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Sartre leitor de Hegel: avaliação da história nos Cadernos para uma moral
Hamilton Cezar Gomes Gondim
Hamilton Cezar Gomes Gondim
Sartre leitor de Hegel: avaliação da história nos Cadernos para uma moral
Sartre Hegel reader: evaluation of history in the Notebooks for an ethics
Griot: Revista de Filosofia, vol. 23, núm. 1, pp. 101-119, 2023
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: Sartre, na obra os Cadernos para uma moral (1947-1948), apresenta apontamentos sobre a dimensão da história que começa a se desenvolver inicialmente no interior de sua reflexão moral. Sartre, entretanto, não tem uma versão finalizada de sua teoria da história, vinculando sua reflexão a uma comparação e crítica da filosofia da história hegeliana e do materialismo histórico marxiano. Objetivamos neste artigo analisar a crítica sartriana à Hegel nos Cadernos para uma moral sobre a história, mostrando um esboço das noções iniciais de Sartre sobre a história. Sartre se utiliza amplamente de uma crítica à possibilidade de dialética hegeliana, questionando a dimensão desse movimento do real como verdadeiro. É analisada a idealização desse movimento na dialética do senhor e do escravo em obras como Fenomenologia do Espírito (1807) e se tematiza sobre a noção de totalidade da história. Sartre indicia a partir dessa crítica uma noção própria de história vinculada a uma totalidade destotalizada e um devir histórica centralizado na liberdade.

Palavras-chave: História, Dialética, Fenomenologia.

Abstract: Sartre, in the work Notebooks for an Ethics (1947-1948), presents notes on the dimension of history that begins to develop initially within his moral reflection. Sartre, however, does not have a finalized version of his theory of history, linking his reflection to a comparison and critique of Hegel's philosophy of history and Marxian historical materialism. The aim of this article is to analyze Sartre's critique of Hegel in the Notebooks for an Ethics about history, showing an outline of Sartre's initial views on history. Sartre makes extensive use of a critique of the possibility of Hegelian dialectics, questioning the dimension of this movement of the real as true. It analyzes the idealization of this movement in the dialectic of the master and the slave in works such as Phenomenology of the Spirit (1807) and discusses the notion of the totality of history. Sartre suggests, based on this critique, his own notion of history linked to a de-totalized totality and a historical becoming centered on freedom.

Keywords: History, Dialectics, Phenomenology.

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Sartre leitor de Hegel: avaliação da história nos Cadernos para uma moral

Sartre Hegel reader: evaluation of history in the Notebooks for an ethics

Hamilton Cezar Gomes Gondim1
Universidade Federal de Goiás, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 23, núm. 1, pp. 101-119, 2023
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepción: 20 Diciembre 2022

Aprobación: 13 Febrero 2023

1. A História e o problema moral sartriano

Sartre nos Cadernos para uma moral(1947-1948), propõe sua compreensão de história em relação com a moral. Temos que observar que essa compreensão de história está ainda em desenvolvimento no percurso intelectual de Sartre até a maturidade, e, embora tenha já alguns conceitos próprios, se caracteriza por uma tentativa de distanciamento e avaliação da perspectiva histórica de Marx e Hegel principalmente. Abordaremos nesse artigo a tentativa de distanciamento da noção de história de Sartre em relação a Hegel nos Cadernos para uma moral. Sartre deixa claro que a aparição da consciência ou do Para-si no mundo é situado num contexto histórico, de modo que a questão da moral deve também ser vinculada à História, mas não em um relativismo, e sim em um modo de agir que se vincule ao próprio fundamento comum ontológico do homem enquanto livre: “A ontologia existencialista é em si histórica. Há um evento primário, ou seja, o aparecimento do Para-si pela nadificação do ser. A moralidade deve ser histórica, ou seja, encontrar o universal na História e recuperá-lo na História” (SARTRE, 1983, p.14). Os Cadernos para uma moral, enquanto um texto abandonado por Sartre, se encontram em um ponto de incompletude: a noção de história não está bem estabelecida ao mesmo tempo que Sartre cada vez mais avalia uma moral que necessita do histórico para se fundar.

Apesar dessa construção em desenvolvimento acerca do histórico, Sartre trata de uma relação íntima entre moral e história quando pensa numa conversão2 nos termos de mudança ao modo como se trata o outro. A história só pode ser modificada enquanto deixarmos uma história de repetição e de encobrimento da liberdade e se agimos todos numa consideração autêntica sobre a própria liberdade e a liberdade alheia. Só há mudança histórica com esta irrupção da liberdade nos acontecimentos e no modo como lidamos com os demais. A moral também enquanto liberdade atuante é ciente de sua dimensão de trazer novidade ao mundo e só pode ser exercida sobre uma compreensão da situação a par de suas possibilidades e condicionantes: “Daí o problema: História ↔ moral. História implica a moral (sem conversão universal, sem consequências para evolução ou revoluções). A moral implica a História (nenhuma moralidade é possível sem ação sistemática sobre a situação)” (SARTRE, 1983, p.487). Sartre indicia nessa sentença uma demanda quanto à necessidade de conversão ampla para abandonar uma história marcada pelo espírito de seriedade3, frisando a impossibilidade de uma sociedade mais livre que não seja aderida por todos e também a necessidade de se conhecer quais os valores estabelecidos que permeiam o momento histórico para bem avaliar a situação.

