Resumo: Na obra Multiculturalismo: examinando a política do reconhecimento de Charles Taylor, a ideia de identidade individual é apresentada, em termos político-culturais, como fosse em parte dependente das identidades coletivas. Nesse sentido, a solução política para a harmonização social e até mesmo para a formação cultural das identidades particulares está ligada à coletividade. No Político de Platão, embora a preocupação final também seja de harmonizar o coletivo, a pólis, a arte política atua antes no ajuste da psyché individual. Isto porque o coletivo é uma espécie de espelhamento do indivíduo. Se por um lado Platão é taxado de idealista para as soluções políticas que apresenta para a questão coletiva, por outro, não o é quando aponta que o discurso (filosófico) é capaz de reorientar o indivíduo para a vida política.
Palavras-chave: Individual, Coletivo, Identidade, Política.
Abstract: In Charles Taylor's Multiculturalism: examining the Politics of Recognition, the idea of individual identity is presented, in political-cultural terms, as being partly dependent on collective identities. In this sense, the political solution for social harmonization and even for the cultural formation of particular identities is linked to collectivity. In Plato's Politics, although the final concern is also to harmonize the collective, the pólis, political art acts rather in the adjustment of the individual psyché. This is because the collective is a kind of mirroring of the individual. If on the one hand Plato is taxed as an idealist for the political solutions he presents to the collective question, on the other, he is not when he points out that (philosophical) discourse is capable of reorienting the individual towards political life.
Keywords: Individual, Collective, Identity, Politics.
Artigos
O individual e o coletivo em Taylor e Platão
The individual and the collective in Taylor and Plato
Recepción: 17 Mayo 2022
Aprobación: 09 Octubre 2022
Ao colocar a identidade individual no centro de discussão da Política do Reconhecimento, Charles Taylor toca em uma questão que vai para muito além do liberalismo político e do comunitarismo. Sabemos que a concepção de identidade abordada por Taylor (2000, p. 3-4) surgiu, como ele mesmo frisa, no final do século XVIII com as influências de Rousseau, mas o debate político da relação indivíduo-sociedade é bem mais antigo e está presente na tradição filosófica desde a antiguidade clássica. E é exatamente os desafios desta relação que continuam a interessar Taylor, neste texto específico.
Como veremos, o que Taylor quer, no fim das contas, é pensar “a ligação entre a identidade individual” e “as identidades coletivas” (APPIAH, 1994, p. 167) à luz de uma política do reconhecimento, considerando “o estreito vínculo entre identidade e reconhecimento” (TAYLOR, 2000, p. 7). Seguindo este caminho, nosso intuito neste artigo é ampliar a discussão acerca do individual e do coletivo a partir das considerações dos críticos de Taylor e das reflexões políticas contidas no diálogo O Político de Platão.
De acordo com a visão tayloriana, identidade quer dizer “algo como uma compreensão de quem somos, de nossas características definidoras fundamentais como seres humanos”. (TAYLOR, 2000, p. 01). As considerações de Taylor inspiraram Appiah (1994, p 167) a dizer que “a identidade individual de cada pessoa é vista como tendo duas dimensões principais”. Cada indivíduo apresenta em si uma dimensão coletiva que é “a intersecção de suas identidades coletivas” e, apresenta também, uma dimensão pessoal, que reúne “características social ou moralmente importantes – inteligência, charme, perspicácia, cobiça – que não são elas próprias as bases das formas de identidade coletiva” (APPIAH, 1994, p 167). Em tons de crítica, adverte Appiah (1994, p. 167), que a distinção entre estas duas dimensões de identidade é “uma distinção sociológica mais do que lógica”, talvez já acenando que não há uma preponderância tão relevante do coletivo sobre o individual, como parece pensar Taylor. Mas antes de entrarmos diretamente neste problema, é importante vermos como essa noção de identidade individual surgiu e quais são as suas consequências, de acordo com a visão de Taylor.
