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O problema da relação intelecto-cérebro na obra de Schopenhauer com ênfase especial ao “paradoxo de Zeller”
The problem of intelect-brain relation in Schopenhauer’s work with special emphasis on the “Zeller’s paradox”
O problema da relação intelecto-cérebro na obra de Schopenhauer com ênfase especial ao “paradoxo de Zeller”
Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 3, pp. 265-277, 2022
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Recepción: 11 Julio 2022
Aprobación: 17 Octubre 2022
Resumo: O presente artigo tem por objetivo principal investigar e circunscrever a relação problemática entre intelecto e cérebro na obra de Arthur Schopenhauer, de acordo com a já conhecida formulação de Eduard Zeller. Desse modo, pode-se contemplar o lugar dos conceitos de intelecto e cérebro no âmbito da explicação metafísica da natureza, tendo-se sempre como noção diretora central a distinção entre os modos de consideração do mundo, apresentadas simultaneamente ainda no texto de O mundo como vontade e como representação e aperfeiçoada e mencionada com mais cuidado nas obras posteriores. Se, por um lado, o mundo é objeto de investigação através da subjetividade e de suas formas de existência, por outro ele é investigado através de um modo de consideração objetivo, que, inicialmente, toma os objetos como existentes por si mesmos, independentemente de qualquer sujeito. Sem poder existir totalmente em separado, na medida em que cada objeto existe apenas para o sujeito, ambos os modos devem confluir para a explicação completa do mundo, como complementação um do outro: o intelecto deve ser também considerado do ponto de vista objetivo e o cérebro segundo a análise do modo de consideração subjetivo, integrando-o na explicação geral do mundo e da natureza.
Palavras-chave: Intelecto, Cérebro, Circularidade.
Abstract: This paper has as main goal to investigate and circumscribe the problematic relation between intellect and brain in Arthur Schopenhauer’s work, under the consideration of the well known Eduard Zeller’s formulation of the problem. In this way, the concepts of intellect and brain might be considered according to the major explanation of the metaphysics of nature, having as main idea the distinction between the two ways of considering the world presented simultaneously in The world as will and representation and improved and developed in the author’s posterior works. If, on the one hand, the world is object of investigation through subjectivity and its forms of existence, on the other hand it is considered through the objective way which, firstly, admit the object as existing by itself, independently of any subject. Without an independent existence, in so far each object depend on subjectivity, both modes must contribute to the complete understanding of the world as a whole as complementary parts: the intellect must be understood from the objective point of view and the brain according to the subjective analysis of the world that leads to the metaphysical conclusions of Schopenhauer’s work, whose aim include putting it in the general explanation of nature.
Keywords: Intelect, Brain, Circularity.
Introdução
O tema do qual trata este artigo está localizado de forma geral na totalidade das obras de Arthur Schopenhauer, mas se situa mais claramente em O mundo como vontade e como representação (a partir daqui referenciado apenas como O mundo), em O mundo como vontade e representação II e em Sobre a Vontade na natureza. Apesar do constante aparecimento em outros textos, tal como em Parerga e Paralipomena II, é nos primeiros citados que recebe abordagem e atenção diretas. A questão tratada, dificuldade interna à obra do autor e apontada sob o título de inconsistência, pode ser compreendida como a consideração, concomitante, objetiva e subjetiva do intelecto. Todavia, longe de Schopenhauer sustentar uma visão puramente material do intelecto, assumindo-se a definição de materialismo fornecida em O mundo, um problema é criado: como sustentar ambas as considerações do intelecto na filosofia apresentada pelo autor, e considerá-las complementares, como sugere o autor nos dois volumes de O mundo?
Em diversos trechos ainda do primeiro volume de O mundo é possível identificar o problema, quando, por exemplo, é afirmado que todo o mundo objetivo, dos objetos extensos e externos a nós, "passou", para que assim pudesse existir, pela "maquinaria e fabricação do cérebro" (SCHOPENHAUER, 2005, p. 72), ou que nos seres conscientes em geral, e sobretudo no ser humano, o conhecimento "aparece representado pelo cérebro ou por um grande gânglio" (SCHOPENHAUER, 2005, p. 215), isto é, que a capacidade de conhecer é tomada por um órgão material, objeto extenso. Ou, ainda, que a unidade do sujeito de conhecimento, antes descrita na filosofia kantiana como a unidade sintética da apercepção, seja tratada como "o foco no qual convergem os raios da atividade do cérebro" (SCHOPENHAUER, 2005, p. 566). Todavia, contraposta a essa abordagem do sujeito de conhecimento e da unidade do pensamento como cérebro, é fornecida a explicação do sujeito de conhecimento como a condição formal do mundo da experiência, de toda objetividade; ainda mais, o único para o qual qualquer objetividade pode existir, de acordo com o que "[t]orna-se-lhe claro e certo que não conhece sol algum e terra alguma, mas sempre apenas um olho que vê um sol, uma mão que toca uma terra." (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43).
Ainda que tenha sido comentado por diversos autores2, foi com a abordagem de Eduard Zeller em Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibnitz que o problema se tornou mais conhecido, e, por isso, foi-lhe popularmente atribuído o nome de "paradoxo de Zeller". Segundo a formulação de Zeller, o problema se daria da seguinte forma:
O intelecto é, na verdade, simplesmente uma função do cérebro. Lembremo-nos aqui do que o filósofo ensinou na primeira parte de seu sistema e então chegaremos [sem dúvida] a um resultado muito surpreendente. Lá, ele nos exorta, com uma insistência nunca suficiente, a não ver em todo o mundo objetivo e, antes de tudo, na matéria [Materie], nada senão nossa representação [unsere Vorstellung]. Agora ele nos adverte, não menos insistentemente, a não tomar nossa representação a não ser por um produto do nosso cérebro [Erzeugnis unseres Gehirns]. A partir daí nada mudou, já que este mesmo cérebro deve ser, daqui por diante, uma forma determinada de objetivação da Vontade, pois se a Vontade não tivesse produzido tal órgão, não poderiam surgir quaisquer representações. Nosso cérebro é, porém, esta matéria determinada [bestimmte Materie], portanto, de acordo com Schopenhauer, esta representação determinada. Encontramo-nos, por conseguinte [demnach], encerrados no seguinte círculo: a representação tem que ser um produto do cérebro e o cérebro um produto da representação - uma contradição, para cuja solução o filósofo em nada contribui (Trad. Modificada, ZELLER apud CACCIOLA, 1994, p. 77).
