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“Por quê olhar os animais?” Ética da alteridade e animalidade em John Berger
Mateus Vinícius Barros Uchôa
Mateus Vinícius Barros Uchôa
“Por quê olhar os animais?” Ética da alteridade e animalidade em John Berger
“Why look at animals?” Ethic of otherness and animality in John Berger
Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 3, pp. 183-194, 2022
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: Em seu texto Por quê olhar os animais?, John Berger comenta como a metáfora animal foi um recurso indispensável para revelar uma proximidade entre as espécies, e que sem o exemplo de animais seria improvável, por exemplo, descrever eventos como aqueles narrados por Homero n’A Iíada. A correlação entre vidas semelhantes e heterogêneas permitiram aos seres humanos, inspirados pelos animais, darem respostas às primeiras perguntas. É razoável afirmar que a primeira metáfora tenha sido a do animal, como um modo de partilhar o mundo que lhes era comum e diferente. Mas nossa relação com os animais não-humanos também contém contradições; a criação do zoológico representou a elevação de um monumento à impossibilidade de qualquer reencontro com a animalidade. Em vez de liberados, os animais foram capturados por outras categorias políticas. Para John Berger as ambiguidades permanecem “Eles são os objetos de nosso conhecimento sempre crescente. O que sabemos sobre eles é um índice de nosso poder, e assim é um índice do que nos separa deles. Quanto mais sabemos, mais distante eles ficam.”

Palavras-chave: Ética animal, Metáfora, Alteridade, Confinamento.

Abstract: This paper propose a reading and application of the homo sacer metaphysical concept, central to the Giorgio Agamben In his text Why Look at Animals? John Berger comments on how the animal metaphor was an indispensable resource for revealing a closeness between species, and that without the example of animals it would be unlikely, for example, to describe events such as those narrated by Homer in The Iliad. The correlation between similar and heterogeneous lives allowed human beings, inspired by animals, to provide answers to the first questions. It is reasonable to say that the first metaphor was that of the animal, as a way of sharing the world that was both common and different to them. But our relationship with non-human animals also contains contradictions; the creation of the zoo represented the raising of a monument to the impossibility of any reunion with animality. Instead of being liberated, animals were captured by other political categories. For John Berger the ambiguities remain "They are the objects of our ever-increasing knowledge. What we know about them is an index of our power, and so is an index of what separates us from them. The more we know, the more distant they become."

Keywords: Animal ethics, Metaphor, Otherness, Confinement.

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Artigos

“Por quê olhar os animais?” Ética da alteridade e animalidade em John Berger

“Why look at animals?” Ethic of otherness and animality in John Berger

Mateus Vinícius Barros Uchôa1
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 3, pp. 183-194, 2022
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepción: 14 Junio 2022

Aprobación: 16 Octubre 2022

“Ter o olho no olho do jaguar

Virar jaguar” (VELOSO, CAETANO. Versos da canção O império da lei. Álbum Abraçaço (2012).)

“Quem diz que a vida importa menos para os animais do que para nós nunca segurou nas mãos um animal que luta pela vida. O ser inteiro do animal se lança nesta luta, sem nenhuma reserva [...] Não faz parte do modo de ser do animal experimentar horrores intelectuais: todo o seu ser está na carne viva.” (COETZEE, J.M., 2002, p. 78)

O zoológico é um exercício da soberania humana sobreposta ao animal. A zoo-logia participa da estruturação da pólis, que enxota o animal para o lado da vida não qualificada; em outras palavras, vida que é “matável”, por natureza - em oposição a ser “sacrificável” , por cultura.2 (MASSUMI, 2017, p. 132)

A questão do ser visto pelo outro é abordada pelo pensador inglês John Berger em seu texto Porquê olhar os animais?3. Segundo Berger, a relação com o outro é experimentada pelo olhar: o animal é a princípio aquele que me olha. Em oposição ao olhar objetificante, que seria um dos efeitos que a ruptura de Descartes produziu e que fez desaparecer uma espontânea relação homem-animal. A experiência do absolutamente permanece inacabada se não houver a experiência de ser olhado pelo outro. Mas quem é esse outro animal? O animal é aquele que tem um rosto, e que nos olha de tal modo que sentimos a responsabilidade de respondê-lo. Essa reciprocidade entre olhar e ser visto inverte de modo inovador a concepção tradicional de encontrar esse outro. E isso constituirá para nós um inquietante incômodo.

Nesse caso, o que é percebido não é um mero objeto da visão, mas um outro sujeito da visão, em posição relativa, para qual eventualmente os humanos podem se tornar os objetos. O encontro com o animal desafia a narrativa de um conhecimento objetivo daquilo que costumamos entender por natureza. O que vemos e o que nos olha no animal é a certeza de ter um corpo, e ter um corpo é como retornar à animalidade da qual o homem sempre procurou se distinguir. Em Por que olhar os animais? Berger comenta a respeito da ruptura histórica com os animais que habitam a imaginação humana ora como semelhantes, ora como dessemelhantes.

O século XIX, na Europa ocidental e na américa do Norte, viu o início de um processo que hoje está sendo completado pelo capitalismo corporativo do século XX, que rompeu toda a tradição que previamente mediava entre homem e natureza. Antes dessa ruptura, os animais constituíam o primeiro círculo do que rodeava o homem. Talvez isso já sugira uma distância efetiva. Eles estavam no centro do universo, junto com o homem. Essa centralidade naturalmente era econômica e produtiva. Fossem quais fossem as mudanças os homens dependiam dos animais para alimento, trabalho, transporte e roupa. ( BERGER, 2003, p. 12.)