À parte à influência de Rousseau, que contribuiu para que ocorresse uma “virada subjetiva massiva da cultura moderna” ao apresentar o problema da moralidade atrelado à ideia de seguir “a voz da natureza dentro de nós” (TAYLOR, 2011, p. 35), Taylor considera que essa noção de identidade individualizada aflora conjugada ao que chama de ideal de “autenticidade” (2000, p. 3). Esse ideal teria tido, no período Pós-Rousseau, Helder como seu primeiro articulador, apresentando aí “a ideia de que cada um de nós tem um modo original de ser humano: cada pessoa tem sua própria medida” (TAYLOR, 2000, p. 5). Antes do século XVIII, diz Taylor, ninguém via as diferenças pessoais como tendo uma significação moral. Com Helder, vê-se que “há certo modo de vida que é o meu modo” e não ser fiel a mim implica em perder o sentido da própria vida. Esse modo original de ser pode ser expresso como um princípio: o “princípio da originalidade, em que cada voz tem algo peculiar a dizer” (TAYLOR, 2000, p. 5). Deste modo, está contido no ideal de autenticidade a ideia de que jamais posso abrir mão de escutar a minha natureza interior, a voz que vem de dentro e me convida a estar comigo mesmo. Esse contato íntimo com a natureza interior pode se perder na medida em que o indivíduo sede às pressões externas ou assume uma relação consigo baseada em atitudes puramente instrumentais (2000, p. 5). Essas serão algumas das preocupações de Taylor, por exemplo, na Ética da Autenticidade.
Em linhas gerais, um dos graves problemas que Taylor identifica na era moderna é o individualismo e “a autenticidade é uma faceta do individualismo moderno” (2011, p. 51). Há inegavelmente muitas conquistas da civilização moderna, tais como as liberdades individuais, o direito de escolher por si seu “próprio modo de vida”, de se conduzir a partir dos próprios ideais morais, tudo isto é muito valioso e muitos concordarão (TAYLOR, 2011, p. 11). No entanto, o receio de Taylor é esses modos de vida autocentrados no eu resultarem na perda de uma visão mais abrangente da vida, perdendo com isso os horizontes morais. Em parte, essa liberdade moderna foi ganhando forma à medida em que se distanciou, dirá Taylor (2011, p. 11), dos “antigos horizontes morais”. No passado, como também concordaria Mircea Eliade, as pessoas eram integradas a uma ordem cósmica, algo maior que as abrigava e protegia. Tinham um lugar e desempenhavam papeis que eram delas, dentro daquilo que Taylor chamaria de “a grande cadeia do ser”. Sabemos que essa segurança e sentido, anteriores à era moderna, recebem sua âncora, em grande parte, das narrativas míticas e religiosas. No entanto, “a liberdade moderna surgiu pelo descrédito” dessas narrativas. (TAYLOR, 2011, p. 11). E isso implica também um risco.
Segundo Taylor (2011, p. 13), “o lado sombrio do individualismo é o centra-se em si mesmo, que tanto nivela quanto restringe a nossa vida, tornando-a mais pobre em significado e menos preocupada com os outros ou com a sociedade”. Obviamente, ao fazer a leitura das consequências do individualismo na sociedade moderna, Taylor não defende um retorno às antigas ordens do passado, porém chama a nossa atenção para uma maior sensibilidade de nossa parte para com o que é de interesse público.
Junto a este problema do individualismo, que faz com que as pessoas fiquem cada vez mais autocentradas, com a vida pobre de significado e menos preocupadas com o social, há outros dois problemas que fazem parte do que Taylor chama de Três Mal-estares da Idade Moderna: “a primazia da razão instrumental e a perda da liberdade” (TAYLOR, 2011, p. 18).
Em relação à razão instrumental, Taylor (2011, p. 13) a enxerga como um fenômeno que atrapalha bastante a vida na sociedade moderna, no sentido de que esse tipo de racionalidade envolve um cálculo cuja “eficiência máxima, a melhor relação custo-benefício, é sua medida de sucesso”. O que está em jogo aqui é o risco de tomarmos o mundo à nossa volta, o meio ambiente e as pessoas como meios para alcançarmos nossos fins, sem uma reflexão que exija um comprometimento moral de cuidado com o nosso entorno. Em certa medida, é como se os fins que deveriam guiar as nossas vidas fossem eclipsados pelas demandas externas, como o crescimento econômico que constantemente gera desigualdade, degradação ambiental, ou mesmo a tecnologia, quando desconsidera a vida e a história de um paciente, por exemplo. (TAYLOR, 2011, p. 14).
