento empresarial que estimula o comportamento econômico dos sujeitos, norteando as demais esferas de sua vida através de uma lógica concorrencial e calculista.
O sujeito econômico empreendedor de si é “um ser dotado de espírito comercial, à procura de qualquer oportunidade de lucro que se apresente e ele possa aproveitar, graças às informações que ele tem e os outros não”. Além disso, como dito, esse empreendedorismo comporta uma dimensão “extraeconomizante”, ou seja, que extrapola os limites do mercado. Assim: “O mercado é um processo de formação de si” (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 145). A liberdade de mercado é garantida a partir da liberdade de escolha individual, que reivindica uma responsabilidade atomizada com relação às decisões adotadas pelos sujeitos empresariais. Deste modo, inseridos num ambiente de total competição, no qual não há vínculos sociais confiáveis e responsabilidade fragmentada – atomizada – tais sujeitos necessitam estar em constante vigilância (alertness) quanto ao movimento do mercado, a fim de manterem-se integrado na corrida do “evolucionismo social”. Neste sentido, qualquer intervenção interfere na livre escolha dos sujeitos e corrompe as capacidades individuais de escolha e vigilância: “A pura dimensão do empreendedorismo, a vigilância em busca da oportunidade comercial, é uma relação de si para si mesmo que se encontra na base da crítica à interferência” (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 146).
Assim, ao submeter livremente suas condutas ao princípio neoliberal do auto-empreendedorismo, em sociedades nas quais a lógica normativa do mercado competitivo se tornou uma potência de formação e informação, indivíduos e a própria população tornam-se presas pelas demandas e exigências normativas do mercado, que se materializa, então, como nova instância hegemônica de formatação da verdade e dos estilos de vida no mundo contemporâneo. (DUARTE, 2020, p. 70).
O homo oeconomicus é, nesse sentido, um ser-lançado no espaço do mercado que captura, a partir da lógica concorrencial, não apenas a esfera econômica, mas todas as esferas de ação e decisão do sujeito sobre si mesmo, norteando-as segundo o concorrencialismo. É possível sintetizar essa ideia afirmando que a racionalidade neoliberal é responsável por uma lógica de mercado autopoiética que, por sua vez, instaura um paradigma de exceção corroborado pelo próprio homo oeconomicus. A sociedade estruturada por esta lógica é caracterizada por sua “adaptabilidade” e “mudança perpétua” (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 154). Evidentemente, o governo de si neoliberal significa que o sujeito é conduzido de determinada maneira a assumir uma forma de vida, de racionalidade ou de gestão de suas condutas; Foucault menciona as “técnicas comportamentais” que serão desenvolvidas a fim de nortear o “conjunto das respostas sistemáticas de um indivíduo às variáveis do meio”, sendo este o objeto da análise econômica (FOUCAULT, 2008b, 368). O homo oeconomicus neoliberal representa contemporaneamente o estatuto ontológico do homem como subsistência, ou seja, o ponto de absoluto entrelaçamento entre a técnica moderna, a humanidade do homem e a dinâmica econômica de mercado concorrencial. O homo oeconomicus possui uma forma de vida em sentido agambeniano, i. e., ele tem sua vida natural (zoè) isolada da sua vida política (biòs), ou seja, um movimento biopolítico a partir da dinâmica econômica. Aqueles que não se sustentam, autonomamente, individualmente, são excluídos e vitimados pela maquinaria.
O ethos neoliberal, que atravessa o homo oeconomicus, se constitui a partir de um duplo movimento: um externo, proveniente de técnicas de controle comportamental, organização do campo de trabalho com foco na flexibilidade das leis trabalhistas, com consequente redução do volume burocrático no interior do funcionamento empresarial, modificação na organização jurídico-legislativas, etc.; mas principalmente um movimento interno, isto é, de si para consigo mesmo, traduzido como governo de si, assim: “A economia torna-se uma disciplina pessoal” (DARDOT e LAVAL, 2020, p. 331). Deste modo, instaura-se um processo de aprimoramento e desenvolvimento incessante e inesgotável das capacidades individuais que traduz, com precisão, a “natural” dinâmica volitiva da técnica moderna. Como argumenta Hans Jonas (2011, p. 77): “O grande empreendimento da tecnologia moderna, que não é paciente nem lento, comprime [...] os muitos passos minúsculos do desenvolvimento natural em poucos passos colossais, e com isso despreza a vantagem daquela marcha lenta da natureza, cujo tatear é uma segurança para a vida”. A gravidade do problema se mostra ainda mais evidente pelo fato de que “o próprio homem passou a figurar entre os objetos da técnica” (JONAS, 2011, p. 57).