Para que se possa trazer à clareza a crítica de Zeller a Schopenhauer, sua pertinência e profundidade, faz-se necessário elaborar uma leitura mais detalhada de sua tese sobre a obra schopenhaueriana, a saber, de que Schopenhauer incorre em uma circularidade no que diz respeito à compreensão do intelecto, ou sujeito de conhecimento, como cérebro, criando uma dificuldade para si mesmo que não se resolveria no interior de sua obra. É explícito que Zeller aponta justamente para a não resolução do problema, afirmando que Schopenhauer teria dado origem a ele sem oferecer conteúdo suficiente para que ele pudesse ser resolvido em alguma altura do texto, inclusive sem quaisquer dúvidas de seu caráter problemático e aporético.
Inicialmente, Zeller lida com duas premissas que, segundo seu ponto de vista, não poderiam coexistir dentro da filosofia de Schopenhauer e que instauram a circularidade mencionada. A primeira é que todo o mundo da experiência (o mundo como representação) deve ser compreendido como um "produto do intelecto". Desse ponto de vista parte Schopenhauer ao iniciar sua obra com a proposição "O mundo é minha representação" (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43) e ao nomeá-la "a verdade que vale em relação a cada ser que vive e conhece" (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43). De acordo com o que afirma que o mundo objetivo é condicionado pelo sujeito de conhecimento e suas formas (espaço, tempo e causalidade).
Enquanto objeto, o cérebro apenas poderia existir, no sentido de existência como representação, caso fosse intuído, e, como tal, um objeto para um sujeito. Mas a consideração do cérebro toca na temática da manifestação da Vontade no organismo, do qual ele seria uma das várias partes responsáveis pela conservação e manutenção da vida dos indivíduos. Nesse sentido, ele deve ser considerado como condicionado ao seu desenvolvimento e à sua existência, o que o torna, em outras palavras, "produto da representação", um objeto em meio a outros objetos e suas condições.
Dessa maneira, é preciso, primeiro, trazer à tona a definição de sujeito de conhecimento para o qual há mundo, inquirindo o que ou quem é esse sujeito com o intuito de definir e de esclarecer o tema da relação que Schopenhauer estabelece entre sujeito e objeto. É com a declaração dual do intelecto como cérebro e como condição incognoscível e não condicionada do mundo e, ao mesmo tempo, objeto no mundo que Schopenhauer agrava ainda mais o problema da relação sujeito de conhecimento, intelecto, e cérebro na sua explicação “completa” do mundo. Pois durante suas explicações não é explícito e claro como tal relação deve ser compreendida, de maneira que há espaço para que permaneça a impressão, fruto de seu próprio texto, de que o intelecto, como condição do mundo objetivo, não pode ser identificado com objeto algum no mundo (JANAWAY, 2001, p. 180) mas que, ainda assim, é compreendido como sendo o cérebro.
Sujeito de conhecimento, intelecto e cérebro
Segundo o que formula Schopenhauer, o cérebro seria a estrutura física equivalente à função que o sujeito de conhecimento desempenha, ao conhecimento de forma geral, e se encontra como parte integrante do organismo humano assim como dos organismos animais dotados de conhecimento, graus de objetivação mais complexos que precisam de um organismo adequado a determinadas condições. O intelecto, tomado como cérebro, desempenharia neles a função de criação dos motores do agir, responsáveis pelo auxílio da conservação do indivíduo na busca por alimento, na locomoção e em tudo que diga respeito à sua existência e a manifestação da Vontade de vida (SCHOPENHAUER, 2005, p. 215).
Entretanto, a primeira menção ao cérebro como órgão da representação ainda não estabelece a relação entre os dois modos de consideração. Como se pode observar no § 6 de O mundo, o autor introduz o cérebro, de passagem, como órgão que condiciona a capacidade da representação. O corpo é trazido à discussão em seu duplo aspecto, segundo o que apenas como objeto mediato, intuído, é que ele deve ser considerado um objeto propriamente dito, algo representado. Afirma Schopenhauer:
[...] o corpo como objeto propriamente dito, ou seja, como representação intuível no espaço só é conhecido justamente como os demais objetos, de maneira mediata, pelo uso da lei de causalidade na ação de uma de suas partes sobre as outras, logo, na medida em que o olho vê o corpo, a mão o toca. Por meio do mero sentimento ordinário não conhecemos a figura do nosso corpo, mas o fazemos apenas pelo conhecimento, na representação. Noutros termos, apenas no cérebro é que também o nosso corpo primeiramente se expõe como algo extenso, formado de membros, vale dizer, um organismo. Um cego de nascença recebe essa representação gradualmente mediante os dados que o tato lhe fornece; um cego sem mãos nunca conheceria sua figura, ou, quando muito, a iria inferir e construir gradualmente a partir da ação de outros corpos sobre si. Com esta restrição, portanto, é que se deve compreender o que dizemos ao nos referirmos ao corpo como objeto imediato (SCHOPENHAUER, 2005, p. 63-64).