Para Taylor, esses dois problemas, o individualismo e à razão instrumental, nos leva ao nível político e nos faz pensar o quanto isso impacta na vida política. Isto porque tanto o individualismo quanto a razão instrumental, ameaçam a nossa dignidade como cidadãos, no sentido de, pode ser, nos empurrar cada vez mais para “a alienação da esfera pública e a consequente perda do controle político” (TAYLOR, 2011, p. 18). Esse terceiro problema apontado por Taylor, vem denunciar a perda da liberdade que ora nos acomete, seja porque nossas escolhas são cerceadas pelas estruturas e instituições quando diante da impotência de uma deliberação moral séria, como defender o meio ambiente, por exemplo, seja porque os indivíduos autocentrados em suas esferas privadas participem cada vez menos da esfera pública.
As consequências advindas dos problemas da era moderna, e mais precisamente o problema do individualismo, levam Taylor a aprofundar a compreensão da relação entre a esfera individual e coletiva, quem sabe, para apontar um possível horizonte que permita um maior engajamento político dos indivíduos diante das questões de interesse público. Como comunitarista, e fazendo um contraponto com os liberais, Taylor pensará que há uma preponderância do coletivo sobre o individual, e que, em termos da constituição de uma identidade individual, o coletivo tem uma importância relevante.
De volta à questão da identidade individual e de como ela se constitui, Taylor afirma que “a formação e manutenção da nossa identidade, na ausência de um esforço heroico para sair da existência ordinária, permanecem plenamente dialógicas por toda a nossa vida” (TAYLOR, 2011, p. 43-44). Isso quer dizer que, em Taylor, a identidade individual surge sempre e a partir de uma relação dialógica com os outros, dentro de determinado corpo social. Por isso, a identidade individual é, em parte, sempre dependente da dimensão coletiva.
Esta posição assumida por Taylor suscitará objeções de alguns críticos. Appiah, no comentário da edição de 1994 de Multiculturalismo, ao escrever sobre Identidade, Autenticidade e Sobrevivência, chama a atenção para o fato de Taylor conferir maior relevância à dimensão coletiva que à dimensão individual, no sentido de aquela ser preponderante em relação a esta. Adverte Appiah (1994, p. 169), a título de exemplo e a partir de sua experiência, que “o facto de ser afro-americano, entre outras coisas, molda o eu autêntico que procuro expressar. E isto acontece, em parte, porque procuro expressar a mim próprio que procuro o reconhecimento de uma identidade afro-americana.” Isto porque, “não há identidade social a não ser na medida em que esta se expressa e se manifesta nas peculiares identidades singulares” (RAGUSO, 2005, p. 195).
A crítica de Appiah está centrada, em parte, na própria incongruência de partes do texto de Taylor. Ao se dedicar longamente ao problema da autenticidade, Taylor não considerou que “esta noção de autenticidade se tem construído numa série de erros de antropologia filosófica” (APPIAH, 1994, p. 170). Se o eu é, como Taylor reconhece, dialogicamente constituído, não o é unicamente porque o modo próprio de ser de cada um é desenvolvido tendo “de lutar contra a família, a religião organizada, a sociedade, a escola, o estado” e demais convenções, mas, sobretudo porque “a minha identidade”, portanto, “é constituída de conceitos e práticas disponíveis para mim através da religião, da sociedade, da escola e do estado, e mediados a vários graus pela família” (APPIAH, 1994, p. 170). Em outras palavras, na visão de Appiah (1994, p. 170), o eu se define não tanto em função do diálogo com “o entendimento das outras pessoas de quem eu sou”, mas especialmente porque “o material do qual me formo é fornecido, em parte, pela minha sociedade”. O diálogo tem apenas o papel de moldar a identidade que o indivíduo desenvolve enquanto cresce, reitera.
Em linhas gerais,
Appiah não pode aceitar que a identidade dos seres humanos possa ser restringida ao que chamamos identidades sociais colectivas. Estas seriam apenas meta-narrativas, a partir das quais cada um desenvolve a sua própria história pessoal. A ligação entre a identidade individual (a história) e as identidades colectivas (a meta-narrativa) é portanto, no seu entender, mais sociológica do que lógica. (RAGUSO, 2005, p. 194-195).
Como vemos, Appiah está mais disposto que Taylor a conceder maior espaço às identidades individuais no processo de desenvolvimento de suas histórias pessoais. Este posicionamento confere aos indivíduos maior autonomia na condução de suas existências, no sentido de convocá-los a si mesmos.
