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. A jardinagem das memórias e o miosótis de um planeta desconhecido: memória e experiência do tempo na hermenêutica narrativista
The gardening of memories and the forget-me-not of an unknown planet: memory and experience of time in narrative hermeneutics
Griot: Revista de Filosofia, vol. 23, núm. 1, pp. 1-27, 2023
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepción: 16 Diciembre 2022

Aprobación: 12 Febrero 2023

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v23i1.3209

Resumo: Trata-se de um estudo comparativo entre as ideias do filósofo Paul Ricoeur (1913 – 2005) e do romancista Milan Kundera (1929-) sobre as experiências do tempo e da memória. Parte-se de uma comparação inicial das ideias de ambos os pensadores acerca dos temas da ipseidade, da História e da experiência do tempo. Em um segundo momento, o pensamento de ambos os autores é colocado em confrontação crítica, em especial no que concerne aos seus respectivos entendimentos sobre a natureza da experiência humana do tempo e os limites da memória. Em seguida, passa-se ao exame das ideias e hipóteses de Kundera sob a luz da hermenêutica filosófica de Ricoeur, com o intento de mostrar que essa é onde essa hermenêutica é mais intensamente desafiada que melhor mostra suas valências filosóficas. Em um último momento, pretende-se mostrar que dessa confrontação crítica resultam interessantes convergências por meio das quais ambos os pensadores oferecem perspectivas similares e complementares para fins do cultivo de uma memória feliz e de uma experiência viva do tempo.

Palavras-chave: Paul Ricoeur, Milan Kundera, Memória feliz, Experiência viva.

Abstract: This is a comparative study between the ideas of the philosopher Paul Ricoeur (1913 – 2005) and the novelist Milan Kundera (1929-) about the experiences of time and memory. It starts with an comparison of the ideas of both thinkers on selfness, history and the experience of time. In a second moment, the thoughts of both are placed in a critical confrontation, especially with regard to their respective understandings of the nature of the human experience of time and the limits of memory. Next, Kundera's ideas and hypotheses are examined in the light of Ricoeur's hermeneutics, with the intention of showing that this is where this hermeneutics is most intensely challenged, which best shows its philosophical valences. Finally, it is intended to show that this confrontation results in interesting convergences through which both thinkers offer similar and complementary perspectives for the purpose of cultivating a happy memory and a living experience of time.

Keywords: Paul Ricoeur, Milan Kundera, Happy memory, Living experience.

Considerações preliminares

Os últimos grandes livros do filósofo Paul Ricoeur testemunham o delineamento de uma vigorosa hermenêutica narrativista do si e da consciência histórica. Convicto de que a prática da narração torna produtivas as perplexidades da experiência individual e coletiva do tempo, Ricoeur tece, entre Tempo e narrativa e O si-mesmo como outro, uma perspectiva filosófica fortemente lastreada por uma preocupação ética, política e mesmo existencial. Com atenção e sensibilidade para as contribuições oriundas da historiografia e da arte do romance, Ricoeur colhe nessas áreas, vizinhas do pensamento filosófico, uma série de elementos que o ajudarão a pensar o mistério do tempo para além das aporias especulativas que invariavelmente se colocam aos filósofos, conforme pode ser observado no percurso pelo pensamento de gigantes como Agostinho, Husserl e Heidegger. É na esteira dessas preocupações que Tempo e narrativa se encerrará com uma proposta de hermenêutica da consciência histórica e O si-mesmo como outro será iniciado com – e se constituirá como – uma proposta de hermenêutica do si. Em todas as duas obras, produzidas e publicadas entre os anos 80 e 90 do século XX, se observará um envolvimento de seu pensamento com o asseguramento de uma consciência do presente vivo da iniciativa, desde a qual seja possível atestar a capacidade para a ação humana tanto no varejo da vida prosaica quanto nas malhas da grande história da humanidade. O pensamento filosófico de Ricoeur, portanto, pretende não só tornar mais nítida a compreensão das condições de possibilidade do agir como também – e sobretudo – inspirar um agir responsável.

A presente reflexão realizará um breve excurso pela obra de um romancista sobre o qual Ricoeur pouco ou nada disse de significativo. Percorrendo os romances e os ensaios de Milan Kundera, pretendo mostrar como tais romances e ensaios renovam os desafios assumidos pela hermenêutica narrativista na época de sua elaboração. Desse modo, o texto se constituirá como um percurso com Kundera por alguns topoi da hermenêutica de Ricoeur. Em um primeiro momento, portanto, será sumariamente apresentada esta hermenêutica no que diz respeito ao modo como são tratados os problemas do tempo, da identidade pessoal e da história em seu interior, em comparação com as ideias do próprio romancista sobre os temas. Em um segundo momento, serão enfatizadas as diferenças entre essas perspectivas, especiaklmente no que concerne aos temas da experiência do tempo e dos limites da memória. Por fim, serão enfatizadas as confluências das ideias dos dois pensadores na direção de um enriquecimento da experiência do tempo tendo por finalidade um asseguramento das condições do que Ricoeur chama de memória feliz.

Tempo, identidade pessoal e história na hermenêutica narrativista

A despeito de sua imensa extensão, Tempo e narrativa não é o que se poderia dizer, com Pierre Bourdieu, uma obra que atesta o intento indisfarçado de se inserir na tradição das grandes sumas nas quais se expõem filosofias sistemáticas e totalizantes2. Pelo contrário: ainda que explore questões secundárias e seus desdobramentos, a reflexão de Ricoeur nessa obra é comandada por uma grande e específica preocupação: apresentar a prática da narração como modo de tornar produtivas as aporias filosóficas do tempo. Dessa imensa reflexão nascem, como conclusões, três novas aporias, relativas aos limites da narração diante de três novos problemas: identidade pessoal, totalização da história e inescrutabilidade do tempo. Vejamos brevemente cada uma delas em detalhe.

A identificação do problema da inescrutabilidade do tempo ao final de Tempo e narrativa atesta, em certo sentido, o trabalho de Sísifo do pensamento filosófico na medida que é precisamente a questão com a qual o texto se inicia. É no pensamento de Santo Agostinho (354 – 430) que Ricoeur identificará perplexidades e aporias que serão frequentemente renovadas sem jamais serem efetivamente superadas em outros momentos da história da filosofia. Nas Confissões, segundo Ricoeur, é possível encontrar “a aporia do ser e do não ser do tempo” (2010a, p. 16), na medida em que tanto a atenção quanto a memória e a expectativa se dão em extensões de um presente triplo. Em suma, o pensamento de Agostinho sobre o tempo demarca uma posição que pouco será avançada, mesmo séculos depois, pelas fenomenologias da consciência íntima do tempo ou da intratemporalidade cotidiana de Edmund Husserl (1857 – 1938) e Martin Heidegger (1889 – 1976), respectivamente. Agostinho e os fenomenólogos, para Ricoeur, demarcam uma posição que, grosso modo, enfatiza a experiência viva do tempo ao mesmo tempo que cria incontornáveis dificuldades de fundamentação do tempo cosmológico ou mesmo do tempo histórico3. A persistência da perplexidade inerente a experiência viva do tempo é o que faz com que uma obra que se inicia sob o signo da convicção de que “o tempo se torna tempo humano na medida em que está articulado de maneira narrativa” (2010a, p. 9) se encerre com a admissão de que “chega portanto um momento, numa obra dedicada à capacidade que a narrativa tem de pôr o tempo em palavras, em que é preciso reconhecer que a narrativa não é tudo e que o tempo se diz também de outro modo, porque, também para a narrativa, ele continua inescrutável” (2010c, p. 460). Na última página do texto, Ricoeur nos diz que se depois do longo percurso de investigação dos limites da narratividade “o tempo parece sair vencedor da luta”, todavia, também nos diz que “é bom que assim seja” pois “não se dirá que o elogio da narrativa reinsuflou dissimuladamente vida à pretensão do sujeito constituinte de dominar o sentido” (p. 463). A admissão da inescrutabilidade do tempo é, nesse sentido, uma vacina contra a hýbris na qual se supõe a possibilidade de domínio sobre o sentido seja pela via do pensar ou do narrar. Se é possível usar uma ideia célebre de Samuel Beckett para pensar o resultado da busca de escrutínio do tempo pela narração, tudo se passa como se a narração, como o pensamento filosófico, também fracassasse diante do tempo inescrutável. A narração, porém, fracassa melhor4.

Aporética também é a noção de identidade narrativa. Considerada por Ricoeur um “rebento frágil da união da história e da ficção” e pensado como uma “categoria da prática” (2010c, p. 418), a ideia de uma identidade pessoal narrativamente concebida “torna-se assim o título de um problema, ao menos tanto quanto de uma solução” (p. 422). A longa elipse da reflexão filosófica pelo território do romance e da historiografia revela, no final de Tempo e narrativa, um sujeito “constituído simultaneamente como leitor e como scriptor de sua própria vida, conforme o desejo de Proust” (p. 419). Nestas páginas derradeiras de Tempo e narrativa, Ricoeur entende que “sem o auxílio da narração, o problema está, de fato, fadado a uma antinomia sem solução” pois “ou se supõe um sujeito idêntico a si mesmo na diversidade de seus estados, ou então se considera, na esteira de Hume e Nietzsche, que esse sujeito idêntico não passa de uma ilusão substancialista” (p. 418). O dilema desaparece, todavia, “se a identidade entendida no sentido de um mesmo (idem) for substituída pela identidade entendida no sentido de um si-mesmo (ipse)” pois “a diferença entre idem e ipse não é outra senão a diferença entre uma identidade substancial ou formal e a identidade narrativa” (p. 419). É com a convicção de que só a narração revela o duplo estrato de ipseidade e mesmidade da identidade pessoal que Ricoeur inicia O si-mesmo como outro, obra na qual a aporia da identidade narrativa será nada menos do que o núcleo de uma reflexão apresentada como uma hermenêutica do si-mesmo. A pessoa que é leitora e escritora de sua própria vida nas páginas finais de Tempo e narrativa reaparece, em O si-mesmo como outro, como um si “que fala, age e é personagem narrador da própria história” (2014, p. 340), em um horizonte antropológico no qual “as histórias vividas por uns estão intricadas nas histórias dos outros” (p. 171) e no qual a elaboração da compreensão em narrativa se articula com “previsões e projetos” desde os quais se estabelece “a seleção dos acontecimentos narrados e as previsões” (p. 172). A narrativa, portanto, torna humana e pessoal uma lista qualquer de qualidades que constitui um caráter e revela a história contraída “no duplo sentido da palavra ‘contração’: abreviação e afetação” (p. 123). Por meio da narração de uma história é possível inscrever na trama de uma identidade não só os projetos perseguidos de maneira mais ou menos solitária mas também um tipo de ato de fala que, por assim dizer, é o próprio paradigma da ipseidade, a saber, a promessa que “expressa uma manutenção de si que não se deixa inscrever, como o caráter, na dimensão do algo em geral, mas unicamente na do quem?” (p. 124). A possibilidade de uma unidade narrativa da vida – exortada por Alasdair MacIntyre (1929-), em Depois da virtude, como condição não só da inteligibilidade mas da dignidade e do valor da vida humana (2001, p. 343-378) – aparece em tintas menos radicais no horizonte da hermenêutica do si. Ricoeur poderia concordar com MacIntyre quando este alega que “as histórias são vividas antes de ser contadas” (2001, p. 356). Todavia, para Ricoeur (2014), há um “caráter evasivo da vida real” que torna “revisável e provisória toda e qualquer figura de enredo” (p. 173). A narração identitária é, portanto, uma trama e a tarefa de tecê-la na medida que, como já afirmava em Tempo e narrativa, é uma identidade que “não cessa de se fazer e de se desfazer” (2010c, p. 422). A abertura para a reelaboração da narrativa identitária, como a aporia da inescrutabilidade do tempo, revela os limites da narratividade diante da vida.