A inserção da noção de cérebro causa não só um estranhamento imediato, mas a impressão viva da dificuldade inicial na qual se envolve o autor ao trazer à tona uma tensão entre suas duas abordagens distintas do intelecto antes mesmo de estabelecer como se dá a coexistência dos modos de consideração (Betrachtungsweise) subjetivo, idealista, e objetivo, realista materialista. Ora, se o intelecto já havia sido tratado no primeiro livro de O mundo como a condição de toda existência objetiva, e, ainda, se o mundo inteiro "é tão-somente objeto em relação ao sujeito, intuição de quem intui, numa palavra, representação" (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43), como agora ele poderia ser referido como condicionado a um órgão como o cérebro e, desse modo, tomado como um objeto no mundo do qual ele mesmo é condição? A colocação dessa questão dá início a uma série de considerações "naturalistas" (ou seja, que admitem a existência do intelecto como uma estrutura física) que tornam problemática a noção de intelecto e de sujeito da filosofia do autor, sobretudo enquanto um tipo de "subjetividade corporificada" (embodied self).
À primeira vista poderia parecer que Schopenhauer altera seu ponto de partida inicial, afirmando, agora, que, mais verdadeiramente, a representação é um processo fisiológico no cérebro e ocorre nele. Dessa maneira, o ato da representação aconteceria em um objeto, que, ele mesmo, já deveria ser representação para o sujeito, e, desse modo, o cérebro seria condição da existência dos objetos da representação ao mesmo tempo em que um objeto representado. Circularidade que reaparece na medida em que a obra avança.
Posteriormente, em outros parágrafos de O mundo, a noção de que intelecto e cérebro são a mesma coisa reaparece, ora nos casos em que o termo é utilizado como correlato ao termo intelecto, ora como parte da explicação da maneira como a Vontade se objetiva no organismo animal:
Todo objetivo, extenso, que faz-efeito, portanto todo material, que o materialismo considera um fundamento tão sólido de suas explicitações, que uma redução a ele (sobretudo se o resulto forem choque e contra-choques) não deixa nada a desejar - tudo isso é algo dado de maneira inteiramente mediata e condicionada, portanto, tem subsistência meramente relativa, pois passou pela maquinaria e fabricação do cérebro; por conseguinte, entrou em suas formas, tempo, espaço e causalidade, apenas devido às quais se expôs como extenso no espaço e fazendo efeito no tempo. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 72).
O alimento, por conseguinte, tem de ser procurado e escolhido desde o momento em que o animal sai do ovo ou ventre da mãe, nos quais vegetava sem conhecimento, daí ser aqui necessário o movimento por motivo e, por isso, o conhecimento, que portanto aparece como um meio de ajuda, μηχανη, exigido nesse grau de objetivação da Vontade para conservação do indivíduo e propagação da espécie. O conhecimento aparece representado pelo cérebro ou por um grande gânglio; precisamente como qualquer outro esforço ou determinação da Vontade que se objetiva é representado por um órgão, quer dizer, expõe-se para a representação como um órgão. - Com esse meio de ajuda, essa μηχανη surge de um só golpe o mundo como representação com todas as suas formas: objeto e sujeito, tempo e espaço, pluralidade e causalidade. O mundo mostra agora o seu segundo lado. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 215).
Daí resulta, ademais, que o mundo objetivo, como o conhecemos, não pertence à essência das coisas em si mesmas, mas é seu mero fenômeno, condicionado exatamente por aquelas mesmas formas que se encontram a priori no intelecto humano (isto é, o cérebro), portanto nada contém senão fenômenos. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 530).
No primeiro caso, o termo “cérebro” é utilizado exatamente como de mesmo significado que o termo “intelecto”, como se o processo de conversão dos dados da sensação em um mundo intuitivo organizado e o princípio de razão suficiente pudessem ser considerados tanto como intelecto quanto como cérebro. Ora, esse sentido é o primeiro a trazer à tona o significado mais problemático da identificação, segundo o que a representação é um processo que ocorre no cérebro, sendo ele mesmo objeto, e, por isso, produto desse processo. Diferentemente do primeiro momento em que o “cérebro” é citado, como no caso do trecho do §6 (SCHOPENHAUER, 2005, p. 63), aqui Schopenhauer já havia mencionado a necessária complementariedade das duas considerações do intelecto, o que permite ao leitor compreender o quão incompleta e limitada é a explicação material do intelecto, de modo que se faz imprescindível tomar como complementares as duas visões. Não havendo, dessa forma, uma adesão à consideração objetiva do cérebro como a mais rigorosa.
No segundo caso, Schopenhauer lança mão de uma explicação mais cuidadosa e completa da maneira como o cérebro pode ser compreendido como uma objetivação da Vontade, que, assim tomado, encontra-se como órgão no interior de um organismo animal, participante da relação interna profunda e “harmoniosa” entre suas partes, segundo a noção de “teleologia interna”. Nela já são pressupostas as noções de objetivação e Vontade explicadas no segundo livro de O mundo, e, dessa maneira, incluem a definição do cérebro como órgão e como manifestação da Vontade. Nesse sentido, ele é parte da economia interna do organismo, e compõe não só os seres humanos como também os organismos animais de forma geral, devido às suas necessidades particulares para a manutenção de sua vida. Aqui, portanto, o cérebro tem um papel secundário na explicação, como manifestação da Vontade. Pois nos animais, como visto anteriormente, torna-se mais clara e evidente a forma como a Vontade se manifesta como Vontade de vida, dirigindo toda a organização dos corpos e das funções de suas estruturas para sua manutenção (SCHOPENHAUER, 2005, p. 215).
No terceiro e último caso, o autor ressalta o caráter secundário do intelecto na medida em que o compreende como cérebro, ou seja, como um órgão que se desenvolve com o passar dos anos e que é, ele mesmo, já uma objetivação da Vontade, condicionado a ela e desempenha uma função determinada, a representação do mundo e, como tal, dos motivos necessários para um determinado grau de objetivação dela.
