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A arqueologia do presente e a questão do sujeito no pensamento de Giorgio Agamben

The archaeology of the present and the question of the subject in the thought of Giorgio Agamben

Caio Paz 1
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

A arqueologia do presente e a questão do sujeito no pensamento de Giorgio Agamben

Griot: Revista de Filosofia, vol. 22, núm. 3, pp. 278-291, 2022

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepción: 22 Julio 2022

Aprobación: 17 Octubre 2022

Resumo: Este artigo propõe mostrar como a arqueologia agambeniana se realiza por meio de um movimento duplo que, a um só tempo, exibe a tradição a partir de um paradigma excepcional. É possível pensar aqui em um jogo de palavras, já que, habitualmente, a palavra paradigma é usada como sinônimo de modelo e, nesse sentido, a exceção foi o que modelou aquilo que a tradição transmitiu e, igualmente, recalcou. No entanto, com seu gesto característico, Agamben remete a palavra paradigma ao seu sentido etimológico, como “aquilo que se mostra ao lado”, e confere a ela um sentido estratégico na sua arqueologia. Como o exemplo, o paradigma exibe o funcionamento e o pertencimento de algo sem que pertença a isso que é exibido, mostrando-se ao lado, subtraindo o seu pertencimento a uma regra. Isso que ele exibe é a estrutura excepcional da tradição, remetendo também a palavra exceção ao seu sentido etimológico, “capturada fora”. Esse sentido, que define a exceção enquanto tal, é usado para caracterizar a maneira como a tradição operou pressupondo uma origem. Essa pressuposição de uma dimensão originária, anterior a toda suposição, destinou como um fundamento subjacente, o sub iectum, isto é, o problema do sujeito.

Palavras-chave: Arqueologia, Sujeito, Método, Agamben, Ética.

Abstract: This article proposes to show how the Agambenian archaeology takes place through a double movement that, at one and the same time, displays tradition from an exceptional paradigm. It is possible to think here of a play on words, since the word paradigm is usually used as a synonym for model and, in this sense, the exception is what models that which tradition has transmitted and, equally, repressed. However, with his characteristic gesture, Agamben takes the word paradigm back to its etymological sense, as "that which is shown alongside", and gives it a strategic meaning in his archaeology. Like the example, the paradigm displays the functioning and belonging of something without belonging to that which is displayed, showing itself alongside, subtracting its belonging to a rule. What it displays is the exceptional structure of tradition, also referring the word exception to its etymological sense, "caught outside". This sense, which defines the exception as such, is used to characterise the way in which tradition operated by presupposing an origin. This presupposition of an originary dimension, prior to all supposition, destined as an underlying foundation, the sub iectum, that is, the problem of the subject.

Keywords: Archaeology, Subject, Method, Agamben, Ethics.

hoje eu acordei

muito sem palavras

pensando que esse mundo

deixa muito a desejar

na verdade o que ele não deixa

é desejar

muito e livremente

acordei com um cansaço pensando (MAGALHÃES, 2018, p. 77)

O trecho do poema de Danielle Magalhães evoca o pensamento que surge hoje. Um pensamento que surge do cansaço e da atenção a este mundo. A este hoje. Se o poema se chama biografia, o que ele biografa é mais que uma história singular, é, antes, um acontecimento biográfico do nosso tempo. É pensamento do acontecimento deste tempo que acontece agora. A este pensamento dirigido ao acontecimento do presente, Agamben chamou de arqueologia. Essa “biografia” do nosso tempo, no entanto, não assegura o que somos fundamentalmente a partir de algum pressuposto. Nesse sentido, se o método agambeniano é arqueológico, a arché em questão não é a origem buscada no passado, mas um ponto de insurgência. Em Signatura Rerum, livro no qual Agamben se dedicou a refletir sobre o método de suas pesquisas, ele escreveu: “O ponto de insurgência, a arché da arqueologia, é o que acontecerá, que se tornará acessível e presente, tão somente quando a investigação arqueológica realizar a sua operação” (AGAMBEN, 2019, p. 152). Desde essa perspectiva, a operação arqueológica regride ao passado para tornar inteligível o presente, confrontando-se novamente com as fontes e com a tradição. Sobre esse aspecto, ele escreve o seguinte:

Podemos chamar provisoriamente “arqueologia” aquela prática que, em toda investigação histórica, tem a ver não com a origem, mas com a insurgência do fenômeno, e deve, portanto, se confrontar novamente com as fontes e com a tradição. E não pode encarar a tradição sem desconstruir os paradigmas, as técnicas, e as práticas mediante as quais ela regula as formas de transmissão, condiciona o acesso às fontes e determina, em última análise, o próprio estatuto do sujeito cognoscente. O ponto de insurgência é aqui, então, a um só tempo, objetivo e subjetivo, situando-se, aliás, num limiar de indecidibilidade entre objeto e sujeito. Ele nunca é o surgir do fato sem ser também o surgir do próprio sujeito cognoscente: a operação sobre a origem é, ao mesmo tempo, uma operação sobre o sujeito (AGAMBEN, 2019, p. 128). (grifo meu)

Os trechos grifados na citação anterior ajudam a delimitar o escopo da arqueologia agambeniana, que pode ser compreendida como uma forma de contar paradigmaticamente a história do ocidente e, assim, recusar a busca da origem como fundamento. Para Agamben, isso implica também a recusa da ideia de um sujeito de conhecimento originário e universal, que determina o que é possível conhecer. Nesse sentido, seria possível dizer que o pensamento de Giorgio Agamben reconta a tradição filosófico-política do ocidente de modo paradigmático. Nesse caso, o paradigma não é um modelo que impõe uma univocidade narrativa ao modo como os problemas filosóficos e políticos nos foram endereçados. Isso significa que, no pensamento do filósofo, não se trata de pensar as figuras paradigmáticas como o fundamento obscuro da argumentação e nem as remeter à decisão sobre a pergunta: as figuras paradigmáticas são fáticas ou têm apenas uma consistência teórica? O pensamento paradigmático se encontra justamente na possibilidade de não decidir sobre essa questão, uma vez que as duas dimensões se tornam indiscerníveis. Por isso, nas análises que faz, o filósofo italiano torna inteligível aquilo que nos transmite a transmissão da tradição. Esse movimento realizado pelo pensamento agambeniano evoca um retorno ao passado, mas um retorno contrapelo, no qual se haver com o que passou significa não somente constatar uma repetição, mas tornar pensável uma abertura, um pequeno deslocamento, no presente. Paradigma nomeia, então, o gesto agambeniano de tornar visível e inteligível o que a tradição não deixou de repetir para, assim, pensar em um novo uso do que nos foi transmitido.