Finalmente, há a aporia da totalização da história. Em grande medida, ela é o resultado do percurso de Ricoeur pela ideia de renunciar a Hegel na direção de uma hermenêutica da consciência histórica, conforme os títulos das duas últimas seções de Tempo e narrativa. Para Ricoeur, “o desmoronamento incrivelmente rápido do hegelianismo é um fato da ordem dos tremores de terra” do qual é impossível dizer “se ele marca uma catástrofe que ainda nos fere ou uma libertação cuja glória não ousamos expressar” (2010c, p. 344). O filósofo francês entende que a perda de prestígio e credibilidade do idealismo alemão e da ideia de uma razão dialética capaz de sincronizar e mediar de forma total a experiência da história é, ela própria, essa perda, “um evento no campo das ideias”, um evento que “é inclusive um fenômeno hermenêutico” e que “inscreve-se na hermenêutica da consciência histórica” (p. 350). Essa hermenêutica, apresentada nas cinquenta últimas páginas que encerram Tempo e narrativa e depois das quais só restam as conclusões aporéticas, é inspirada no pensamento de três autores: Reinhart Koselleck (1923 – 2006), o Hans-Georg Gadamer (1900 – 2002) e Friedrich Nietzsche (1844 – 1900). Em Koselleck, Ricoeur busca o conceito de horizonte de expectativas, desde o qual considera possível “incluir a esperança e o temor, o desejar e o querer, a preocupação, o cálculo racional, a curiosidade, em suma, todas as manifestações privadas ou comuns que visam o futuro” (p. 354). Na medida que o conceito de Koselleck forma par com um outro designado espaço de experiência, Ricoeur encontra em Gadamer subsídio conceitual para pensar “a estrutura mais primitiva do ser-afetado-pelo-passado” que ligará ao “espaço de experiência correlativo do horizonte de expectativas” (p. 369) e por meio do qual escalonará as instâncias da tradicionalidade estrutural da compreensão, das tradições plurais que existem de forma contingente e da tradição específica na qual alguém já sempre está inserido. Finalmente, pensando o presente histórico “sob a égide do conceito de iniciativa” (p. 391) Ricoeur colherá no pensamento de Nietzsche a ideia de que “é da força do presente que procede a força de refigurar o tempo” (p. 406). Armado dessa hermenêutica, Ricoeur enfrentará a aporia da totalização que, sob a luz das pretensões hegelianas de mediação total da consciência histórica, aparece como tarefa na qual não se deve “ceder às fraquezas da nostalgia” mas “desejar a coragem do trabalho de luto” (p. 351). Para Ricoeur o “luto do saber absoluto” nos “reconduz à ideia kantiana” e se torna necessário conceber, nessa chave, “um tempo, uma humanidade, uma história” sem as quais “haveria tão-somente espécies humanas múltiplas e, em última instância, raças diferentes” (p. 436). Em suma, tudo se passa como se a substituição de Hegel por Kant fosse a substituição de uma mediação total por uma versão mais suave dela própria: desejada mas impossível, a mediação total de um singular-coletivo capaz de mediar a sincronização da consciência histórica assume um semblante meramente heurístico, longe da tentação de um fechamento sobre si mesma na forma de saber absoluto.

O percurso pelos grandes temas ricoeurianos que constituem as três aporias de Tempo e narrativa mostram como este autor de (talvez mais de) uma “‘filosofia segunda’” (2014, p. XXXIV) entende certa produtividade na tensão, na aporia e no inacabamento. A dicção do tempo, da ipseidade e da história são apenas alguns dos exemplos passíveis de apresentação nessa chave interpretativa. Todavia, entendo que há uma profunda razão filosófica na qual se fundam essas aberturas e inacabamentos do pensamento ricoeuriano, a saber, a persistência de uma teoria do tempo de inspiração agostiniana em toda a reflexão filosófica de Ricoeur. Seja o próprio tríplice presente agostiniano, seja “a constituição do presente ampliado pela adjunção contínua das retenções e das protensões ao ponto-fonte do presente vivo” (2010c, p. 427) de Husserl, seja o horizonte de expectativas koselleckiano e o preceder-a-si-mesmo do Dasein heideggeriano – que, segundo Ricoeur, “se correspondem, pois, termo a termo” (p. 433) ou seja mesmo a noção gadameriana de horizonte, na qual a koselleckiana de expectativa aparece como um componente do “horizonte do presente” (p. 375) que, conforme as palavras de Gadamer (1977, p. 375), se move conosco e, se movendo, nos escapa, em suma, todas as linhas de alimentação do pensamento ricoeuriano operam em perspectivas nas quais o presente vivo é o locus da compreensão. Diante da vitalidade desse presente, o futuro e o passado parecem indissociáveis e, nesse sentido, são futuro do presente e passado do presente. Retomando o fio da reflexão, tudo se passa como se o tempo, a ipseidade e a consciência histórica fossem tarefas permanentes e permanentemente dadas no presente vivo do pensar e do fazer humanos.

A insustentável leveza do tempo, do eu e da História

Embora não seja um filósofo obcecado com questões teóricas, Kundera pode ser visto como um pensador que persegue questões existenciais por uma via estética. Seu enquadramento enquanto pesador se torna possível desde sua própria concepção da arte do romance. Inspirado em Robert Musil, Kundera frequentemente confessa, em seus ensaios e romances, seu desejo de “escrever sem fabricar um suspense, sem construir uma história e simular sua verossimilhança” em uma perspectiva que compreende o romancista como alguém que não precisa “afastar-se, mesmo que por uma única linha, daquilo que conta para ele, daquilo que o fascina” (2017, p. 168). Como observa em A imortalidade, Kundera lamenta a hegemonia da tensão dramática na tradição romanesca na medida em que esta “transforma tudo, mesmo as mais belas páginas” em uma “simples etapa que leva ao desfecho”, terminando por operar como uma chama que devora a leitura e na qual “o romance se consome como um monte de palha” (1998, p. 234). Essa visão sobre a arte que pratica faz com que Kundera seja frequentemente visto como um praticante de romance filosófico, embora o próprio autor repudie essa designação e prefira se filiar não a filósofos que escreveram narrativas de ficção mas a romancistas que escreveram romances meditativos5.

Assumindo os topoi da hermenêutica narrativista da consciência histórica como espaços de investigação filosófica privilegiada, vejamos agora como elas aparecem concebidas ao longo da obra de Milan Kundera. Segundo Michel Dion (2009, p. 79, tradução minha), também em Kundera os topoi do tempo, da história e da identidade pessoal aparecem trançados e “não podemos entender a essência do self sem considerar a natureza do tempo e da mudança histórica” nem “apreender a natureza do tempo sem olhar para a essência do eu e da mudança histórica ou tampouco “refletir a essência da mudança histórica sem considerar a natureza do eu e a do tempo” porque nos romances de Kundera, “esses três conceitos filosóficos estão interligados”.

Se Ricoeur confia aos poderes da narrativa a humanização do tempo, ironicamente, o romancista confia menos na narração do que o filósofo. Segundo Kundera, “a narrativa é uma lembrança, portanto um resumo, simplificação, abstração” e “o verdadeiro rosto da vida, da prosa da vida, só se encontra no presente” (2006, p. 20). Embora não desenvolva uma teoria do tempo, Kundera oferece, em seus romances e ensaios, reflexões sobre a existência e a arte romanesca desde as quais é possível deduzir uma pequena teoria do tempo. Nos convidando a tentar lembrar do conteúdo exato de um diálogo, Kundera sugere que as falas dos envolvidos na conversa são irrecuperavelmente esquecidas e “o que sobra delas é seu sentido abstrato [...], eventualmente um ou dois detalhes” enquanto “o concreto acústico-visual da situação em toda sua continuidade fica perdido” (2017, p. 134). Há, para Kundera, um gap insuperável entre experiência e lembrança, um gap desde o qual se mostra a verdadeira natureza da experiência do presente. Para o romancista, “o momento presente não se parece com sua lembrança”, que não é “a negação do esquecimento” mas precisamente “uma forma de esquecimento” (p. 135). No limite, para Kundera, o gap entre experiência e memória faz do presente um planeta desconhecido. Diz o romancista:

Podemos manter assiduamente um diário e anotar todos os acontecimentos. Um dia, relendo as notas, compreendemos que elas não são capazes de evocar uma só imagem concreta. E, pior ainda: que a imaginação não é capaz de socorrer nossa memória e de reconstruir o esquecido. Pois o presente, o concreto do presente, como fenômeno a ser examinado, como estrutura, é para nós um planeta desconhecido; não sabemos portanto nem como retê-lo em nossa memória nem como reconstruí-lo pela imaginação. Morremos sem saber que vivemos. (KUNDERA, 2017, p. 135)

Se Kundera é sombrio ao conceber o tempo presente cercado por desfiladeiros nos quais a experiência escoa para o esquecimento, não encontramos opiniões mais luminosas quando o assunto é o topoi da identidade pessoal. É sob a rúbrica de ser “uma das mais belas ilusões europeias” que Kundera se refere a ideia de “unicidade insubstituível do indivíduo” (1988, p. 14). Por meio de exercícios matemáticos de pensamento, Kundera não cessa de enfatizar a falta de singularidade dos indivíduos. “Matematicamente, é impensável”, diz Kundera, que “se nosso planeta viu passar oitenta bilhões de seres humanos [...] cada um deles tenha seu próprio repertório de gestos” (1998, p. 13). Segundo Kundera, essa também é a ideia “tão cômica quanto genial” de Witold Gombrowicz, para quem “o peso de nosso eu [...] depende da quantidade de população no planeta”, o que faz com que “do ponto de vista dessa aritmética, o peso do infinito proustiano, o peso de um eu, da vida interior de um eu, torna-se cada vez mais leve” (1988, p. 31). E o crescimento da população do planeta não é a única ameaça sobre a unicidade de uma identidade pessoal. Segundo Kundera, o deleitoso devaneio com outras vidas possíveis nos leva ao erro de conceber “a situação de nossa vida como um simples cenário, uma circunstância contingente e mutável pela qual passa o ‘eu’ independente e constante” (2006, p. 62). A identidade pessoal é integralmente perpassada de contingência e mesmo a história de uma vida aparece muito menos como uma narrativa com começo, meio e fim do que como “um itinerário; um caminho sinuoso; uma viagem cujas fases sucessivas não são apenas diferentes, mas muitas vezes representam a negação total das fases anteriores” (2017, p. 222). No limite, mesmo o enraizamento terrestre na corporeidade não se sustenta sozinho, segundo Kundera, sem uma teimosa paixão sem a qual a identificação com o próprio corpo se esvai. É graças à essa paixão, diz o romancista, “que não aparecemos a nossos próprios olhos como uma simples variante do protótipo humano, mas como seres dotados de uma essência própria e intransferível” (1998, p. 18). A própria categoria de insustentável leveza que estampa o título de seu mais famoso romance reaparecerá, em A imortalidade, reformulado na reflexão da protagonista que percebe que “o que é insustentável na vida não é ser, mas sim ser seu eu” (1998, p. 253). Há em Kundera, portanto, uma insustentável leveza da ipseidade.