Esta ideia de “autonomia”, embora o termo seja pouco explorado por Appiah, é bem cara à Habermas. Por motivos diferentes e não tão centrada na questão da identidade individual, a crítica de Habermas à Taylor, no Multiculturalismo, levanta questões importantes sobre os direitos de grupos, um assunto que tem direta relação com a preocupação de Taylor quanto às identidades coletivas. Para Habermas (1994, p. 130) é descabida a ideia de garantir direitos de grupos com vistas à “promoção da sobrevivência de formas de vida culturais em perigo”, como viabilidade jurídica tutelada pelo estado para garantir a convivência étnica dos grupos distintos. Habermas (1994, p. 130) acusa a concepção de direitos de Taylor de paternalista, justamente porque tal concepção reivindica uma base jurídica que defenda e decida, em casos controversos de tribunais, por exemplo, os direitos fundamentais. A questão para Habermas, aqui, é que a solução de Taylor não leva em conta a “autonomia” dos envolvidos, no sentido de não considerar “o fato de que aqueles a quem a lei se dirige poderem adquirir autonomia (no sentido kantiano) apenas na medida em que podem compreender a si próprios como autores das leis perante as quais são sujeitos enquanto pessoas legais privadas” (HABERMAS, 1994, p. 130-131).
Está contida nas observações de Habermas a compreensão de que a liberdade e a autonomia são elementos que precisam ser considerados, mesmo quando a preservação do grupo cultural está sob risco. É preciso tratar de modo distinto a dinâmica de preservação das culturas em relação à dinâmica de preservação das espécies, no sentido de que “o ponto de vista ecológico da conservação das espécies não pode ser transportado às culturas” (HABERMAS, 2002, p. 250). Isto porque, de acordo com Habermas (2002, p. 251), as “formas de vida”, do ponto de vista cultural, se perpetuam ao longo do tempo mais em função de sua autotransformação que da busca por medidas de proteção da espécie. Basta observar que as "formas rígidas de vida tornam-se vítimas de entropia” (HABERMAS, 2002, p. 252), como se vê na modernidade.
Diante disso, a investida para garantir a preservação cultural das identidades coletivas pela via da teoria dos direitos de Taylor, dista em muito de uma base segura. Para Habermas, “são sempre e somente os membros singulares de cada cultura que precisam de ser tutelados e reconhecidos, enquanto indivíduos com uma particular tradição e com formas-de-vida (Lebensform) que constituem a sua própria identidade” (RAGUSO, 2005, p. 193). Nesse sentido, a solução jurídica apontada por Taylor para tutelar grupos culturais é bastante discutível, embora se possa compreender a sua preocupação em apontar um caminho que salvaguarde as identidades coletivas.
O problema que pode aparecer, caso não haja uma disposição para considerar em maior medida a dimensão individual, é a própria insustentabilidade das soluções para o coletivo. Taylor, ao fazer esforço por proteger a coletividade pode acabar por distanciá-la em muito da individualidade.
Desde Platão, a relação entre o individual e o coletivo permanece uma questão que ocupa amplo espaço dentro dos debates que envolvem filosofia política. Respeitadas as peculiaridades de cada época, seu contexto e costumes, vê-se que a tradição jamais deixou de considerar a história dessa relação, ou melhor, os problemas políticos e filosóficos que emergem dessa relação entre indivíduo e sociedade. O debate entre liberais e comunitaristas é uma pequena mostra de como essa discussão ainda vigora acesa na contemporaneidade.
Como algumas coisas não se rompem tão facilmente com o tempo, muitas das questões políticas que discutimos na contemporaneidade tem suas raízes no pensamento da tradição. É por isso que a leitura dos textos dos antigos, frequentemente, é de interesse de muitos teóricos contemporâneos que se dedicam a conteúdos tais como o problema da justiça, do conhecimento político, da governança, dos regimes, entre outros. O aprofundamento desses assuntos contribui muito para que estudos avancem em pesquisas relacionadas às democracias, às leis, às constituições, ao papel do representante político, bem como da organização político-social.