Deste modo, o homo oeconomicus e, consequentemente, sua forma de vida, é diametralmente oposta à forma-de-vida pugnada por Agamben em contraste à vida nua do homo sacer – ou seja, aquela vida inseparável de sua forma, na qual zoè e biós estão em unidade indissociável (AGAMBEN, 2017a, p. 233). A forma-de-vida é uma “categoria inversa e, ao mesmo tempo, simétrica à de nuda vita (vida nua) ” (CASTRO, 2016, p. 195). Ou seja, se a forma-de-vida é o resultado da inoperosidade, substituindo a vida resultante da tensão dos polos das máquinas, o mesmo vale para a comunidade, que não mais se encontrará sob uma exceção, mas, talvez, num tempo propriamente messiânico, uma pós-história. Segundo Giacoia (2018, p. 218): “A potência messiânica é pensada justamente como o que é capaz de romper a cadeia da necessidade cega, da reprodução perpétua da violência mítica”. Em realidade, o homo oeconomicus e a racionalidade neoliberal, como visto autopoiética, representa a impossibilidade de realização da proposta filosófica de Agamben. Se este busca um modo de existência primordialmente inoperoso, a forma de vida do homo oeconomicus é absolutamente oposta, pois atribui primazia à produtibilidade. O foco central da vida do sujeito empresarial é a produção constante e ininterrupta; reverberando, como visto, na própria adaptabilidade ao sistema volitivo do capital e, em tese, garantindo o aprimoramento do sujeito e da sociedade. Assim, não apenas o homo oeconomicus surge como figura do homo sacer, como representa uma dinâmica biopolítica que impede em absoluto a inoperosidade que Agamben tanto preza.
Considerações finais
A partir da aproximação do conceito foucaultiano de homo oeconomicus ao homo sacer agambeniano, e, correlativamente, da racionalidade neoliberal como responsável pelo paradigma de exceção contemporâneo, torna-se interessante apontar algumas considerações sobre os desdobramentos ético-políticos dessa análise no âmbito democrático. Em realidade, o objetivo a ser destacado sãos os efeitos nocivos do funcionamento das máquinas biopolíticas de Agamben à democracia vigente. Dito explicitamente, a hipótese a ser sustentada é a instauração de um projeto de Estado, não necessariamente expresso, mas propenso à consolidação de uma democracia sem demos. Isso significa, em linhas gerais, um Estado democrático no qual o direito está submetido a um campo extrajurídico-legal de poder e de decisões, pois, remetido à racionalidade neoliberal, ou seja, significa pensar a democracia reduzida a “mero conjunto formal de rituais legais e institucionais, desprovidos de substância ético-política” (DUARTE, 2020, p. 49). Deste modo, com a noção de democracia sem demos não se pensa uma democracia sem representação popular, o que seria contraditório, mas sim propõe-se um diagnóstico sobre a crise da democracia liberal.
A ideia da democracia sem demos significa precisamente uma democracia cada vez menos constituída por um povo, mas sim por uma população que, partindo do pensamento de Agamben, representa a vida nua, o homo sacer – neste caso, o homo oeconomicus enquanto figura empírica do conceito metafísico. Neste sentido, pode-se dizer que aquele projeto nazista do espaço sem povo (volkloser Raum) (AGAMBEN, 2008, p. 91) agora se apresenta sob bases substancialmente diferentes, muito mais sofisticadas, pois se assenta sob o movimento autopoiético anteriormente analisado – derivado da governamentalidade neoliberal. Nota-se que a própria crítica ao contratualismo e humanismo se baseia nessa relação entre os sujeitos inseridos e excluídos, promovendo um déficit de proteção do próprio estatuto humanitário dos indivíduos, como analisado anteriormente.
De acordo com Butler (2019b, p. 09): “o povo não é uma população definida, é constituída pelas linhas de demarcação que estabelecemos implícita ou explicitamente”. A autora busca deixar claro que “o corpo político é postulado como uma unidade que ele nunca será”. Trata-se de uma ficção necessária à constituição do Estado-nação moderno. A constituição de um “povo” é um processo de inclusão-exclusiva. Segundo a autora, no momento em que se luta pela definição de “quem é o povo”, simultaneamente se delimita aqueles que restarão fora do “povo”, transformando-os em mera população a ser descartada. Butler trata como “exclusão constitutiva” esse processo que atinge tanto o conceito de soberania popular quanto, consequentemente, a atuação democrática, que não tem como objetivo exclusivamente uma ação de inclusão contínua dos sujeitos, mas se preocupa com aqueles que já pertencem ao corpo político soberano (BUTLER, 2019b, p. 10/11).