Para explicitar a relação entre passado e presente que está em jogo no paradigma, Agamben escreve: “Não há, no paradigma, uma origem ou uma arché: cada fenômeno é a origem, cada imagem é arcaica. A historicidade do paradigma não está nem na diacronia, nem na sincronia, mas num cruzamento entre elas” (AGAMBEN, 2019, p. 41). Para explicitar essa formulação, ele recorre ao Atlas Mnemosyne de Aby Warburg. Sobre este atlas, ele escreveu a seguinte passagem em um ensaio chamado “Aby Warburg e a ciência sem nome”, publicado no livro A potência do pensamento:

A Mnemosyne de Warburg é esse atlas mnemotécnico-iniciático da cultura ocidental, que permitia ao “bom europeu” (como ele gostava de dizer servindo-se das palavras de Nietzsche), olhando-o, tomar consciência do caráter problemático da sua tradição cultural e talvez conseguir, desse modo, curar a sua “esquizofrenia” e “autoeducar-se” (AGAMBEN, 2015a, p. 122).

O atlas de Warburg se caracteriza por ter um papel de iniciação, ou seja, é responsável por realizar um papel educativo a respeito da cultura europeia. A realização deste seu papel didático se dá por meio da exposição de painéis, que são um conjunto de imagens organizadas sob um determinado título. Aby Warburg chama os painéis de Pathosformel e Agamben os chama de “fórmula de pathos”. Ainda que exposta em painéis, o filósofo italiano argumenta que seria equivocado compreender essas imagens como uma reunião de um tema iconográfico, ou seja, como uma mera ilustração imagética de um tema recorrente na cultura ocidental (AGAMBEN, 2019, p. 37). Ao contrário disso, Agamben entende os painéis, justamente, como a impossibilidade de distinguir a arché da sua repetição e, desse modo, como uma indistinção entre arquétipo e fenômeno, já que as imagens não repetem, como ilustração, um tema original.2 Nessa perspectiva, ele afirma que as Pathosformel são um Urphänomen, isto é, um “fenômeno original”. Tomando o conceito goetheano de Urphänomen, Giorgio Agamben mostra como a relação entre a origem e a repetição implica uma temporalidade não linear. Com isso, ele sublinha que a origem que está em jogo nos fenômenos não é uma origem que possa ser situada cronologicamente, isto é, não é uma origem diacrônica. No entanto, essa origem também não é um elemento sincrônico e a priori, já que os paradigmas não se dão de maneira apriorística. Sobre esse aspecto, ele argumenta: “não é uma origem pressuposta no tempo, mas, situando-se no cruzamento da diacronia e da sincronia, torna inteligível o presente do investigador não menos que o passado de seu objeto” (AGAMBEN, 2019, p. 42). Nessa passagem, Agamben evidencia que a relação desse fenômeno original com a diacronia e a sincronia se estabelece como um umbral de indecidibilidade entre essas duas dimensões.

Essa indecidibilidade evocada pelo argumento agambeniano, que põe em questão as oposições dicotômicas, está relacionada à analogia de Enzo Melandri. De acordo com Agamben, Melandri desenvolve em A linha e o círculo a noção de analogia para estabelecer uma oposição à lógica dicotômica ocidental, tornando as suas dicotomias indiscerníveis. É importante sublinhar que, para Agamben, o modo como Melandri desenvolve a sua argumentação não visa estabelecer essa indistinção para indicar uma síntese superior, mas para apontar essas dicotomias como forças polares que produzem uma desidentificação (AGAMBEN, 2019, p. 25). A desidentificação é uma espécie de privação da identidade promovida pela analogia, que é um modo de questionar um princípio que permeia a lógica ocidental, o princípio da não contradição. Segundo esse princípio, que é atribuído a Parmênides, “o ser é e o não ser não é”. Detendo-se sobre as implicações lógicas dessa formulação, é possível perceber que ela põe em jogo uma oposição dicotômica que exclui mutuamente cada uma das duas dimensões apresentadas. Esse princípio que permeia a lógica ocidental, qualificado por Agamben como dicotômico, pode ser compreendido como um princípio de garantia de uma identidade substancial. Desse modo, seguindo os passos de Melandri, Agamben vê a neutralização e a desidentificação, produzidas pela analogia, como uma terceira via. Ele as compreende como um terceiro analógico, que tem a capacidade de levar a lógica ocidental a uma indecidibilidade.

Na tensão bipolar entre uma tradição que antecipa e condiciona toda compreensão e a própria compreensão, entre o passado e o presente, o paradigma se apresenta como a exibição dessa tensão. Por isso, argumenta Agamben, ele não se identifica com nenhum dos polos, mas se mostra ao lado (AGAMBEN, 2019, p. 36). A esse tratamento paradigmático não se furta a questão do sujeito, uma vez que a própria tradição nos transmitiu a noção moderna de sujeito e, a partir dela, deu contorno a uma série de categorias filosóficas e políticas que condicionam o acesso ao passado. Em O uso dos corpos, “sujeito ético” nomeia, justamente, essa desidentificação, um pequeno deslocamento dessa história. Ou seja, ao exibir por quais operações históricas a tradição pôde pressupor um sujeito e, assim, destinar uma infinita remissão a si mesma, Agamben mostra ao lado as outras possibilidades que não cessam de se abrir. É possível chegar a essa conclusão sabendo que, para Agamben, ética significa precisamente a ausência de tarefas a cumprir. Ética significa o contrário dessa remissão infinita a uma origem, que, como dever, decide e governa o que é possível ou não.