E a seguir afirma que:

Mas supor que os animais só entraram na imaginação humana na forma de carne, couro ou chifre, é projetar uma atitude do século XIX que recuasse através de milênios. Os animais entraram na imaginação primeiro como mensageiros e promessas. Por exemplo, a domesticação do gado não começou como simples busca de leite e carne. O gado tinha funções mágicas, às vezes oraculares, outras sacrificiais. E a escolha de uma dada espécie como mágica, domesticável e alimentícia, era originalmente determinada pelos hábitos, a proximidade e o “convite” dos animais em questão. (BERGER, 2003, p. 12)

Assim, devemos compreender que o olhar desse outro, o outro animal, é um olhar que não deve ser confundido como uma mera reação mecânica. A visão do animal é um direcionamento que requisita uma responsabilidade. Assim se configuram duas perspectivas da relação dos humanos com os animais. A primeira reflete o pensamento tradicional tipicamente hierárquico e binário, que reduz animais a coisas, objetos vistos pelo sujeito humano, mas que não vêem. E a segunda, por sua vez, é aquela que procura trazer o animal para dentro das decisões éticas e políticas, surpreendendo o homem quando este o olha sobre um abismo de não-compreensão semelhante.4 “Os animais nascem, têm sentimentos e são mortais. Nessas coisas se parecem com o homem, na sua anatomia superficial - menos na anatomia profunda - em seus hábitos, em seu tempo, em suas capacidades físicas, eles diferem do homem. São um tempo parecidos e semelhantes.” (BERGER, 2013, p. 12)

Foi um imenso descaso que, ao longo da tradição do pensamento ocidental (salvo algumas exceções como Montaigne, por exemplo), aos animais foi negado esse olhar que fala, mais precisamente a negação do direito e do poder de dar uma resposta ao nosso juízo inquiridor sobre eles. A partir da cassação da capacidade de responder, que dentre outras coisas foi definida como um próprio do homem, estabeleceu-se a fronteira que ontológica e historicamente nos distanciou dos animais. Se até agora nos preocupamos em discutir sobre a fronteira entre esses dois territórios, de um lado o homem e de outro o animal, não é por ambicionar cegamente que não existam limites entre as espécies, mas é por acreditar na existência de outros limites muito menos limitantes. Aliás, percebemos que não há somente um único limite entre o humano e o não-humano, mas que há, nas formas de organização do que é vivo, muitas fraturas, descontinuidade, heterogeneidades e diferenciações que questionam a existência desse singular genérico contido na ideia de “o” animal.

Considerando que outrora esse “um” era indivisível, um só conjunto supostamente homogêneo, aquele do animal em geral; agora nos encontramos engajados na tentativa de evidenciar a multiversidade de seres animais, e desmantelando a tradicional distinção humano-animal. Destarte, como um existência rebelde a todo conceito:

Os olhos de um animal quando observam um homem são atentos e precavidos. O mesmo animal pode olhar outras espécies da mesma forma. Ele não reserva um olhar especial para o homem. Mas o seu olhar não será reconhecido como familiar por nenhuma outra espécie senão o homem. [...] O animal o escrutiniza sobre o estreito abismo da não-compreensão. É por isso que o homem pode surpreender o animal. Mas o animal - mesmo domesticado - também pode surpreender o homem. O homem também olha sobre um abismo de não-compreensão semelhante embora não idêntico. E isso acontece aonde quer que ele olhe. Ele está sempre olhando por sobre a ignorância e o medo. E assim, quando ele está sendo visto pelo animal, está sendo visto como aquilo que o cerca é visto por ele. Seu reconhecimento disso é que torna familiar o olhar do animal. Mas o animal é distinto, e nunca pode ser confundido com o homem. Assim atribui-se um poder ao animal, comparável com o poder humano, mas jamais coincidente com ele. O animal tem segredos que, diferente dos segredos das cavernas, montanhas e mares, são dirigidos especificamente ao homem. (BERGER, 2003, p. 12).

A associação pode tornar-se mais perceptível através de um exercício comparativo entre os olhares de um animal com o de um homem. O olhar estabelecido entre dois homens tem seus abismos sempre recobertos pela linguagem. Mesmo que o ato seja um incômodo, a existência da linguagem permite a confirmação de um pelo outro. É assim que a linguagem permite que os homens levem em conta uns aos outros, e igualmente a si mesmos. “Nenhum animal confirma o homem, nem positiva nem negativamente.” (BERGER, 2003, p 12) A falta de linguagem em comum é o que garante sua diferença e sua exclusão (do) e em relação ao homem. Mas é justamente por causa dessa diferença que a vida de um animal, em nenhum momento, se confunde com a de um homem, mas segue paralelamente à dele. Apenas no evento da morte as linhas paralelas se reúnem. “Com suas vidas paralelas, os animais oferecem ao homem um companheirismo diferente daquele oferecido por qualquer troca humana. Diferente porque é um companheirismo dedicado à solidão do homem como espécie.” (BERGER, 2003, p. 14)

Quais são os segredos da semelhança e da diferença entre o animal e o homem? Para John Berger a existência desses segredos foi reconhecida assim que o homem interceptou um olhar animal. E o interesse da antropologia pela passagem da natureza à cultura não deixa de ser uma forma de responder essa pergunta. Contudo, Berger anuncia uma resposta geral marcada por um dualismo presente em nossa relação com o outro-animal.

Todos os segredos eram sobre animais como uma mediação entre o homem e sua origem. A teoria evolucionária de Darwin, indelevelmente marcada pelo século XIX europeu, mesmo assim pertence a uma tradição quase tão velha quanto o próprio homem. Animais intermedeiam entre o homem e a origem deles porque eram ao mesmo tempo semelhantes ao homem e diferentes dele. ( BERGER, 2003, p.14)

O lugar dos animais sempre foi simultaneamente lá e aqui. O que sabemos sobre eles também foi considerado um índice de nosso poder, e por isso, um índice que nos separa deles. À medida que sabemos deles, eles se distanciam cada vez mais. Os indícios desse dualismo permanecem na relação entre aqueles que alcançam um grau de intimidade e empatia, mas que também dependem dos animais5.