Assim como não é um filósofo, Kundera também não é historiador. Assim, se a Grande Marcha da história moderna é um elemento quase ubíquo em seus romances e ensaios, porém, segundo Kundera, “o romancista não é um valete dos historiadores” e “se a história o fascina, é porque ela é como um projetor que gira em torno da existência humana e lança uma luz sobre ela, sobre suas possibilidades inesperadas que, em tempos tranquilos, quando a história fica imóvel, não se realizam, permanecendo invisíveis e desconhecidas” (2006, p. 67). Mesmo assim, é uma categoria com valência histórica que organiza a atmosfera dos cenários kunderianos, como observado por Maria Veralice Barroso (2013), a saber, a categoria de paradoxos terminais. Assemelhada a ideia de encolhimento do espaço de experiência do historiador Reinhart Koselleck6, a noção de paradoxos terminais dos tempos modernos designa o modo como as possibilidades existenciais passam por um processo de inversão de sinal do início da modernidade até o século XX. Categorias como aventura, futuro, crime, cômico, público, privado e solidão aparecem, nos romances de Musil, Broch e Kafka com sinais invertidos relativamente ao modo como apareciam nas obras de Rabelais e Cervantes, uma inversão de sinal que “somente um romance pode descobrir” (1988, p. 16). Entre as descobertas romanescas se inclui, por exemplo, a consciência de que, nó século XIX, “algo de essencial mudou então, e de forma duradoura: a história tornou-se a experiência de cada um e de todos; o homem começou a compreender que não morreria no mesmo mundo em que nascera” (2006, p. 21). Se “a gigantesca vassoura invisível que transforma, desfigura, apaga as paisagens está trabalhando há milênios”, todavia, no período da consciência histórica – que também é o da arte do romance –, segundo Kundera, “seus movimentos, outrora lentos, apenas perceptíveis, aceleraram-se” (2002, p. 47). A própria categoria de mudança histórica foi, para Kundera, no período dos paradoxos terminais, irrecuperavelmente transformada: a mudança mudou e “não significa mais uma nova fase numa evolução contínua [...] mas o deslocamento de um lado para outro, do lado esquerdo para o lado direito, do lado direito para trás, de trás para o lado esquerdo (no sentido dos grandes costureiros inventando o corte da próxima estação)” (1998, p. 118). Nem mesmo as grandes ideologias, conforme o romancista tcheco, permaneceram à salvo e cederam lugar à imagologia, isto é, uma administração de gestos e performances vazias que “organiza por si mesma a alternância pacífica de seus sistemas no ritmo alegre das estações” (1998, p. 117). Para o romancista “o reino da imagologia começa ali, onde a História termina” (p. 118) e onde vigora aquilo que podemos chamar, com o mestre de Kundera, de “kitsch que une os povos” (MUSIL, 1989, p. 739).

De modo muito sumário e orientado pela topografia ricoeuriana, tentei apresentar elementos de uma Weltanschauung romanesca específica de um romancista em particular. Entendo, todavia, que a escolha deste romancista se justifica na medida que esta Weltanschauung emerge de um projeto estético no qual diversos temas e questões da reflexão filosófica ricoeuriana encontram tratamento. Embora nunca tenha existido um diálogo entre os dois pensadores, Jean Greisch (2013) encontra em Kundera uma fórmula que, segundo ele, sumariza o legado filosófico de Ricoeur, a saber, a ideia de uma sabedoria da incerteza. Sem pretender ir tão longe quanto Greisch – embora, também, sem discordar de sua perspectiva – pretendo, agora, inverter a ordem da exploração dos autores e mostrar como essa Weltanschauung kunderiana pode apresentar tensões produtivas para a hermenêutica ricoeuriana. Essas tensões serão estabelecidas nos marcos da exploração, por parte dos autores, dos temas da memória e do esquecimento.

O riso e o esquecimento

No final dos anos 70, Kundera publicou um complexo romance intitulado O livro do riso e do esquecimento. Segundo confissão do próprio romancista, na coletânea de ensaios intitulada Os testamentos traídos, o referido romance foi escrito depois que o romancista já considerara encerrada sua carreira em razão da ocupação russa da República Tcheca e, logo depois, já revira sua consideração depois de emigrar para a França. Segundo Kundera (2017, p. 176), o que antes parecia uma nova coletânea de contos como fora Risíveis amores se lhe revelava, agora, como “um romance em sete partes independentes, porém a tal pondo unidas, que cada uma delas, lida isoladamente, perderia grande parte de seu sentido”, um romance em sete partes cujo “único laço que as mantém juntas, que faz delas um romance, é a unidade dos mesmos temas”. Duas coisas me interessam sobremaneira nas palavras de Kundera sobre seu romance: primeiro, que a unidade de um romance não precisa ser a unidade do enredo, mas do tema; segundo, que é possível enquadrar toda a obra romanesca de Kundera sob a diretriz da unidade temática. Essa percepção também parece perpassar o documentário recentemente realizado sobre Kundera e intitulado From the joke to insignificance, por meio do qual se unem os temas que intitulam tanto seu primeiro romance, A brincadeira, quanto seu mais recente (e talvez último), A festa da insignificância. Seja “o riso e esquecimento” ou “a brincadeira e a insignificância”, a obra de Kundera parece perfeitamente emoldurada na aguda consciência de que a existência humana, com seus dramas existenciais, é perpassada pela atmosfera das incontornáveis efemeridade e frivolidade que se transformam em seus temas centrais. É nessa moldura que o tema da memória, perpassado pela permanente ameaça do esquecimento, comparece como um dos temas mais privilegiados para a confrontação com o pensamento de Ricoeur. Para vivificar esse encontro, passo a uma recapitulação de algumas considerações importantes do filósofo sobre o assunto.

Em A memória, a história, o esquecimento, já no primeiro parágrafo da obra, Ricoeur (2007, p. 17) admite que o tema da memória comparece como lacuna “na problemática de Tempo e narrativa e em Si mesmo como um outro, em que a experiência temporal e a operação narrativa se enfrentam diretamente”, não sem que esse enfrentamento direto seja feito “ao preço de um impase sobre a memória e, pior ainda, sobre o esquecimento, esses níveis intermediários entre tempo e narrativa”. Na última página da obra (p. 513), concluída em versos, vemos o que pode ser uma hierarquia entre as categorias articuladas ao longo da obra, quando o filósofo diz “Sob a história, a memória e o esquecimento / Sob a memória e o esquecimento, a vida / Mas escrever a vida é outra história. / Inacabamento.”. Há portanto, sob o nível das histórias que se narram, uma tarefa de articulação de memória e esquecimento. Sob o nível em que se dá essa articulação, a vida que comparece não só como substantivo mas como adjetivo frequentemente ligado à noção ricoeuriana de experiência, experiência viva, “a experiência pré-verbal” e “que traduz o Erlebnis da fenomenologia husserliana” e que se articula com “o trabalho de linguagem que põe inelutavelmente a fenomenologia no caminho da interpretação e, portanto, da hermenêutica” (p. 43). O nível mais profundo é o próprio lugar do pensamento, o nível da hermenêutica filosófica que, se segundo Gadamer (2012, p. 343), é o nível onde se deve sempre “deixar algo permanecer incerto”, é também o nível do inacabamento característico do pensamento pós-hegeliano, pós-metafísico, pós-dogmático e que, reitero, segundo Jean Greisch (2013), se deixa apreender por meio da fórmula que sumarizaria o legado filosófico de Ricoeur: a sabedoria da incerteza. Tendo tudo isso em mente, o pensamento de Ricoeur sobre a memória 1) se dá no ambiente hermenêutico de uma sabedoria da incerteza e do inacabamento; 2) assume a dificuldade excelsa de, no presente da experiência viva, articular vida e(m) linguagem; 3) admite não desviar do incontornável obstáculo de articular memória e esquecimento e 4) situa esse desafio no plano histórico, no qual a história de alguém se enreda nas histórias de outros indivíduos, grupos, sociedades e, no limite, de uma ideia de humanidade. Entendo que é nesse enquadramento que se deve compreender a alegação do filósofo quando este confessa, no final de A memória, a história, o esquecimento, que “a estrela norteadora” de toda sua “fenomenologia da memória foi a ideia de memória feliz”, do reconhecimento como “pequeno milagre da memória” que “se produz, sob os dedos que folheiam um álbum de fotos, ou quando do encontro inesperado de uma pessoa conhecida, ou quando da evocação silenciosa de um ser ausente ou desaparecido para sempre, escapa o grito: ‘É ela! É ele!’” (p. 502). Segundo Ricoeur,

a atribuição a si do conjunto das lembranças que constituem a identidade frágil de uma vida singular resulta da mediação incessante entre um momento de distanciamento e um momento de apropriação. Preciso poder considerar à distância o palco em que as lembranças do passado são convidadas a comparecer para sentir-me autorizado a considerar sua sequência inteira como minha, como minha possessão. (RICOEUR, 2007, p. 503)

A identidade frágil de uma vida singular, portanto, está completamente fundada sobre a eventual felicidade de uma memória que comparece, ora quando solicitada, ora quando um biscoito mergulhado no chá possa revelar um tesouro de vivências esquecidas e que esperavam pela recordação. Tendo estabelecido isso, o confronto com a perspectiva kunderiana está minimamente preparado. Veja-se o que diz o romancista em uma digressão de A ignorância:

Imagino a emoção de dois seres que se reencontram depois de muitos anos. Outrora se frequentavam e portanto pensavam que estavam ligados pela mesma experiência, pelas mesmas lembranças. As mesmas lembranças? É aqui que começa o mal-entendido: eles não têm as mesmas recordações; ambos retêm do passado duas ou três pequenas situações, mas cada um retêm as suas; suas lembranças não se parecem; não se encontram; e, mesmo quantitativamente, não são comparáveis: um se lembra do outro mais do que este se lembra dele; primeiro porque a capacidade da memória de cada um difere de um indivíduo para o outro (o que ainda seria uma explicação aceitável para cada um deles), e também (e é mais penoso admitir isso) porque eles não têm, um para o outro, a mesma importância. (KUNDERA, 2002, p. 102)

Se o problema da memória era uma lacuna nas obras de Ricoeur em que este coloca ou explora a ideia de identidade narrativa no horizonte de uma antropologia do homem capaz7, Kundera mostra não só que a capacidade de lembrar difere de pessoa para pessoa como, também, que a distinta importância de uma pessoa na história da outra indica a diferença da história de cada um. Ou seja, ainda que Ricoeur (2014, p. 171) esteja correto ao observar que “as histórias vividas por uns estão intricadas nas histórias dos outros”, isto é, que “pedaços inteiros de minha vida” façam parte “da história da vida dos outros, de meus pais, meus amigos, meus companheiros de trabalho e lazer”, todavia, o desencontro das memórias é, conforme nos mostra Kundera, ocasião de uma triste descoberta da memória feliz, a saber, seu caráter eventualmente solitário. Todavia, não é apenas em digressões especulativas que Kundera explora os dissabores da memória feliz. Em O livro do riso e do esquecimento, conhecemos Tamina, uma viúva que se dedica a legítimos exercícios espirituais no intento de não deixar evanescerem as lembranças de seu falecido marido. O resultado desses exercícios, todavia, não poderia ser mais funesto. Lê-se, no romance:

Todo dia ela se dedicava diante dessa fotografia a uma espécie de exercício espiritual: esforçava-se em imaginar o marido e perfil, depois de meio perfil, depois de três quartos. Fazia reviver a linha de seu nariz, de seu queixo, e constatava todo dia com espanto que o esboço imaginário apresentava novos pontos discutíveis em que a memória que desenhava tinha dúvidas.

Durante esses exercícios, ela esforçava-se em evocar a pele e sua cor, e todas as pequenas alterações da epiderme, as verrugas, as protuberâncias, as sardas, as pequenas veias. Era difícil, quase impossível. As cores de que se servia sua memória eram irreais, e com essas cores não havia meio de imitar a pele humana. Ela inventara portanto uma técnica pessoal de rememorar. Quando estava sentada em frente a um homem, servia-se de sua cabeça como um material a esculpir: olhava-a fixamente e refazia em pensamento as formas do rosto, dava-lhe uma cor mais escura, colocava nele as sardas e as verrugas, diminuía as orelhas, coloria os olhos de azul.