O que Zeller parece não levar em conta é que Schopenhauer enfatiza a diferença entre as considerações distintas e destaca, sobretudo nos trechos mencionados do §7, a incompletude da compreensão do mundo seja pelo modo subjetivo, seja pelo objetivo. Por conseguinte, o autor não afirma que o cérebro é produto da representação e a representação um produto do cérebro sem pressupor a diferenciação necessária dos modos. Dessa maneira, qualquer filosofia que se pretenda plenamente idealista ou plenamente realista teria que lidar com a sua compreensão unilateral e limitada do mundo ocasionada pelo estabelecimento de uma relação causal, entre objeto e sujeito ou entre sujeito e objeto, que inviabilizaria uma abordagem profunda do mundo. Esta, por sua vez, deve exigir uma leitura do mundo como representação como um fato, assim como assinalado por Schopenhauer ainda no §7.
A menção posterior de que as verdades idealista e realista materialista são provisoriamente de igual direito torna mais compreensível o que Schopenhauer pretende afirmar no desenvolvimento do §7, que, de certo modo, sustenta uma abordagem que pode levar ao problema da igualdade dos modos de consideração e, por conseguinte, de que tanto o ponto de partida que afirma que o mundo objetivo é produto do intelecto quanto o que afirma que o intelecto deve ser explicado como um cérebro, segundo a compreensão materialista da fisiologia, são “igualmente válidos”. É sempre mencionado o modo como o mundo dos objetos é condicionado ao sujeito e possui uma existência relativa, e em todas as vezes em que cérebro e intelecto são tomados como uma e mesma coisa (como no trecho citado da página 72) parece que Schopenhauer está oscilando entre os pares da complementariedade de sua teoria.
No âmbito de O mundo, é difícil compreender como tal circularidade de “condicionamentos”, ou paradoxo, poderia ser resolvido, senão através das poucas menções à distinção entre modos de consideração, que se intensificam e se alteram ao longo do tempo em vista de uma maior clareza na sua exposição. Ainda que na obra mencionada, as alusões à questão ainda não sejam tão esclarecedoras, como virão a ser em Sobre a vontade na natureza e em O mundo II, a inserção do termo cérebro na obra indica para dois importantes aspectos: a) a relação que Schopenhauer busca estabelecer entre ciência e filosofia, ou, mais apropriadamente, entre as descobertas científicas a ele contemporâneas e a filosofia metafísica que desenvolve na sua obra magna; e b) à noção de pensamento único (einziger Gedanke), que deveria sustentar uma relação não ascendente entre os temas. Por isso, pode-se pensar que a inserção da noção de cérebro em um momento onde ainda não havia sido discutida a distinção entre os modos de consideração está de acordo com a estrutura do texto, na medida em que o meio e o final da obra condicionam o início, assim como o início condiciona o final, como referido no prefácio à primeira edição de 1819 (SCHOPENHAUER, 2005, p. 20). E que, por conseguinte, todos os temas discutidos nas partes posteriores da obra condicionam igualmente a compreensão completa do estatuto do sujeito (intelecto) e do surgimento do termo “cérebro” na discussão.
É preciso ter em vista que, a critério de coerência do próprio texto, toda menção científica, fisiológica ou anatômica (nesse caso, etiológica ) ao intelecto deve ser tomada como parte do modo de consideração objetivo, ou realista materialista, e não assumido como uma abordagem completa e suficiente ou tão imediata quanto o modo de consideração que parte do ponto de vista do idealismo (SCHOPENHAUER, 2005, p. 74). Uma vez que “o pseudodado objetivo, ponto de partida do materialismo, nada mais é que uma representação” e que “toda ciência, no sentido próprio do termo, compreendida como conhecimento sistemático guiado pelo fio condutor do princípio de razão, nunca alcança um fim último, nem pode fornecer uma explicação completa e suficiente[...]” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 73).
Posteriormente, em Sobre a vontade na natureza (obra originalmente publicada em 1836) e em O mundo II o tema recebe uma abordagem mais clara e direta, de modo que o autor busca esclarecer a relação entre seus dois diversos modos de consideração e, eventualmente, resolver o problema deixado parcialmente em aberto pela ausência de uma abordagem direta da circularidade evidente ao longo da compreensão da relação entre intelecto, como não mundano e condição do mundo, e cérebro, mundano e objeto entre objetos. Somente nos dois textos mencionados o autor se direciona ao problema e, face a face com suas consequências, busca melhor compreendê-lo, assim como expô-lo para o leitor, consciente da dificuldade de conciliação entre metafísica e ciência no âmbito de O mundo.
Em Sobre a vontade na natureza há, em primeiro lugar, uma mudança na relação estabelecida entre ciência e metafísica através da inserção do termo “confirmação” (Bestätigung), que já aparece no subtítulo da obra. Na Introdução ao livro, Schopenhauer explicita que, ao romper um silêncio de 17 anos desde a publicação de O mundo, preenchido pelo estudo meticuloso das ciências naturais, pretende trazer à tona confirmações empíricas de sua teoria metafísica advindas das ciências (SCHOPENHAUER, 2012, p. 323). As ciências haviam se desenvolvido fortemente, e, dada a intenção de Schopenhauer de atribuir à investigação científica o contrabalanceamento necessário ao ponto de partida subjetivo e idealista, era preciso documentar e fazer uso das novas descobertas científicas.
Segundo o autor, o termo “confirmação” descreve a relação entre ciência e metafísica estabelecida em seu sistema e retomada, com algumas alterações, no âmbito da nova obra. Se, por um lado, a filosofia, como metafísica, pode chegar à intelecção do que é o mais verdadeiro e íntimo dos seres e do mundo em sua totalidade (SCHOPENHAUER, 2012, p. 326), por outro, as ciências naturais, sobretudo a fisiologia e a anatomia comparada, chegaram aos mesmos resultados sem possuir qualquer conhecimento sobre a filosofia de Schopenhauer (SCHOPENHAUER, 2012, p. 326), e, mais importante ainda, sem que houvesse qualquer tipo de adaptação da ciência à verdade metafísica descrita em O mundo.
