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Destino e predeterminação. Considerações nietzschianas em torno à acolhida jubilosa do fato para além de determinismos

Fate and predestination. Nietzschean considerations around the joyful reception of the fact beyond determinisms

Adilson Felicio Feiler 1
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Brasil

Destino e predeterminação. Considerações nietzschianas em torno à acolhida jubilosa do fato para além de determinismos

Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 3, pp. 220-229, 2022

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepción: 16 Julio 2022

Aprobación: 17 Octubre 2022

Resumo: O presente trabalho se assenta sobre um tema fundamental dentro do conjunto do pensamento de Nietzsche: o tema do Destino. Se o Destino for encarrado como algo previamente decidido em relação às mais diversas situações, então a filosofia de Nietzsche se esbarra numa aporia, a de ter que enfrentar o problema do determinismo, que toca um dos maiores obstáculos da cultura: a moral. No âmbito moral tudo se encontra ordenado e determinado. Neste sentido, o desenvolvimento desta pesquisa se orienta na direção de um aprofundamento das implicações filosóficas atinentes ao Destino. Encarrado como tornar-se a organização particular de impulsos, o Destino perde o sentido de predeterminação e decisão pronta e acabada sobre as diferentes situações. Em que medida falar sobre o Destino, no âmbito de pensamento nietzschiano, implica em abertura à plenitude, para além de todas as formas de determinismo?

Palavras-chave: Nietzsche, Destino, Determinação, Plenitude, Moral.

Abstract: The present work is based on a fundamental theme within the set of Nietzsche's thought: the theme of Destiny. If Fate is seen as something previously decided in relation to the most diverse situations, then Nietzsche's philosophy runs into an aporia, that of having to face the problem of determinism, which touches one of the greatest obstacles of culture: morality. In the moral sphere, everything is ordered and determined. In this sense, the development of this research is oriented towards a deepening of the philosophical implications related to Destiny. Faced with becoming the particular organization of impulses, Destiny loses the sense of predetermination and ready and finished decision on different situations. To what extent does talking about Destiny, within the scope of Nietzschean thought, imply openness to plenitude, beyond all forms of determinism?

Keywords: Nietzsche, Fate, Determination, Fullness, Moral.

Introdução

Em janeiro de 1882, Nietzsche apresenta como acolhida do ano que se inicia, em forma de um pedido, de que o seu amor seja pleno, sem exceções ou fissuras: “[...] assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante o meu amor! (FW/CG, 276, KSA, 521.3)2. Amar o destino é amar tudo o que pode acontecer, mediante um amor que é acolhida irrestrita e jubilosa a tudo. E não se trata apenas de acolher o fato, os acontecimentos, mas, mais que isso, desejá-los, sejam estes quais forem. Neste sentido, todos os fatos e acontecimentos, dentro deste período da escrita de Nietzsche carregam a marca de elementos que inspiram e, mesmo, se aproximam de determinismos. Por isso, quando se fala de acontecimentos, o filósofo os coloca na condição de serem acontecimentos possíveis. Já a fórmula amor fati em Ecce Homo, vem associada ao eterno retorno do mesmo: “A minha fórmula para a grandeza do homem é amor fati: nada pretender ter de diferente, nada para a frente, nada para trás, nada para toda a eternidade” (EH/EH, por que sou tão sábio, 10, KSA, 297.6). Amar o fato, de acordo com este aforismo, é se por numa situação de irrestrita obediência diante de tudo o que acontece. Sabendo que o que acontece, seja para a frente ou para trás, carrega as marcas da eternidade. Ou seja, tudo o que aconteceu retornará, não uma, mas uma série interminável de vezes.

Portanto, já nesta fase da escrita de Nietzsche, o amor fati vem associado ao eterno retorno, o que faz com que as marcas da fatalidade se mostrem muito mais evidentes. E isto faz pensar que amar o destino é se por numa posição de conformação ao turbilhão determinista do retorno. Sendo, pois, tudo o que foi, o será eternamente. No entanto, a ênfase no aspecto determinista não recai precisamente sobre o fato em si, e sim, sobre a disposição psicológica em amar a possibilidade eterna do retorno do próprio niilismo. Mais que dizer que deterministicamente todos os fatos retornam, é dizer que a disposição em acolher qualquer fato que seja é irrestrita, a ponto de se anular noções de caos, contingência, liberdade da vontade e finalidade.