Para Sartre a descoberta da história é ela mesma um “fator histórico” (SARTRE,1983, p.38) na medida em que na Antiguidade e na Idade Média a história é encontrada em segundo plano frente à concepção de eternidade ou modalidades cíclicas de temporalidade, para os modernos no século XVIII era um vislumbre do presente vinculado ao passado, num progresso, e no século XIX a perspectiva de história com concepções como a de dialética são novas compreensões sobre o tema que afetam o modo como o homem se vê e age na sua sociedade.

Para Sartre a perda da noção de Deus, com o processo de laicização, gera a perda do que ele chama de “testemunha absoluta” (SARTRE,1983,p.91). Com Deus e outras narrativas os homens tentaram encontrar sua referência para captar a si sem perspectivismo, com neutralidade, como se houvesse uma figura exterior às suas próprias ações para julgar. A tentativa de captar a própria época “com os olhos da época seguinte” (SARTRE,983,p.91), ainda são um resquício de buscar tal referência externa. Sartre sublinha o erro deste modo de pensar e propõe que o homem deve aceitar que age e decide na sua época, no interior dela e que, assim, é um agente histórico e não alguém que age sob a vigilância de um juiz imparcial. Sartre expõe que, entretanto, “Deus ainda está presente na História” (SARTRE,1983, p.92) na medida em que sobrevive esta ideia de uma testemunha e narrativa absoluta que Sartre chama de “mito da história” (SARTE,1983, p.92). O mito da história mais elaborado seria a ideia de uma consciência/espírito que dá unidade aos eventos históricos, retomando os atos anteriores dos agentes, ainda que feitos na ignorância, e recaptando-os como saber. Esta consciência é a própria causa e desdobramento dos eventos históricos, se autoafetando neste desenvolvimento e conservando/enriquecendo-se com atos passados, apesar de superá-los numa nova situação. O mito da história que toma consciência de si é correlato à descrição hegeliana de um espírito ou saber. Mas, no geral, Sartre expõe que quando se tenta captar a História como um todo, ou ainda, um dado agente histórico tenta controlar a significação do seu atos e dos atos dos outros que foram exteriorizados, de modo a definir não só o que ocorreu, mas também o que ocorrerá, há o mito da história. E este mito da história, sendo crível e compartilhado socialmente, influencia o modo como os agentes históricos lidam com as situações contemporâneas: “transformação da ideia de História (invenção subjetiva) em mito da História. Presença na História do mito da História. Substantificação do futuro. Atitude dupla contraditória: sentido absoluto da História pela substantificação do futuro – historicidade do mito da História” (SARTRE, 1983, p.56). Este mito, com variações, faz parte da história moderna e molda o próprio fazer histórico real dos agentes de uma época. Este mito substantifica o futuro porque já o predetermina e o finaliza numa visão de totalidade em vias de realização.

Mas para Sartre não há esse espírito que engloba ou totaliza os eventos, mas consciências diversas que fazem sínteses do real e vivem na ignorância do seu tempo quanto a realização dos seus projetos e se suas compreensões de mundo se perpetuará. Já o mito da história tem uma proposta essencial “que o ultrapassamento conserva e salva” (SARTRE,1983,p.92), isto é, que esse espírito ou consciência histórica mantém os feitos dos agentes, mas seu enriquecimento em saber justifica eventuais tragédias ou acidentes, precariedade de situação pelo ultrapassamento e síntese ulterior dos acontecimentos na forma de saber ligado a uma próxima época.

Mas para entendermos mais adequadamente o que é a história em Sartre em contraponto a esse mito, começamos com a dimensão mais elementar dela: o fato histórico ou o evento histórico. Sartre frisa que o fato histórico é “ nem objetivo, nem subjetivo” (SARTRE,1983, p.45). Ele é finito enquanto passado que não atua mais, e neste sentido há uma dimensão de objetividade. Mas, na medida que os fatos históricos são vividos e interpretados pelos sujeitos, eles se mantêm abertos às formas de recapturação e ressignificação pelo número de consciências viventes. Essas consciências que vivem e ressignificam o que ocorreu não podem sair do campo histórico, sendo elas mesmas agentes da história: “Porque o fato histórico é um acontecimento da subjetividade humana. O julgamento faz parte da coisa julgada, o experimentador da consciência” (SARTRE,1983, p.46).

Uma das características do fato4 ou evento histórico é que a sua reflexão bem como a ambiguidade do sentido deste fato são constitutivos dele mesmo. Não há como se neutralizar de uma perspectiva, o que daria uma objetividade plena, pois o homem age ao interpretar o fato histórico: “perpétuo falso recuo de cada consciência, dando uma pseudo-objetividade ao fato. Mas esta objetividade mesma é retomada como ação no fato. É uma característica interna de ser pseudo- objeto” (SARTRE,1983, p.45). É um pseudo-objeto porque não há uma exterioridade ou opacidade completa ao fato histórico, ela é conectada ao indivíduo que vivencia ou interpreta.