Desse modo, Schopenhauer compreende que a investigação que parte da distinção sujeito e objeto e, como tal, explica a matéria e os objetos materiais sempre como condicionados, como representação, e que aquela que parte do objeto e através dele explica o sujeito estavam chegando aos mesmos resultados, vindo a afirmar que a Vontade, ainda que no caso das ciências não fosse correlata à coisa em si e nem metafisica, é tanto responsável pelo desenvolvimento do organismo quanto possui preponderância em relação ao intelecto (SCHOPENHAUER, 2012, p. 326). Esta última, por sua vez, encontra, no limite da explicação, as forças naturais, a ação da Vontade, apesar de não a denominar metafísica, através do que Schopenhauer busca estabelecer parte das ligações entre os dois ramos expressa ao longo dos capítulos.
Dessa maneira, ambos os campos de conhecimento poderiam até ser considerados sob a imagem ilustrativa de dois mineiros que, escavando profundamente cada um à sua própria maneira, encontrassem a si mesmos diante dos mesmos resultados, juntos em um mesmo ponto final de explicação (SCHOPENHAUER, 2012, p. 326). Aqui, assim como em O mundo, o ponto até o qual a ciência pode progredir é o limite das explicações, que, em um determinado momento, como etiologia, tocam as limitações do princípio de razão suficiente e devem parar quando falham em explicar os fenômenos. Ponto a partir do qual apenas a explicação metafísica, sua complementar, pode seguir adiante através da consideração das forças naturais como qualidades ocultas inexplicáveis pelo método investigativo das ciências (SCHOPENHAUER, 2012, p. 325).
No capítulo Anatomia comparada, Schopenhauer retoma a relação estabelecida entre a unidade da Vontade e a economia interna dos organismos que, no primeiro volume de O mundo, é explicada como a única compreensão possível da manifestação da Vontade una na multiplicidade dos seres. Nesta obra tal explicação é sumarizada em uma pequena sentença, capaz de comunicar a ideia principal de toda a explicação presente nos §27 e §28: “como eles querem, assim eles são” (Tradução nossa, SCHOPENHAUER, 2012, p. 352). Ela comunica em um curto fragmento de texto a ideia da teleologia interna dos organismos, na medida em que seus corpos, objetidade da Vontade, manifestam na unidade interna das funções de seus órgãos e da relação entre eles a unidade da Vontade. Ou seja, que todas as suas estruturas, correspondentes a funções orgânicas, operam de maneira interdependente e a serviço da Vontade porquê manifestações suas.
Ora, como visto, é a partir dessa explicação que o intelecto passa a ser considerado parte do organismo e, como tal, constituinte de determinadas manifestações da Vontade, naquelas em que pôde surgir o conhecimento. Contrariamente a qualquer compreensão que reconhecesse o intelecto como primário e independente em relação ao corpo e ao mundo, Schopenhauer também retoma, assim como no desenvolvimento do segundo livro de O mundo, o seu caráter condicionado em relação à Vontade e suas manifestações, dentre as quais se encontra incluído. Conserva-se, nesta obra, a noção do lugar secundário do intelecto no organismo animal e de seu papel relativo à Vontade de vida. Entretanto, tal operação inaugura uma discussão mais próxima com as ciências naturais, apresentando, de forma ainda mais completa e detalhada, a noção de que o intelecto (segundo o modo de consideração subjetivo) deve ser compreendido como o cérebro (de acordo com o modo de consideração objetivo) (SCHOPENHAUER, 2012, p. 365).
Todavia, é imprescindível afirmar que, novamente, a equivalência entre os dois termos não pode ser feita se não se levar em conta a inserção do conceito de “confirmação” no texto. Ou seja, que o que o idealismo, na figura da investigação subjetiva, considerou como sendo a condição formal do mundo e o dado imediato do conhecer, o realismo materialista, de acordo com a fisiologia e a anatomia comparada, considera como sendo o cérebro, um órgão material no interior de um organismo conhecido e investigado. Deve-se tomar como dado, nesse caso, que o investigador da natureza que se vale do método das ciências naturais e, por isso, toma cada objeto como existente por si mesmo e incondicionado, não considera a Vontade como essência de cada ser, mas deve poder chegar a compreendê-la, posteriormente, como resultado de sua investigação, ainda que somente nos casos das forças naturais. O que a consciência de si encontra no interior do sujeito como sendo intelecto e, ao fim, Vontade (na identidade da consciência), o cientista conhece como um órgão material, explicando-o como o órgão da inteligência. Esse é o sentido mais profundo do conceito de “confirmação” que Schopenhauer pretende utilizar, a conexão entre o domínio da ciência e o da metafísica a partir do ano de 1836.
Portanto, essa seria uma verdade descoberta por vias totalmente distintas e que, dada sua presença simultânea em ambos os modos de consideração, se legitimaria. Dessa maneira, o organismo que o fisiólogo e o anatomista dissecam e do qual se valem não é, ainda, compreendido como objetivação da unidade da Vontade na unidade de sua economia interna, inclusive na qual o cérebro poderia ser considerado como o órgão, objetivação da vontade de conhecer, do qual fala o autor. Mas permanece sempre como um objeto material no qual cada órgão interno desempenha uma função, ainda sem a compreensão metafísica da relação da economia interna das estruturas com a Vontade de vida nele manifesta. Entretanto, a referência ao cérebro que já dispõe da compreensão metafísica, ou que tem como intenção destacá-la acima da consideração superficial da ciência, traz consigo também a consideração do organismo e da relação entre suas partes, na qual ele ocupa um lugar secundário. Ainda que mesmo nessas intelecto e cérebro pareçam termos intercambiáveis, é preciso ter em mente que Schopenhauer distingue as duas acepções: na consciência de si intelecto é, ao fim, Vontade, e na consciência dos objetos, do mundo em sua objetidade, conhece-se seres conscientes de si e do mundo nos quais a unidade da Vontade se objetiva no organismo e em um cérebro como parte sua.