“Um camponês gosta do seu porco e fica contente ao salgar a sua carne. O que é significativo, e é tão difícil para o estranho urbano entender, é que as duas afirmações nessa frase se ligam por um e, e não por um mas”6Em seu texto, John Berger nos mostra como a metáfora animal foi um recurso indispensável para revelar uma proximidade entre as espécies, e que sem o exemplo de animais seria improvável descrever eventos como aqueles narrados por Homero n’A Iíada.7

A correlação de vidas semelhantes e heterogêneas permitiram aos seres humanos, inspirados pelos animais, darem respostas às primeiras perguntas. É razoável afirmar que a primeira metáfora tenha sido a do animal. Quem sabe se o primeiro tema da pintura e a linguagem de caráter figurativo não induziram o com seus motivos o homem a falar? É possível que a relação entre seres humanos e os animais tenha dado origem à metáfora, como um modo de partilhar o mundo que lhes era, ao mesmo tempo, comum e diferente. Talvez, as primeiras metáforas se parecessem com signos animais que foram utilizadas para esquematizar a experiência do mundo. Esses signos animais apropriados pela linguagem humana permanecem ambíguos.

Animais vieram de além do horizonte. Seu lugar era lá e aqui. Da mesma forma, eram mortais e imortais. O sangue de um animal corria como o sangue humano, mas sua espécie era mortal, e cada leão era Leão, cada boi era Boi. Isso - talvez o primeiro dualismo existencial - se refletia no tratamento dados aos animais. Eram sujeitados e adorados, criados e sacrificados. (BERGER, 2003, p. 14)

Os exemplos metafóricos são infindáveis. Ao longo dos tempos os animais deram as explicações, emprestando seus nomes a uma qualidade que na sua essência era misteriosa. A capacidade para o pensamento simbólico - lembrando que os animais foram os primeiros símbolos - foi historicamente tomada como aquilo que distinguia o homem em relação a estes. Ao citar um trecho de História dos Animais, o escritor britânico nos alerta preciosamente que o filósofo grego Aristóteles foi o primeiro a sistematizar a relação comparativa entre homem e animal:8:

Na grande maioria dos animais há traços de qualidades e atitudes físicas que são mais marcadamente diferentes no caso dos seres humanos. Pois assim como indicamos semelhanças nos órgãos físicos, em vários animais observamos gentileza e ferocidade, brandura ou agressividade, coragem ou timidez, medo ou confiança, bravura ou covardia, e, quanto à inteligência, algo parecido com sagacidade. Algumas dessas qualidades no homem, comparadas com as qualidades correspondentes em animais, só diferem quantitativamente: quer dizer, o homem tem mais ou menos dessa qualidade, e um animal tem mais ou menos de outra; outras qualidades no homem são representadas por qualidades análogas e não idênticas; por exemplo, assim como no homem encontramos sabedoria, conhecimento e sagacidade, em certos animais existe alguma outra potencialidade natural parecida com elas. A verdade dessa afirmação será melhor entendida se observarmos fenômenos da infância: pois nas crianças vemos traços e sementes do que um dia se estabelecerá como hábitos psicológicos, embora psicologicamente uma criança nesse período não se distingue muito de um animal…” (ARISTÓTELES apud BERGER, 2003, p. 17.)

Podemos observar na leitura desse trecho um tom demasiado antropomórfico, visto que nele qualidades morais tipicamente humanas são atribuídas aos animais. São os zoólogos comportamentalistas que mais fazem esse tipo de objeção. De fato, o antropomorfismo caracterizava essencialmente a relação entre homem e animal até os dias atuais. Em meio as rupturas teóricas decisivas responsáveis por internalizar o dualismo velado na relação humana com animais, - a separação entre corpo e alma, a submissão dos corpos às leis da física e da mecânica que reduziram o animal sem “alma” ao símile de uma máquina - o antropomorfismo era um resquício do uso do animal como metáfora. Uma das consequências dessa ruptura teórica, que ocorreu decididamente com Descartes, foi o desaparecimento gradativo dos animais ao longo da história moderna, e se hoje vivemos sem eles, o antropomorfismo é o resíduo dessa relação que nos torna próximos a eles, ainda que distantes.

A ambiguidade de nossa relação com os animais não-humanos é percebida quando, apesar de classificarmos animais e suas capacidades, a partir do modelo cartesiano da máquina, sustentamos uma espécie de ternura ou falsa empatia que reabilita superficialmente, o vínculo antropomórfico. Talvez, seja um modo de reclamar a presença do animal após sua perda, a partir de uma condição nostálgica que o aprisiona num passado já em vias de desaparecimento. A criação do zoológico representou a elevação de um monumento à impossibilidade de qualquer reencontro com a animalidade9.

O que o homem tem de fazer para transcender o animal, para transcender o mecânico dentro de si mesmo, e aquilo a que leva a sua espiritualidade singular, é muitas vezes a angústia. E assim, por comparação e apesar do modelo da máquina, o animal lhe parece gozar de um tipo de inocência. O animal foi esvaziado de experiências e segredo, e essa “inocência” recém-inventada começa a provocar no homem uma espécie de nostalgia. Pela primeira vez os animais são colocados num passado que vai desaparecendo. (BERGER, 2003, p.18.)

Ainda que essa nostalgia em relação aos não-humanos tenha sido uma invenção moderna, mais tarde, após os primeiros estágios da revolução industrial, nas denominadas sociedades pós-industriais, os animais passaram a ser tratados como matéria bruta: por exemplo, consumidos como alimento, eles são processados como verdadeiras mercadorias. Assim, o rebaixamento do animal acompanha tanto uma história teórica quanto econômica responsável por sua marginalização na cultura antrópica, muito mais complexa do que sua marginalização física. Esse processo de desqualificação culmina na ambiguidade, ou mesmo no paradoxo da domesticação, que consiste na prática de manter os animais independentemente de sua utilidade como animais de estimação. “O animal de estimação oferece ao seu dono um espelho para uma parte dele que de outra forma jamais seria refletida” (BERGER, 2003, p.21). Porém, com a perda da autonomia de uma das partes dessa relação, desaparece o paralelismo e a possibilidade de uma alteridade particular portadora de sentido que outrora mobilizava o modo de relação e produção de mundo. Por isso, a importância de uma crítica capaz de mobilizar uma posição moral diferente, como ponto de partida para um debate epistemológico, cuja intenção será a de formular uma nova visão sobre essa controversa composição de mundo humanos e animais.