Sartre trata do processo de retomada perpétua do evento histórico tendo uma ambivalência enquanto atividade e passividade ao mesmo tempo:

É necessário que ele [o evento histórico] seja retomado. Se nós retomamos a descrição do fato histórico, não vemos que ele é de uma parte atividade por inteiro: cada consciência é agente da História, ela historiciza. Mas de outra parte ela por inteiro passividade: cada consciência observa roubarem as consequências de seus atos por outras consciências e age na ignorância; cada ato é proposição, então estabilizada, passiva, aberta. Cada fato histórico se fecha então nele mesmo a inércia da exteriorização da natureza ao mesmo tempo que ele é perpetuamente exteriorização ativa (SARTRE,1983, p.43).

O fato histórico teria uma inércia, um peso ao qual, ao se exteriorizar, marca o mundo como já tendo sido. Por outro lado, sendo o fato histórico essa exteriorização, é ele também exteriorização para outras consciências que se enriquecem e vivem a partir do que é feito anteriormente, compondo uma nova situação. De um lado há uma dimensão de determinismo da situação do fato histórico, por outro enquanto situação enriquecida: “ […] o fato histórico é sempre esperança, renovação da esperança, garantia de esperança, na medida que ele é invenção a partir de …” (SARTRE, 1983, p.43).

Este aspecto de retomada do fato histórico pode dar uma falsa representação de dialética ou progresso no transcorrer dos eventos históricos. Isto porque o outro retomaria a situação a partir da consciência anterior, dando uma impressão de continuidade ou necessidade lógica em consequência ao que veio antes. Observaremos melhor este problema ao analisarmos as observações sartrianas acerca de Hegel e sua filosofia da história.

1.1 Crítica à noção hegeliana de história

Sartre se declara nos Cadernos para uma moral com um projeto de história pós-hegeliano. Sua afirmação é que assim como a física, a história necessita de uma crise para se desvincular da abordagem hegeliana e também fazer uma revisão crítica da perspectiva do Marxismo sobre o mesmo tema5.

Sartre expõe quanto a Hegel: “se há uma História é aquela de Hegel. Não pode haver outra, mas não há mais que uma pseudohistória: então caricatura” (SARTRE,1983, p.31). O que significa o caráter caricatural da filosofia da história hegeliana, qual o seu equívoco que distorce a perspectiva histórica?

A proposta hegeliana não é de uma mera descrição da história de modo sucessivo aos eventos, nem extrai elementos de resgate histórico para analogias com o presente ou projeções do futuro, mas constituir uma filosofia da história onde a racionalidade se apresenta no decorrer dos eventos. Seria somente através da análise da história que se pode observar que a ideia racional se desdobra e se desenvolve no curso do mundo: “Mas o grande conteúdo da história universal é racional e tem de ser racional; uma vontade divina impera poderosamente no mundo e não é tão impotente que não possa determinar este grande conteúdo” (HEGEL,2020,p.36).

A razão hegeliana se apresenta enquanto esse desdobramento da vontade divina, sendo esta própria a racionalidade. A filosofia seria responsável por compreender tal plano, sendo a história a efetivação deste plano. Assim a história do mundo é a execução do plano da razão na realidade. À filosofia caberia a compreensão desta apresentação e desenvolvimento da razão no mundo, identificando o seu conteúdo e justificando essa realidade pelo desenvolvimento do Espírito. No Espírito a ideia racional toma consciência de si e conhece a si mesma e se desenvolve.

No reino do espírito existe o aparecimento do novo identificado pelo aperfeiçoamento do homem na história. A história não é um retorno ou repetição, mas uma melhoria e aperfeiçoamento do homem e ampliação da racionalidade no mundo em novas situações: “Debaixo do sol nada de novo acontece. Mas com o sol do espírito é diferente. O seu curso e movimento não é uma autorrepetição, mas a sua aparência mutável, que o espírito para si faz, em criações sempre diferentes, é essencialmente um progresso” (HEGEL,2020, p.72).

Além de não ser repetitivo ou cíclico, o desenvolvimento do espírito não é descontínuo, mas a fase atual do espírito contém seus momentos anteriores, enriquecidos e transformados pela nova situação. Este processo é um movimento dialético da realidade. Nela, o espírito não deixa de ser para se tornar algo completamente distinto, e neste sentido, o espírito é o que sempre foi: racionalidade. A racionalidade mantém sua identidade nas diferenciações dos momentos diversos de desenvolvimentos, apenas desdobrando na história em formas mais elaboradas. O objetivo do espírito é se autoconhecer e fazer a si mesmo objeto, desdobrando-se e alienando-se continuamente.