Dessa mesma forma, o intelecto é visto como Vontade de conhecimento, pois, tendo sido produzido no interior de um organismo e sendo parte de sua economia tem por finalidade a manutenção da vida, como todo o conjunto dos órgãos, e, para tal, possui a capacidade de representar (SCHOPENHAUER, 2012, p. 362). Essa explicação é feita sobretudo no capítulo Fisiologia das plantas, no qual Schopenhauer busca apresentar uma escala de complexidade dos seres através da explicação de sua fisiologia. Nesse caso, a tentativa schopenhaueriana de dialogar com as ciências a fim de corroborar sua filosofia metafísica é expressa na apresentação da forma como cada parte do organismo, dado seu conjunto, ocupa uma função na conservação da vida, e que na medida em que a manifestação da Vontade torna-se mais complexa pode-se perceber a presença de estruturas e órgãos também mais complexos (SCHOPENHAUER, 2012, p. 382-383). Dessa maneira, nos graus mais claros da manifestação da Vontade há uma série de estruturas complexas e a presença do intelecto, mesmo que não necessariamente no ser humano, cujo fim principal é representar o mundo, e, representando-o, fornecer motivos de ação através dos quais a vida pode ser conservada (SCHOPENHAUER, 2012, p. 383). É nesse sentido que o intelecto deve ser compreendido como um produto tardio da manifestação da Vontade, ideia que será retomada em uma série de escritos posteriores, sobretudo nos capítulos de O mundo II, nos quais a presença das explicações e ilustrações científicas é ainda mais numerosa.
Alguns dos capítulos principais de O mundo II que tratam do tema da compreensão metafísica do autor estabelecem uma relação similar entre ciência e filosofia, mantendo tanto a distinção entre os modos de consideração quanto o uso do conceito de “confirmação”. Na obra, é retomada a independência das investigações científica e filosófica, assim como a necessidade da complementação de ambas, visto que a explicação, em um sentido amplo, das “aparências do mundo” não consegue “sustentar-se com os próprios pés, mas precisa de uma metafísica para apoiar-se; por mais que se vanglorie desta” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 210). Ainda, é preciso ter sempre em mente que a relação de complementariedade permanece como de “confirmação e esclarecimento”, mas, diferentemente do texto de 1836, são mencionadas com mais frequência filosofias específicas de cada ciência que deveriam ser, entrementes, “os resultados principais de cada ciência, considerados e sintetizados desde um ponto de vista superior, isto é, o mais universalmente possível interiormente a essa ciência” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 155).
As referências à física e à fisiologia, como exemplos marcantes da abordagem cientifica, estão presentes em muitos dos capítulos. De modo geral, o trabalho efetuado por Schopenhauer em O mundo II busca integrar ainda mais as ciências à filosofia, não somente no que concerne à abordagem da natureza e da insuficiência e unilateralidade da consideração objetiva do mundo, mas em relação às várias disciplinas e faces do pensamento comunicado pela totalidade de sua obra. Dois elementos principais podem ser destacados no que cabe a essa questão: a) que Schopenhauer permanece ressaltando a importância fundamental da complementariedade entre a física e a metafísica através da noção de confirmação (SCHOPENHAUER, 2015, p. 213; SCHOPENHAUER, 2015, p. 155); e que b) é inserida a ideia, em gérmen nos escritos anteriores , de que para que haja a compreensão e exposição corretas do problema da metafísica, a saber, do enigma do mundo e da existência, é necessário que haja conhecimento precedente da abordagem científica do mundo. Sobre isso, afirma o autor:
Por outro lado, deve-se observar que a apresentação mais correta possível do problema da metafísica passa por um conhecimento o mais completo possível da natureza, por conseguinte, ninguém deve aventurar-se na metafísica sem antes ter previamente adquirido um conhecimento de todos os ramos das ciências da natureza, mesmo que seja um conhecimento apenas geral, porém fundamentado, claro e coerente. Pois o problema tem de preceder a solução (SCHOPENHAUER, 2015, p. 217).
Considerações finais
De acordo com sua abordagem do cérebro e do intelecto, portanto, mantém-se a noção de que toda afirmação de que o cérebro é o órgão do conhecimento deve ser compreendida como indissociável da afirmação de que o intelecto experienciado na subjetividade é condição dos objetos. Ou seja, que não há uma mudança de ponto de vista acerca da natureza das representações, mas que a oscilação, e até coexistência em alguns momentos, da dupla referência ao intelecto sob dois aspectos diferentes segue a determinação dos modos de consideração que se complementam. Essa noção é explorada com mais ênfase em O mundo II do que em todas as outras obras posteriores. Nesta há um capítulo inteiro voltado para a explicação do ponto de vista objetivo do intelecto, intitulado Visão objetiva do intelecto, e um segundo, também fundamental, em que o organismo em sua totalidade, nele incluído o cérebro (no caso dos animais), é abordado segundo o conceito de objetivação, intitulado Objetivação da vontade no organismo animal.