Entre os autores do pensamento político da tradição, a leitura dos textos de Platão é quase inevitável, especialmente de obras como A República, O Político e As Leis que, em conjunto, giram em torno da mesma unidade temática, a política. Nestas obras, pode-se dizer, Platão apresenta, de modo mais conciso, suas ideias em termos de teorização política. A República tem como tema central a questão da justiça (Rep., 368e), cuja abordagem leva em conta as dimensões individual e coletiva (o indivíduo e a pólis), no Político, a investigação filosófica vai na direção de saber o que é o conhecimento político (258b) e de como este conhecimento pode organizar as esferas individual e coletiva e, por fim, As Leis tratam mais especificamente do exame das leis, que diz respeito de forma direta à relação entre os indivíduos e a sociedade ou cidade-estado que os integra (livros I, IV, IX e X ). Por falta de espaço, não será possível fazer aqui uma análise aprofundada das três obras, mas ater-se apenas a algumas curtas passagens, sobretudo do Político, que tratam da relação entre o individual e o coletivo a fim de ver como, em Platão, essas duas instâncias não estão, por assim dizer, tão separadas. Uma vez que isto seja possível, a reflexão contribuirá para compreendermos um pouco mais os problemas giram em torno da concepção tayloriana de identidade individual e identidade coletiva.
É importante chamar aqui novamente Appiah à discussão. Segundo ele, em Taylor, apesar da demarcada diferença entre identidade individual e identidade coletiva, tal “distinção é sociológica mais do que lógica” (1994, p. 167). E isso ocorre porque, das duas dimensões de identidade (a pessoal e a coletiva) que constituem cada pessoa, apenas as identidades coletivas com suas propriedades são consideradas “como categorias sociais, como tipos de pessoas” (APPIAH, 1994, p. 167). No entanto, frisa Appiah, “há uma categoria lógica mas não social dos perspicazes, ou dos espertos, ou dos charmosos, ou dos gananciosos” (1994, p. 167) e são a partir dessas propriedades que todas as categorias sociais se constituem.
Vale salientar, de acordo com a visão de Taylor, que apenas as identidades coletivas definem os “tipos de pessoas” (APPIAH, 1994, p. 167), mas não as identidades pessoais. A questão é que, conforme Appiah, as propriedades dessa dimensão coletiva presentes nas pessoas são puramente sociológicas e não lógicas. Neste sentido, características como a inteligência, o charme, a perspicácia e a cobiça não são capazes de definir socialmente uma determinada pessoa, embora façam parte da sua dimensão pessoal, na perspectiva de Taylor. O que incomoda Appiah aqui parece ser a pouca importância dada à dimensão pessoal, o que o levará, muito pertinentemente, a considerar que as identidades coletivas “surgem com noções de como a pessoa se comporta” (1994, p.175), ou seja, há modos de comportamentos individuais cujas noções captadas pelas identidades coletivas fornecem normas ou modelos indefinidos para estas mesmas identidades. E a partir disso, essas identidades coletivas fornecem o que Appiah (1994, p. 176) chama de manuscritos ou narrativas que são centrais para as identidades individuais moldarem seus planos de vida e as suas próprias histórias.
Essa ideia de considerar as características pessoais como uma espécie de base fundamental para a organização coletiva é uma ideia que também aparece no Político de Platão. Ao tratar das distinções entre as virtudes da coragem e da moderação, o Estrangeiro de Eleia (306a-307b), na obra, traz à discussão a presença de dois tipos distintos de indivíduos no interior da pólis, os corajosos e os moderados. De naturezas opostas, e na ausência de algo que harmonize as diferenças, esses dois tipos tendem a caminhar na direção do excesso e da falta, afastando-se da adequada medida e atrapalhando com isso a harmonia da pólis (307b-c). O desafio político que se impõem então é descobrir como bem organizar a heterogeneidade dos tipos, que conflitam, a fim de estabelecer a ordem social. De forma elementar, está contido nessa passagem a preocupação de como resolver um problema de diversidade, a exemplo do que tão frequentemente se discute na contemporaneidade e que remonta à Locke com a questão da tolerância. A convivência com o diverso é sempre um desafio.
No contexto do Político, a visualização dessa harmonia é clareada com o paradigma da tecelagem (277d-283a), lançado pelo Eleata como recurso para se entender como funciona a aplicabilidade da arte política. Assim como um tecelão sabe entrelaçar os fios firmes da urdidura com os fios flexíveis da trama, a fim de produzir um bom tecido, assim também o político é aquele que sabe entrelaçar, do modo mais justo, os tipos corajosos/firmes e moderados/flexíveis e produzir com isso o tecido político (279b; 306a).