Quanto aos indivíduos, estes contribuem, mesmo que não plenamente conscientes, deste desenvolvimento do Espírito nos seus atos e interesses particulares: “o interesse pode, sem dúvida, ser um interesse inteiramente particular, mas daí não se segue que seja contrário ao universal. O universal deve ingressar na realidade efetiva mediante o particular” (HEGEL, 2020, p.85). As ações, paixões e desejos humanos realizam fins imediatos, individuais ou de pequenos grupos, mas para Hegel estas ações com fins individuais geram ou produzem algo a mais e realiza na sua ação, ainda que não de modo intencional, feitos que podem contribuir para o desenvolvimento do espírito. Neste sentido as atividades individuais podem ser meios para o desenvolvimento do espírito desdobrar a sua realidade racional no mundo: “esta imensa massa de vontades, interesse e atividades são os instrumentos e meios do Espírito universal para cumprir o seu fim – o elevar à consciência e o realizar; e este fim consiste unicamente em encontrar-se, em chegar a si mesmo e contemplar-se como realidade efetiva” (HEGEL, 2020,p.87).

O desenvolvimento do espírito em Hegel, apesar de ser a história do espírito universal, entretanto, é formado pela passagem e etapas de desenvolvimento do espírito enquanto história e desenvolvimento de povos :“o racional é o que existe em si e para si, mediante o qual tudo tem o seu valor. Confere a si mesmo diversas figuras; em nenhuma é mais claramente fim do que naquela em que o espírito se explicita e manifesta a si mesmo nas figuras multiformes que chamamos povos” (HEGEL,2020, p.34).

O espírito do povo (Volkgeist) é a determinação de um estágio do desenvolvimento do espírito universal na particularidade de uma sociedade. A cultura, sua constituição, sua arte, sua religião e ciência compõem o espírito do povo e são determinações do espírito de uma época. Estes elementos estariam organizados num todo orgânico e que conteria o espírito de um povo e a cultura de uma nação. Este povo em dado momento apresenta-se como estágio mais avançado do desenvolvimento do Espírito.

O fenecimento de um povo e aparição do espírito universal em outro povo particular é um processo longo. No decorrer histórico do desenvolvimento das formas de organização social entre os diversos povos no tempo culminam na aparição do modo de organização baseado no Estado, forma mais elaborada e capaz de manifestar o Espírito em sua totalidade.

Porque o Estado, a pátria, constituem uma comunidade de existência, porque a vontade subjetiva do homem se sujeita às leis, esvanece-se a oposição entre liberdade e necessidade. Necessário é o racional enquanto substancial, e nós somos livres porquanto o reconhecemos como a lei e o seguimos como substância da nossa própria essência: a vontade objetiva e a subjetiva reconciliam-se assim e constituem um só e o mesmo todo não perturbado (HEGEL, 2020, p.112)

No estado há a realização da liberdade do homem, pois nele há uma conciliação entre interesse privado e coletivo, por meio das instituições exteriorizadas que compõem o espírito do tempo. A liberdade apresenta-se como culminação positiva do mundo na realização do Estado moderno, de inspiração parcialmente iluminista. Isso significa que não é qualquer Estado, mas sobre os moldes dos princípios que norteiam o desdobramento hegeliano de razão. No Estado hegeliano há unidade entre liberdade substancial e liberdade subjetiva. Sendo a liberdade substancial: “A liberdade substancial é a razão, em si existente, da vontade que, em seguida, se desdobra no Estado. […] Na liberdade substancial, os mandamentos e as leis são algo de em si e por si fixo, face ao qual os sujeitos se comportam em perfeita servidão” (HEGEL,2020, p.230). Na liberdade substancial ligado aos costumes e leis , há um forte aspecto de mandamento pautado na totalidade social. Já a liberdade subjetiva é caracterizado pelo “ se os indivíduos são reflexivos e pessoais, sujeitos que para si existem” (HEGEL,2020, p.230) e concerne as eleições individuais, escolhas, interesses6.

Em Hegel a questão da moral se resolve a partir de duas perspectivas entrelaçadas: da sua elaboração de história (perpassada pela razão) e de uma teoria sobre organização social (culminante no Estado racional). Duas perspectivas que, comparativamente, não estão bem determinadas nos Cadernos para uma Moral.

Sartre, numa tentativa de desconstrução do pensamento hegeliano, propõe que se apague o hegelianismo ao compreendê-lo como proposta de uma história que apresenta um sentido total e unidade no Espírito. Sartre, entretanto, ao tratar da dialética de Hegel e criticá-la, sabe que não há necessidade de prova da dialética.“A dialética não tem necessidade de prova em Hegel, a não ser o sistema” (SARTRE, 1983, p.465), mas há necessidade para que tal sistema seja válido e que a dialética se ratifique, que a história termine. Isto porque, segundo Sartre, se a história não terminou não podemos observar os momentos da realização do conceito e não houve uma totalização da história. Sartre nos propõe ainda que tal modelo de unidade na História é uma pseudounidade e pseudo-história. Tal pseudo-História é em última instância um esforço de construir uma história como se houvesse uma consciência maior que mediasse as outras consciências separadas entre si e os acontecimentos. Como consequência essa consciência trata as consciências individuais e suas vivências como não essenciais em prol da captação e totalização dos eventos de modo unificado.