Em vez de liberados, os animais foram capturados por outras categorias , “de modo que a categoria animal perdeu sua importância central. Em geral foram cooptados dentro da família e do espetáculo” (BERGER, 2003, p. 21) Na ideologia que acompanha a domesticação, os animais são sempre os observados, e o fato de que eles também nos podem observar perdeu todo o significado e consideração. Segundo essa visão, a vida de um animal se torna um ideal meramente observável para ser internalizado como sentimento, um ponto de partida para um devaneio em torno de um desejo reprimido. A ambiguidade ainda permanece: “Eles são os objetos de nosso conhecimento sempre crescente. O que sabemos sobre eles é um índice de nosso poder, e assim é um índice do que nos separa deles. Quanto mais sabemos, mais distante eles ficam.” (BERGER, 2003, p. 22)

Segundo Berger, a natureza é um conceito de valor, mas um valor oposto às instituições sociais que retiram do homem sua essência natural, aprisionando-o em estruturas artificiais. De acordo com essa visão da natureza, a vida de um animal não-humano se torna um ideal internalizado que expressa o sentimento em torno de um desejo reprimido, e eis que a imagem de um animal selvagem na natureza torna-se o ponto de reconhecimento de uma qualidade em que o animal empresta o seu nome para revelar aspectos do caráter humano. 10 Ao mesmo tempo em que os animais foram desaparecendo da vida cotidiana, aconteceu a criação de zoológicos públicos. O zoológico passou a ser o espaço de experiência e de percepção no qual as pessoas iam, e vão ainda, observar animais na busca de uma empatia ou reconhecimento de algo ao qual aparentemente “não pertencem” mais. “Zoológicos modernos são um epitáfio a uma relação tão antiga quanto o próprio homem. Eles não são vistos como tal por que temos feito indagações erradas a respeito de zoológicos.” (BERGER, 2003, p. 26)

Como uma instituição pública do século XIX, o zoológico reivindicava ser um outro tipo de museu, cujo objetivo maior era, a partir de uma coleção de animais capturados, a instrução e a ilustração de um público sobre o mundo zoo, confiando na possibilidade de obter conhecimento da vida natural dos animais mesmo em condições sequer pouco naturais.11 Posteriormente os zoológicos também se propuseram como espaços para indagações comportamentalistas e etológicas cujo foco era forçosamente antropocêntrico: adquirir conhecimento sobre as supostas origens da ação humana por intermédio do estudo dos animais sob condições simuladas e experimentais. John Berger no seu Porque olhar os animais nos alerta para a força que a imagética animal exerce sobre o humano. Milhões de pessoas visitam os zoológicos movidos por uma grande curiosidade, e dentro dessa proporção de pessoas, boa parte delas é de crianças (raramente os animais sobrevivem na memória dos adultos)12. A visita do núcleo familiar ao zoológico é seguida de um sentimento de reencontro com uma inocência (projetada) daquele mundo animal, mesmo que em geral os animais pareçam letárgicos e sem ânimo. Mas que tipo de vida estariam, crianças e adultos, olhando de fato num zoológico? A presença de um ser isolado do seu mundo num espaço que o marginaliza? A presença de um fantasma do animal? No entendimento de John Berger os zoológicos são espaços de manifestação de uma necroestética antianimalista, cenários fantasmagóricos da exposição de corpos não-humanos despotencializados.

Um zoológico é um lugar onde se coleciona a maior quantidade possível de espécies e variedades animais para serem vistas, observadas, estudadas. Em princípio cada jaula é uma moldura em torno do animal que está dentro dela. Os visitantes vêm ao zoológico para olhar os animais. Passam de jaula em jaula como visitantes de uma galeria de arte param na frente de um quadro, depois de outro e outro. Mas no zoológico a visão é sempre errada. Como uma imagem fora de foco. A gente fica tão acostumado a isso que quase nem nota mais; ou melhor, a apologia habitualmente antecipa a decepção, de modo que nem se sente a última. E a apologia é mais ou menos assim: O que é que você esperava? Você não veio olhar um objeto morto, ele está vivo. Leva a sua própria vida. Por que isso haveria de coincidir com ser adequadamente visível? Mas o raciocínio dessa apologia é inadequado. A verdade é mais espantosa. (BERGER, 2003, p. 28)

e:

Seja como for que se contemplem esses animais, mesmo se o animal se ergue contra as grades a menos de meio metro de nós, olhando para fora, para o público, estaremos olhando algo que se tornou absolutamente marginalizado; e toda a concentração que possamos exercer jamais será suficiente para torná-lo central. Por que? Dentro de limites, os animais são livres, mas tanto eles quanto os espectadores presumem seu confinamento restrito. A visibilidade através do vidro, os espaços entre as grades ou o ar vazio acima do fosso não são o que parecem - se fossem, tudo estaria diferente. Assim a visibilidade, o espaço, o ar, foram reduzidos a símbolos. (BERGER, 2003, p. 28-29)

Animais isolados uns dos outros, sem a mínima interação com outras espécies, acabam tornando-se inteiramente dependentes de seus tutores humanos. Por razão deste limite imposto, suas reações e estímulos instintuais apresentam um outro aspecto. O que antes era de seu interesse, agora é a experiência de uma espera passiva e tediosa de intervenções externas e arbitrárias ao animal. As circunstâncias e fatos da vida animal que aconteciam com base no jogo criador do instinto, tornaram-se ilusórios nesses espaços de exceção que são os zoológicos, um mundo circundante falsificado. No espaço antrópico da observação tudo é artificial: as luzes são artificiais, o espaço e o ambiente são ilusórios. Não há nada mais que o faça constituir relações de interação e criação com seu Umwelt.

O único mundo que circunda esse vivente marginalizado, se é que podemos chamar isto de mundo, é o da sua própria hiperatividade ou desânimo. O que resta para ele nesse isolamento condicionado são suas mínimas reações que são tratadas como “eventos” de observação do público do zoológico. E como marginais chegam até a assumir uma indiferença (característica exclusiva dos humanos) aos olhos daqueles que os observam. Se os animais estão desaparecendo em toda parte do mundo, isso se deve quase exclusivamente às ações humanas. É no zoológico que, de maneira perversa, eles são mantidos como “monumentos vivos” frente ao próprio desaparecimento. E com isso produzindo ainda sua última metáfora, a da vida que sobrevive simultaneamente ao próprio extermínio. Os zoológicos, animais em forma de brinquedo, a difusão comercial de sua imagética, tudo isso surgiu como forma compensatória quando se constatou que os animais estavam sendo afastados da vida cotidiana.