O determinismo do eterno retorno não reside sobre os fatos em si, e sim sobre a vontade, sobre a disposição irrestrita em acolher o fato. Assim, na dinâmica do eterno retorno, os fatos podem mudar, porém o que não muda é o desejo de irrestritamente acolher tudo o que se apresenta enquanto destino. Um destino que se apresenta à vontade, enquanto disposição afirmativa que o acolhe sem nenhuma restrição. À medida em que se desenvolve a capacidade de acolher jubilosamente, o fato deixa de ser um fardo, para se tornar leve e prazeroso, e, por conseguinte, leva a ativar as potencialidades criativas. Ou seja, quanto mais obstáculos, mais forças são despendidas para sua a superação.

Neste sentido, se hoje são superados tantos e tão difíceis obstáculos, amanhã poderão surgir outros tantos, e mais, talvez ainda maiores. O fator de determinação está em que estes fatos devem ser acolhidos. Talvez mais que um fator determinante, tudo isso é imperativo. Deve-se acolher inexoravelmente todos os fatos que se depreendem da vida, sejam estes quais forem. Desse modo, por mais paradoxal que pareça há em Nietzsche um modo de agir deontológico. Este obriga a que cada um aja no sentido de acolher o fato, tal como se apresenta, se nenhum tipo de condicionamento ou subterfúgio. É justamente nesta acolhida inexorável que reside o destino em Nietzsche. Portanto, o destino está, nesta concepção, muito distante daquela compreensão determinística em que todos os fatos se encontram pré-determinados, cabendo a cada um simplesmente uma submissão passiva a eles. Ora, seguir esta última concepção é pôr-se na linha diametralmente oposta à versão Nietzschiana, já que o filósofo alemão privilegia tudo aquilo que é fonte de afirmação, força e superação.

O itinerário que se segue, principia com uma abordagem sobre o destino, inspirada na concepção grega antiga, nesta o destino é compreendido com moira, ou seja, como predeterminação. Este se intitula: “O Destino como moira, como predeterminação.” Na sequência, o Destino é abordado na sua caracterização de fatum, como um fado, um fardo a ser carregado de maneira inexorável, portanto, como determinação. Este se intitula: “O Destino como fatum, como determinação.” E, finalmente, o destino é apresentado em sua designação de Pleroma, de plenitude. Ou seja, muito mais que determinação fechada, o destino se mostra como potencialidade aberta a assumir a incumbência da superação. Intitula-se este como: “O Destino como pleroma, como plenitude.”

O destino como moira, como predeterminação

Quando se fala em destino, logo vem a mente a noção que se desenvolveu entre os gregos antigos. Esta se liga à mitologia grega, principalmente às figuras de três irmãs, a quem cabia a determinação do destino, tantos dos humanos, quanto dos deuses. Desse modo, nem mesmo Zeus podia escapar ao destino traçado pelas moiras. Estas irmãs, filhas de Nix, a deusa da noite, eram representadas por mulheres lúgubres, que sentados junto a roca, teciam o fio da vida dos indivíduos. Conforme, a posição do fio; na parte mais alta, o destino era mais privilegiado, mas posicionado na parte mais baixa, pelo contrário, era menos desejável, explicando-se assim a boa ou má sorte de todos. Portanto, a roda de fiar utilizado pelas Moiras era uma verdadeira roda da fortuna, tendo o controle sobre a vida de todos, desde o nascimento até a morte. Assim, mesmo que os deuses discordassem das moiras, mesmo assim, para o seu próprio bem, tinham que respeitá-las. Já que delas dependia a existência da ordem do universo inteiro. De acordo com a mitologia grega, estas três mulheres habitavam uma caverna escura, onde trabalhavam na fiação, definindo assim o destino de todos. Portanto, se constitui de uma situação em que não havia livre arbítrio, já que tudo se encontrava pré-determinado pelo fio da existência de cada um, produzido pelas moiras. A fim de se gozar de um equilíbrio dentro destas fiandeiras do destino, cada uma delas recebe, pelo seu nome, uma função que cumpre um papel fundamental: Têmis é a responsável pela justiça, Nêmesis é encarregada pela ética e Eríneas determina o poder de punir os humanos. Em meio ao trabalho fiandeiro destas três irmãs, nada pode escapar ao que decidirem sobre o destino de cada um; cabendo, assim, aos seres humanos e, também, aos deuses um nobre acatamento. É importante lembrar que não se tratava de uma submissão passiva ao destino, mas um assumir com coragem e determinação o destino, como um dever a que cada um deveria cumprir: uma espécie de imperativo ético a ser assumido com convicção.