Mas todos esses esforços só faziam demonstrar que a imagem do marido lhe fugia irrevogavelmente. No começo da ligação dos dois ele lhe pedira (ele era dez anos mais velho do que ela e já tinha formado uma certa ideia da precariedade da memória humana) para ter um diário e nele anotar para os dois o desenrolar de suas vidas. Ela tinha se rebelado, afirmando que era fazer pouco do amor deles. Ela o amava demais para poder admitir que aquilo que qualificava e inesquecível pudesse ser esquecido. Evidentemente, acabara obedecendo, mas sem entusiasmo. Os diários tinham se ressentido disso; muitas páginas estavam vazias e as anotações, fragmentadas. (KUNDERA, 1987, p. 98-9)

Índice da insignificância, o esquecimento é qualquer coisa como uma força constante8 contra a qual a memória parece fracassar de modo ainda mais especial quando se coloca contra ele em decidido enfrentamento. Tudo se passa como se o esforço de conter o alagamento do esquecimento, que apaga imagens e palavras, fizesse da memória, na melhor das hipóteses, conforme uma expressão cara a Ricoeur (2007, p. 25), “uma província da imaginação”.

Um outro drama possível e observável nos romances de Kundera é o do personagem Rubens, de A imortalidade. Somos apresentados ao personagem Rubens na sexta parte do romance e ao longo dessa parte descobrimos que ele era um coadjuvante inominado da história de Agnes, protagonista do romance. Descobrimos, também, que Rubens, muito cedo em sua vida, interpretou uma coincidência qualquer como sinal do destino e escolheu acreditar que o centro de gravidade de sua vida era, conforme Kundera (1998, p. 276) “não na vida pública, mas na vida particular, não na procura de uma carreira, mas no sucesso com as mulheres”. Em determinado momento de sua aventura, porém, Rubens “sentou diante de uma folha de papel e tentou escrever numa coluna o nome de suas amantes” (p. 305). Percebeu o quanto havia de esquecimento em suas lembranças, nas quais se perdiam frequentemente não só os nomes mas o próprio conteúdo dos episódios eróticos e “pensou em Casanova com inveja”, não de suas proezas eróticas, mas de “sua incomparável memória”, tão diferente da do próprio Rubens que constatará que será para sempre, pelo resto de sua vida, “assombrado por farrapos de lembranças” (p. 306). Rubens percebeu que “a memória não filma, fotografa”, que “sua memória erótica oferecia-lhe um pequeno álbum de fotografias pornográficas”, não mais do que “sete ou oito fotos””, uma quantidade “melancolicamente pequena” de “sete ou oito frações de segundos” de uma vida para a qual se dedicara com “todas as suas forças e talento” (p. 206-7). Depois da morte de Agnes, Rubens não conseguiu mais parar de pensar nela. Enfim, depois de um fracasso sexual com uma amante e assombrado pela imagem de Agnes, Rubens concluiu:

De tudo que vivi, só me ficou uma fotografia. Talvez ela revele o que há de mais íntimo, de mais profundamente escondido na minha vida erótica, aquilo que contém sua própria essência. Talvez só tenha feito amor, nestes últimos tempos, para permitir que essa foto reviva. (KUNDERA, 1998, p. 321)

Nas páginas de A memória, a história, o esquecimento, lemos Ricoeur (2007, p. 450) dizendo que “ninguém pode fazer com que o que não é mais não tenha sido”. Porém, Kundera parece enfatizar dramaticamente os casos em que tudo se passa como se nada jamais tivesse se passado, exibindo uma fileira de casos fictícios nos quais o esquecimento não só assombra como corrói o domínio da memória. Emigrado, o romancista apresenta em sua ficção um rol de personagens exilados (A ignorância é, nesse sentido, um romance exemplar e mais centrado nessa temática do que qualquer outro) por meio dos quais somos levados a aprender que se a memória é uma capacidade, todavia, ela precisa ser transformada em um hábito:

A memória, para que possa funcionar bem, tem necessidade de um treino incessante: se as lembranças não forem evocadas, continuamente, em conversas com amigos, elas desaparecem. Os exilados, reunidos em colônias de compatriotas, contem entre si até a exaustão a mesmas histórias, que, desse modo, se tornam inesquecíveis. Mas aqueles que não frequentam seus compatriotas [...] são inevitavelmente atingidos pela amnésia. Quanto mais forte é a sua nostalgia, mais ela se esvazia de lembranças. [...] Pois a nostalgia não intensifica a atividade da memória, não estimula as lembranças, ela basta a si mesma, à sua própria emoção, tão totalmente absorvida por seu próprio sofrimento. (KUNDERA, 2002, p. 31)

Essa passagem de Kundera nos coloca nas cercanias daquilo que diz Ricoeur (2007, p. 141) quando fala da nossa “relação com os próximos […], essas pessoas que contam para nós e para as quais contamos”. Esses próximos, que para Ricoeur (p. 142) eventualmente “desaprovam minhas ações, mas não minha existência”, dos quais só espero, no mínimo, “que aprovem o que atesto: que posso falar, agir, narrar imputar a mim mesmo a responsabilidade de minhas ações” são “aqueles que me aprovam por existir e cuja existência aprovo na reciprocidade e na igualdade da estima”. As pessoas que vivem no exílio, destituídas das suas próximas, conforme Kundera, descobrem algo que se soma ao próprio esquecimento no front contra a memória feliz, a saber, a nostalgia que, como uma força viva, ocupa o espaço da memória na relação com o próprio passado. A força da nostalgia aparece também em A identidade, nas cartas que Jean-Marc, anonimamente, escreve na tentativa de fazer sua esposa se sentir ainda bonita e desejada. Sob o disfarce do admirador anônimo, Jean-Marc apresenta a metáfora da árvore das possibilidades e diz que “é só por um período curto que se vê a vida assim” já que, depois, “ela aparece como uma estrada imposta de uma vez por todas, como um túnel do qual não se pode sair. No entanto, a antiga imagem da árvore permanece em nós sob a forma de uma indelével nostalgia” (KUNDERA, 2009, p. 55).

Se em sua última grande obra, Percurso do reconhecimento, Ricoeur (2006, p. 126) apresenta o “poder lembrar-se” e o “poder prometer” como duas capacidades antropológicas que sustentam as duas formas da permanência humana no tempo, Kundera também vincula, nas páginas de A ignorância, a capacidade de lembrar com a própria constituição da condição humana. Sua ênfase é, como de praxe, nos limites da memória humana: se fôssemos capazes de reter a totalidade da experiência vivida, seríamos algo muito diferente do humano como o conhecêmos. Nas palavras do romancista:

Posso supor que a memória não guarda senão um milionésimo ou um bilionésimo, em suma, uma parcela ínfima da vida vivida. Isso também faz parte da essência do homem. Se alguém pudesse reter na memória tudo o que viveu, se pudesse a qualquer momento evocar qualquer fragmento do passado que quisesse, não teria nada a ver com os humanos: nem seus amores, nem suas amizades, nem suas raivas, nem sua faculdade de perdoar ou de se vingar se pareceriam com os nossos. (KUNDERA, 2002, p. 100)

Se fôssemos como o memorioso Funes de Borges, portanto, nossa relação com o perdão seria diferente, bem como nossa capacidade de reconhecermos a nós mesmos. Em A cortina, Kundera (2006, p. 138) observa que “quando alguém cita alguma coisa que dissemos numa conversa, nunca nos reconhecemos; nossas afirmações são, na melhor hipótese brutalmente simplificadas, algumas vezes pervertidas (quando se leva a sério a nossa ironia) e muitas vezes” diz o romancista, “não correspondem a nada que já tenhamos dito ou pensado”, com o que “não devemos nos espantar nem indignar”, pois esta é “a evidência das evidências: o homem é separado do seu passado (mesmo do passado de alguns segundos atrás) por tuas forças que entram em ação imediatamente e cooperam entre si: a força do esquecimento (que apaga) e a força da memória (que transforma)”. Limitada, a província da imaginação que é a memória é também um lugar de transformação da vivência em outra coisa, diferente do que foi. Além disso, em Kundera, o esquecimento se vincula com outros elementos e temas como, por exemplo, com o da repetição que evidencia a falta de unicidade de indivíduos que, no cortejo da história de uma vida, repetem os mesmos gestos. Na coletânea de ensaios intitulada Um encontro, Kundera (2013) afirma que “o escândalo da repetição é sempre caridosamente apagado pelo escândalo do esquecimento” (p. 42). Novamente em A ignorância, é em uma reflexão sobre o destino de uma jovem que está conhecendo o amor que Kundera oferece uma das melhores imagens da força da repetição. Diz o romancista, sobre uma jovem ainda inexperiente no amor:

Quando ficar mais velha, ela verá nessas semelhanças uma lastimável uniformidade dos indivíduos (que, para se beijarem, param todos no mesmo lugar, têm o mesmo gosto para se vestir, elogiam a mulher com a mesma metáfora) e uma desanimadora monotonia dos acontecimentos (que são apenas uma eterna repetição do mesmo fato); mas na sua adolescência, ela acolhe essas coincidências como um milagre, ávida por decifrar seus significados. (KUNDERA, 2002, p. 67)

Nesse mundo kunderiano em que tudo se repete, todavia, nada retorna. Isso se evidencia de maneira notória nas célebres páginas iniciais de A insustentável leveza do ser, por meio da interpretação que Kundera (1995) faz do mito do eterno retorno de Nietzsche. Em tais páginas se evidencia a insignificância, que aparecerá no título de seu último romance, e o esquecimento que dissipa o vivido, fazendo com que este pareça que – ou seja como se – jamais tivesse sido. A repetição, em Kundera, é diferente daquela que Ricoeur (2007, p. 82ss) enfrenta por meio de seu recurso ao pensamento de Freud, por meio da comparação entre os ensaios Recordar, repetir, elaborar e Luto e melancolia, nos quais Ricoeur vê uma similitude entre o trabalho de elaboração, por meio do qual se supera a compulsão ao esquecido modo de lembrar que é a repetição, e o trabalho de luto, por meio do qual se supera a paralisante “complacência em relação à tristeza” (p. 91) típica da melancolia. Na obra do romancista, a repetição tem o que chamarei de um estatuto quase-ontológico ou, para pensar mais próximo de Ricoeur, poético. Nas páginas de A imortalidade se lê:

A vida é assim: não se parece com o romance picaresco onde o herói, de capítulo em capítulo, é surpreendido por acontecimentos sempre novos, sem nenhum denominador comum; é parecida com essa composição que os músicos chamam tema com variações. [...] Você não escapará ao seu destino! [...] Você não escapará ao tema de sua vida! Isso quer dizer que será uma quimera tentar implantar no meio de sua vida uma “vida nova”, sem nenhum relacionamento com sua vida precedente, partindo do zero, como se diz. Sua vida será sempre construída com os mesmos materiais, os mesmos tijolos, os mesmos problemas, e o que você poderia considerar no princípio como uma “vida nova” logo aparecerá como uma simples variação do já vivido. [...] Em sua juventude, o homem não está em condições de perceber o tempo como um círculo, mas apenas como um caminho que o conduz direto para horizontes sempre diversos; não percebe ainda que sua vida contém apenas um tema; perceberá isso mais tarde, quando a vida compuser suas primeiras variações. (KUNDERA, 1998, p. 268-9)

Sob a pluralidade das histórias de amor, a mesma biomecânica do coito9. Sob a pluralidade das temporadas existenciais10 de uma existência, uma sequência de variações sobre temas repetitivos. Não é surpreendente que, no mundo de Kundera, o mesmo esquecimento que tudo dissolve na insignificância seja, eventualmente, uma instância libertadora. Em A ignorância, o personagem Josef é agraciado com esse esquecimento libertador. Segundo Kundera (2002), Josef percebe que “à medida que os painéis de sua vida se dissolvem no esquecimento, o homem se desfaz do que não gosta e se sente mais leve, mais livre” (p. 64). Não é por acaso que esse estranho dom conferido pelo esquecimento seja percebido por um personagem que encontrou um amor tão satisfatório que se tornou imune aos assaltos da nostalgia ao constatar que “o amor é a exaltação do tempo presente” (p. 65). Estamos certamente nos reencontrando com o Ricoeur que vê valor no esquecimento em cenários de excessos de memória. Mas também não estamos nos reencontrando com Ricoeur ao acompanhar Kundera na ideia de que o amor é a exaltação do presente​? Todavia, o presente não é, conforme vimos, um planeta desconhecido? É possível habitar um planeta desconhecido? É possível amar em um planeta desconhecido?