Contudo, o que aos nossos olhos pode parecer uma solução criativa compensatória, na realidade integra o conjunto de ações que pertencem ao mesmo movimento cruel de isolamento e violência contra os animais. A reprodução da imagem animal foi um dos fatores que, inegavelmente, competiu com sua existência biológica para torná-los cada vez mais isolados e exóticos sob o olhar humano. 13 John Berger, ao final do texto, comenta sobre os efeitos desse olhar marginalizado entre o animal e o humano, e em seguida demonstra como a espécie humana decididamente se isola no modo de tratar outras espécies.

O zoológico só pode decepcionar. O objetivo público dos zoológicos é oferecer aos visitantes a oportunidade de olhar os animais. Mas em parte alguma num zoológico o visitante pode encontrar o olhar de um animal. Quando muito, o olhar do animal bruxuleia brevemente e segue adiante. Ele olha de soslaio. Olham cegamente para além de nós. Escaneiam tudo mecanicamente. Foram imunizados contra o encontro, porque nada mais pode ocupar um lugar central na sua atenção. Nisso reside a última consequência de sua marginalização. Esse olhar entre animal e homem, que pode ter tido um papel crucial no desenvolvimento da sociedade humana, e como o qual, seja como for, todos os homens sempre conviveram até menos de um século atrás, foi extinto. Olhando cada animal, o visitante desacompanhado do zoológico está sozinho. Quanto às multidões, elas pertencem a uma espécie que finalmente foi isolada. Essa perda histórica para a qual os zoológicos são um monumento, agora é irredimível para a cultura do capitalismo. (BERGER, 2003, p. 31-32)

Com essa questão Berger endossa uma crítica que perpassa por diversas ordens de saber, que vão desde a literatura até a antropologia e a filosofia, e que têm se voltado a pensar o lugar do animal em termos morais e epistemológicos. Aí o animal é tratado como uma presença, isto é, a encarnação de uma alteridade portadora de sentido. Esse caminho crítico mobiliza tanto aqueles agentes interessados na perspectiva protecionista e bem-estarista dos direitos animais, como também compreende uma posição ética e política criadora de um debate epistemológico renovado que reclama uma nova configuração, um novo olhar, sobre a composição de diversos mundos estabelecidos nos limites, rupturas e continuidades entre animais e humanos, suas formas de vidas e seus ambientes. Numa palavra, o movimento dessa crítica pode e deve ser compreendido na perspectiva de uma virada animalista14.

Olhar os mais-que-humanos a partir da ética-estética animalista de John Berger é se permitir à possibilidade de também ser afetado pelos olhares que eles nos devolvem. Seguindo uma vida paralela, ao habitar um mundo diferente do nosso, o animal é muito mais do que uma “mera vida” tornada observável por nós, e, muito menos um objeto, uma mercadoria, ou metáfora da condição humana. Ao invés de estabelecer rigorosamente que há sujeitos humanos e objetos animais, o texto de Berger representa um salto positivo na desconstrução desse dualismo limitador. Porém, se reduzirmos o texto apenas a um convite para “olhar os animais”, estaremos obedecendo ainda a um limite. Na verdade, o texto avança e também nos convida a um salto imaginativo, a uma possível reflexão sobre “como é olhar o mundo através do olhar de um animal”. Na perspectiva animalista, a forma de definição de mundo, a relação entre homens e animais no seu ambiente compreendem um jogo de olhares, um jogo de ver e (não) ser visto.

Certamente o debate epistemológico sobre como é olhar com os olhos de um animal é inspirado na ecologia de Uexküll, a partir de suas ideias de “ambiente próprio” e “Umwelt dos animais”. Nesse posicionamento o ambiente não é considerado uma projeção de essências, mas um conjunto de dispositivos produzidos simultaneamente com o organismo sensível. A sugestão para olhar o mundo com os olhos de um animal trata, na verdade, da compreensão de que um organismo vivo não se relaciona com uma natureza única, mas sempre dentro de um conjunto de possibilidades. É nesse sentido que a virada animalista nos debates epistemológicos tem de ser acompanhada por uma virada ontológica, que exige não tratar como exclusividade humana a capacidade de criar mundos. Essa virada ontológica repercute e influencia ainda os termos do recente debate ecológico sobre os modos de existência na era do antropoceno e seus efeitos antrópicos amplificados no clima e ecossistemas15.

A tópica dos temas emergentes no texto de John Berger se direciona para a problemática de repensar as formas tradicionais no campo das relações humano-animal, onde por muito tempo a diferença entre as partes tem sido marcada pelo estabelecimento de limites que impedem o reconhecimento e o contato com o animal, inviabilizando sua forma e fazendo dele não apenas algo observável, mas também matável e comercializável. Por que olhar os animais? é um texto seminal que compõe a complexa trilha a ser percorrida por quem se interessa em compreender o mundo das relações entre humanos e animais, possibilitando repensar os modos de compor mundos e insistir na pergunta: por que não preservá-los?