Os gregos antigos entendiam, portanto, que do Destino ninguém era capaz de escapar. A forma com que o Destino se apresenta na vida de cada um deve ser acolhido, seja este qual for. Mas a forma com que a cada um cabe acolher o Destino é o de uma aceitação plena, independentemente do que for, sem rodeios ou escusas. Nelson Boeira, a esse respeito, considera que “[...] a aceitação da fragilidade humana é uma manifestação de fortaleza – de um excesso de saúde –, uma disposição para viver a existência em toda a sua plenitude, privação e disparidade. Portanto, a incapacidade de aceitar a fragilidade humana não deve ser vista como um traço imutável do ser humano, como destino insuperável” (BOEIRA, 2002, p. 234). Cabe, por isso, a cada um aceitar plenamente a possibilidade de repetição eterna do próprio niilismo, como Nietzsche recorda no aforismo 341 da Gaia Ciência, como o mais pesado dos pesos (Das grösseste Schwergewicht) (FW/GC, IV, 341, KSA, 570.3). Nietzsche evoca, já neste escrito, um pensamento que será a base de escritos posteriores, principalmente em Assim falava Zaratustra, o do Eterno Retorno do mesmo. De acordo com este pensamento há uma absoluta e infinita repetição circular de todas as coisas, de onde resulta a mais elevada forma de afirmação que pode ser alcançada. Portanto, é uma afirmação, a mais elevada, de tudo, inclusive, daquelas coisas que são consideradas mais pesadas e difíceis. Em grande parte, inspirado no ensinamento dos gregos antigos sobre a afirmação nobre e jubilosa de todas as coisas que Nietzsche elabora a sua famosa doutrina do Eterno Retorno do mesmo. O destino se encontra previamente determinado por ciclos que se repetem, não apenas e, exclusivamente, de coisas fáceis e agradáveis, mas de coisas que causam horror, difíceis e desagradáveis. Por essa razão, ao acolher o mais difícil e o mais desagradável se potencia uma espécie de pensamento afirmativo por excelência. Já que o fato, antes de ser um fado, um peso, é parte da própria vida, e, negar parte da própria vida é viver a divisão. Esta doutrina do Eterno Retorno, portanto, reforça a ideia, por um lado, da inexorabilidade do Destino, ou seja, de que tudo retorna de alguma forma, e, por outro lado, da necessidade de se acolher o Destino afirmativamente; o Escapar ao destino seria o mesmo que negar a vida.

A acolhida ao destino se dá em tudo, inclusive naquelas realidades mais corriqueiras, pois é nelas que a vida se afirma, tanto nas coisas grandes, como nas coisas menores e, aparentemente, insignificantes. Ora, se há uma defesa em apresentar a vida como plenitude, então não se tem como negar, ou mesmo excluir particularidades da vida. A vida como um todo deve ser afirmada, com tudo o que dele demanda, sejam venturas como desventuras, tudo faz parte do grande turbilhão de fatos que constituem a vida. E, por isso, negar uma parte destes seria incorrer no comprometimento do todo, que só assim compreendido faz emergir a vida. Na medida em que tudo se acolhe, no que tange aos fatos que se depreendem da vida, tanto mais se é capaz de desenvolver uma capacidade de superação de obstáculos e adversidades. Mesmo o peso mais pesado já não é mais insuportável, nem mesmo aquilo que se quer omitir em todos as forças: tudo se acolhe como se fosse algo que mais se quisesse almejar, a ponto de o fado se tornar leve e suave; ao invés de se negar, se o almeja, com todo as forças. Portanto, não se desenvolve apenas uma capacidade de simplesmente suportar o fado, mas de amá-lo, como algo necessário: amor fati. Por esta fórmula, Nietzsche mede “[...] a grandeza da vontade afirmativa do homem, sua capacidade de aquiescência incondicional diante de todas as coisas inscritas na ordem do tempo” (RUBIRA, 2016, p. 110).