O miosótis de uma personagem desconcertante

Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo “esboço” não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro. (KUNDERA, 1995, p. 14)

Essa é uma célebre passagem de A insustentável leveza do ser, romance que Kundera (1988), em sua coletânea de ensaios intitulada A arte do romance, confessa que considerou intitular O planeta da inexperiência. Absolutamente literal, o título designaria esses fatos estruturais da condição humana, a saber, o de que “sai-se da infância sem saber o que é a juventude, casa-se sem saber o que é ser casado” e mesmo “quando entramos na velhice, não sabemos para onde vamos”, o que faz dos velhos “crianças inocentes de sua velhice”, em um mundo no qual se nasce “uma vez por todas” sem que jamais seja possível “recomeçar uma outra vida com as experiências da vida precedente” (p. 118). Uma variação dessa ideia aparece em A imortalidade (1998) quando Agnes, a protagonista, em um momento de devaneio, é visitada em sua imaginação por um visitante de um outro planeta, “um planeta muito distante que ocupa uma importante posição no universo” e que, diante de Agnes e de Paulo, marido de Agnes, lhes avisa que na próxima vida não voltarão para a Terra e parece só ter uma pergunta importante: “nessa próxima vida, vocês querem ficar juntos, ou não querem mais se encontrar?” (p. 45). A primeira parte do romance de Kundera se encerra com a narrativa sobre essa noite que, por meio desse devaneio, Agnes constata que finalmente seria capaz de dizer que não, que na próxima vida, não gostaria de reencontrar seu marido.

A ideia de que o presente seja um planeta desconhecido é apresentada por Kundera. Todavia, penso que é com Ricoeur que compreendemos melhor as razões em função das quais o presente é, afinal, esse planeta desconhecido. Para abordar essa questão, retomo aqui alguns elementos apresentados no início do texto, a saber, os profundos influxos agostinanos no pensamento de Ricoeur. Se esses influxos perpassam a totalidade da reflexão em Tempo e narrativa, é possível constatar que eles permanecem vivos e ativos nas páginas da última grande obra do filósofo, Percurso do reconhecimento. No texto, Ricoeur (2006, p. 132) declara que “não é intenção de Agostinho resolver o enigma do tempo, correndo o risco de fechar sobre si mesmo o triplo presente”, mas sim “abrir o instante para o alto na direção do nunc stans da eternidade divina”, afirmando ainda que “a horizontalidade do tempo, que é tambéma da narrativa, é recortada no presente pela verticalidade da eternidade”. A fidelidade ao pensamento de Agostinho se verifica no enfrentamento que Ricoeur (2010c), em Tempo e narrativa, empreende contra o pensamento do tempo de Heidegger. Além de sugerir uma inversão da hierarquia dos estratos da temporalidade heideggeriana em uma espécie de protesto contra a “perda de autenticidade” (p. 162) do cotidiano prosaico no esquema heideggeriano, orientado por um privilégio da ênfase no futuro, é possível observar que sua hermenêutica da consciência histórica, construída como uma alternativa a Hegel, nas páginas finais da obra (p. 433-4), parece também ter sido especialmente pensada para enfrentar Heidegger. Em tais páginas, Ricoeur reivindica a valorização que encontra em Nietzsche da força do presente e da noção koselleckiana de expectativa. Embora a noção do historiador alemão seja uma categoria metahistórica que designa o futuro, todavia, lemos nas palavras do próprio Koselleck (2006, p. 310) “a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente”. Em verdade, o próprio Ricoeur (2007, p. 312) admite que “o paralelismo entre o par horizonte de expectativa e espaço de experiência e o par presente do futuro e presente do passado é marcante”. Em suma, se na perspectiva heideggeriana o pensamento agostiniano sobre o tempo incide apenas sobre o cotidiano prosaico e ordinário, sobre o menos originário e mais inautêntico dos estratos do tempo, para Ricoeur (2007), esse estrato do tempo tem plena dignidade e importância, já que é ele que é o “presente vivo” (p. 394) no qual “um tempo pode ser considerado oportuno, outro, inoportuno; tempo para fazer ou não fazer” (p. 395). Entendo que esse presente vivo, sempre dado em um espaço de experiência circundado por seus horizontes de memória e expectativa, é precisamente o planeta desconhecido de Kundera. Uma vez mais, em A ignorância, diz o romancista:

Sobre o futuro todo mundo se engana. O homem só pode ter certeza do momento presente. Mas será realmente verdade? Ele pode conhecer verdadeiramente o presente? Será capaz de julgá-lo? Claro que não. Pois como é que aquele que não conhece o futuro pode compreender o sentido do presente? Se não conhecermos o futuro a que o presente nos conduz, como poderemos dizer que esse presente é bom ou mau, que merece nossa adesão, nossa desconfiança ou nossa raiva? (KUNDERA, 2002, p. 115)

No mesmo romance, em uma reflexão que ilustra perfeitamente o que Koselleck chama de horizonte de expectativa, Kundera (2002) conta que o poeta Jan Skácel padecia de uma tristeza infinita em razão da invasão do seu país pelos russos. Skacel queria ir para longe com sua tristeza, erguer uma casa e trancar-se nela por trezentos anos. “Skacel escreveu esses versos nos anos 70 e morreu em 1989, em outubro, portanto, um mês antes que os trezentos anos de tristeza que vira diante de si se dissipassem em poucos dias” (p. 15), diz o romancista tcheco. O que é o futuro, então, se no horizonte de expectativas só parece haver miragens? Segundo Kundera (1995, p. 167), o futuro é um refúgio, pois “muitas vezes nos refugiamos no futuro para escapar do sofrimento”, muitas vezes “imaginamos uma linha na pista do tempo, e pensamos que a partir dessa linha o sofrimento presente deixará de existir”. Uma vez mais, se constata a assombrosa semelhança do olhar kunderiano com o pensamento de Koselleck (2006, p. 311), quando este diz que “a possibilidade de se descobrir o futuro, apesar de os prognósticos serem possível, se depara com um limite absoluto, pois ela não pode ser experimentada”, o que seria ilustrado, segundo o historiador, com a seguinte piada política citada por ele próprio:

– O comunismo já pode ser visto no horizonte –, declara Krutchev em umdiscurso.

Aparte de um ouvinte:

– Camarada Krutchev, o que é horizonte?

– Procure no dicionário –, responde Nikita Serrgeievitch.

Desejoso de esclarecimento, o ouvinte, aochegar em casa, encontra em uma enciclopédia a seguinte explicação: “Horizonte, uma linha imaginária que separa o céu e a Terra, e que se torna mais distante quando dela nos aproximamos. (KOSELLECK, 2006, p. 311)

Em um sentido um pouco menos sofisticado do que o da fenomenologia ricoeuriana, portanto, com Kundera e Koselleck é possível dizer que o futuro é um refúgio situado para além de uma linha imaginária. O planeta desconhecido do presente é, portanto, o campo de experiência coberto por uma distentio animi que se estende para um futuro e um passado que sempre serão presente futuro e presente passado. Para trás, a memória, assombrada pelo esquecimento e pela nostalgia, é uma província da imaginação. Para a frente, a expectativa, dominada pelo desejo de se refugiar em um futuro sem sofrimento, também se transforma em uma província da imaginação. Estará o presente vivo cercado, por todos os lados, de futuros e passados imaginários? Aliás, é realmente necessário que a intencionalidade temporalizante só olhe para a frente ou para trás? Ou é possível olhar para os lados? Penso que esse olhar lateral pode ser encontrado em um autor que desconcerta Ricoeur e inspira Kundera até o ponto de tê-lo transformado em um confesso imitador, a saber, o já mencionado romancista Robert Musil.

É no quarto capítulo do primeiro livro de O homem sem qualidades que Musil (1989) apresenta a tese de que se existe senso de realidade, tem de haver senso de possibilidade, e que esse senso de possibilidade pode, eventualmente, prevalecer sobre o senso de realidade. Em quem prevalece o senso de possibilidade sobre o de realidade, segundo o romancista, tende a prevalecer a consciência de que tudo o que foi “provavelmente também poderia ser de outro modo”, desde sua “capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é”, em uma vida vivida em uma “teia mais sutil, feita de nevoeiro, fantasia, devaneio e condicionais” (p. 14). É verdade que alguém assim pode eventualmente parecer “inconfiável e imprevisível no trato com as pessoas” (p. 15) e que, por isso, Musil aparece como um caso desconcertante para a hermenêutica do si de Ricoeur. Para o filósofo (2014, p 156), “com Robert Musil, por exemplo, O homem sem qualidades – ou mais exatamente sem propriedades (ohne Eigenschaften) – torna-se, em última análise, não identificável, num mundo, como se diz, de qualidades (ou de propriedades) sem homens”. Em Musil, para Ricoeur (2010d, p. 272), “o possível eclipsa tanto o real que ‘o homem sem qualidades’ – em um mundo de qualidades sem homens, diz o autor – se torna, em última instância, inidentificável”.

Se Musil constrange Ricoeur, em A imortalidade, Kundera (1998, p. 53) confessa, em tom autobiográfico, que toma o próprio pulso antes de levantar halteres por medo de “morrer com um halteres na mão, como meu querido autor”, pois isso faria dele “um imitador tão inacreditável, tão frenético, tão fanático” que a “imortalidade risível” estaria a ele garantida. Se o próprio Kundera admite ser um imitador de Musil, não preciso ter melindres em afirmar que A imortalidade é um grande exercício de imitação de – ou, para ser mais preciso, de variação sobre – O homem sem qualidades e Agnes, sua protagonista, é uma variação do Ulrich de Musil. Como em Ulrich, também em Agnes prevalece um agudo senso de possibilidades. Isso se atesta nas incontáveis passagens do romance em que Kundera mostra Agnes entregue ao devaneio. Sendo impraticável a reconstrução e o comentário de cada passagem do romance em que isso ocorre – sendo uma delas a já mencionada fantasia de Agnes com um visitante de outro planeta – passo ao exame da primeira cena de devaneio, na qual é introduzida a imagem da flor que intitula o presente artigo, a saber, a cena em que Agnes imaginou que seria chamada de a doida do miosótis.

Agnes concluiu que seria chamada de doida do miosótis um dia em que, enquanto procurava um lugar para almoçar, foi literalmente atropelada por uma avalanche de feiúra, que lhe atingira por todos os lados. Pessoas comendo hambúrgueres com a boca aberta, na qual a carne se mistura ao refrigerante, calçadas formigando de gente, pessoas horrorosamente vestidas e que se vestiam como se tentassem exibir ao máximo a própria feiúra, algazarra de música vinda das lojas se misturando ao barulho dos carros, dos ônibus, das motocicletas que eram aceleradas com o próprio intuito de fazer ainda mais barulho, transeuntes hostis que esbarram o tempo todo, enfim, uma apoteose de feiúra que fez Agnes se imaginar caminhando pelas ruas de “um mundo que ela deixou de amar” carregando um solitário raminho de miosótis, “segurando-o em frente ao rosto, o olhar fixado nele a fim de nada ver, a não ser esse belo ponto azul” (KUNDERA, 1998, p. 26).