Não cabe aqui realizar uma crítica estruturada ao humanismo, entretanto a noção de direitos humanos atrelada à cidadania do Estado-nação acaba por se tornar técnica biopolítica de controle do “povo”, da vontade e soberania popular. Como aponta Butler, o termo civilização “trabalha contra uma concepção expansiva do humano”; e ela prossegue afirmando que sua prática atua “para produzir o humano de maneira diferente, oferecendo uma norma culturalmente limitada para o que deve ser esse humano” (BUTLER, 2019a, p. 116). Aqueles excluídos pela inclusão que constitui o “povo” tornam-se uma população desumanizada, a ser eventualmente descartada de determinada forma; sua função acaba por se restringir à produção do humano através de uma negação. O que se passa no paradigma neoliberal e na vida do homo oeconomicus não é uma exclusão e dejecção à morte – como ocorre com os muçulmanos – mas uma nova forma de “descarte” das populações não inseridas no mercado, bem como daquelas que ficam para trás no fluxo concorrencialista. Segundo Butler:
Existe trabalho temporário ou não existe trabalho nenhum, ou existem formas pós-fordistas de flexibilização do trabalho que lançam mão da permutabilidade e da dispensabilidade dos povos trabalhadores. Esses desenvolvimentos, reforçados pelas atitudes predominantes em relação ao seguro de saúde e à seguridade social, sugerem que a racionalidade do mercado está decidindo quais saúdes e vidas devem ser protegidas e quais não devem. É claro que há diferenças entre políticas que buscam explicitamente a morte de determinadas populações e políticas que produzem condições de negligência sistemática que na realidade permitem que as pessoas morram. (BUTLER, 2019b, p. 17 – grifos nossos).
Tal citação de Butler sintetiza a nova dinâmica na qual funciona a democracia sem demos e a dinâmica biopolítica ou tanatopolítica. Como bem aponta, o “mercado está decidindo” quais as vidas que valem a pena viver e, portanto, serem protegidas, e aquelas que devem ser descartadas, não valorizadas, ao ponto de sua morte tornar-se mera consequência do estado de coisas posto e reproduzido pelos próprios sujeitos assujeitados à dinâmica concorrencialista de mercado e ao paradigma de exceção derivado da racionalidade neoliberal. Não se produz explicitamente a morte, como nos Lager nazista, mas se instaura uma conjuntura econômico-política através da qual a morte representa uma responsabilidade inteiramente individual – responsabilidade atomizada – uma vez que o sistema político se apresenta negligente devido ao espaço de jogo que o mercado impõe. Dito de outro modo, trata-se de uma dinâmica necropolítica omissiva, ou seja, diversa daquela encontrada nos Estados totalitários do século XX, por sua vez, comissiva. Além disso, tal omissão soa absolutamente legítima no interior do paradigma norteado pelo neoliberalismo, pois ela é aceita e reproduzida pelo próprio homo oeconomicus como alternativa à interferência do Estado na economia e como suposto caminho para recuperação de uma “liberdade individual”, por este retirada.
O paradigma de exceção na forma da democracia sem demos pressupõe a utilização do dispositivo biopolítico em suas duas chaves: jurídico-política e metafísica-ontológica. Isso significa, por um lado, o entendimento da democracia como formalidade, mero modelo de organização e funcionamento institucional do Estado que, no entanto, encontra uma forma vazia, sem substrato referente à representatividade das lutas políticas em prol, por exemplo do “alargamento do âmbito público contra as forças que impõe sua privatização” (DUARTE, 2020, p. 139). Dito de outro modo, a democracia perde sua essência de processo político contínuo por inclusão e proteção de populações historicamente vulneráveis e que vislumbram, a partir do Estado e sua representatividade, o fomento do arranjo de direitos civis, políticos e sociais que possam se sobrepor aos déficits inerentes à existência e, no mais das vezes, produzidos e reproduzidos pela razão econômica pautada pela concorrência e lucro. Isso significa, em linhas gerais, que no momento em que a razão neoliberal invade o âmbito político do Estado, a democracia se torna noção fadada ao esvaziamento, pois, se converte em mero instrumento para consolidação de políticas econômicas de manutenção do status quo socioeconômico.