Em Visão objetiva do intelecto, Schopenhauer desenvolve e apresenta de maneira mais detalhada o modo de consideração objetivo do intelecto, que, como não se pode perder de vista, complementa sua consideração subjetiva do intelecto. A base de sua explicação é fisiológica e tem como conteúdo principal os estudos de diversos autores de fisiologia e anatomia comparada, assim como feito em Sobre a vontade na natureza. Todavia, neste capítulo o tema aparece reunido em uma discussão ainda mais completa. Não é possível deixar de destacar que essa consideração é unilateral e que ao longo do texto é aludida a necessária compreensão da superioridade da consideração subjetiva, idealista, do mundo como representação. Esse modo de consideração é, por sua vez, novamente definido pelo autor: “Um deles [modos de consideração] é o subjetivo, que, partindo do interior e tomando a consciência como o dado, exibe-nos por qual mecanismo o mundo expõe-se na mesma, e como, a partir de materiais que os sentidos e o entendimento fornecem, o mundo é ali construído” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 329).
Já na abordagem do segundo modo de consideração, Schopenhauer introduz um elemento interessante que, apesar de já poder ser pensado como presente nas primeiras explicações, apenas é diretamente mencionado na reformulação do tema. Segundo ele, o saber que tem o objeto como ponto de partida e a partir do mundo como tal constrói seu pensamento toma não a consciência como o dado imediato a partir do qual pode principia-lo, mas os seres conscientes tanto de si quanto do mundo. Isso significa que o investigador das ciências naturais tem diante de si indivíduos possuidores de consciência e que, de forma peculiar ao seu modo investigativo, os conhece. A princípio, seu interesse não é compreendê-los através da noção de Vontade e de organismo próprias da filosofia schopenhaueriana. Somente através da adição dessas noções é que ele pode tornar-se, então, como mencionado, filosófico. A menção de Schopenhauer ao tema já alude para uma possível ligação, em que o corpo orgânico dissecado pelo cientista natural ou visualizado e estudado por ele deve ser compreendido como objetidade da Vontade e, somente assim, qual a relação entre todas as suas partes e a maneira como a unidade da Vontade se manifestou na unidade de cada ser em questão. De maneira geral, o autor afirma que a consideração objetiva do mundo e do intelecto
[...] toma como objeto não a própria consciência, mas os seres dados na experiência exterior que são conscientes de si mesmos e do mundo, e então investiga que relação o intelecto deles tem com as suas restantes propriedades, como ele se tornou necessário, e o que pode realizar para eles (SCHOPENHAUER, 2015, p. 329).
Desse modo, como investigação do objeto ele é, em primeiro lugar, enfatiza o autor, “zoológico, anatômico, fisiológico e só se torna filosófico através de sua conexão com aquele primeiro modo de considerar e com o ponto de vista superior ali obtido” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 329). Ou seja, Schopenhauer reafirma que o modo de consideração subjetivo é superior ao objetivo, mesmo que se tome a relação de complementariedade estabelecida entre ambos, e, portanto, a consideração subjetiva do intelecto inicial, imediata e basilar não é sobrepujada ou mesmo igualada à objetiva. Em seguida, o autor menciona ainda suas fontes teóricas em se tratando desse modo de consideração, que incluem Cabanis, Bichat, Gall, Charles Bell, Magendie e Marshall Hall (SCHOPENHAUER, 2015, p. 330). Tendo mencionado tais autores, pode-se compreender como Schopenhauer pode ser capaz de se utilizar, em grande número, de explicações fisiológicas sobre o cérebro e sua relação com o organismo de forma complementar aos seus argumentos idealistas. Pode-se perceber tal utilização em alguns dos trechos que se seguem:
Daí segue-se que a existência de minha pessoa ou de meu corpo como algo extenso e que faz efeito pressupõe sempre um ser que conhece distinto dele: porque é essencialmente uma existência na apreensão, na representação, portanto, uma existência para um outro. Em realidade, trata-se de um fenômeno cerebral, não importando se o cérebro no qual ele se apresenta pertence à própria pessoa, ou a um estranho. (SCHOPENHAUER, 2015, p. 9).
[...]porque tempo, espaço e causalidade, sobre os quais repousam todos aqueles processos reais e objetivos, também nada mais são eles mesmos que funções do cérebro [...] (SCHOPENHAUER, 2015, p. 11).
Portanto, nos dois acontecimentos aqui comparados, o que ocorre no cérebro é apreendido como fora dele: na intuição, pela intermediação do entendimento, que estende seus fios sensórios até o mundo exterior; na sensação dos membros, pela intermediação dos nervos (SCHOPENHAUER, 2015, p. 30).
[...]sim, estamos justificados a afirmar que todo o mundo objetivo, tão ilimitado no espaço, tão infinito no tempo, tão insondável na perfeição é propriamente apenas um certo movimento ou afecção da massa cerebral no crânio. (SCHOPENHAUER, 2015, p. 330).
Como mera função do cérebro, o intelecto é afetado pelo ocaso do corpo; a vontade, ao contrário, de modo algum é afetada. (SCHOPENHAUER, 2015, p. 327).
Por conseguinte, para que a explicação científica do cérebro, como órgão do conhecimento, se torne filosófica é preciso dar um passo a mais em direção à ideia de complementariedade dos modos de consideração. Inversamente, alguns dos cientistas inclusive empregaram conceitos de O mundo e de Sobre a visão e as cores, confundindo o procedimento de Schopenhauer, tal como no caso das referências de Sobre a vontade na natureza posteriormente descobertas como fraudulentas.
Schopenhauer intenta resolver o problema com uma tese importante formulada no início do capítulo Objetivação da vontade no organismo animal. Nele é retomada a relação entre a unidade da Vontade e a unidade interna, ou economia interna, dos organismos animais. No caso, o foco é voltado somente para os animais, contrariamente ao capítulo de Sobre a vontade na natureza intitulado Fisiologia das plantas. Sua tese é a seguinte:
O conhecimento do mundo exterior também pode ser definido como a consciência de outras coisas, em oposição à consciência de si. Após termos encontrado nesta última a vontade como o seu objeto propriamente dito, ou o seu estofo, agora levaremos em consideração, com mesmo intento, a consciência das outras coisas, logo, o conhecimento objetivo. Sobre este, aqui está a minha tese: o que na consciência de si, logo, subjetivamente, é o intelecto, expõe-se na consciência de outras coisas, logo, objetivamente, como cérebro: e o que na consciência de si, logo, subjetivamente, é a vontade, expõe-se na consciência de outras coisas, logo, objetivamente, como organismo em seu conjunto (SCHOPENHAUER, 2015, p. 297).