Embora o devaneio de Agnes com sua futura condição de doida do miosótis vislumbre um cenário aparentemente futuro, penso que seja necessário enfatizar minimamente que esse devaneio não guarda nenhuma semelhança com os futuros imaginários que orientam expectativas, projetos e propósitos. Evidentemente, Agnes não deseja se tornar a doida do miosótis. Essa possibilidade não está além da linha imaginária que se coloca diante dela, no horizonte de expectativas. Penso que esse tipo de devaneio é precisamente algo como uma visada lateral ao seu espaço de experiências. Trata-se de um cenário paralelo, no qual ela poderia estar ou chegar, não um cenário que ela quer realizar para poder habitar. A rigor, o drama de estar em um mundo em que não se pode habitar é o próprio drama de Agnes, e o único refúgio que parece difusamente lhe motivar é o de um exílio libertador, no qual ela estaria livre e longe de seus laços e vínculos. Agnes só toma consciência desse propósito depois de uma tarde derradeira, na qual, deitada na relva, ao lado de um rio, em uma legítima experiência mística, Agnes experimenta o peso insustentável de ser um eu. Nas palavras de Kundera:

[Agnes] lembrou-se de um estranho momento [...] quando fora passear pelo campo pela última vez. Chegando perto de um rio, se estendeu na relva. Ficou muito tempo assim, imaginando sentir as águas do rio atravessando-a, levando todo seu sofrimento e toda sujeira: seu eu. Momento estranho, inesquecível: ela havia esquecido seu eu, havia perdido seu eu; e nisso residia a felicidade.

Essa lembrança fez nascer nela um pensamento vago, fugaz, e no entanto tão importante (talvez o mais importante de todos) que Agnes tentou apreendê-lo com palavras:

O que é insustentável na vida não é ser, mas sim ser seu eu. Graças a seu computador, o Criador fez entrar no mundo bilhões de eus, e suas vidas. Mas ao lado de todas essas vidas podemos imaginar um ser mais elementar que existia antes que o Criador começasse a criar, um ser sobre quem ele não exerceu, nem exerce nenhuma influência. Estendida na relva, coberta pelo canto monótono do riacho que levava seu eu, a sujeira do seu eu, Agnes participava desse ser elementar que se manifesta na voz do tempo que corre e no azul do céu; agora sabia que não há nada mais belo.

[...]

Viver, não existe nisso nenhuma felicidade. Viver: carregar pelo mundo seu eu doloroso.

Mas ser, ser é felicidade. Ser: transformar-se em fonte, bacia de pedra na qual o universo cai como uma chuva morna. (KUNDERA, 1998, p. 253)

Dada ao devaneio, Agnes encarna o desejo pela leveza, pela destituição subjetiva de traços identitários, pelo rompimento de laços e vínculos11. Deitada ao lado da relva, Agnes experimenta a doce leveza12 de sua pura ipseidade ou, para usar uma palavra que aparece na última página de A insustentável leveza do ser, o alívio de experimentar a própria liberdade. Como uma descendente distante do Ulrich de Musil, Agnes experimenta a ausência de anseios vorazes, não é domináda por propósitos, não persegue ou deseja nada com obstinação. Pelo contrário: lemos (1998, p. 43) que Agnes era cada vez mais frequentemente invadida por “uma estranha e forte sensação”, a saber, a de que ela não tinha “nada em comum com essas criaturas de duas pernas, a cabeça acima do pescoço, a boca no rosto”. Diferentemente de Ulrich, que flutuava pelos salões trocando de opinião como quem trocava de roupas, Agnes era evasiva nas saunas, desinteressada dos comentários de suas colegas sobre seus maridos ou sobre os programas de televisão que assistiam. Eventualmente, Agnes era literalmente desconcertante. Esperando seu marido para jantar, Agnes folheou uma revista e constatou que “quando você coloca lado a lado a foto de dois rostos diferentes, fica espantado com tudo que os diferencia” mas que “quanto tem diante de si duzentos e vinte e três rostos”, como havia nas páginas da revista, “compreende, de repente, que não vê senão numerosas variantes de um só rosto, e que nenhum indivíduo jamais existiu” (KUNDERA, 1998, p. 36). A constatação é verbalizada para Paulo, que chegara em casa e, ouvindo a esposa, tentava fazer a manutenção do sentido ordinário da unicidade, da singularidade da esposa amada, cujo rosto jamais se confundiria com qualquer outro.

“Imagine que você tenha vivido num mundo em que não existissem espelhos”, sugere Agnes para Paulo, em cujos traços distinguia os da própria sogra, em uma reflexão que se conclui com a constatação de que a primeira vez que alguém se visse em um espelho nesse mundo, esse alguém constataria que não era o próprio rosto. Assim como alguém não é o próprio nome. Passo a palavra para a própria Agnes e transcrevo o que ela disse ao marido:

– Nosso nome, também, vem por acaso […] sem que saibamos quando apareceu no mundo, nem como um nosso desconhecido antepassado o conseguiu. Não compreendemos absolutamente esse nome, não conhecemos sua história, e mesmo assim o usamos com grande fidelidade, nos confundimos com ele, gostamos dele, somos ridiculamente orgulhosos dele, como se o tivéssemos inventado num lance genial de inspiração. Quanto ao rosto, é a mesma coisa. Lembro-me, isso deve ter acontecido no fim de minha infância: de tanto me olhar no espelho, acabei chegado à conclusão de que o que eu via era eu. Tenho uma vaga lembrança dessa época, mas sei que descobrir meu eu deve ter sido inebriante. Mais tarde, porém, chega o momento em que nos olhamos no espelho e dizemos: será que sou eu mesmo? E por quê? Por que devo ser solidário com isso aí? Que me importa esse rosto? E a partir daí tudo começa a desmontar. Tudo começa a desmontar. (KUNDERA, 1998, p. 37)

Agnes desejava, portanto, uma existência longe do lugar no qual as histórias vividas por uns estão intricadas nas histórias dos outros, no qual pedaços inteiros de sua vida fazem parte da história da vida dos outros. Seu pendor para o devaneio, indicador de um forte senso de possibilidades, era também sinal de um desacordo no qual tende a viver uma pura ipseidade instalada em um mundo de qualidades sem pessoas. Nesse mundo, para Agnes, a única maneira de se refugiar no presente lhe pareceu, um dia, em um devaneio, se transformar na doida do miosótis, errando pelas ruas com a atenção fixada em um pequeno ponto azul de beleza.

O presente vivo como densidade e intensificação

Evidentemente, o desejo de existir longe do lugar no qual as histórias vividas por uns estão enredadas nas histórias dos outros não é nem o único nem o mais comum desejo humano. Nesse horizonte menos místico e mais ordinário, tanto Ricoeur quanto Kundera nos oferecem pistas acerca do que seriam experiências privilegiadas do presente. Tendo em mente que o desconhecido planeta do presente não é um instante pontual, tendo a extensão de uma intencionalidade prática que não só integra os instantes cronológicos em segmentos de tempo vivido como também o faz sempre sob a luz de propósitos, desejos, interesses e intenções, entendo que uma forma de tentar assegurar a possibilidade da memória feliz envolve precisamente uma modulação dessa intencionalidade prática. É de Jacques Lacan (1998, p. 439) que tomo emprestada a fórmula por meio da qual penso que seja possível designar com precisão essa intencionalidade. Trata-se de tentar assegurar permanentemente “a história de uma vida vivida como história”. Trata-se de cultivar, portanto, no horizonte de uma antropologia do homem capaz, as condições do poder lembrar. Penso que tais condições passam pela formação de um hábito narrativo por meio do qual possa se tornar óbvia uma compreensão da existência humana que Alasdair MacIntyre (2001, p. 356) lamenta que não seja tão comum e disseminada quanto poderia ser, a saber, a de que “é porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque entendemos nossa própria vida nos termos das narrativas que vivenciamos, que a forma de narrativa é adequada para se entender os atos de outras pessoas” ou, em síntese, a compreensão de que “as histórias são vividas antes de serem contadas”. Também David Carr (2016) permite a ampliação do papel da narrativa na experiência prefigurativa, tal como concebida por Ricoeur, por meio de sua ideia de uma continuidade entre vida e narrativa.

O hábito narrativo de experimentar o cotidiano ordinário por meio da permanente elaboração e reelaboração de arcos de enredo necessita, penso, do suporte de um forte senso de possibilidade, talvez mesmo de uma permissividade ao – ou até um encorajamento do – devaneio. Como observa Ricoeur (2007, p. 41), “as lembranças podem ser tratadas como formas discretas com margens mais ou menos precisas, que se destacam contra aquilo que poderíamos chamar de um fundo memorial, com o qual podemos nos deleitar em estados de devaneio vago”. Penso que o que vale para a lembrança também vale para a expectativa e para o mero devaneio imaginativo: há também um fundo de possíveis contra o qual se destaca a expectativa bem definida e, talvez, um fundo imaginário do qual se destacam os cenários projetados pelo mero devaneio deleitoso.

Todavia, para que esse hábito não produza uma vida desconcertante, na qual o possível eclipse o real até o ponto do impraticável – e para que o devaneio e o senso de possibilidade estabeleçam uma tensão produtiva com o real – é necessário assegurar a dialética entre a ipseidade e a mesmidade, entre as possibilidades e as qualidades, entre as promessas e a memória. Entendo que o devaneio bem conduzido mantém incandescente, no nível daquilo que Ricoeur (2010a, p. 96ss) chamou de prefiguração, a experiência de uma história que poderá, conforme a fórmula lacaniana e o apelo macintyreano, se transformar em história de uma vida (porque esta foi) vivida como história. E se conforme os versos de Ricoeur no final de A memória, a história, o esquecimento, sob a história está a memória e o esquecimento, entendo que a formação do hábito narrativo, mediante o exercício do devaneio com possibilidades, opera como uma verdadeira arte de jardinagem.

A ideia de uma jardinagem de memórias me vem, em primeiro lugar, da expressão “jardim das metáforas”, mencionada por Ricoeur (2006, p. 237), em referência ao Cântico dos Cânticos e de sua “capacidade de significar mais do amor erótico”. Em segundo lugar, me vem de A imortalidade, de Kundera, no qual se vê o duplo drama de Agnes e Rubens. O de Agnes é o simples fato de que ela se imagina doida andando pelas ruas com uma única e pequenina flor nas mãos, refugiada do presente em seu ponto de beleza e vivificação do presente, e de Rubens, cujo miosótis é a única lembrança que tem de um momento erótico com Agnes. Em terceiro lugar, me inspiro nas palavras finais do Cândido, de Voltaire: é preciso cultivar nosso jardim. A memória feliz é feliz porque persiste, não porque seja alegre. Nesse sentido, seja a ação ou a paixão, seja o gozo, o infortúnio ou o devaneio, a existência humana no tempo – a existência que se confunde com a própria temporalização que a um só tempo constitui e é por ela constiuída –, em sua singularidade, fragilidade e precariedade deve poder se assegurar de que não se passe como se o que não é mais não tenha sido. Se estou correto, o asseguramento da experiência da vida como história permite a emergência de picos de significatividade para os quais tanto Ricoeur quanto Kundera possuem duas expressões distintas, a saber, respectivamente, intensificação da experiência do tempo e beleza da súbita densidade da vida.