O amor fati conduz à ideia de que se deve amar o instante que é pleno, seja passado, seja futuro, sabendo, por isso, que ele vai retornar. É “[...] desejar viver como se cada momento de nossas vidas fosse retornar. Amor fati, amar o que nos acontece, desejando o nosso destino – esta é a indicação mais aguda de que, de fato, nossa vontade e nossas forças estão inteiramente investidas no que fazemos, coincidentes com o movimento da realidade” (BOEIRA, 2002, p. 42-3). O amor fati é sim afirmativo, dionisíaco, sem exceção ou seleção. É um sim afirmativo que supõe acolher um destino que já está pré-determinado, diante do qual não se há como escapar. Portanto, se desenvolve uma postura psicológica afirmativa que sequer se coloca a hipótese de negar o destino, mas sim, se o afirma com todas as suas forças, como um fatum, como uma realidade, a mais genuína e determinante que há sem qualquer escusa ou fuga. Em que medida o destino pode ser acolhido como um fatum determinado?

O destino como fatum, como determinação

No decorrer da primeira seção foi apresentado o destino na sua qualidade de moira, como predeterminação. De acordo com esta perspectiva, todos estão irremediavelmente já pré-determinados desde o início até o fim aos fios das moiras. Aos fios das três irmãs moira ninguém escapa, desde o nascimento até a morte, todos possuem suas vidas, com tudo do que delas demanda, em situação de determinação. Mesmo os deuses, como Zeus, estão submetidos ao destino implacável daquelas que, em sua caverna lúgubre, passavam o seu tempo determinando os acontecimentos da vida de todos. Contudo, se o Destino dado pelas moiras se exercia como predeterminação, ou seja, como algo, mediante o qual nada se pode fazer no sentido de amenizar ou aliviar a implacabilidade do destino, então o destino que se apresenta na qualidade de fatum, ou seja, como determinação, já abre a possibilidade de uma mudança importante. Esta mudança se exerce a partir de uma fissura que se abre dentro da implacabilidade monolítica do destino.

Esta fissura que se expressa como um ponto de flexibilidade não modifica o destino. Este continua sendo sempre o mesmo: duro, pesado, implacável. O que muda é a forma pela qual este destino é acolhido. Assim, se antes, o Destino era aceito simplesmente como aquilo que está no âmbito da predeterminação da moira, então agora o destino passa a ser não simplesmente aceito, mas acolhido como um fatum. Ora, a disposição psicológica afirmativa de acolhida do fato, faz com que este não seja simplesmente um fado, um peso implacavelmente dado, mas que, além disso, seja acolhido, e, ainda mais, que seja amado, com uma disposição jubilosa. Eis, portanto, seguindo a reflexão de Oswaldo Giacoia Júnior, a grande tarefa e missão do filósofo, “[...] a de redimir a vontade e a história humana, dando cumprimento a um inexorável dever: o de tomar em suas mãos o martelo e o cinzel para esculpira figura do futuro humano na história. Esse é o assustador limiar da autodeterminação em que se coloca a modernidade” (GIACOIA, 2002, p. 51). Esta se coloca como uma necessidade premente, a de que o homem moderno assuma “[...] o ônus de determinar-se enquanto homem, ou terá que renunciar à sua autonomia e ser determinado por outrem, pelos deuses ou pelos próprios homens” (GIACOIA, 2002, p. 51). Este determinar-se como homem diz respeito a assumir uma postura, acima de tudo, afirmativa, em meio a todas as formas que se impõe em determinar. Tal disposição abre para uma perspectiva que conduz ao encarrar do destino como algo que provoque gozo e realização, tendo, ao mesmo tempo, todo o peso e dificuldades por este demandado. Como a própria disposição com que Nietzsche acolhe os reveses da vida, tais como se expressa nesta carta a Erwin Rohde:

Que anos! Que dores [e aflições] intermináveis! Que perturbações internas, isolamentos! Quem terá suportado tanto como eu?... E se me encontro hoje por sobre tudo isso, com a alegria [contentamento] de um vencedor e carregado de novos e difíceis planos – e, dado que me conheço, na perspectiva de novos, mas penosos e ainda mais íntimos sofrimentos e tragédias e com ânimo de fazer frente a eles! (Br/Cr, 15 de julho, de 1882, 267, KGB, 226.6).