Por demos compreende-se aquela parcela populacional que, ao menos no léxico agambeniano, se enquadra como vida politicamente qualificada, ou bíos ou vida autárquica (AGAMBEN, 2017a, p. 224). Observa-se aqui o gerenciamento da segunda chave, aliada à primeira, produzindo e mantendo formas de vida que servem, no interior deste paradigma de exceção, para sustentação da máquina econômica. O homo oeconomicus neoliberal, enquanto figura contemporânea do homo sacer, sinaliza a impossibilidade de cisão absoluta das “vidas”, isto é, não é possível trabalhar com a zoè sem afetar a bíos e vice-versa – ponto que Agamben, apesar de reconhecer, não vislumbrou as implicações para sua própria leitura aristotélica do Político. Isso pelo fato de que “o fundamento primeiro do poder político é uma vida absolutamente matável, que se politiza através de sua própria matabilidade” (AGAMBEN, 2007, p. 96). O homo oeconomicus tem, em termos ontológico-políticos, sua vida política derivada de sua matabilidade, uma vez que não passa de mera subsistência, recurso humano para uma maquinaria superior, no caso, o bem-estar econômico. Enquanto sujeito-empresa, sua vida encontra-se no limiar da morte, da descartabilidade. A banalização da morte que paira sobre o homo oeconomicus torna-se expressiva no que se refere às populações vulneráveis.
Em linhas gerais: não há, neste cenário de exceção, uma legítima preocupação com o demos que, no entanto, apesar de não poder ser suprimido pelas linhas de poder, ou seja, excluído do jogo político-democrático, tem sua participação reduzida à mera legitimação de um processo político profanado pela lógica neoliberal. Falta na filosofia de Agamben um trabalho voltado a este modo de análise. Isso pelo fato do autor não se preocupar com a política institucional e com as lutas políticas concretas. Simplesmente propõe um alternativa não-governamental, o que acaba obscurecendo sua capacidade analítica. De modo mais incisivo, seu pensamento parece não corroborar lutas identitárias características da práxis política democrática contemporânea. Sua resistência é somente em prol de uma comunidade inoperosa na qual os sujeitos não possuam uma “identidade” própria e, deste modo, não possibilita cisões no corpo social, ou seja, rupturas biopolíticas.
Referências
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Notas
2. Caracterizar o homo sacer como paradigma implica enfatizar e respeitar o aspecto metodológico do estudo de Agamben, conforme desenvolvido na obra Signatura Rerum. De modo geral, um “paradigma” é compreendido nos seguintes termos: uma forma de conhecimento analógica que se move da singularidade à singularidade; deste modo é um modelo bipolar, rompendo a dicotomia geral/particular; o caso paradigmático, como o muçulmano, mantém em si um elemento de singularidade e outro de exemplaridade; não há uma archè, uma origem. Como bem afirma o autor: “O homo sacer e o campo de concentração, o Mulselmann e o estado de exceção [...] não são hipóteses pelas quais eu pretendia explicar a modernidade [...] Pelo contrário, como a própria multiplicidade delas poderia ter deixado entender, tratava-se sempre de paradigmas, cujo escopo era tornar inteligível uma série de fenômenos” (AGAMBEN, 2019, p. 41/2).
3. Suscintamente, o homo sacer é o resultado das máquinas-dispositivo biopolíticas que cortam o pensamento de Giorgio Agamben. Ele se surge através do contexto do paradigma de exceção, no qual a vida é remodelada tanto politicamente, quanto ontologicamente. Assim, o estatuto da vida nua, ou vida sacra, pertencente ao homo sacer, é aquela que não conclui o movimento de consagração, isto é, ela está simultaneamente excluída da esfera humana, como também da esfera divina, o que representa o resto de indecidibilidade: “uma vida insacrificável e, todavia, matável” (AGAMBEN, 2007, p. 90). Segundo Agamben, a condição que deve ser observada nesta figura é sua dupla exclusão – do mundo dos homens e do mundo divino –, é aqui que se torna possível transpor a noção de bando para o espaço político, compreendendo o fundo epistêmico que o forja; a morte dessa figura não é nem um sacrifício nem um homicídio, e esta qualidade inclassificável é um fator que incide sobre a punibilidade ou a impunibilidade durante e/ou após o período da exceção.