Para evitar que nossa interpretação crie um contrassenso a respeito dessa questão, é preciso enfatizar que a crítica à primazia ontológica do ser humano, à sua superioridade diante as outras espécies, produtora de sofrimento e que tem contribuído para a extinção vertiginosa de muitas formas de vida que povoam o planeta terra16, não aposta na negação da existência de um limite de demarcação animal/humano. O presente estudo orienta-se pela interpretação, especialmente do filósofo franco-argelino Jacques Derrida, de teses que defendem um continuísmo biológico como saída dos limites do antropocentrismo. O que será decisivo neste trabalho não será a suposição e nem a negação da “diferença” entre espécies humanas e não humanas, mas, sim, a maneira como deverá pensar essa ruptura abissal. Foi a partir dos textos de Derrida que pensamos na possibilidade de determinar uma fronteira plural, que corresponde a uma borda múltipla multiplicadora de estratos e dobras, a um limite transbordante da animalidade. Para Derrida esse limite tem justamente uma história aberta, pelo menos é isso que revelou nossa leitura do texto do seminário de Cerisy, publicado postumamente na forma de um ensaio intitulado O animal que logo sou.17

De acordo com Berlanga:

O esforço de Derrida no seminário pretendia demonstrar que essa borda abissal foi simplificada desde Descartes por uma busca demasiadamente precipitada do critério de demarcação. Assim, recusa a possibilidade de objetivar “a multiplicidade heterogênea de seres vivos”, com sua “multiplicidade de organizações de relações entre o vivo e o morto”. Em todo o caso, não se pode reduzir à série clássica das diferenças entre os homens e os animais: não pode responder, não fingir, não mentir, não apagar os rastros e, por sua posição, não inibir os instintos, não sofrer, não se comunicar. Nenhuma destas diferenças é defensável fenomenologicamente. De certo modo, a perspectiva que mais interessa a Derrida é a de neutralizar o ponto bíblico: que o constituir-se do ser humano se produza justamente ao nomear o animal, em relação ao animal, sobre o animal. (BERLANGA, 2016, p. 240)

O exercício teórico que nos norteará a seguir compreende que a possibilidade de saída da visão antropocêntrica referente ao problema passa pela experiência de uma fratura interna à humanidade: o reconhecimento da dignidade animal implica um ponto de vista crítico do mundo humano, sobre aquilo que se caracteriza pelo logos, aquilo que se caracteriza como “os próprios do homem”. Este diagnóstico afirma, portanto, que a questão animalista é inseparável da questão antropológica, mas também nos mostra que apostar na identificação ingênua da condição humana com a animal é impraticável. É nesse sentido que a recolocação do problema da natureza não pode ser feita sem que se coloque o problema da cultura, pois o repensar da condição animal está escrupulosamente conectado com o questionamento da máquina antropológica.

A possibilidade de debater a relação com o não humano a partir de Derrida nos parece ser a opção mais adequada para este tipo de reflexão, pois compreender como esse filósofo problematizou a constituição e o desenvolvimento da violência metafísica por parte da filosofia sobre os demais viventes não humanos. Entendemos que esse pode ser um dos caminhos mais elucidativos do problema da animalidade, por valorizar o perspectivismo e o senso de alteridade no trato da questão. Assim, Derrida tratou da questão animal com bastante atenção, e o que ele procurou oportunamente com sua leitura (pelo) animal da filosofia ocidental foi expor e denunciar os fundamentos logocêntricos e etnocêntricos do pensamento filosófico, distanciando-se singularmente das oposições binárias da metafísica zoofóbica.

Em uma entrevista concedida à Elisabeth Roudinesco, publicada sob o título de Violência contra os animais, Derrida expõe isso claramente:

A questão do animal não é uma questão entre outras. Se a considero desde há muito tempo, em si mesmo e por seu valor estratégico, é porque, difícil e enigmática em si mesma, representa também o limite sobre o qual suscitam-se e determinam-se todas as outras grandes questões e todos os conceitos destinados a delimitar o “próprio do homem”, a essência e o porvir da humanidade, a ética, a política, o direito, os “direitos do homem”, o crime contra a humanidade, o “genocídio”, etc. (DERRIDA, 2004, p. 73-87.)

O movimento de desconstrução derridiano expõe à crítica o projeto hegemônico de domínio e de violência contra os demais seres vivos. Não obstante, Derrida procura apresentar justamente aquilo que resiste a essa tradição logocêntrica: a existência de seres vivos cuja condição não provém daquilo que o discurso sobre os viventes visa classificar e sobre a qual pretende exercer poder.

Referências

BERGER, John. Por que olhar os animais? In: BERGER, John. Sobre o olhar. Trad. Lya Luft. Barcelona, Gustavo Gili, 2003.

BERGER, John. Animais como metáfora. Suplemento Literário de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.

COETZEE, J.M. A vida dos animais. Trad. José Rubens Siqueira; introdução e organização de Amy Gutmann - São Paulo: Companhia das letras, 2002.

DANOWSKI, Déborah. Há um mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins / Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro. - Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie: Instituto Socioambiental, 2014

DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou (A seguir) / Jacques Derrida; tradução Fábio Landa . - São Paulo: Editora UNESP, 2002.

DERRIDA, Jacques. ROUDINESCO, Elisabeth. Violências contra os Animais. De que amanhã...Diálogos.Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. Cap.5, p.80-96.

FRANCIONE, Gary. Introdução aos direitos animais. São Paulo, Editora Unicamp, 2014.

MACIEL, E. M. Zoopoéticas Contemporânea. link: http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/article/viewFile/3335/2811.

MASSUMI, Brian. O que os animais nos ensinam sobre política.Trad. Francisco Trento, Fernanda Mello, São Paulo, n-1 edições , 2017

PAIXÃO, R. L. Sob o olhar do outro. Derrida e o discurso da ética animal. Sapere Aude – Belo Horizonte, v.4 - n.7, p.272-283 – 1º sem. 2013

PRECIADO, Paul. B. O feminismo não é um humanismo. https://www20.opovo.com.br/app/colunas/filosofiapop/2014/11/24/noticiasfilosofiapop,3352134/o-feminismo-nao-e-um-humanismo.shtml

VELOSO, Caetano. Versos da canção O império da lei. Álbum Abraçaço (2012).