Tese que pode ainda ser dividida em duas partes fundamentais: a) o que subjetivamente é o intelecto, e, ao fim, Vontade de conhecer, é objetivamente intuído como o órgão cérebro; e b) o que subjetivamente é vontade, é objetivamente intuído como o organismo na sua totalidade. No primeiro momento, a), o intelecto deve ser, inicialmente, compreendido como Vontade, de acordo com toda a investigação anterior e os argumentos do autor a favor do ser essencial da Vontade e da sua preponderância mesmo sobre o conhecimento, no ato da intuição e do pensar (SCHOPENHAUER, 2015, p. 335). Por conseguinte, tem-se, de um lado, a Vontade de conhecer e, de outro, sua “aparência”, ou manifestação no mundo intuitivo: o cérebro. O cérebro seria, segundo a compreensão desse trecho, através da noção de modos de consideração, a manifestação objetiva da Vontade de conhecimento, e, por conseguinte, um órgão que pode ser descrito fisiologicamente como um objeto material, mas que, todavia, não deve, em hipótese alguma, ser reduzido à essa explicação.
No segundo momento da tese, b), Schopenhauer complementa o primeiro com o resultado geral da sua investigação da objetivação da Vontade no mundo e, em especial, nos organismos. A saber, que ao caráter inteligível através do qual ela se manifesta corresponde um corpo teleologicamente organizado, cujos órgãos, com funções cognoscíveis determinadas, operam a favor da manutenção da vida, da reprodução e de todas as atividades atribuídas à manifestação da Vontade como Vontade de vida. Nesse âmbito, o intelecto aparece como parte do organismo, e, como tal, uma das suas partes responsáveis pela sua manutenção. E, portanto, como função ele deve ser considerado como o médium dos motivos da ação, decorrente da complexidade do organismo animal ao qual pertence (SCHOPENHAUER, 2015, p. 344). Afirma o autor: “Antes de tudo o intelecto, como brotando da vontade, está destinado só ao serviço desta, logo, à apreensão dos motivos: para isto foi constituído, portando é de tendência estritamente prática” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 344).
Essa tese busca resolver o problema e, do ponto de vista aqui exposto, pode vir a dissolver a circularidade indicada por Zeller. O cérebro não é produto da representação, mas sim objetidade da Vontade, que existe através da representação do indivíduo, que, por sua vez, é Vontade e, como tal, manifesta-se no mundo intuitivo como corpóreo, ou físico. Cada ser, portanto, deve ser considerado como Vontade e como representação, não de forma idêntica, como seria o caso de uma teoria que considerasse representação e Vontade como faces distintas e igualmente reais de um mesmo mundo. Pelo contrário, a Vontade é essencial e o mundo como representação “acidental” ou secundário. Da mesma maneira, o intelecto essencialmente é Vontade, e é assim considerado na consciência de si, através da qual o acesso ao ser dos objetos é apresentado ao ser humano através do milagre da identidade na consciência de si (SCHOPENHAUER, 2005, p. 159). Todavia, ele deve ser também considerado como parte de um organismo, tese apresentada acima, e, por isso, como uma estrutura/função cujo fim último deve ser a conservação da vida no indivíduo.
Por conseguinte, ser sujeito de conhecimento abre a cada indivíduo um acesso especial tanto à consciência quanto, através dela, à coisa em si que todo o mundo é. Mas, por outro lado, ser intuído por outros seres cognoscentes ou até por si mesmo mostra a cada um o seu caráter próprio objetivo. Entretanto, na medida em que o indivíduo intui a si mesmo permanece-lhe vedada a intuição da totalidade de seu organismo, tal como exposto na representação (SCHOPENHAUER, 2015, p. 313). Para o outro que intui, cada objeto visto, tocado e assim por diante apresenta-se na sua inteireza à vista, e, por isso, lhe é possível até mesmo a intuição das estruturas do outro responsáveis pelo conhecimento. Ou seja, enquanto conhece, cérebro algum é cognoscível para si mesmo senão como Vontade, permanecendo como limite do conhecer e do mundo. O que leva à fórmula schopenhaueriana: “ser-para-um-outro é ser representado, ser-em-si é querer” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 331).
Portanto, enquanto intui o mundo, o cérebro não pode ele mesmo ser intuído, mas, diferentemente, pode ser intuído por outros na consciência de outras coisas como um objeto no tempo e no espaço. Pois, finalmente, a compreensão da totalidade da obra de Schopenhauer dirige o leitor para a conclusão final de que todo ser, manifestação da Vontade, expõe-se no mundo como corpo. Daí a afirmativa do autor de que “não somos apenas o sujeito que conhece, mas também nós mesmos estamos entre os seres a serem conhecidos” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 236), parte do mundo, objeto entre objetos, objetivação da Vontade.
Referências
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ZELLER, E. Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz. München, 1873.
Notas
2. Para uma explicação pormenorizada da história das leituras do problema apontado por Zeller, conferir nota de rodapé de Eduardo Brandão em A concepção de Matéria na Obra de Schopenhauer, em que figuram diversas interpretações do problema sucintamente indicadas e temporalmente contextualizadas, com foco direcionado, sobretudo, para o reconhecimento da distinção entre Materie e Stoff na obra schopenhaueriana (BRANDÃO, 2009, p. 275).
Notas de autor