Neste sentido, entre simplesmente aceitar o destino como algo obrigatório e acolher com amor, como apara além de uma obrigação, como um gesto de amor, há um avanço no sentido de tornar o destino leve e suave. O destino, deixa o caráter de determinação para assumir um caráter práxico, como recorda Christa Davis Acampora:

Destinada, assim, neste sentido não significa ‘predeterminado’, isto é, decido já adiantadamente em relação ao nosso tornar-nos a organização particular de impulsos que somos [...] destinado é uma maneira imprecisa de falar sobre os resultados eventuais, e não se refere a qualquer resultado particular que necessariamente deveria ocorrer [...] conecta sua prática filosófica e seu projeto axiológico de transvaloração dos valores ao amor ao destino, amor fati. (ACAMPORA, 2018, p. 240)

E é o destino, justamente, leve e suave porque desafia a vontade criadora, que quer transvalorar: “Mas assim quer minha vontade criadora, meu destino. Ou para dizê-lo mais honestamente” (Za/ZA, II, Nas ilhas bem aventuradas, KSA, 111.4). Se o destino é a vontade criadora, essa vontade quer a todo o instante superar, então o destino se liga jamais a uma meta ou objetivo pré-determinado, mas ao desejo de superação, à capacidade de despender um quantum potencial de forças de maneira contínua e ininterrupta.

Para tanto, quanto maiores e mais fortes forem os obstáculos a superar, obstáculos estes em forma de forças que se apresentam com toda a sua hostilidade, tanto mais forte será aquele que a enfrenta. E, Zaratustra, conforme Ronald Hayman, em seu constante peregrinar, a exemplo de Nietzsche, “[...] tenta ter o controle de sua má fortuna, lutando contra si mesmo e contra as forças que parecem hostis” (HAYMAN, 2000, p. 29). E a vontade somente poderá ser verdadeiramente criadora à medida em que mais desafios se lhe impuserem, assim, quanto mais desafios, mais criação. Eis, portanto, o destino a que cada um está lançado: ao de ter que enfrentar, suplantar, superar um desafio após outro, e, assim, sucessivamente. Quando se pensa que, com grande esforço, se conseguiu ultrapassar um obstáculo, podendo dizer a si mesmo: agora se pode acomodar, outro desafio já se prepara, e, ainda talvez maior do que o anterior, com muito mais esforço a ser despendido. Com isso, se percebe a estreita relação entre o destino e o eterno retorno. De modo que tudo o que se vive, em termos de venturas e desventuras, realizações e desafios, ganhos e perdas, se tornará a viver, não apenas uma vez, mas um interminável número de vezes que em seu movimento vai perfazendo inúmeros epiciclos:

[...] a minha doutrina diz: a [tua] tarefa [enquanto ser humano] consiste em viver de tal maneira que queiras viver [tua vida] novamente – de qualquer modo tu a viverás [de novo]! A quem o esforço [de lutar] por algo desperta o sentimento mais elevado, que se esforce; a quem o descanso desperta o sentimento mais elevado, que descanse; a quem ordem, continuidade e obediência despertam o sentimento mais elevado, que obedeça. Que ele possa ter consciência do que lhe desperta o mais elevado sentimento e não economize nenhum meio [para alcançá-lo]! Está em jogo a eternidade! (Nc/FP do outono de 1881, 11[163], KSA, 505.9).

A pergunta que fica é a do que faz com que se queira e, até se deseje jubilosamente viver o retorno de desafios, os quais implicam em peso, dor e sofrimento. Nietzsche certamente joga com elementos estoicos nesta perspectiva, mas, além disso, também e principalmente o jogo das forças, dispostas em forma hierárquica, das quais se desprende um desejo de assenhoramento, de se atingir um quantum sempre mais culminante de forças. Em meio a esse jogo de forças, a este agon, não há espaço para comodismos e ociosidades, pois, a todo o instante se está prestes a ter que enfrentar algum obstáculo. E, neste ir e vir de enfrentamentos, mais forças são produzidas, pois, quanto mais forças demandadas na superação de obstáculos, tanto mais forças acabam sendo acumuladas, num processo contínuo e reconstrutivo.

A única certeza que se tem é a de que tudo o que se vive se viveu e, ainda, se viverá, não uma, mas uma série de vezes. E, a cada desafio que se supera, novas forças são despendidas, mas forças sempre mais potentes e capazes de transvalorar os valores atuais. Eis, portanto, a tarefa a que cada um é desafiado a realizar. “- Uma tresvaloração de todos os valores, esse ponto de interrogação tão negro, tão imenso, que arroja sombras sobre quem o coloca – uma tarefa assim, em tal destino, compele a sair ao sol todo instante e sacudir de si uma seriedade pesada, que se tornou pesada em demasia” (GD/CI, Pr, KSA, 57.6). A tarefa de transvalorar valores não é nada fácil, se mostrando sempre como algo incerto, repleto de sombras e dificuldades.