Notas

2. MASSUMI, Brian. O que os animais nos ensinam sobre política.Trad. Francisco Trento, Fernanda Mello, São Paulo, n-1 edições , 2017, p. 132

3. BERGER, John. Por que olhar os animais? . Sobre o olhar, Ed. Gustavo Gili, Barcelona, trad. Lya Luft, 2003.

4. Cf. PAIXÃO, R. L. Sob o olhar do outro. Derrida e o discurso da ética animal. Sapere Aude – Belo Horizonte, v.4 - n.7, p.272-283 – 1º sem. 2013

5. O filósofo Gary Francione, conhecido por seu trabalho sobre os direitos animais, sendo um pioneiro na teoria de direito animal abolicionista cuja base moral é o veganismo, identifica o que ele chama de “esquizofrenia moral” quando se trata da relação com animais não-humanos. O modo confuso e ilusório de pensarmos sobre os animais em termos sociais e morais. Ele afirma que isso se deve à maneira conflitante e incoerente de olhar para os animais como membros da família ao mesmo tempo que são a refeição para o jantar. Essa objetificação do outro viola diretamente o princípio de igual consideração. Se por um lado dizemos que levamos os interesses do animal a sério, por outro, devido ao fato de alguns animais nos serem propriedade, eles permanecem sendo coisas que não têm outro valor fora aquele que nós escolhemos lhe dar, e o interesse de protegê-los acontece apenas quando isso nos traz um benefício, ordinariamente econômico. De acordo com a perspectiva abolicionista de Francione, para dar importância moral aos animais, é necessário que eles não sejam tratados como coisas e, portanto, que não possam ser nossa propriedade. Se vivemos num tempo em que reina uma esquizofrenia moral, é porque também vivemos uma esquizofrenia jurídica: elaboramos leis para proteger os animais não-humanos de ações cruéis, mas limitamos a interpretação dessas leis apenas aos animais que possuem maior valor econômico vivos do que mortos. Nossa esquizofrenia moral e jurídica permite a exploração regulamentada destes animais não-humanos, ao mesmo tempo em que dizemos lutar por sua proteção e preservação. Além disso, nossa esquizofrenia moral causa uma enorme confusão quanto ao status moral dos não-humanos. A disparidade entre o que nós dizemos sobre os animais e como realmente os tratamos só será resolvida quando a perspectiva de igual consideração derrubar o muro do especismo e colocar em termos de igualdade os direitos de seres sencientes. Cf. FRANCIONE, Gary. Introdução aos direitos animais. São Paulo, Editora Unicamp, 2014.

6. BERGER, op cit, p. 14.

7. “O livro XVII da Ilíada começa com a cena em que vemos Menelau parado diante do cadáver de Pátroclo para evitar que os troianos o saqueassem. Homero usa animais como referências metafóricas, para mostrar, como ironia ou admiração, as qualidades excessivas ou superlativas de diferentes momentos. Sem o exemplo de animais, teria sido impossível descrever tais momentos. “Menelau defendia o corpo dele como uma vaca assustada, parada sobre o primeiro bezerro que trouxe ao mundo”. Um troiano o ameaça, e ironicamente Menelau grita para Zeus: “Você já viu arrogância igual? Conhecemos a coragem da pantera e do leão e do feroz javali, a mais confiante e fogosa das feras, mas parece que isso não é nada comparado à bravura desses filhos de Pantos…!” Então Menelau mata o troiano que o ameaçava, e ninguém se atreve a se aproximar dele. “Era como um leão da montanha que acredita em sua própria força e salta sobre o melhor vitelo num rebanho que pasta. Quebra seu pescoço com suas mandíbulas poderosas, e depois o despedaça e devora seu sangue e entranhas, enquanto ao seu redor os pastores e seus cães fazem um grande alarido mas também distância - terrivelmente amedrontados com ele, mas nada os faria chegarem perto” BERGER, 2003 . p. 16-17

8. Cf.MACIEL, E. M. Zoopoéticas Contemporânea.

link: http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/article/viewFile/3335/2811. “Se, na Antigüidade clássica, coube a Esopo, com suas fábulas moralizantes , a tarefa de levar os animais (convertidos em metáforas do humano) para o campo exclusivo da ficção, inaugurando uma vertente zooliterária que atravessará os séculos com seu tom sentencioso e proverbial, foi A história dos animais, de Aristóteles, o primeiro grande compêndio científico-literário sobre o reino zoológico, no qual os animais são tratados como animais, a partir de uma abordagem minuciosa que conjuga pesquisa, esforço taxonômico e imaginação criadora. Aristóteles inaugura, assim, não apenas a tradição enciclopédica, de feição científica, a que se filiarão Plínio o Velho, Santo Isidoro e Lineu, como também a dos catálogos descritivos de animais reais e fantásticos, conhecidos como bestiários, que proliferarão na Europa a partir da Idade Média. Nesse sentido, A história dos animais apresenta um duplo caráter: o taxonômico e o ficcional. Resultado de uma minuciosa investigação bibliográfica, conjugada a observações empíricas, informações recolhidas de outras pessoas, referências mitológicas, lendas e conjecturas do próprio autor, a enciclopédia aristotélica esquadrinha o mundo animal por vias distintas, tangenciando, muitas vezes, o fantasioso, como se vê sobretudo no livro IX, onde o filósofo se detém no comportamento e costumes dos bichos, nas virtudes e habilidades que eles possuem, bem como nas relações que eles mantêm entre si. Ele trata, inclusive, das inimizades entre vários deles, como entre a águia e a serpente, o lobo e o asno, o touro e a zebra, a salamandra e a aranha, valendo-se de descrições bastante literárias e, por vezes, insólitas. (cf. ARISTÓTELES, 1990, 477-483) Para não mencionar a inclusão que ele faz do dragão e da mantícora – seres fabulosos – no rol das bestas investigadas no compêndio”.

9. John Berger utiliza comentários do naturalista francês Buffon sobre um castor para sustentar sua classificação como “monumento da inteligência animal”: “ No mesmo grau em que o homem se alçou acima do estado da natureza, os animais caíram abaixo dele: conquistados e transformados em escravos ou tratados como rebeldes e espalhados à força, suas sociedades desapareceram, sua engenhosidade tornou-se improdutiva, suas artes experimentais desapareceram; cada espécie perdeu suas qualidades gerais, todas retendo unicamente suas capacidades distintas, desenvolvidas pelo exemplo, imitação, educação e, em outros casos, por medo e necessidade, na constante vigília para sobreviver: Que visões e planos podem ter essas almas escravas, essas relíquias de um passado sem poder? Só vestígios de seu engenho outrora maravilhoso permanecem em locais bastante desertos, desconhecidos do homem por séculos, onde cada espécie usava livremente suas capacidades naturais aperfeiçoando-as em paz dentro de uma comunidade duradoura. Os castores são talvez o único exemplo remanescente, o último monumento àquela inteligência animal…” BERGER, 2003. p. 18-19.