Considerando que a ideia de um jardim de metáforas é mencionado por Ricoeur no contexto do tratamento do amor erótico no Cântico dos Cânticos, primeiro vou explorar a noção kunderiana de beleza da súbita densidade. Todavia, também Ricoeur (2007, p. 57) percebe que “as lembranças felizes, mais especialmente eróticas, não deixam de mencionar seu lugar singular no passado decorrido, sem que seja esquecida a promessa de repetição que elas encerravam”. Tendo isso em mente, acompanhemos uma vez mais as palavras de Kundera, na primeira parte de seu livro de ensaios intitulado A cortina:

Surgiu a Boêmia libertina de minha juventude: meus amigos proclamavam que não havia experiência mais bela do que ter sucessivamente três mulheres ao longo de um mesmo dia. Não como o resultado mecânico de uma orgia, mas como a aventura individual de aproveitar uma série inesperada de oportunidades, surpresas, súbitas seduções. Esse “dia de três mulheres”, extremamente raro, beirando o sonho, tinha um encanto inebriante que, vejo hoje, não consistia em nenhuma performance sexual esportiva, mas na beleza épica de uma sequência rápida de encontros, em que, comparada àquela que a havia precedido, cada mulher parecia ainda mais única, e os três corpos pareciam três longas notas tocadas cada uma num instrumento diferente, unidas num só acorde. Era uma beleza toda especial, a beleza de uma súbita densidade da vida. (KUNDERA, 2006, p. 25)

É bem verdade que em A insustentável leveza do ser, Kundera (1995), falando do personagem Tomas, que parecia gabar-se de ter vivido momentos de intimidade com “umas duzentas” mulheres – e que se defendia disso dizendo que suas relações com as mulheres “começaram há mais ou menos 25 anos” e que “dividindo duzentos por vinte e cinco, dá mais ou menos oito mulheres por ano”, o que “não é tanto assim” (p. 199) – declara que mesmo que o “milionésimo de diferença” que separa as pessoas só aparece na sexualidade “como coisa preciosa, que não se oferece em público e é preciso conquistar” (p. 201), em A cortina, Kundera (2006) chega ao conceito de beleza da súbita densidade da vida enquanto comenta o quanto o empilhamento de coincidências nas cenas cheias de descrições de Dostoievski cobra seu preço, pois “o romancista quer conservar toda a verossimilhança da prosa da vida, mas a cena fica tão rica em acontecimentos, tão transbordante de coincidências que perde o caráter prosaico e a verossimilhança” (p. 24-5). Todavia, essa “teatralização da cena”, por mais que cobre em verossimilhança, revela que esse acúmulo de coincidências, “quanto acontece em nossa vida – quem poderia negá-lo? –, ele nos deslumbra! Nos encanta! Torna-se inesquecível!”, pois “refletem uma beleza toda especial, beleza muito rara, claro, mas ainda assim real, e que cada um de nós conheceu ou ao menos pressentiu na própria vida” (p. 25). Novamente em A insustentável leveza do ser, em uma digressão, Kundera (1995, p. 58) declara que “o romance não pode [...] ser censurado por seu fascínio pelos encontros misteriosos do acaso” mas, pelo contrário, “podemos, com razão, censurar o homem por ser cego a esses acasos na vida quotidiana, privando assim a vida da sua dimensão de beleza”. Nessa perspectiva, em sua aventura donjuanesca – excelementente explorada por Maria Veralice Barroso (2013) – o Tomas de A insustentável… é bem sucedido onde o Rubens de A imortalidade encontra seu malogro: enquanto este percebe que só guardou consigo uma imagem erótica de uma vida dedicada a isso, aquele percebe, nas palavras de Kundera (1995, p. 201) que “não era, portanto, o desejo do prazer” que o levava aos encontros eróticos, “mas o desejo de apossar-se do mundo” por meio de sua coleção de episódios eróticos e singularidades das amantes.

Para que a beleza de uma súbita densidade da vida compareça como pico de significatividade de uma aventura individual, é preciso que a experiência já se dê em um espaço de pressuposição mínima de enredo, mais ou menos como se encontra nos diários de Antoine Roquentin, protagonista de A náusea. No romance de Sartre (2005, p. 62), o protagonista anota em seus diários que “para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo”, e que “um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que acontece através delas; e procura viver sua vida como se a narrasse”. Ainda que o personagem de Sartre conclua que a narrativização é uma distorção da experiência e que, por isso, é necessário escolher entre viver ou narrar, como bem observa MacInture (2001, p. 360), “é impressionante que, para provar que não existem narrativas verdadeiras, ele [Sartre] próprio escreva uma narrativa”. Roquentin, portanto, está ao menos parcialmente correto: a narrativização da experiência honra e dignifica a banalidade dos dias e das horas nesse planeta desconhecido que é o presente prosaico. Esse domínio do comum e do banal, segundo Kundera (2017, p. 139), é o próprio território da exploração para a qual a arte do romance, mais do tudo, está vocacionada, pois “se o romance é uma arte e não apenas um ‘gênero literário’”, diz o romancista, “é porque a descoberta da prosa é sua missão ontológica, que nenhuma outra arte senão ele mesmo pode assumir inteiramente”. Em um tom quase existencialista, Kundera (2006, p. 17) diz algo que muito bem poderia ter sido dito por um hermeneuta: “a vida humana como tal é uma derrota. A única coisa que nos resta diante dessa inelutável derrota que chamamos vida é tentar compreendê-la. Eis a razão de ser da arte do romance”. Comprometida com a compreensão da prosa da vida, a arte do romance – ou, para usar as palavras do próprio autor, a narrativa de ficção – é, conforme afirmado em várias ocasiões e distintas direções por Ricoeur (2014, p. 114, 155, 169; 2010a, p. 105) um “laboratório” de experiências morais e intelectuais. Evidentemente, não pretendo aqui insinuar que a narrativização da experiência, condição do cultivo dos jardins da memória, exija que alguém se torne escritor de textos de ficção. Todavia, seja na leitura de ficção, no devaneio, na expectativa ou na lembrança, há um jogo livre com as possibilidades no ou além do círculo de horizontes que separam, por uma linha circular imaginária, o planeta desconhecido de nosso presente dos mundos imaginários que o circundam. A narrativização da experiência é condição para que esta seja já-sempre significativa o suficiente para transformar o acaso em súbita beleza de uma densidade, seja esta experimentada no encontro erótico ou no encontro com a eternidade, como ocorre com Santo Agostinho.

Se em Tempo e narrativa Ricoeur (2010a, p. 9) apresenta uma obra que, reitero, cerca de modo hermenêutico a tese de que “o tempo se torna humano na medida em que está articulado de maneira narrativa”, a interpretação ricoeuriana de Agostinho é a interpretação que transforma um pensamento “que, ao tratar do tempo, já não se refere à eternidade a não ser para marcar mais fortemente a deficiência ontológica característica do tempo humano” em uma legítima exortação da possibilidade da “intensificação da experiência do tempo” (p. 14). Se o planeta desconhecido do presente é o espaço de um tríplice presente que drena para si a densidade ontológica do futuro e do passado – e, se estou correto, planifica o futuro adiante de nós e o passado atrás de nós com os mundos imaginários que correm em paralelo ao nosso, acessíveis pelo devaneio e pela ficção – a eternidade, conforme ensina Agostinho, também é uma variação do presente. Em uma nota A memória, a história, o esquecimento, Ricoeur (2007, p. 365), enfatiza o traço do “neoplatonismo cristão”, do “cristianismo platonizante” no qual se situa Agostinho, traço que resulta na percepção de que “nosso presente sofre por não ser o eterno presente”. Esse planeta desconhecido, cercado por uma atmosfera de baixíssima densidade ontológica, todavia, é o lugar, constituído por e constituinte da experiẽncia viva, da Erlebnis e da distentio animi que constituem o tempo e se constituem ao constituí-lo. Sem um enquadramento metafísico ou teológico, a fenomenologia do tempo aborda a eternidade enquanto experiência, mais precisamente enquanto intensificação da experiência do tempo. Conforme observa Ricoeur (2010c, p. 448), nas páginas do último tópico da conclusão de Tempo e narrativa, sobre A aporia da inescrutabilidade do tempo e os limites da narrativa, “pensar um presente sem futuro nem passado” é “pensar o próprio tempo em falta para com essa plenitude, em suma, como rodeado de nada”, experimentando no tempo “a tristeza do finito” enfrentada com o “ímpeto de esperança” que mostra que “a eternidade pode trabalhar de dentro da experiência temporal, para hierarquizá-la em níveis, em vez de abolí-la”. Mais adiante no mesmo texto (p. 460), a humildade filosófica da hermenêutica ricoeuriana diante desse planeta desconhecido admite que “o tempo envolve todas as coisas – inclusive a narrativa que tenta ordená-lo”. Na última página de Tempo e narrativa, Ricoeur (p. 463) dirá que “o mistério do tempo não equivale a um interdito que pesa sobre a linguagem”, mas, pelo contrário, “suscita, antes, a exigência de pensar mais e de dizer de outra forma”. A narrativização da experiência, portanto, pode se deparar com circunstâncias em que o tempo se apresente como o próprio mistério em que se constitui. Em determinadas circunstâncias, portanto, a experiência viva pode se tornar tão vertical quando incandescente. Vertical: a errância dispersa da intencionalidade em seus horizontes é chamada de sua dispersão por uma ipseidade que se sabe em um lugar de tempo vivo, iluminado pelo alto como um palco. Incandescente: a experiência viva do tríplice presente é ainda mais viva, ainda mais intensa, acompanhada de um realce dos contornos da experiência de ser si-mesmo, experiência de enredo nas malhas de temporalidade da qual é constituído um mundo habitável. Em A metáfora viva, Ricoeur (2000, p. 350) se pergunta se não é função da poesia, afinal, “fazer nascer outro mundo”, “um mundo outro que corresponda a outras possibilidades de existir, a possibilidades que sejam os nossos mais próprios possíveis”, um “mundo virtual no qual seria possível habitar”. Penso que o que vale para a poesia, na passagem, também vale para a ficção, para a expectativa e, mais especialmente, no âmbito da presente reflexão, para o devaneio que enriquece a experiência da existência como história e para a memória feliz que, penso, se depreende desse cultivo do jardim das vivências e lembranças. Também penso que iluminados pela noção de intensificação da experiência do tempo, os exemplos de Kundera – uma ocasião de beleza da súbita densidade de uma vida, a experiência de alívio do peso de ser eu “eu” – me parecem exemplos precisos de tipos de experiência do tempo escalonadas por uma hierarquização cuja métrica é o inefável que, verticalmente dirigida pela alto, desafia nossa capacidade de narração, de verbalização, de expressão linguística. Nos picos de significação oportunizados pelas experiências privilegiadas pavimentadas sobre a história de uma vida vivida como história, somos levados às fronteiras da linguagem nas quais o que perdemos em precisão, ganhamos em amplitude, tendo de nos servir de palavras densas de sentido, como amor e ser, mas também como presente, que a felicidade de nossa língua permite que designe simultaneamente o lugar de tempo que é o perpétuo agora e o misterioso dom, recebido do mesmo âmbito insondável no qual a linguagem que oportuniza o dizer deve eventualmente também, com humildade, aprender a silenciar.

Considerações finais

Um dos outros nomes para o miosótis, em português, é não-me-esqueças. No francês em que Milan Kundera reescreveu seu romance originalmente escrito em tcheco, ne m’oubli pas, oportunizando a associação entre beleza e memória que presidiu a presente reflexão, resultando na metáfora do jardim da memória feliz. Passo, finalmente, aos comentários finais acerca de algumas conclusões que parecem se depreender do percurso realizado na presente reflexão.

Se para Kundera a narrativa é lembrança, resumo, simplificação, abstração, e, além disso, se é mesmo o caso de que, como percebeu Rubens, em A imortalidade, a memória não filma, mas apenas fotografa, as forças de apagamento do esquecimento (na qual Ricoeur e Kundera coincidem opiniões) e transformação da memória (na qual as opiniões de Ricoeur e Kundera já não coincidem) clamam não só pela preservação narrativa da memória como, também, pela vivificação narrativa da experiência, por meio da qual está já se dá como história. Entre a condição de memorioso absoluto e paralisado e a ameaça da insignificância que subjaz ao esquecimento, a história – de uma vida vivida como história – é a guardiã da memória feliz. Talvez seja mesmo o caso de se pensar na direção de uma experiência feliz, na qual a experiência viva do presente é sempre mais vertical e incandescente do que uma errância dispersa na sucessão dos instantes. Experiência feliz de uma ipseidade que se sabe habitante de um mundo constituído de uma temporalidade cultivada como história, na qual invisíveis canteiros de não-me-esqueças adornam e dignificam o agora. Diante da insustentável leveza do tempo, da História e da ipseidade em que essas se articulam, portanto, a estrela polar da memória feliz intensifica a experiência do tempo e relembra permanentemente a possibilidade da beleza de uma súbita densidade da vida.