Esse pensamento que se endereça a uma zona de não conhecimento é uma das maneiras de Agamben fazer frente ao que poderíamos chamar de uma soberania do sujeito. Esse deslocamento, paradigmaticamente agambeniano, é perceptível por meio da noção de intimidade que ele apresenta em O uso dos corpos:

Podemos chamar de “intimidade” o uso de si como relação com um inapropriável. Quer se trate da vida corpórea em todos os seus aspectos (inclusive aqueles que vimos como ethe elementares: urinar, dormir, defecar, prazer sexual, nudez...), quer se trate da especial presença-ausência conosco mesmos que vivemos nos momentos de solidão, aquilo que experienciamos na intimidade é o fato de nos mantermos relacionados com uma zona inapropriável de não-conhecimento. Aqui, a familiaridade consigo alcança uma intensidade mais extrema e solícita à medida que não se traduz, de nenhum modo, em algo que podemos dominar (AGAMBEN, 2017b, p. 117). (grifo meu)

A dimensão ética da intimidade está relacionada ao fato de ela se desenrolar em uma esfera em que não é possível nem conhecer nem dominar o que é íntimo como se fosse uma propriedade. A intimidade é um uso que o sujeito ético faz de si sem que esse “si” assuma a forma de uma substância da qual se pode depreender a consistência e a estrutura de uma subjetividade universal. Nessa perspectiva, Agamben opõe a intimidade, tal como ele a compreende, à privacidade, que seria o controle seletivo que um sujeito exerce sobre si mesmo para constituir-se como o proprietário da “intimidade”. Nesse domínio, em que um sujeito soberano governa a própria intimidade e o próprio corpo, produz-se a substância fundamental da biopolítica.3

Mais explicitamente, determinada compreensão do que é o sujeito, oferecida pela tradição, garante a reivindicação de uma soberania do sujeito sobre a sua “intimidade” – isto é, o seu direito à privacidade. Para Agamben, arqueologicamente, é possível mostrar de modo paradigmático que a noção de sujeito tem uma profunda solidariedade com o poder que os Estados democráticos e totalitários assumem para governar os gestos mais elementares daqueles que estão sujeitados à decisão dos sujeitos que podem decidir (AGAMBEN, 2017b, p. 116). É contra a atualidade desse presente transmitido a nós, que, agambenianamente, se pode pensar em um sujeito ético. Mais ainda, a arqueologia de Agamben procura mostrar como a noção de sujeito que atravessa as filosofias modernas se funda em uma compreensão pressuponente de linguagem. Por isso, no movimento paradigmático, a expressão “sujeito ético” funciona de modo a destituir uma compreensão de sujeito canonizada pela tradição e que, em última instância, condiciona inclusive o acesso às fontes e ao passado.

Nesse sentido, a um só tempo, a arqueologia realizada nos escritos de Giorgio Agamben busca abrir o presente dando possibilidade ao passado, depondo aquilo que se afirmou como pressuposto e se consolidou como origem. Se, como afirma textualmente o filósofo italiano, a operação sobre a origem é também uma operação sobre o sujeito, é porque esta noção é pressuposta como originária. O confronto que o movimento paradigmático da arqueologia de Agamben trava com as noções de pressuposição, origem e sujeito não se inscreve apenas em uma esfera estritamente teórica. Ele é uma operação ética, no sentido que essa palavra adquire no seu pensamento.

1. Dois movimentos agambenianos

Nos diversos livros reunidos em torno do projeto Homo sacer, Giorgio Agamben realiza dois movimentos complementares e, ao mesmo tempo, opostos. Por um lado, trata-se de realizar um diagnóstico da política ocidental e dos seus fundamentos filosóficos e, por outro, de indicar elementos para um deslocamento possível desse diagnóstico realizado. A esses dois movimentos pode-se atribuir, respectivamente, as definições de exceção e exemplo. Nesse sentido, enquanto a exceção ajuda a descrever a maneira pela qual a tradição opera, o exemplo é, justamente, o modo como as pesquisas agambenianas, a um só tempo, se distanciam e compreendem a estrutura excepcional da tradição política e filosófica do ocidente. Sobre a exceção e o exemplo, Agamben escreve no primeiro volume da série, intitulado Homo sacer: o poder soberano e a vida nua:

[...] a exceção se situa em posição simétrica em relação ao exemplo, com o qual forma sistema. Este constitui dois modos através dos quais um conjunto procura fundamentar e manter a própria coerência. Mas enquanto a exceção é, no sentido em que se viu, uma exclusão inclusiva (que serve, isto é, para incluir o que é expulso), o exemplo funciona antes como uma inclusão exclusiva. (...) O que o exemplo demonstra é o seu pertencimento a uma classe, mas, precisamente por isto, no mesmo momento em que a exibe e delimita, o caso exemplar escapa dela (assim, no caso de um sintagma linguístico, ele mostra o próprio significar e, deste modo, suspende a significação). [...] Ele é verdadeiramente paradigma no sentido etimológico: aquilo que “se mostra ao lado”, e uma classe pode conter tudo, mas não o próprio paradigma.

Diverso é o mecanismo da exceção. Enquanto o exemplo é excluído do conjunto na medida em que pertence a ele, a exceção é incluída no caso normal justamente porque não faz parte dele. E como o pertencimento a uma classe pode ser demonstrada apenas com um exemplo, ou seja, fora dela, do mesmo modo o não pertencimento só pode ser demonstrado em seu interior, isto é, com uma exceção (AGAMBEN, 2010, p. 28-29).

Para definir o exemplo, Agamben recorre ao sentido etimológico da palavra paradigma, que significa aquilo que se mostra ao lado. A fim de elucidar a sua argumentação, ele alude aos exemplos gramaticais. Em casos como esses, o exemplo torna inteligível o pertencimento de uma palavra a uma classe. Se usamos a frase “A rosa é branca” para demonstrar que a palavra “rosa” pertence à classe gramatical dos substantivos e “branca” à dos adjetivos, o que está em questão não é a comunicação da cor da flor chamada rosa. Isto é, o que está em questão, nesse caso, não é exatamente o sentido denotativo desses vocábulos que nomeiam e caracterizam, mas sim mostrar como ambas as palavras funcionam em uma frase. Nessa perspectiva, ao funcionar como exemplo, as palavras suspendem a sua significação normal para demonstrar o seu próprio pertencimento a uma classe gramatical. No entanto, se perguntarmos se a regra gramatical de um grupo se aplica a um exemplo, essa resposta não é tão simples, já que o exemplo, que permite a exibição do funcionamento da regra, não funciona no seu sentido normal. Ou seja, o exemplo “a rosa é branca” só pode tornar inteligível as classes gramaticais (substantivos e adjetivos), porque essas palavras, fora da situação exemplar, têm um significado. Contudo, esse significado é suspenso no uso do exemplo, fazendo com que, nessa circunstância, a regra não se aplique a ele. Por isso, o filósofo afirma que uma classe (ou uma regra) não pode conter o seu exemplo, isto é, o seu paradigma. Isso se dá porque, ao exibir o seu pertencimento (a sua inclusão) a uma classe e o funcionamento de uma regra, o exemplo se põe fora delas. Dessa maneira, o exemplo tem a forma de uma inclusão exclusiva. Para Agamben, essa suspensão-exibição torna indiscernível, no exemplo, a sua singularidade e a sua exemplaridade, o seu pertencimento e o seu “estar fora” da regra, de modo que essas dimensões não se mostram separáveis (AGAMBEN, 2019, p. 30-31).