10. O ápice desse movimento de recrutamento da imagem simbólica do animal para retratar qualidades morais do homem foi no século XIX, a partir das ilustrações de Grandville, quando ele publicou o seu Public and Private Life of Animals. Os animais retratados por Grandville vestiam trajes humanos e agiam como homens e mulheres. Como um retrato, o animal devia expressar metaforicamente o caráter de uma pessoa, representar o traço de um caráter de alguém. Berger afirma: “Esses animais não estão sendo ‘emprestados’ para explicar pessoas, nada está sendo desmascarado; ao contrário. Esses animais se tornaram prisioneiros de uma situação humana/social que os recrutou. O urubu como senhorio é mais ameaçadoramente rapinante do que é como ave. Os crocodilos jantando são mais ávidos à mesa do que são no rio. Aqui os animais não estão sendo usados para lembrarem origem, ou como metáforas morais, mas são usados en masse para situações de ‘gente’. O movimento, que termina com a banalidade da Disney, começou como um perturbador sonho profético na obra de Grandville.” BERGER, 2003, p. 24.

11. “Quando foram fundados - o Zôo de Londres em 1828, o Jardin des Plantes em 1793, o Zôo de Berlim em 1844 - trouxeram considerável prestígio às capitais dos países. O prestígio não diferia muito daquele dos locais de exposição reais particulares. Esses locais de exposição, junto com baixelas de ouro, arquitetura, orquestras, artistas, mobília, anões, acrobatas, uniformes, cavalos, arte e comida, tinham sido a demonstração do poder e riqueza de um rei ou imperador. Da mesma forma no século XIX zoológicos públicos eram uma confirmação do poder colonial moderno. A captura de animais era a representação simbólica da conquista de todos os países exóticos e remotos. “Exploradores” provavam seu patriotismo mandando para casa um tigre ou elefante. O presente de um animal exótico ao zôo da metrópole tornou-se um símbolo nas relações diplomáticas subservientes.” BERGER, 2003, p. 26

12. “As crianças no mundo industrializado são rodeadas de imagística animal: brinquedos, desenhos animados, quadros, decorações de topo tipo. Nenhuma outra fonte de imagística pode competir com a dos animais. O interesse aparentemente espontâneo das crianças por animais poderia nos fazer supor que sempre foi assim. Certamente um dos mais antigos brinquedos (quando a vasta maioria da população desconhecia brinquedos) foram animais. Da mesma forma os jogos infantis no mundo todo incluem animais reais ou fictícios.” BERGER, op cit,. p. 26-27.

13. “Todos os locais de marginalização forçada - guetos, favelas, prisões, hospícios, campos de concentração - têm algo em comum com zoológicos. Mas é fácil e evasivo demais usar o zoológico como símbolo. O zoológico é uma demonstração das relações entre homem e animais; nada mais que isso.” BERGER, 2003 , p 31.

14. Para pensadores, como o caso dx filósofx Paul Beatriz Preciado, a noção de “animalismo” está correlacionada a uma perspectiva feminista dilatada e não antropocêntrica que denuncia a modernidade humanista como um regime de proliferação da morte cujos resultados são efeitos de uma tecnologia necropolítica, a qual, com o humanismo, inventou um outro corpo -soberano, branco e heterossexual- para chamá-lo de “humano”. Segundo Preciado, para quem o animalismo não corresponde a um naturalismo : “Já que toda a modernidade humanista soube apenas proliferar tecnologias da morte, o animalismo deverá convidar a uma nova maneira de viver com os mortos. Como o planeta como cadáver e como fantasma. Transformar a necropolítica em necroestética. O animalismo torna-se uma festa fúnebre. Uma celebração do luto. O animalismo é rito funerário, nascimento. Uma reunião solene de plantas e de flores em torno das vítimas da história do humanismo. O animalismo é uma separação e um acolhimento.O indigenismo queer, a pansexualidade planetária que transcende as espécies e os sexos, o tecnoxamanismo, sistema de comunicação interespécies, são dispositivos de luto.” in O feminismo não é um humanismo. https://www20.opovo.com.br/app/colunas/filosofiapop/2014/11/24/noticiasfilosofiapop,3352134/o-feminismo-nao-e-um-humanismo.shtml

15. cf. DANOWSKI, Déborah. Há um mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins / Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro. - Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie: Instituto Socioambiental, 2014.

16. Segundo um estudo publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences, o mundo vive uma sexta extinção biológica em massa, um fenômeno de aniquilação biológica bastante grave investido contra a diversidade biológica do planeta. A redução drástica dos habitats pela superexploração de recursos naturais, a poluição desenfreada e as mudanças climáticas causadas pela ação humana tendem cada vez mais a uma perspectiva catastrófica para o futuro da vida animal. “ Os pesquisadores observaram que as populações de vertebrados sofreram grandes perdas, inclusive entre as espécies que despertam pouca preocupação. Cerca de um terço (8.851) das espécies analisadas - o que representa quase metade das espécies de vertebrados conhecidas - apresentou declínio populacional e diminuição em termos de distribuição geográfica, mesmo aquelas que atualmente não são consideradas sob o risco de extinção. Já entre os 177 mamíferos estudados, todos perderam 30% ou mais em distribuição geográfica, com mais de 40% registrando um declínio populacional severo, com encolhimento superior a 80%”, é o diz o trecho da pesquisa publicada em matéria online pelo site Deutsche Welle. link: http://www.dw.com/pt-br/mundo-vive-sexta-extin%C3%A7%C3%A3o-em-massa-e-%C3%A9-pior-do-que-parece/a-39636274

17. cf.Derrida, Jacques. O animal que logo sou (A seguir) / Jacques Derrida; tradução Fábio Landa . - São Paulo: Editora UNESP, 2002.

Material suplementario
Notas
Notas de autor
1 Doutor(a) em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte – MG, Brasil.
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