O espírito se apresenta como unificador de eventos históricos em uma direção, mas, para Sartre, a história não é uma desdobramento racional no tempo que unifique os eventos dos homens, formando um todo coerente. Não há também um intérprete privilegiado da história ou uma perspectiva unívoca. Os eventos históricos constituem um tipo de totalidade destotalizada7 diante o Para-si, isto é, são uma série de eventos feitos pelos homens em processo de decisões que, em conjunto, não tem significado fixo, são ambíguos, mas recuperados pelos agentes históricos numa variedade de significações, e que a partir destas compreensões, por conseguinte, deliberarão na indeterminação do futuro, rearticulando novos sentidos e reformulando a própria totalidade histórica em curso. O próprio ato de se fazer história enquanto saber se torna, assim, um fator histórico. Desse modo, o pensar acerca da história já é estar imerso na própria ação histórica presente e comprometida com um devir dos eventos: “Em uma palavra: toda a teoria da história é histórica” (SARTRE, 1983, p.27).

Assim, Sartre denomina a noção de história de Hegel como totalidade totalizada (totalité totalisée) em oposição à sua noção de história enquanto uma totalidade destotalizada (totalité detotalisée). Há a pressuposição de uma unidade completa das consciências ou do Espírito hegeliano que assegura, por meio de um processo retroativo ou de recordação de toda a produção humana, a organização e sistematização autotransparente do saber, isto é, o saber absoluto. Já Sartre reivindica a noção de história constituída pela parcialidade e diversidades de consciências em seus projetos singulares e alheios em certo grau entre si. Esse alheamento e alienação parcial diz respeito não só aos homens presentes, mas aos homens do passado que influenciaram indiretamente o fazer histórico dos indivíduos no presente, com seus feitos e obras e cujo os modos de recepção e interpretação não se poderia prever. A história, segundo Sartre, se apresenta em conexão à liberdade como um Outro8, pois a liberdade humana mobiliza a história e se constitui a partir e com os feitos dos outros homens que viveram. Entretanto, esses mesmos feitos de outros que constituem a história retornam para os outros homens viventes, na medida em que eles moldam e definem a situação na qual a liberdade de um homem no presente é exercida. A liberdade dos feitos dos outros de uma época alheia, aparece para o novo agente histórico como uma liberdade alienada e determinada. Isto porque os agentes históricos atuais são condicionados pelos feitos anteriores dos homens do passado. Os homens anteriores legam e estabelecem uma situação aos homens do presente que formam seus campo de atuação e projetos.

Do mesmo modo que os feitos passados condicionam a situação presente, há alienação dos atos dos homens contemporâneos aos outros. Estas mesmas consciências alienadas em coletividade no presente se relacionam e se influenciam em alguma medida, mas até certo ponto: “cada homem faz com todos os outros uma totalidade destotalizada. Assim, a ação de Paul na Zambézia não afeta necessariamente Pierre no Japão. Há uma tendência ao isolamento da ação; há um limite histórico. Mas o limite é altamente variável” (SARTRE,1983, p.29). Ou seja, embora exista uma situação global composta da interação dos homens e seus projetos, pode-se pensar em ações de grupos e sociedade isoladas as quais não apresentam influência entre si ou influência direta. Isso habilita na perspectiva sartriana, ao menos parcialmente, a ideia de desenvolvimento de histórias e não de apenas uma história universal.

Sartre propõe uma noção de um dialética incompleta (quase-dialética) ou dialética aberta em contraposição a uma dialética hegeliana. Mas o que Sartre entende por esta dialética hegeliana tradicional? Ele nos responde:

O que é com efeito a dialética? É a unidade sintética de uma totalidade exposta no tempo. Numa totalidade não temporal, com efeito, como o todo rege as estruturas secundárias, nenhuma estrutura secundária é inteligível sem a estrutura complementar. O único fato, então, de colocar (determinar) uma destas estruturas implica a outra e a inteligibilidade total se encontra em ser o todo. Expostas no tempo, esta concepção nos dá que toda forma que aparece necessita para ser inteligível ou para ser, a forma complementar; e que as duas, uma vez aparecidas, se unificam na totalidade que elas eram” (SARTRE, 1983, p.472).