Afirmar que o paradigma funciona por meio de uma inclusão-exclusiva nos leva à discussão sobre a concepção de linguagem presente no pensamento agambeniano e aquela que ele atribui à tradição. Para o filósofo italiano, a tradição pensou a linguagem de maneira pressuponente, isto é, ela a compreendeu como um “falar sobre algo”, em que haveria uma cisão entre “aquilo sobre o que se fala” (um pressuposto não-linguístico) e “aquilo que se fala”. Nessa compreensão, a linguagem é um meio para um fim, ou seja, um instrumento para comunicar as coisas que estão fora dela. Essa concepção, que, segundo Agamben, marca a tradição, não funciona segundo a lógica do exemplo, mas sim segundo a lógica de exceção. Como explicitado no trecho citado anteriormente, a exceção funciona de modo simetricamente oposto ao exemplo/paradigma. Isso porque, assim como o paradigma, a exceção está referida ao seu sentido etimológico, que significa ex-capere, isto é, capturada fora (AGAMBEN, 2010, p.24). Capturar o fora implica uma exclusão fundadora na medida em que o que é excluído cria a margem que separa e liga o que está incluído. Dessa forma, na exceção, a inclusão pressupõe e sobrevive da exclusão, dando a esta um caráter estruturante, ou seja, o privilégio de fundar o que está dentro, determinando a relação com o seu fora. No caso da linguagem, a sua estrutura pressuponente se mostra correlata à da exceção uma vez que, desde essa compreensão, ela comunica, apreende e aferra as coisas que estão fora dela. Nesse sentido, para Agamben, enquanto a exceção funciona a partir da lógica da pre-suposição, isto é, a partir da delimitação do seu fora e da sua captura, o paradigma aponta para uma não-suposição.

Essa crítica que Agamben faz à pre-suposição e a definição do paradigma como um movimento não pressuponente aparecem de modo bastante explícito na referência que ele faz ao trabalho de Victor Goldschmidt, chamado O paradigma na dialética platônica. Recorrendo à leitura de Goldschmidt, em Signatura rerum, a atenção de Agamben se volta para o modo como o paradigma funciona na dialética platônica e, assim, ele mostra como Platão distinguiu as ciências de tipo matemático (cálculo e geometria) da dialética. O objetivo de Agamben ao explicitar essa distinção platônica é seguir o argumento que o filósofo grego desenvolve sobre a produção das ciências. A leitura agambeniana de Goldschmidt explica que, para Platão, as ciências de tipo matemático trabalham com pressupostos (hipóteses) que não precisam ser evidenciados, diferente da dialética, que precisa evidenciá-los. Dessa forma, Agamben introduz uma citação do livro VI da República, em que Platão afirma que, na dialética, as hipóteses (os pressupostos)4 não são tratadas como princípios e sim como ponto de partida para chegar a um não suposto (AGAMBEN, 2019, p. 32-33). A partir dessa afirmação contida na citação de Platão, Agamben se pergunta: “O que significa tratar as hipóteses (os pressupostos) como hipóteses e não como princípios?” (AGAMBEN, 2019, p. 2019). Para responder a essa questão suscitada pela leitura de Platão, o filósofo italiano argumenta que as hipóteses tratadas como hipóteses são como os paradigmas, já que nunca estão supostos de maneira evidente e apriorística. Na leitura agambeniana do filósofo grego, a ausência de princípio na dialética platônica evidencia a sua condição paradigmática, uma vez que a operação do paradigma suspende e desativa o funcionamento normal. Este é desativado e suspenso para exibir a própria inteligibilidade, o próprio funcionar, o que, certamente, só é visível por meio da operação paradigmática. Se resgatamos mais uma vez o caso dos exemplos gramaticais, essa questão se formula mais explicitamente: se no exemplo gramatical “A rosa é branca” é exibido o funcionamento de uma regra da gramática e isso só pode acontecer por meio da suspensão do funcionamento normal (aqui, identificado com a significação) de “rosa” e “branca”, a evidência dos significados dados é neutralizada. A não suposição do significado permite tornar inteligível uma regra gramatical. Então, para Agamben, isso que é exibido pelo paradigma não está no lugar de pre-susposto, uma vez que aquilo que é tomado como evidência, como uma suposição antecipada que serve de base para o que se segue, é justamente o que resulta suspenso no paradigma.

Acerca da questão da pressuposição referida à linguagem, em “A coisa mesma”, texto que publicou em A potência do pensamento, Agamben escreveu:

A estrutura de pressuposição da linguagem é a própria estrutura da tradição: nós pressupomos e traímos (no sentido etimológico e no sentido comum da palavra) a coisa mesma na linguagem, para que a linguagem possa referir-se a algo (kata tinos). O chegar ao fundo da coisa mesma é o fundamento sobre algo como uma tradição pode se constituir (AGAMBEN, 2015b, p. 18).

Agamben afirma que, estabelecendo-se a partir de uma compreensão pressuponente da linguagem, a tradição acaba por atribuir àquilo que Platão chamou de a coisa mesma um estatuto de pressuposto. Na leitura agambeniana da Carta VII de Platão, o que está em questão é, a partir das doutrinas não escritas, repensar a relação entre a ideia e o sensível. Segundo ele, assim como Aristóteles, os modernos compreenderam a relação que Platão estabeleceu entre o plano das ideias e o plano sensível como uma relação aporética. Com isso, o filósofo italiano atribui uma leitura singular à relação recíproca que, segundo ele, Platão estabelecia entre essas duas dimensões. Na perspectiva agambeniana, a suposta aporia contida na compreensão de que a ideia encontra seu paradigma no sensível e o sensível encontra seu paradigma na ideia é solucionada. Em suas palavras:

A ideia não é outro ente pressuposto ao sensível nem coincide com este: é o sensível considerado como paradigma, ou seja, no meio de sua inteligibilidade. Por isto, Platão pode afirmar que, assim como as técnicas, a dialética parte de hipóteses (ek hypothéseos ioûsa), mas que, diferentemente destas, trata as hipóteses como hipóteses e não como princípios, isto é, as usa como paradigmas. O não-hipotético, a que a dialética acessa, é aberto acima de tudo pelo uso paradigmático do sensível (AGAMBEN, 2019, p.33-34).