É “função única e exclusiva da arte de tecer” do político:
nunca separar os caracteres moderados dos impulsivos, mas – servindo-se da tecelagem de consensos, da atribuição e suspensão de honrarias, de opiniões e de alianças de amizade recíprocas – confeccionar, a partir desses elementos, um pano liso, vulgarmente chamado “tecido de qualidade”, e confiar a estes indivíduos – sempre em regime de colegialidade – os lugares de governo nas cidades. (Pol., 310e-311a).
Embora o paradigma da tecelagem pressuponha a presença do político, que possui a ciência política, para tecer os tipos distintos de indivíduos, o importante é notar como, no Político, a dimensão individual de cada tipo tem relevância, no sentido de ser levada em conta como etapa fundamental para produzir o tecido coletivo. E isto acontece muito em função de, em Platão, essas duas dimensões não estarem separadas.
Na República, diz-se que a cidade é uma imagem ampliada do indivíduo (JAEGER, 1983, p. 751). De fato, há uma relação mais orgânica entre o indivíduo e o coletivo quando observado, por exemplo, o alinhamento psyché-virtude-pólis. A cidade ideal fundada por Sócrates (Rep., 427c-d) expressa de modo mais evidente a relação entre a psyché e a pólis graças à presença das virtudes que estariam tanto na psyché quanto na pólis (Rep., 434c-441c). Estas duas instâncias, a individual e a coletiva, são compostas cada uma de três partes: na cidade as três partes são representadas pelas classes dos comerciantes, auxiliares e guardiões (Rep., 343c), que por sua vez, correspondem na psyché às partes apettiva, irascível e racional (Rep., 439d-e). Deste modo, virtude da sabedoria está ligada aos guardiões e à parte racional (que governa), a coragem está ligada aos auxiliares à parte irascível (que se deixa comandar por quem governa) e, por fim, a moderação está atrelada aos comerciantes e à parte apetitiva da psyché (instintiva, desejosa por riquezas e prazeres). A justiça é a virtude que promove a articulação entres as partes da pólis e da psyché, de modo a fazer com que cada uma cumpra exatamente a função única que lhe cabe (Rep., 443b-c).
No Político, igualmente vê-se que os indivíduos são caracterizados, uns, por possuírem a virtude da coragem e, outros, por possuírem a moderação e os mesmos precisam partilhar da mesma opinião “a respeito do Belo e do Bem” (310e). Diante disso, o político, que possui a ciência e o domínio da arte da tecelagem, tem a função de saber bem ajustar, ou seja, entrelaçar da forma mais justa os tipos heterogêneos, corajosos com moderados, para melhor escalonar funções e cargos dentro da organização estrutural de governo da pólis (310e-311a), quando se trata do nível coletivo.
Acontece que, ao entrelaçar os tipos humanos, antes, o político, o dialético (258b-e309b-c), é aquele que sabe entrelaçar as virtudes da coragem e moderação que, opostas por natureza, estão no interior de cada indivíduo (307c-d). Neste sentido, há, no Político, a preocupação relevante de, primeiro, ajustar os elementos internos de cada indivíduo de modo a realizar, antes, uma harmonização a nível individual para, só então, fazer com que tal organização e harmonia se estendam ao nível coletivo, da pólis. Isto porque a pólis reflete aquilo que o indivíduo é.
Se olhada por este prisma, a política platônica encontra na dimensão individual as bases que fundamentam a estrutura coletiva. Embora cada indivíduo seja um integrante, ou melhor, uma pequena parte do corpo social, é justamente a reorientação dessa pequena parte que impacta na harmonia do todo. E, podemos pensar, a filosofia tem um papel muito importante neste processo.
O Político é sobretudo um diálogo dialético. O próprio Estrangeiro diz “a investigação sobre a figura do político torna, aqueles que a investigam, melhores dialéticos em qualquer matéria” (285d). Além disso, no contexto da obra, vale ressaltar, o saber político passa pelo saber dialético, no sentido de que utiliza o mesmo procedimento metodológico de pensamento no momento de realizar a tecelagem. Tal como a investigação puramente filosófica se vale da dialética como método, quando se trata de operar uma reunião ou divisão em torno de determinado objeto, a fim de ligar a totalidade das coisas afins sob um único elemento de semelhança e alcançar uma unidade básica conceitual, do mesmo modo, o saber político se vale do procedimento dialético no momento de distinguir, reunir e entrelaçar os tipos heterogêneos de indivíduos com vistas à unidade política da cidade. Ao tratar da dialética, o Estrangeiro a define como a atividade que consiste na “demonstração por palavras das coisas que são” (287a).