No caso, a perspectiva dialética tradicional é que a totalidade dos eventos envolvidos determina e explica, ainda que de forma oculta no decorrer dos acontecimentos, as partes . Esse não será o caso de uma quase-dialética ou dialética sartriana. Sartre percebe que, se há uma dialética, esta é sem síntese definitiva devido à sua compreensão de alteridade e do Para-si. A base de partida de Sartre é o Para-si e a impossibilidade na sua ontologia de uma síntese em se captar a visada do Outro de modo integral. Para Sartre, a consciência do Outro, o qual tem a visão acerca de mim enquanto um ser-para-o-outro, e a visão que tenho de mim não são passíveis de uma unidade. Existem compreensões que formo sobre mim que não dependem do outro, como os modos de apreensão reflexiva, e que o outro pode não saber ou ignorar. Existe, entretanto, uma dimensão objetiva minha que é formada por outro e que não depende de mim. A verdade é que não me apreendo pelo outro, “mas que eu apreendo pelo outro meu ser-para-o-outro, isto que é um truísmo” (SARTRE,1983, p.467). Seria necessário um terceiro que fundisse as duas visões que não são inteiramente comunicáveis para que houvesse síntese perfeita entre consciências, formando um todo. De modo análogo a essa problemática é a relação entre o Para-si e o Outro com os eventos históricos. As partes ou indivíduos que agem nos eventos históricos e sobre a situação não são meras parcelas em que a totalidade da situação pode sintetizar suas vivências. O resultado consequente das ações de grupos ou indivíduos não subsumem de modo integral os impasses dos agentes históricos: “Pode haver reciprocidade da ação ou sucessão das ações recíprocas e nada mais. Não poderia haver dialética a não ser que considerássemos o vivido absoluto que é o Outro e o vivido que eu sou como verdades incompletas do que uma verdade mais larga poderia subsumir” (SARTRE, 1983, p.467).

No caso de uma dialética completa, a totalidade dos eventos comportaria a explicação e feitos das partes e o porquê se agiu daquele modo. A vivência daquele agente histórico poderia ser englobada no devir do processo dialético enquanto para Sartre as motivações, mesmo as ações coordenadas dos agentes históricos, ainda que em busca da realização dos mesmos resultados, não abarcam nem reconciliam as dimensões vividas dos indivíduos. Além disso, na prática, a parte num evento histórico pode determinar o todo ou se sobrepor em relação às outras partes, ou ainda, a representação de uma parte sobre a situação global pode determinar uma situação. Um exemplo é dado no caso da greve:

E mesmo se os dirigentes não exploram a greve, mas ajudam a desenvolvê-la em seu próprio sentido, a representação da greve como dialética não é em si um fenômeno dialético. Se, por exemplo, os dirigentes, entendendo tanto que os patrões vão ceder quanto que os trabalhadores esmorecem, apertam a disciplina para evitar a retomada do trabalho; essa ação é antidialética, porque é a ação de uma parte no todo (sem reciprocidade) enquanto a dialética é oculta e ação permanente do todo nas partes (SARTRE, 1983, p.475).

No caso os grevistas (parte) compõem a situação total (greve). Mas os dirigentes da greve (parte) podem determinar a totalidade da greve a partir de sua representação desta. Neste caso não haveria uma dialética nas suas ações, ou pelo menos, a representação de dialética dos dirigentes não coincidiria com a dialética real da história e colocaria em xeque a efetividade de se apelar a uma dialética na compreensão do real, já que os modos de apreensão da dialética em curso são ambíguos.

Sartre, assim, acredita também que existem elementos não dialéticos na história neste período. Haveriam elementos não assimiláveis como histórias paralelas do desenvolvimento social e eventos sui generis. Além disso, existir certas regiões do ser que em sua temporalidade assumem um movimento dialético não implica que todas as regiões do ser são dialéticas: “enfim nenhuma constatação de fato saberia provar que a dialética é a lei universal. Por exemplo, o fato que a região do ser estética seria um desenvolvimento dialético não poderia provar que o desenvolvimento militar ou econômico ou religioso da mesma sociedade é também do tipo dialético” (SARTRE, 1983, p.466).

Sartre propõe que, longe de a dialética ser a norma do real, pode-se especular a hipótese contrária, que a região do ser de desenvolvimento dialético pode ser uma forma transitória e que é eliminada com o tempo. Sartre apela para contraexemplos que vão desde eventos acidentais, como grandes navegações e descobrimento de novos continentes no século XV e XVI, até movimentos do Espírito que não progridem dialeticamente, como o fazer científico que também é produzido, seja de modo acidental (descobertas científicas ao acaso), seja por sínteses de atividades diversas (progressão por acúmulo de dados e saberes). Sartre ainda cita para criticar Hegel exemplos da história não assimiláveis na dialética hegeliana, como o Oriente: “O outro , na História: Oriente (China, Índia, Japão). Como ousar fazer uma dialética que não dá conta destes 400 milhões de homens que tem como nós cinquenta séculos de história? A dialética (hegeliana ou marxista) considera apenas uma parcela da história”9 (SARTRE, 1983,p.66).