Para Agamben, a tradição canonizou a oposição entre o sensível e a ideia, pensando a ideia como um tipo de representação mental com um estatuto transcendental e o sensível como uma dimensão empírica. De modo diverso, o filósofo defende que os paradigmas são sensíveis somente no meio da sua inteligibilidade. Usando como recurso a expressão “no meio de sua inteligibilidade”, Agamben consegue garantir que o paradigma não se confunda nem com a empiria do sensível nem com a transcendência da ideia. A estratégia agambeniana é ler a relação entre essas duas dimensões a partir das formulações platônicas sobre a coisa mesma. Sobre isso, ele escreve no texto em que analisa a Carta VII: “Poder-se-ia dizer, usando um aparente paradoxo, que a coisa mesma é o que, mesmo transcendendo de algum modo a linguagem, só é possível na linguagem e em virtude da linguagem: a coisa da linguagem, portanto” (AGAMBEN, 2015b, p.13). Agamben se refere a essa relação com a expressão “aparente paradoxo” para sublinhar, justamente, que não se trata de uma relação realmente paradoxal. Ao se referir à coisa mesma como “a coisa da linguagem”, Agamben indica uma relação não pressuponente da linguagem, já que ela não busca uma coisa fora de si, mas se identifica com a dizibilidade, isto é, a própria possibilidade de dizer. Para ele, pensar em um não linguístico que esteja fora da linguagem é operar segundo a lógica da pressuposição, já que é desde a linguagem que se formula e diz o que está fora dela. Nesse sentido, o indizível é uma formulação na linguagem para falar e assim capturar o seu fora. No entanto, se a coisa mesma não é algo fora do dizível, mas a possibilidade mesma de dizer, a linguagem não é compreendida como a tarefa sempre fracassada de dizer o indizível que lhe escapa e nem se submete à lógica da exceção de capturar o seu fora (ex-capere). Enquanto é a exposição da sua possibilidade mesma de dizer, ela suspende e desativa aquilo que é dito para tornar visível a sua própria dizibilidade (AGAMBEN, 2015b, p. 18).

2. A condição pressuponete da tradição e a questão do sujeito

Uma compreensão não pressuponente da linguagem, isto é, a imanência da linguagem, ajuda a entender o significado das figuras paradigmáticas no pensamento agambeniano, sobre as quais ele escreve:

O homo sacer e o campo de concentração, o muselmann e o estado de exceção – como mais recentemente a oikonomía trinitária ou as aclamações – não são hipóteses pelas quais eu pretendia explicar a modernidade, reconduzindo-a a algo como uma causa ou uma origem histórica. Pelo contrário, como a própria multiplicidade delas poderia ter deixado entender, tratava-se sempre de paradigmas, cujo escopo era tornar inteligível uma série de fenômenos, cujo parentesco poderia escapar ou passar despercebido ao olhar do historiador (AGAMBEN, 2019, p. 41-42).

A partir dessa passagem, é possível perceber como uma compreensão não pressuponente da linguagem atravessa as figuras paradigmáticas analisadas por Agamben. Além disso, é possível perceber também que, apesar de o trabalho arqueológico ser inequivocamente histórico, ele não coincide com o trabalho dos historiadores. Essa diferença se evidencia quando se compreende que, diferente dos historiadores, o esforço do arqueólogo não é reconstruir o passado nem dar um sentido narrativo àquilo que a tradição transmitiu e conservou como arquivo. Na arqueologia, o que está em questão é, justamente, a exibição daquilo que a transmissão recalcou. É esse o sentido, por exemplo, da afirmação que Agamben faz na introdução do primeiro volume do projeto Homo sacer, segundo a qual há uma íntima solidariedade entre as democracias e os regimes totalitários. Como figura paradigmática, o campo de concentração exibe como a democracia, identificada com o Estado de direito, indica o direito inalienável de viver ao mesmo tempo em que ele é incessantemente revogável pelas políticas estatais. Essa violência de Estado, justificada sob a crença de que todos os homens são portadores do direito à vida, é a mesma em nome da qual os Estados realizam e realizaram as mais extremas políticas de extermínio. Como afirma textualmente, com a tese de íntima solidariedade entre democracia e totalitarismo, Agamben não tem o intuito de negar as diferenças históricas que existem entre esses regimes, mas sim de exibir a violência que funda e conserva o exercício da soberania em ambos (AGAMBEN, 2010, p. 17-18). Se o trabalho cuidadoso do historiador consiste em mostrar as especificidades jurídicas, políticas e culturais que distinguem as democracias dos regimes totalitários, o trabalho do arqueólogo é suspender essas diferenças para exibir os fundamentos (os pressupostos) sobre os quais elas se sustentam. O campo de concentração como paradigma político exibe o que há de recíproco em ambos: o poder soberano e supremo sobre a vida e, por conseguinte, a absoluta matabilidade sem qualquer sanção jurídica que ele autoriza. O que poderia “passar despercebido" pelo olhar do historiador, é exatamente para o que se volta a arqueologia do presente. A história a que se dedica o arqueólogo é aquela a contrapelo de que fala Benjamin na sétima tese em Sobre o conceito de história. Segundo ela, como corrobora a leitura de Michel Löwy em Walter Benjamin: aviso de incêndio, escovar a história a contrapelo significa se opor àquilo que a tradição transmite violentamente (LÖWY, 2015, p. 74). Nesse sentido, a arqueologia se volta, justamente, para aquilo que a transmissão da tradição ocultou ou, mais precisamente, recalcou.

Seguindo Freud, Agamben sustenta que o recalcamento não é um simples esquecimento de um evento traumático do passado, mas aquilo que no presente é conservado e experienciado unicamente através do seu esquecimento. Sob essa perspectiva, é possível explicar o estranhamento causado pela afirmação segundo a qual as democracias e os regimes totalitários são intimamente solidários: o campo de concentração é algo traumático para a tradição ocidental. A emergência dos regimes totalitários e dos campos de concentração pôs em questão de maneira contundente a Ratio ocidental, fundada sobre a ideia moderna de progresso e esclarecimento: Como em um lugar como a Alemanha, onde havia aparecido alguns dos principais filósofos da Razão, pode surgir um regime de extermínio em massa? Se Agamben mostra pouco crédito em apostas como a de Adorno em Educação após Auschiwtiz, em que a civilização teria o dever de se dedicar à não repetição da barbárie, é porque, para ele, a barbárie não cessou de acontecer. Dessa maneira, a arqueologia exibe: enquanto o campo de concentração for visto como a exceção bárbara à trajetória civilizatória, não se compreenderá o que ainda resta de Auschwitz. Ou seja, enquanto a narrativa sobre o progresso da humanidade vir Auschwitz como um parêntese, um desvio desse percurso evolutivo, não se compreenderá como os mecanismos excepcionais que tornaram os campos de concentração possíveis continuam a fundar a crença na democracia e no progresso. Como afirma Agamben: “[Auschwitz], na verdade, nunca deixou de acontecer, já se está repetindo sempre” (AGAMBEN, 2008, p. 106). Com esse movimento de exibição paradigmática, Agamben, faz uma regressão arqueológica, tal como descreve em Signatura Rerum. Se, por um lado, ele aparenta a arqueologia e a psicanálise porque ambas fazem um tipo de regressão, por outro, Agamben faz questão de precisar que a regressão arqueológica se dá de modo diverso ao da psicanálise freudiana. A esse respeito, ele escreve:

A analogia entre regressão arqueológica e psicanálise mostra-se agora mais clara. Em ambos os casos, trata-se de acessar um passado que não foi vivido e que, portanto, não pode ser definido tecnicamente como “passado”, mas permaneceu, de alguma forma, presente. No esquema freudiano, esse não-passado atesta seu ter-sido por meio de sintomas neuróticos, dos quais a análise se utiliza como um fio de Ariadne para remontar ao evento originário. Na investigação genealógica, o acesso ao passado, que foi encoberto e recalcado pela tradição, se torna possível tão somente pelo paciente trabalho que substitui a busca pela origem pela atenção ao ponto de insurgência (AGAMBEN, 2019, p.146-147).

A regressão arqueológica não busca uma origem para trazer à consciência aquilo que permaneceu esquecido ou inconsciente. Ela se diferencia porque encontra no lugar da origem a insurgência de uma cisão bipolar, como aquela que Adorno faz em Educação após Auschwitz, no qual a palavra “após” marca esse antes e depois. Nessa perspectiva, o trecho citado anteriormente ajuda a compreender de modo mais acurado a estratégia agambeniana: o recalcamento da atualidade de Auschwitz, a sua inexperienciabilidade, aparece de forma latente nas políticas excepcionais dos Estados democráticos, seja nas arbitrariedades das leis antiterrorismo seja nos “abates” promovidos nas favelas do Brasil. Nessa perspectiva, seria possível afirmar que, se se regride arqueologicamente à atualidade de Auschwitz, não é para tomar consciência do que permaneceu esquecido inconscientemente e, assim, descobrir (e pressupor) um gozo antes da cesura promovida por esse evento traumático. Paradigmaticamente, Agamben faz aparecer a emergência mesma dessa distinção, mostrando que não se trata de pensar em algo como um “antes” da cesura. Para ele, essa compreensão de um retorno àquilo que antecedeu a cisão é governada pela pressuposição da cisão como condição originária (AGAMBEN, 2019, p.142-143). De maneira diversa, a arqueologia vai àquilo que se pressupõe como origem para destituí-la, detalhá-la até o ponto de fazê-la perder o seu estatuto originário (AGAMBEN, 2019, p. 146-147). A regressão arqueológica se volta para a ideia de uma superação do campo de concentração, pressuposta como origem, para exibir que o funcionamento excepcional que governou os campos ainda opera nos regimes que acreditam ter superado a barbárie de Auschwitz. Nesse aspecto, uma das definições que Agamben dá à ética aparece com toda a sua força no movimento paradigmático. Para ele, o discurso sobre a ética parte da ideia seguinte: “[...] o homem não é e nem há de ser ou realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico” (AGAMBEN, 2013, p. 13). Por isso, na arqueologia, o paradigma tem um estatuto ético, porque ele abre à possibilidade aquilo que a tradição recalcou e repetiu traumaticamente como a única tarefa possível.

O estatuto ético do paradigma nos ajuda a compreender o sentido da afirmação agambeniana segundo a qual a operação sobre a origem é, ao mesmo tempo, uma operação sobre o sujeito (AGAMBEN, 2019, p. 128). Para ele, o termo “sujeito”, que significa etimologicamente aquilo que subjaz (sub-iectum), ocupa na filosofia moderna um lugar de pressuposto (AGAMBEN, 2019, p. 139). Nesse sentido, ao substituir a busca da origem pelo ponto de insurgência, a arqueologia agambeniana procura depor justamente esse lugar originário dado ao sujeito como fundamento. Por isso, o trabalho arqueológico procura neutralizar os efeitos que essa categoria põe em funcionamento. Mais precisamente, o que interessa a Agamben é exibir o que essa categoria recalcou na medida em que ela foi pressuposta como origem.

Esse tratamento paradigmático à questão do sujeito se vislumbra na discussão que Agamben faz no texto “O que é um dispositivo?”. Nesse texto, ele define como dispositivo: “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p. 40). Essa definição de dispositivo remetida aos seres viventes mostra o movimento paradigmático da argumentação de Agamben, uma vez que, segundo ele, é essa cisão-articulação que dá lugar ao sujeito enquanto tal. Como resto entre as duas dimensões, o sujeito é fruto de uma série de dispositivos históricos e, ao mesmo tempo, ser vivente. Isso significa que a palavra “sujeito” não nomeia somente uma subjetivação que teve lugar em um tempo histórico, mas também a condição ontológica de ser um vivente. Há um movimento paradigmático na medida em que, para Agamben, trata-se de tornar visível a condição excepcional, isto é, separada, fraturada, que atravessou as sucessivas concepções de sujeito na tradição filosófica e política do ocidente. Essa fratura se deve, justamente, à separação da qual o sujeito resulta. Apesar de ter partido das análises foucaultianas, essa perspectiva não se confunde com elas, porque estas, segundo Agamben, não promoveram um confronto com a tradição ontológica iniciada por Aristóteles.