Se eventualmente tudo se passa como se nada jamais tivesse se passado, todavia, o escalonamento da intencionalidade da memória feliz, assentada sobre uma existência narrativizada e caracterizada pelo hábito do cultivo narrativo do próprio jardim de memórias, permite que às vezes tudo se passe como se tudo tivesse se passado ontem ou anteontem. A capacidade imensurável de extensão integradora da distentio animi – da qual Ricoeur (2010c, p. 232) faz depender “tanto a recitação de um poema como a unidade de uma história mais vasta” estendida não só “às dimensões de uma vida inteira” mas, no limite, “até à da história universal” – garante que a narrativa, mesmo que condenada a ser resumo, simplificação, abstração, seja guardiã da memória por meio da qual se garante que ninguém pode fazer com que o que não é mais não tenha sido. A história de uma vida vivida como história, penso, é uma moradia erguida em um planeta desconhecido. Uma moradia em cujos arredores floresce o jardim de não-me-esqueças, cujo perfume nos protege do esquecimento que apaga e da memória que transforma, conforme a convicção de Kundera. Se o romancista tcheco está correto e o que a memória retém não é senão um milionésimo ou um bilionésimo da experiência quantitativamente vivida, isso não depõe contra a ideia de memória feliz, pois esta estrela polar da reflexão ricoeuriana não tem como ideia diretriz, reitero, a produção de um memorioso Funes, completamente paralisado pela memória e pela experiência imensurável de detalhes quantitativos. Narrativizar, não custa lembrar, é estabelecer uma métrica de significatividade por meio da qual se formam picos, vales e platôs de sentido e essa métrica é precisamente a mesma métrica do que conta como digno de memória e narração. Nessa perspectiva, a “nebulosa de ideais e sonhos” que, segundo Ricoeur (2014, p. 195) que ilumina nossas vidas pode ser feita de uma musiliana teia sutil de nevoeiro, fantasia, devaneio e condicionais que caracteriza a prevalência do possível sobre o real.

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SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Tradução e Rita Braga. – 12.ed. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

SENA, Sandro. Nostalgia como Grundbefindlichkeit: para um estudo heideggeriano sobre a existencialidade da velhice. Studia Heideggeriana, 8, 25-49, 2019.

SOUZA, Ana Helena Barboza Bezerra de. “Melhor pior”: sobre a tradução de Company e Worstward ho de Samuel Beckett. Cad. Trad., Florianópolis, no 34, p. 085-100, jul./dez. 2014

STEIN, Ernildo. Antropologia filosófica: questões epistemológicaas. 3. ed. rev. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

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TUGENDHAT, Ernst. Antropologia como filosofia primeira. In: POMMER, Arnildo; FRAGA, Paulo Denisar; SCHNEIDER, Paulo Rudi. Filosofia e crítica – Festchrift dos 50 anos do Curso de Filosofia da UNIJUÍ. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007, p. 183-200.

Notas

2 Penso aqui especialmente no comentário de Bourdieu sobre O ser e o nada, de Jean-Paul Sartre, apresentado em As regras da arte (1996, p. 240).

3 A rigor, no caso específico de Heidegger, Ricoeur enfatiza as incontornáveis dificuldades de que sua concepção de historicidade produz em termos de estabelecimento de uma epistemologia da história. Vale ressaltar que também no campo da teoria da história essa dificuldade é reconhecida: Reinhart Koselleck (1923 – 2006) considera a historicidade heideggeriana estreita e insuficiente para uma teoria da história capaz de elucidar as condições de possibilidade das historias possíveis. (cf. RICOEUR, 2007, p. 364ss; KOSELLECK, 2014, 278ss).

4 A tradução de Ana Helena Barbosa Bezerra de Souza do texto de Beckett para o português faz a opção de traduzir o célebre adágio beckettiano da seguinte maneira: “Nunca tentado. Nunca falhado. Não importa. Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor” (BECKETT, 2012, p. 65). A própria autora, porém, admite que a opção foi feita por razões de sonoridade (SOUZA, 2014, p. 98). Mantenho aqui a versão que circula publicamente de maneira mais conhecida.

5 Em diversos momentos de suas obras Kundera faz referências laudatórias a Robert Musil e Hermann Broch como romancistas que souberam usar a meditação sem fazer do romance uma vulgata do pensamento filosófico. Kundera parece ter especial antipatia pelo romance existencialista de Sartre e Camus, preferindo trata-los como escritores e não romancistas – chegando a dizer que A peste de Camus resume tudo o que ele não gosta em um romance. A concepção que Kundera tem de romance é bastante restritiva e nela não há espaço nem para biografia romanceada, nem para a filosofia romanceada ou para o panfleto político romanceado, como é, para ele, o caso do 1984 de George Orwell.

6 A ideia, já mencionada em razão de sua apropriação por parte de Ricoeur, é introduzida por Koselleck (2006, p. 305ss). De modo sucinto, a experiência histórica propriamente histórica coincide com a modernidade que se inicia, para o historiador, no final do século XVIII. O espaço de experiência moderno encolhe porque, durante a modernidade, a fonte de inspiração dos projetos humanos deixa de ser o reservatório de narrativas do passado e da tradição e passa a ser as imagens de um futuro totalmente novo, construído sobre a convicção do progresso histórico. Orientando suas expectativas para o futuro cada vez mais distante, índivíduos e grupos experimentaram o crescente encolhimento do espaço de experiência, isto é, do passado presente no presente. Brincando com o título de um romance de Kundera (1991) – A vida está em outro lugar – a experiência histórica moderna foi perpassada pela consciência de que a verdadeira vida também estava em outro lugar, no futuro. Essa reorientação da ênfase do passado para a ênfase no futuro é narrada de modo mais detalhado por Koselleck (1999) em Crítica e crise.

7 Tomo de empréstimo a expressão do professor Tomás Moratalla, para quem a obra de Ricoeur se constitui como um capítulo na história das antropologias filosóficas. Vale mencionar que a ideia de antropologia como filosofia primeira vem sendo fomentada, nas últimas décadas, por autores como Ernst Tugendhat (2006) e Ernildo Stein (2018). É de se pensar que se Ricoeur, conforme alega nas primeiras páginas de O si-mesmo como outro, vê a si próprio como alguém que opera em um estrato de filosofia segunda, talvez seja o caso de supor que desde a queda do idealismo alemão estamos, conforme observado por Stein (1996), libertos das ontologias. O constrangimento de Ricoeur (2014) ao se perguntar, no último estudo de O si-mesmo como um outro, sobre a legitimidade do pensamento ontológico em pleno fin de siècle parece sugerir, afinal, que a única filosofia primeira ainda digna de crédito é, afinal, uma filosofia segunda.

8 Penso aqui especialmente na definição psicanalítica do conceito de pulsão, concebido como uma força constante que volta a pressionar a consciência tão logo suas exigências sejam satisfeitas pelo sujeito. Da mesma forma, o esquecimento atuaria com força constante sobre a memória, voltando ao seu trabalho tão logo a intencionalidade que lembra se modulasse em outra atitude intencional. Conforme tentarei mostrar, é o que o romance de Kundera apresenta ao sugerir que a memória tem um efeito transformador sobre si mesma e que a nostalgia não se confunde com a memória, se constituindo na verdade em suas antípodas, como uma força autônoma que se compraz em si mesma e cuja intencionalidade parece incompatível com o que Ricoeur considera uma memória feliz.

9 Por mais que só se encontrem em determinados domínios da investigação historiográfica e romanesca, as ideias de Koselleck e Kundera frequentemente parecem intercambiáveis. Essa assimetria entre o caráter plural e virtualmente imensurável das histórias de amor e o estreito conjunto de possibilidades biomecânicas do coito é levantada por Koselleck (2021, p. 55ss) em um dos ensaios publicados sob o título de Uma latente filosofia do tempo. Adiante será possível notar como essa repetitiva biomecânica sexual será posta a serviço do que Kundera chamará de beleza de uma súbita densidade da vida. Aproveito para comentar que o estilo ensaístico, digressivo e francamente teórico do historiador e do romancista faz com que ambos sejam considerados filósofos, título que ambos recusam resolutamente. Admitindo que o romance tem uma missão ontológica – e que “não é mau” (1988, p. 34) o adjetivo “fenomenológico” para seu estilo –, todavia, Kundera se pretende integralmente romancista. No caso de Koselleck, embora o volume organizado por Thamara Rodrigues e Hans Gumbrecht pretenda ser uma seleção de textos da qual se depreende uma latente filosofia do tempo, há um conhecido – e publicado em dois capítulos de Estratos do tempo – debate de Koselleck (2014) com seu mestre, Gadamer, sobre a autonomia da teoria da história diante da pretensão englobante da hermenêutica filosófica.

10 Tomo de emprestiimo a expressão de Sandro Sena (2019, p. 28), utilizada em seu artigo intitulado Nostalgia como Grundbefindlichkeit: para um estudo heideggeriano sobre a existencialidade da velhice. Admitindo que a ideia de algo como temporadas existenciais permitiria um enquadramento propriamente fenomenológico-hermenêutico e ontológico-existencial do que se chama comumente de “fases da vida”, entendo também a pertinência de uma articulação entre a ideia de temporadas existenciais com a noção ricoeuriana de identidade narrativa. Aproveito a ocasião para saudar o professor Sena, com quem tive a felicidade de me encontrar pessoalmente no XVII Colóquio Heidegger, realizado na Unversidade do Estado do Rio de Janeiro em novembro de 2022.

11 É relativamente consensual, na fortuna crítica dos comentários sobre a obra do romancista tcheco, que não só A imortalidade é o romance no qual Kundera realiza de forma mais bem sucedida seu projeto estético como, além disso, Agnes é a personagem mais importante. Em O livro da imitação e do desejo, Trevor Merrill (2016) faz uma varredura exaustiva da obra de Kundera, orientado pela hipótese de que a obra, assim como as análisadas por René Girard (2009) em Mentira romântica e verdade romanesca, exibe exemplarmente o funcionamento do desejo mimético tal como concebido e apresentado nesta obra. Nessa direção, Agnes é a personagem que encarna a vitória sobre esse desejo imitativo e cujo funcionamento, segundo Girard, estruturaria as subjetividades e as relações sociais. Ainda mais impressionante é que essa cena de Agnes em A imortalidade tenha sido considerada o centro gravitacional de toda a obra de Kundera, conforme a hipótese de François Ricard (2003), em Le dernier après-midi d'Agnès.

12 Se Agnes experimenta o peso insustentável de ser seu eu, em A insustentável leveza do ser, Kundera (1995, p. 36) fala da doce leveza experimentada por Tomas, que “vivera acorrentado a Tereza durante sete anos”, a companheira que “havia seguido com o olhar todos os seus passos”. No final do romance, já reconciliado com Tereza mas, dessa vez, vivendo como camponês no interior, longe da vida urbana e de sua profissão de médico, diante de um assalto de sentimento de culpa de Tereza – que se considerava culpada por Tomas ter abandonado sua missão de médico e ter descido “tão baixo” (p. 313) – responderá que missão “é uma palavra idiota”, que “é um alívio imenso perceber que somos livres, que não temos missão” (p. 314). Não quero nem posso, por razões de espaço, desenvolver (mais) esse tema aqui, mas Agnes e Tomas parecem, nos desfechos das narrativas, representar uma vitória da ipseidade sobre a mesmidade se considerarmos que sob esta cai aquilo que, em Percurso do reconhecimento, Ricoeur (2006, p. 141) chamara de “traço desagradável de obstinação”. Conforme Ricoeur (p. 145), há uma distância entre a manutenção de si e a “‘constância’ de uma vontade obstinada”. Merrill (2016) observa a recorrência do tema dos exílios libertadores nos romances de Kundera. Com Agnes e Tomas, tudo se passa como se seus percursos de reconhecimento de si próprios os levassem a constatar, com cansaço, a futilidade dos projetos, promessas e vínculos pelos quais, por muito tempo, definiram e compreenderam a si mesmos.

Notas de autor

1 Doutor(a) em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria – RS, Brasil.


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