Por essa razão, todo aquele que a empreende, para que possa suportar o seu peso, deve buscar sair até o encontro da luz para se munir de forças necessárias ao tal empreendimento. Com isso, se é capaz de se despejar de tudo o que em si se tornou sério, pesado, fechado, a fim de se vestir de riso, leve e aberto. Para enfrentar tal destino é preciso se habituar ao riso, aprender a rir de tudo, inclusive de si mesmo. O riso, torna tudo à volta leve e suave, tal como um dançarino, que a cada desafio a superar, marca esse compasso da dança, que não pode acabar. E todo aquele que, empenhado a este destino, não apenas se arroja a este no intuito de, simplesmente, superá-lo, mas de vivê-lo intensamente, de amá-lo, que deseja estar lançado nele, mesmo com toda as sombras e incertezas que dele são demandadas. Viver desta forma é assumir o destino com amor e, assim fazendo, se afirma a vida com toda a sua plenitude. Patrick Wotling, neste sentido, pensa o amor fati como “[...] uma relação afetiva e não gnosiológica com o destino: não a resignação em face da fatalidade inelutável, mas, muito pelo contrário, a aceitação alegre, e mesmo o fato de sentir a necessidade como uma forma de beleza” (WOTLING, 2011, p. 14). De modo que cada instante, que dela se vive, se o vive em sua plenitude, seja este qual for, leve ou pesado, repleto de sombras ou luzes. Em que medida é possível, em meio aos revezes do destino, afirmar a vida como algo não apenas que se queira, mas se ame e anseie que retorne eternamente?

O destino como pleroma, como plenitude

Dentro da perspectiva do pensamento de Nietzsche, o destino não se limita à compreensão grega, como moira, como uma predeterminação de tudo. Desse modo, cada um se vê na condição de cumprir passivamente tudo o que estiver pré-determinado pelos fios das moiras. Nietzsche compreende o destino como estando situado para além desta predeterminação. O destino é um fatum, mas um fatum que embora já determinado, não se submete a este com uma posição, mas sim, com uma disposição ativa, com júbilo. Por essa razão, o destino não constitui apenas um fatum determinado, mas um fatum, que, por mais pesado que seja se acolhe como algo que se plenifica no exato instante que se o acolhe.

Como plenitude do instante, o Destino, ao invés de determinador, no sentido limitante, determina num sentido amplificante. De modo que a cada instante que se vive, se abre para uma plenitude. Mesmo aquele instante em que “[...] a tensão interior da massa se tornou grande demais, o estímulo mais casual basta para trazer ao mundo o ‘gênio’, o ‘ato’, o grande destino” (GD/CI, IX, 44, KSA, 145.6). Cada estímulo desencadeado pelo peso do fatum, perpassado pelas tensões vividas, desencadeia estímulos e alavanca um quantum de potência que serve de substrato para o nascimento do gênio, o espírito livre, o além do homem, aquele capaz de superar todos os revezes. Como superador, é capaz de amar sem limites todo o fato, mesmo que este se apresente como um grande fado, fardo ou peso, pois já não há limites em sua capacidade de amar, sejam quais forem os desafios, não há nenhuma escolha, nenhuma preferência. Tudo passa a fazer parte do horizonte daquele que ama, mesma aquela realidade mais ínfima e, aparentemente, casual, passa a compor o conjunto ilimitado do destino. Nada do que foi, é e será é excluído do grande panorama de experiências que se vive, sabendo, inclusive, que tudo isso que foi, é e será se repetirá em um número ilimitado de vezes, a ponto de que já não se é mais oportuno falar de temporalidade, mas sim de uma plenitude que se realiza a cada instante que se vive. Este é “O pensamento mais afirmativo em termos de conteúdo aquele que diz sim à realidade sem dela nada excetuar – ele se expressa do modo mais afirmativo, a saber, como vontade de reviver eternamente, identicamente, a totalidade de sua vida” (WOTLING, 2011, p. 15).