Esse gesto agambeniano de remeter os dispositivos à dimensão ontológico-existencial (isto é, ser um vivente) mostra o seu alcance argumentativo com a noção de dispositivo ontológico. Para compreender a importância dessa noção na crítica que Agamben faz do presente, é fundamental compreender também que, para ele, a cisão ontológica operada por Aristóteles parte do pressuposto de que além de ser, o ser se diz (AGAMBEN, 2017b, p. 143). Com isso, o dispositivo ontológico se define, na leitura que Agamben faz de Aristóteles, pelo fato de o ser se dizer no logos e, por isso, encontrar-se remetido ao fato de que ele existe. Essa remissão se deve ao fato de o dizível evocar a existência pressuposta daquilo de que ele fala. Essa concepção pressuponente da linguagem (isto é, a compreensão de que a sua possibilidade esteja fundada em dizer o que está fora dela), é o que, na argumentação de Agamben, permite a operação aristotélica de dividir o ser em uma ousia primeira e uma ousia segunda. Em suas palavras: “A ousia primeira é o que não se diz sobre a pressuposição de um sujeito nem está em um sujeito, porque ela mesma é o sujeito que é pré-su-posto – como puramente existente – como aquilo que jaz sob toda predicação” (AGAMBEN, 2017b, p. 143). A citação anterior coloca em questão um problema: Por que Agamben usa a palavra “sujeito” para se referir à caracterização aristotélica do ser? Sobre essa questão é possível ler:

Traduzimos hypokeimenon por “sujeito” (sub-iectum). O termo significa etimologicamente “aquilo que jaz embaixo ou no fundo”. Não se trata aqui de mostrar por quais acontecimentos e quais peripécias o hypokeimenon aristotélico se tornará o sujeito da filosofia moderna. Em todo caso, é certo que, pelas traduções latinas, essa passagem de Categorias determinou de maneira decisiva o vocabulário da filosofia ocidental (AGAMBEN, 2017b, p.139).

Apesar de afirmar que não irá explicitar o desenvolvimento histórico que transformou o hypokeimenon na noção de sujeito, surgida na filosofia moderna, Agamben procura evidenciar que a estrutura pressuponente da linguagem confere a ambas as noções uma cisão. Nesse sentido, não é à toa que, em “o que é um dispositivo?”, o filósofo defina o sujeito como aquilo que resta da cisão-articulação entre uma dimensão histórica (os dispositivos) e uma dimensão ontológico-existencial, isto é, o fato de que se vive. Aqui, a simetria entre o modo como os dispositivos se referem aos seres viventes e a estrutura pressuponente da linguagem se explicita: assim como uma determinada concepção de linguagem pressupõe o existente para falar dele, os dispositivos pressupõem os seres viventes para que possam governá-los. Essa simetria se mostra mais explicitamente a partir da hipótese agambeniana segundo a qual a linguagem “talvez [...] [seja] o mais antigo dos dispositivos” (AGAMBEN, 2009, p. 41). Com isso, é possível compreender que Agamben, ao definir o sujeito como aquilo que resta da ação dos dispositivos sobre os viventes, quer marcar o seguinte: uma subjetivação histórica, realizada pelos dispositivos, nunca coincide perfeitamente com o fato existencial de que se vive. Isso significa, por exemplo, que o sujeito de direitos da biopolítica moderna não esgota a sua existência (o seu ser vivente) nessa subjetivação. Nesse caso, pode-se dizer que o dispositivo biopolítico produz como sujeito a subjetivação do cidadão livre e com direito à vida, mas, ao mesmo tempo, esses sujeitos biopolíticos modernos são dessubjetivados dessa subjetivação todas as vezes em que esse direito (considerado inalienável) é revogado pelos agentes da política estatal. Esse jogo entre subjetivação e dessubjetivação é uma estratégia paradigmática de Agamben para tornar pensável uma lida como os dispositivos que não estivesse remetida irrevogavelmente à ação voluntarista de um sujeito tomado como pressuposto, o hypokeimenon, do pensamento filosófico e político. Não se trata, portanto, de pensar em um sujeito capaz de tomar consciência e acabar de uma vez por todas com a determinação histórica que os dispositivos conferiram a ele em uma subjetivação. Como tampouco significa que os estudos agambenianos queiram conferir a essas subjetivações e a esses dispositivos um caráter totalizante. Isso se vislumbra na função da dimensão existencial à qual os dispositivos estão relacionados, que, em sua abertura, reintroduz o ingovernável, inscrito em todo processo de subjetivação, mas que escapa dele. Portanto, no pensamento de Agamben, com a expressão “ingovernável”, ele delimita a proximidade e a distância mantida entre o seu pensamento e o de Foucault.

Estabelecido em torno da noção de ingovernável, esse limite que se apresenta entre o pensamento de Foucault e o de Agamben está articulado à maneira como o filósofo italiano procura desarticular a dialética entre poder e resistência, que, segundo ele, estaria presente nos escritos de Foucault. Nesse sentido, a ideia de uma potência destituinte cumpre um papel fundamental. Sobre esse aspecto dos textos agambenianos, Stefano Marchesoni escreve em “Dell’inappropriabile – Agamben e la deposizione del soggetto”:

[...] o ato de deposição não tem caráter negativo-dialético, mas, em última instância, redentivo-afirmativo. Redentivo porque potencialidades antes inacessíveis se encontram liberadas. E isto vale também quando depostos não são o direito e o dispositivo escolásticos, mas o sujeito. Nas páginas que seguem, tentarei esclarecer como, para Agamben, depor o sujeito não significa querer negá-lo, mas sim expor a inconsistência e, desse modo, desativar a máquina metafísica da qual ele é a articulação decisiva: só desse modo poder-se-á redimir a potência da qual o vivente é separado. Aqui, procurarei mostrar, em suma, como, segundo Agamben, o vivente, finalmente capaz de fazer uso da potência, pode experimentar a si mesmo como “forma-de-vida” (MARCHESONI, 2017, p. 118).

O argumento de Marchesoni acerca do estatuto da destituição/deposição na obra de Agamben ajuda a compreender aquilo que separa o pensamento ético agambeniano daquele que Foucault elaborou nos seus anos derradeiros. Nesse texto, Marchesoni enfatiza a importância de “A vida dos homens infames”, texto escrito por Foucault, na elaboração da noção de forma-de-vida, importância essa que aparece ainda mais explicitamente em outro texto, intitulado “Parrhesia e forma-di-vita: Soggettivazione e desoggettivazione in Michel Foucault e Giorgio Agamben”. Ainda que essa proximidade possa ser atestada, como documentam muito bem ambos os textos, a distância entre Foucault e Agamben no que se refere à relação entre poder e destituição não são tematizadas por Marchesoni. No entanto, ainda assim, essa distância poderia ser preliminarmente formulada a partir do trecho supracitado desse autor, no qual ele opõe um caráter dialético-negativo à dimensão redentora-positiva da potência destituinte. Isso se sustenta nas formulações agambenianas no limiar da primeira parte de O uso dos corpos, no qual Agamben evoca a estratégia argumentativa foucaultiana para mostrar como, segundo ele, ela manteve-se presa à dicotomia do poder-resistência. Acerca da análise de Foucault sobre o sadomasoquismo, Agamben escreve:

Se o sadomasoquismo interessa a Foucault, isso se deve ao fato de ele mostrar que é possível agir sobre tais relações, seja para fluidificá-las e para inverter seus papéis, seja para deslocá-las do plano social para o sexual e corpóreo, utilizando-as para a invenção de novos prazeres. Em todo caso, a relação de poder continua, embora se abra a uma nova dialética, com respeito àquela entre poder e resistência por meio da qual Foucault havia definido a sua estrutura. O horizonte das relações de poder e da governamentalidade continua não só insuperável, mas também, de algum modo, inseparável da ética (AGAMBEN, 2017b, p. 132).