4. Dito de outro modo, se se buscar compreender o homo sacer e sua presença no mundo a partir de uma categorização hierarquizada, abre-se espaço para discriminações, exclusões etc. Em um paralelo exemplificativo com a humanidade ou o homo sapiens, a figura da vida sacra também seria palco dos mesmos discursos ideológicos perigosos presente naquele âmbito, como o antissemitismo, xenofobia, eugenia, racismo cultural e étnico etc.
5. Arendt afirma que havia ao menos 10 milhões de apátridas reconhecidos, contudo, mais de 10 milhões em situação de fato, porém ignorados (ARENDT, 2012, p. 383). Agamben, por sua vez, sintetiza outros dados, demonstrando que, com a queda dos impérios russo, austro-húngaro e otomano, o fenômeno dos refugiados torna-se expressivo. Aponta que 1 milhão e meio de russos, 700 mil arménios, 500 mil búlgaros, 1 milhões de gregos compunham tais massas (AGAMBEN 2017b, p. 24/25).
6. No que tange às argumentações sobre a confusão entre os poderes do Estado-nação, a autora não deixa de lado os apontamentos necessários para solidificar a argumentação e compreender o estado-de-coisas vigentes. Desta maneira, vale trazer um trecho no qual trata especificamente o assunto: “No próprio ato pelo qual a soberania do Estado suspende a lei, ou contorna a lei para seus próprios benefícios, também amplia seu próprio domínio, sua própria necessidade, e desenvolve os meios pelos quais a justificação de seu próprio poder ocorre. Naturalmente, esse não é o ‘Estado’ como um todo, mas um ramo do Executivo trabalhando em conjunto com uma reforçada ala administrativa-militar” (BUTLER, 2019, p. 81).
7. Segundo Butler “isso significa que, quaisquer que sejam os resultados desses julgamentos, eles podem ser potencialmente revertidos ou revisados pelo Poder Executivo, através de uma decisão que não responde a ninguém nem a regra alguma; um procedimento que efetivamente substitui a doutrina da separação de poderes, suspendendo novamente o poder da Constituição em favor de uma ampliação descontrolada do Poder Executivo” (2019, p. 96).
8. Interessante aqui pensar o movimento que Foucault inicia, Em defesa da sociedade, no que concerne a sua análise genealógica e a crítica à teoria do poder soberano. De maneira resumida, para o autor esta teoria se assenta em três pressupostos: o sujeito, a unidade e a lei. Pretende, no entanto, se livrar dessa “tríplice” e do poder soberano, focando a análise a partir de uma teoria da dominação, i. e., evidenciando as relações de poder entre os sujeitos e as instituições, mas não focando no sujeito em si como detentor deste poder. Com isso: “não procurar, por conseguinte, uma espécie de soberania fonte dos poderes; ao contrário, mostrar como os diferentes operadores de dominação se apoiam uns nos outros, remetem uns aos outros, em certo número de casos se fortalecem e convergem, noutros casos se negam ou tendem a anular-se” (FOUCAULT, 2018, p. 39). É talvez possível compreender o paradigma de exceção e seu uso, assim como a materialização no campo enquanto dispositivos de dominação que precisamente constituem e dão poder a um sujeito, o soberano.
9. Refiro à máquina-dispositivo jurídico-política responsável pela realização do paradigma de exceção. Tal máquina é formada por dois polos opostos e em constante tensão, são eles: nomos e physis, auctoritas e potestas, ou mesmo jurídico e metajurídico.
10. O realismo jurídico tem origem norte-americana e pode ser compreendido a partir de alguns pontos gerais: a) pauta pela mobilidade jurídica ao invés de um caráter mais estático derivado da legislação; b) os juízes possuem uma criatividade e devem exercê-la para formação do direito. Trata-se de um campo de estudos vasto que se estende para além do âmbito norte-americano, por exemplo um realismo escandinavo. Em suma, “para os realistas, o Direito estaria muito próximo de uma técnica operacional e decorreria daquilo que o intérprete diz que ele é. Daí se dizer que o Direito se realiza pela decisão mesma. O realismo jurídico traduz-se numa forma acabada de positivismo fático que, ao buscar superar o formalismo-exegético, acabou por abrir caminho para discricionariedade e decisionismos. ” (STRECK, 2017, p. 246).
11. Para mais informações sobre o debate ao redor do darwinismo social, ver: Darwin, social Darwinism and eugenics; In: The Cambridge companion to Darwin second edition.
Notas de autor