A destotalização na noção sartriana formula que não há uma unidade homogeneizadora da humanidade e das ações humanas na história e que estas podem surgir como contingentes e não necessariamente passíveis de ser completamente coordenadas no espírito de um tempo e de modo universal. Entretanto, apesar dessa destotalização, as relações entre os humanos em seus interesses particulares em alguma medida forma uma situação conjuntural entre tais homens. Mas Sartre argumenta que não é frutífero tentar trabalhar com uma noção de história que trata o transcorrer dos eventos como um todo a ser realizado de modo previamente teorizado. Se a história fosse uma totalidade em realização, os conflitos seriam apenas momentos a serem superados, mas não ficaria claro quanto ao porquê das exceções e detalhes que desviam de um dado momento dialético. O contrário também é problemático, isto é, a história tratada como um mero fazer de unidades independentes, como indivíduos agindo entre si. Neste caso a história careceria de uma conjuntura que contextualizaria a situação e seria uma mera soma de ações individuais atuando sem correlação.

Frente a esse problema Sartre esclarece que a visão de uma totalidade “ é sempre projetado de fora no mundo” (SARTRE,1983, p.92). É uma unidade de sentido dada às ações atuais e passadas em prol de uma virtual generalização e síntese de um conceito ou, neste caso, numa História finalizada e totalizada. Essa unificação negligencia os detalhes e particularidades em prol da adequação deste todo virtual. Abstrai-se os elementos antagônicos ou divergentes daquilo que é englobado nessa visão de totalidade. Mas essa totalidade na história, na perspectiva sartriana, é apenas uma virtualidade e síntese precária da consciência e é rearticulada pelo Para-si constantemente. Isto porque essa é uma totalidade em devir que apresenta sempre uma tensão entre o universal da totalização e o singular da ação individual, que está imerso no mundo e interfere/modifica continuamente os eventos que tenta totalizar. O próprio agir do Para-si, sendo uma ultrapassagem da situação, move e gera novos elementos para totalização da realidade. Assim, a história em Sartre não é inserida necessariamente num processo dialético em que existe um elemento hegeliano de fim da história como totalização dos eventos. Isto significa que existe sempre uma tensão não conciliada entre a ordem da realidade (constituída pelos sentidos prévios dados por outros homens e que atravessa o Para-si na sua situação) com a aparição de novas situações que escapam a estes sentidos anteriores e geram o novo pela sua própria ação, impedindo uma finalização. Existe uma dialética na perspectiva sartriana, mas uma dialética sem fim ou uma quase dialética em que a totalidade virtualizada pelo Para-si é rearticulada constantemente pela ressignificação e ultrapassagem da situação que lhe é inerente:

[…] A dialética é a seguinte: o projeto inicial ilumina os arredores da situação. Mas já o posicionamento dos arredores colore o projeto original. Por outro lado, a situação se define na medida em que é ultrapassada pelo projeto e o projeto não tem significação, exceto conforme o projeto de mudar essa disposição do mundo. Portanto, ele é definido pela situação. Situação e projeto são inseparáveis, cada um é abstrato sem o outro, e é a totalidade “projeto e situação”, que define a pessoa. (SARTRE, 1983, p.478, tradução nossa).

Neste caso existe uma correlação entre situação e projeto indissociável e que criam não só o que é o indivíduo/pessoa, mas como a história se articula, isto é, uma história composta pelo que é prévio ao Para-si e, a partir do que lhe é prévio, surge suas possibilidade de atuação. Há também um itinerário de totalização dos eventos pelo Para-si ao constituir seus projetos, possibilitando, ainda que precariamente, a visão conjuntural da história, e a contínua destotalização ao atuar no mundo ressignificando a realidade e trazendo novos elementos ao campo histórico.

Assim, Sartre nos Cadernos para uma moral trata de sociedades e histórias diversas, para objetar sobre a dialética entendida enquanto tendo uma síntese final, argumentando que não se consegue abarcar a multiplicidade de modos sociais e visando uma e única história. Posteriormente Sartre resolve esse problema na Crítica da Razão Dialética (1960) esclarecendo essa dialética baseada numa totalização em curso, como comenta Laflamme:

[…] como, apesar da multiplicidade de sociedades, é possível falar de uma única história humana? Para Sartre, só se pode falar de uma história humana se a totalização é possível, [...] . Pelo caminho da totalização, portanto, Sartre pretende mostrar que, na história humana, existem ligações entre as diferentes sociedades: uma ou mais sociedades deixam algo para um ou várias outras sociedades, assim como qualquer sociedade assume algo de uma ou mais empresas. Sartre reconhece [isso] de modo que possa haver histórias diferentes. Todo processo de totalização só é possível por meio da práxis, da razão dialética. Toda sociedade se mantém, aparece ou desaparece de acordo com a atividade sintética dos humanos. A totalização é então o processo através do qual qualquer sociedade sintetiza sua história, se sintetiza a si mesma por um tecido de mediações individuais, produz sua história ou é sintetizada por outra sociedade em e pela ação humana (LAFLAMME, 1983, p.61-62, tradução nossa).

Há uma diversidade de histórias, mas estas histórias, em sua conexão com outras, legam algo às outras sociedades, se não forem completamente isoladas. Embora possa haver diversas histórias e sociedades, estas podem sintetizar diversas outras compreensões anteriores por mediações individuais e no agir dos homens.