Para Agamben, o estatuto dado por Foucault à governamentalidade no seu pensamento, a insuperabilidade, conferiu à ética uma estrutura inseparável do paradigma da governamentalidade. Essa compreensão se distancia da ideia agambeniana de que o espaço da ética se desenrola em um lugar onde não há tarefas históricas ou biológicas a cumprir, ou seja, naquilo que resta incapturável e ingovernável. Ora, pensar o plano ético como uma prática de governamentalidade significa, em termos agambenianos, não apenas operar por meio da cisão existente entre governantes e governados (ainda que essas posições possam ser reversíveis, como no caso do sadomasoquismo que, na análise foucaultiana, dá um estatuto ético-estético à vida). Essa cisão a que Agamben se reporta aparece quando ele afirma:

[...] enquanto o sujeito conduz e governa “livremente” a si mesmo, ele fatalmente entrará em relações de poder, que consistem em conduzir a conduta dos outros (ou deixar conduzir por outros a própria). Quem “conduzindo” sua vida, se constituiu como sujeito das próprias ações será conduzido por outros sujeitos ou procurará conduzir a outros: a subjetivação em determinada forma de vida é, na mesma medida, o sujeitamento numa relação de poder. A aporia da democracia e de seu governo dos homens – a identidade dos governantes e governados, absolutamente separados e, mesmo assim, também absolutamente unidos em uma relação incindível – é a aporia ontológica, que tem a ver com a constituição do sujeito enquanto tal (AGAMBEN, 2017b, p.130-131).

A citação anterior mostra um limite claro entre a abordagem ética de Agamben e a de Foucault, uma vez que o filósofo italiano, estabelecendo uma correspondência entre a estrutura da governamentalidade e a lógica excepcional da política ocidental, compreende que a dicotomia entre governante e governado, soberano e súdito, é uma marca daquilo que a transmissão da tradição ocidental nos legou. Há aqui uma cisão em que os dois polos nunca se confundem inteiramente e, por isso, podem fazer emergir o sujeito como essa figura da cisão, que circula dialeticamente entre os dois polos. Nesse sentido, para Agamben, o pensamento foucaultiano estaria preso a um movimento dialético que não permitiria pensar a potência destituinte como aquela dimensão ingovernável do gesto ético de tornar inoperosos os dispositivos que capturam e governam os viventes. Ainda que não seja possível tratar aqui a maneira como o filósofo italiano opera com a noção de ingovernável, cabe apontar que é a partir dela que ele pensa não apenas a deposição da soberania do sujeito, bem com a noção de forma-de-vida. Isso significa que tanto uma como a outra têm um estatuto ético no pensamento agambeniano.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. “O que é um dispositivo?”. In: AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auchwitz: O arquivo e a testemunha. Tradução de Selvino J. Assman. São Paulo: Boitempo, 2008.

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. 2ª edição. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Tradução de Cláudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

AGAMBEN, Giorgio. “Aby Warburg e a ciência sem nome”. In: AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento: ensaios e conferências. Tradução de António Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2015a.

AGAMBEN, Giorgio. “A coisa mesma”. In: AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento: ensaios e conferências. Tradução de António Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2015b.

AGAMBEN, Giorgio. “Che cos’è un comando?”. In: AGAMBEN, Giorgio. Creazione e anarchia: l’opera nell’eta dela religione capitalista. Vicenza: Neri Pozza Editore, 2017a.

AGAMBEN, Giorgio. O uso dos corpos. Tradução Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2017b.

AGAMBEN, Giorgio. Signatura rerum: sobre o método. Tradução de Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2019.

LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio – uma leitura das teses “Sobre o conceito de história. São Paulo: Boitempo, 2015. p.74.

MAGALHÃES, Danielle. Quando o céu cair. Rio de Janeiro: 7Letras, 2018.

MARCHESONI, Stefano. “Dell’inapprooriabile. Agamben e la deposizione del soggetto”. In: ORSENIGO, Jole (org.). Figure del soggeto: Eredità, genealogie, destituzioni. Milão: Mimesis Edizioni, 2017. p. 118.

Notas

2. No texto “Che cos’è un comando”, Agamben mostra como a palavra arché significa não apenas origem, mas também comando. A partir disso, ele ainda afirma que o Archon era aquele magistrado que, na Grécia antiga, tinha o poder supremo de legislar. Reconduzindo essa polissemia do étimo arché a um sentido comum, Agamben argumenta que a proximidade entre eles se deve ao fato de que aquilo que começa ou inicia, exerce o poder de comando. Com isso, ele sustenta que aquilo que se pressupõe como origem inicia e, ao mesmo tempo, comanda o destino da tradição que a pressupôs como originária. ao exibir essa proximidade, ele procura neutralizar o destino que a pressuposição de uma origem acaba por comandar. Cf. (AGAMBEN, 2017a, p.103).

3. No diagnóstico que faz da tradição política ocidental, Agamben utiliza a noção de biopolítica, mas, para isso, precisa estender os limites da definição foucaultiana. Enquanto, para Foucault, a palavra “biopolítica” assinala uma especificidade da política na modernidade, Agamben a compreende como uma característica da tradição desde Aristóteles. Ele não afirma, com isso, que não existem diferenças históricas e conceituais entre o modo como os antigos e os modernos compreenderam e compreendem a política, mas sim que há um fundamento solidário entre ambas, o que o leva a concluir que a tradição política é biopolítica. Para chegar a essa conclusão, Agamben abandona a terminologia de Foucault e aponta como fundamento da tradição a separação, isto é, a estrutura da exceção que é consubstancial à biopolítica. Cf. (AGAMBEN, 2010, p. 15)

4. Aqui Agamben chama atenção para a origem etimológica da palavra hipótese, que, em grego (hypóthesis), significa “colocado abaixo como base”. Cf. (AGAMBEN, 2019, p 32)

Notas de autor

1 Doutor(a) em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil, onde também desenvolve a pesquisa de pós-doutorado e integra o laboratório Filosofias do tempo do agora.
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