Cada instante vivido é como o último e derradeiro instante de vida. A ponto de que nada mais se espera senão vê-lo de maneira a mais plena possível, como se fosse o único instante. Em sendo este único instante a ser vivido não pode haver qualquer divisão, já que é o todo que se vive a cada instante. Não tem sequer sentido em se falar de parte dentro do contexto da plenitude, assim como também não de escolhas, bem como mesmo de opções. Não há escolhas e nem opções dentro da esfera da plenitude, de modo que o todo está em tudo, sem qualquer limite. No desejo de se acolher o destino em sua plenitude não se elege parte alguma, não se escolhe nada, apenas se abre a tudo o que se apresenta, independentemente do que seja, mesmo “Aquela inaudita desconfiança ante os poderes titânicos da natureza, aquela Moira [destino] a reinar impiedosa sobre todos os conhecimentos, aquele abutre a roer o grande amigo dos homens que foi Prometeu, aquele horrível destino do sagaz Édipo” (GT/NT, 3, KSA, 35-6.1).

Do destino impiedoso da Moira, passando pelo algoz tenebroso de Prometeu, até a horrível tragédia de Édipo, mesmo tudo isso faz parte do todo que se acolhe como instante pleno, no qual a vida se expressa como acolhida, como júbilo. Por essa razão, não se o faz com olhar taciturno, ou mesmo com desânimo e rancor, mas com a alegria daquele que encontra o grande anelo de sua existência, mesmo a grande razão pela qual a própria vida continua valendo a pena. Por isso, ou se acolhe tudo, ou não se acolhe nada. Pois, mesmo que se identifique com alguma parte do destino, ou mesmo com a maior parte, não se terá forças para suportá-lo. Na medida em que se coloca venda sobre os olhos, de modo a acolher tudo, seja lá o que for, se alcançará um quantum maior de forças a aceder aquilo que se apresentar seja lá o que for. O peso, fado que hoje se acolher poderá triplicar de proporção amanhã e assim sucessivamente. E, quem se habituar a esse constante suportar de pesos sempre maiores, será capaz de jamais titubear diante do que advir. Este retorno de, sempre pesos novos abre para a “[...] hipótese cosmológica da repetição cíclica de todos os acontecimentos” (RUBIRA, 2010, p. 132). E, mediante tais acontecimentos “[...] Nietzsche julga encontrar um novo peso” (RUBIRA, 2010, p. 132). É neste processo que o todo se realiza sem limites.

Se acolher o todo é estar indiferente ao que se apresenta como fato, então a acolhida desse todo equivale a viver o destino como plenitude, como a expressão máxima da força. Na dinâmica da acolhida da vida, compreendida enquanto totalidade, Scarlett Marton diz que “[...] é preciso aceitar a vida no que ela tem de mais alegre e exulberante mas também de mais terrível e doloroso. Afinal [...] sua completude existencial, que faz nascer a perfeição e a plenitude” (MARTON, 2000, p. 44). Contudo, essa expressão da força, embora seja a mais forte possível, não passa de apenas um instante, cedendo espaço a outros instantes e, assim sucessivamente. O exato instante de força que se vive é uma plenitude que realiza toda ela, como se fosse a última da vida. Por essa razão, o fruir desse instante é carregado de toda a acolhida e assentimento que se manifesta no preciso momento em que se vive.

Diante desse fruir da plenitude do instante, a única certeza que se tem é a de que este retornará eternamente, em um número infindável de vezes. Consiste numa verdadeira entrega viver o instante de plenitude, um colocar-se na posição de aceitar ativamente o fato, aceitação esta que abre para um desejar e mesmo querer que este fato, por mais duro e pesado que seja, retorne eternamente. Pois, “O sofrimento, mesmo o mais atroz, não é um motivo de resignação da vida, mas o caminho da vida que cria para além de si mesma” (GIACOIA, 2013, p. 296).

Mas quem seria capaz de querer e desejar que fatos duros e pesados se repitam eternamente? Não se estaria aqui caindo em uma aporia? Nietzsche parece responder a essa aporia para a acolhida do peso do fato com o amor, o amor ao fato: amor fati. Consiste num amor a tudo o que se faz necessário. Por este amor se ativa a capacidade de aquiescência incondicional a tudo o que se inscreve na ordem da temporalidade, sem exceções. Significa amar o instante que é pleno, seja passado, presente ou futuro: “Amor fati: que seja este daqui em diante o meu amor” (FW/GC, IV, 279, 521.3).

O amor que ama o que é necessário, com radicalidade é aquele que ama nada senão a possibilidade daquilo que retorna, ou seja, o retorno do próprio niilismo. Portanto, o amor é a expressão mais plena de aquiescência ao fato, um fato tomado em sua mais pura e genuína existência, sem rodeios, nem escolhas. Quanto mais genuíno o fato que se vive, com menor determinismo se o acolhe, de modo a torná-lo pleno.