Isto demonstra o quanto o discurso, filosófico, ocupa um lugar privilegiado dentro do pensamento político de Platão. Rosen (1995, p. 16, tradução nossa) chega a dizer que ser “dialético consiste em fazer clarear o ser pelo logos”. Se em algumas passagens de sua obra Platão parece utópico para as soluções que dá para a política no nível coletivo, especialmente quando fala de rei-filósofo como modelo ideal para governos (Rep., 473d-e), é igualmente importante reconhecer que parece não tão utópico assim quando aponta o discurso filosófico como via capaz de movimentar e ajustar a instâncias internas do indivíduo, de modo a orientá-lo na direção do saber político.
É importante observar que a perspectiva Platônica, além de levar em conta cada individualidade, leva em conta também as características internas de cada individualidade (coragem; moderação, por exemplo), que, harmonizadas, refletem na coletividade.
Análogo a Platão, neste aspecto específico, Appiah, na crítica que faz a Taylor, parece considerar as características do indivíduo – inteligência, charme, perspicácia, cobiça – como tendo alguma relevância na constituição da identidade individual, no sentido de que contam com uma dinâmica particular e peculiaridade quando interagem com os grupos sociais. Em outras palavras, cada indivíduo, ao seu modo, como frisa Appiah (1994, p.170), articula os conceitos fornecidos pela sociedade no momento de produzir suas próprias histórias e formas de vida. A partir disso, as identidades coletivas retiram das individualidades, como já mencionado neste texto, as noções para se constituírem como meta-narrativas e guiar as pessoas nas suas identidades. Vê-se neste exemplo, como em Platão, que a individualidade tem um lugar de destaque na formatação política da coletividade, uma vez que o social se define muito em função do que acontece no nível individual.
Este é o ponto de uma considerável diferença entre Platão e Taylor, no que diz respeito ao peso que cada um dá ao individual e ao coletivo, dentro do campo político. E de fato, aqui, os liberais parecem se aproximar mais de Platão que os comunitaristas. E não é porque a esfera individual, no caso de Platão, tenha preponderância sobre a esfera coletiva. Sabemos que as preocupações políticas, que inclusive serviram e servem de base para a história e constituição política do ocidente, ocupam um amplo espaço dentro da obra de Platão, de modo que, não considerá-lo um pensador da política parece dissonante. No entanto, parece Platão, ver na filosofia (e talvez poderíamos dizer na educação que produz autonomia e consciência política) o caminho de maior viabilidade para se chegar, via indivíduo, à questão política. E neste sentido, ao invés de colocar a coletividade como central no debate político, seja exigindo direitos de grupos, seja buscando caminhos de preservação cultural, como forma de garantir a sobrevivência e perpetuação da influência (política-cultural) dessas identidades coletivas nas futuras gerações (como quer Taylor), um caminho possível parece ser aquele que não empurre a individualidade para uma condição tão periférica, mas a considere uma esfera de relevante importância, de autonomia e auto-orientação política, com a liberdade individual não restringida por nenhuma meta-narrativa.
Sabemos da importância dos distintos grupos, da influência das identidades coletivas sobre as identidades pessoais, porém, não se pode limitar o modo como cada existência se constitui. Qualquer lugar de preponderância que se dê às influências que vem do coletivo, já é ratificar essa limitação. Além disso, é preciso observar que a consciência política de cada indivíduo nem sempre emerge pela sua inscrição em identidades coletivas específicas e com pautas rígidas, há grupos como “professores, artistas, intelectuais, advogados, políticos” (APPIAH, 1994, p. 176), entre outros, que, mesmo sem uma meta-narrativa específica, são fundamentais para a formação crítica dos indivíduos. Não é a intenção aqui negar a fundamental importância das meta-narrativas para a formação política das pessoas, mas ressaltar que a consciência política de determinada pessoa não se limita a grupo algum, uma vez que o trânsito de cada pessoa, em grande medida, tem a ver com o caminho que ela mesma constrói como parte da humanidade que a integra. O diálogo não deixa de ser fundamental.
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