Considerações finais

Pelo itinerário percorrido, foi possível constatar elementos que constituem o estatuto epistemológico que compõe o destino, através dos escritos de Nietzsche. Para além da compreensão do destino como um fato pré-determinado, como a Moira, em que tudo se encontra previamente traçado, sem que nada possa ser feito no sentido de se propor alguma alteração, o Destino, na compreensão nietzschiana, abre para uma perspectiva de mudança. A mudança, dentro desta compreensão, se situa na dimensão psicológica, mediante a qual se acolhe o fato. Não consiste simples submissão passiva a este, mas em sua acolhida nobre e jubilosa. A disposição de ânimo, mediante a qual se dispõe a viver o fato, ativa a vontade a não apenas acolher este fato uma única vez, mas um número ilimitado de vezes. Desse modo, tudo o que se vive se viverá novamente.

Tudo o que foi e é, retornará eternamente, a ponto de que cada instante que se vive é pleno. O Destino consiste, por isso, na vivência da plenitude do instante. Ora, se a cada instante que se vive, se usufrui da marca da plenitude, então seja qual for o fato vivido, por mais pesado que seja, alavanca o desejo de que retorne eternamente. Lido sob essa ótica, o destino não mais se centra numa mera obrigação, mas em uma disposição de ânimo alegre e jubilosa, ou seja, com amor.

Pelo amor, não se escolhe qual o fato se quer viver, simplesmente se acolhe, seja este qual for, pois o que se quer é simplesmente acolhê-lo jubilosamente, e mais, que retorne. Dentro deste âmbito, marcado por uma disposição psicológica afirmativa, não há espaço para qualquer divisão ou separação, mas, simplesmente, unidade do todo. Desse modo, o fato que se acolhe, como um destino, é o todo reconciliado e pleno, em que cada instante vivido consiste em um eterno porvir.

Referências

ACAMPORA, Christa Davis. As disputas de Nietzsche. Trad. Peterson Roberto da Silva e Jean Gabriel Castro da Costa. Florianópolis: Editora UFSC, 2018.

BOEIRA, Nelson. Nietzsche. Filosofia Passa a passo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche & Para além do bem e do mal. Filosofia Passa a passo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche, O humano como memória e como promessa. 2ª Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2013.

HAYMAN, Ronald. Nietzsche e suas vozes. Trad. Scarlett Marton. São Paulo: Editora Unesp, 2000.

MARTON, Scarlett. Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. Col. Sendas e Veredas. São Paulo: Editora Unijuí, 2000.

NIETZSCHE, F. W. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin: Verlag de Gruyter, 1999.15 Bd.

NIETZSCHE, F. W. Sämtliche Briefe: Kritische Gesamtausgabe Briefwechsel KGB. Herausgegeben von Georgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin: Walter de Gruyter, 1986. 8 Bd.

NIETZSCHE, F. W. O nascimento da tragédia. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

NIETZSCHE, F. W. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,

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NIETZSCHE, F. W. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

NIETZSCHE, F. W. Crepúsculo dos Ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.

NIETZSCHE, F. W. Ecce Homo. Como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

RUBIRA, Luís. Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração de todos os valores. Col. Sendas e Veredas. São Paulo: Editora Barcarola, 2010.

RUBIRA, Luís. Amor Fati. In: Dicionário Nietzsche. Col. Sendas e Veredas. São Paulo: Edições Loyola, 2016. PP. 106-111.

Notas

2. Para as citações das obras de Nietzsche adotamos a Edição Crítica Alemã Colli & Montinari: KSA (Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe) e das Cartas KGB (Sämtliche Briefe Kritische Studienausgabe); após a sigla indicando a obra, em Alemão/Português: GT/NT – Die Geburt der Tragödie (O nascimentoda tragédia), FW/GC – Die fröhliche Wissenschaft (A gaia ciência), Za/ZA – Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra), GD/CI – Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos ídolos), EH/EH – Ecce Homo (Ecce Homo), Nc/FP – Nachlass (Fragmentos Póstumos), Br/Cr – Briefe Kritische Studienasgabe (Cartas), segue o número, em romano, indicado o capítulo, se tiver, o número do aforismo, KSA ou KGB, o número do volume e a página.

Notas de autor

1 Doutor(a) em Filosofia pela pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre – RS, Brasil. Professor(a) da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte – MG, Brasil.
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