Mas qual a chave da leitura de Sartre acerca da noção de história em Hegel que lhe permite tantas críticas? Sartre tem leituras e interpretações hegelianas próprias, particularmente da Fenomenologia do Espírito, obra referenciada nos Cadernos. Mas sua compreensão do texto hegeliano é fortemente advinda da interpretação da parte IV da obra, concernente à relação entre o senhor e o escravo enquanto base exemplar do movimento dialético na história. A relação, na Fenomenologia do Espírito, do senhor e do escravo molda boa parte das chaves de interpretação hegeliana da tradição francesa na primeira metade do século XX. Faremos uma breve reconstrução dessa passagem hegeliana para contextualização da crítica sartriana. Tal dialética é moldada pelo movimento do reconhecimento entre duas consciências. Tal leitura explicita à relação entre senhor e escravo como uma expressão do desejo e luta por reconhecimento que caracterizaria a condição humana. As consciências inicialmente aparecem como independentes e desnecessárias e surgem enquanto outro ser vivo:

Mas o Outro é também consciência-de-si; um indivíduo se confronta com outro indivíduo. Surgindo assim imediatamente, os indivíduos são assim um para o outro, à maneira dos objetos comuns, figuras independentes, consciências imersas no ser da vida - pois objeto essente aqui se determinou como vida”. (HEGEL, 2012, p.145)

Neste momento da dialética do reconhecimento uma consciência se apresenta para outra como um ente entre outros, um ser inessencial para a outra. Mas esta consciência alheia enquanto exterior à outra consciência suspende a certeza inicial da consciência de si, pois a consciência-de-si não é um objeto qualquer, mas outra consciência e sua subjetividade só pode ser confirmada por outra consciência similar a si. Para ter certeza de si uma consciência deve obter o reconhecimento da outra, colocando a consciência alheia como ratificadora em relação à sua própria consciência.

Neste sentido, as consciências, por não serem apenas meros seres vivos precisam, em busca da certeza de si, provar-se frente ao outro e este processo envolve o risco de perder-se enquanto mero ser vivo inessencial, isto é, agir arriscando-se até a morte para elevar sua certeza-de-si subjetiva a uma verdade do âmbito intersubjetivo:

[...] a relação das duas consciências-de-si é determinada de tal modo que elas se provam a si mesmas e uma a outra através de uma luta de vida ou morte. Devem travar essa luta porque precisam elevar à verdade, no outro e nelas mesmas , sua certeza de ser-para-si. Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se comprova]; e se prova que a essência da consciência-de-si não é o ser, nem o modo imediato como ela surge, nem o seu submergir-se na expansão da vida; mas que nada há na consciência-de-si que não seja para ela movimento evanescente; que ela é somente puro ser-para-si. O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência-de-si independente (HEGEL, 2012, p.146).

O risco da vida e o confronto com o outro numa luta mortal faz com que se tente solucionar o fato da consciência não ser definida mais enquanto um mero ser vivo entre outros, mas sim uma consciência livre, e que o outro reconhece sua liberdade como caráter essencial através do não temor da supressão da vida. Mas a morte da consciência alheia não soluciona a questão do reconhecimento que a consciência de si almeja, pois com a morte da consciência alheia existe a desaparição da consciência necessária para o reconhecimento. É preciso não que a outra consciência desapareça, mas seja dominada, negando-se enquanto pura consciência-de-si, ou ainda caracterizando-se enquanto ser que prefere a vida ao reconhecimento de sua liberdade. É necessária duas consciências, mas com funções opostas: “uma consciência independente para qual o ser-para-si é a essência; outra, a consciência dependente para a qual a essência é a vida, ou o ser pra um Outro. Um é o senhor, outra é o escravo” (HEGEL, 2012, p.147).

O senhor é a consciência que não tremeu diante da morte e que teria morrido ao invés de ceder quanto ao ser reconhecido enquanto consciência de si. Passa ele a se relacionar com as coisas mediatamente pelo escravo, que existe para reconhecimento da consciência de si livre do senhor. O escravo trabalha os objetos e coisas, não aniquilando o objeto mas formando-o conforme o desejo e subsequente gozo do senhor. Além do reconhecimento do senhor, o escravo resolve um impasse da relação do senhor com as coisas. O desejo não era alcançado pelo senhor por causa da independência da coisa, mas agora com a mediação do escravo o senhor apenas goza o seu desejo, mediante o trabalhar do escravo que enfrenta a resistência do objeto. O escravo age conforme o desejo do senhor, sendo o desejo do escravo inessencial.

Mas nesse movimento do reconhecimento do senhor surge um problema que envolveria ação mútua: “falta o momento em que o senhor opera sobre o outro o que o outro operaria sobre si mesmo; e o escravo faz sobre si o que também faria sobre o Outro. Portanto, o que se efetuou foi um reconhecimento unilateral e desigual” (HEGEL, 2012, p.148).

Essa relação de reconhecimento entre senhor e escravo é unilateral porque aparentemente o senhor conseguiu estar certo de si enquanto consciência ao dominar o escravo e o senhor utilizaria o escravo como ratificação e verdade daquilo que o senhor é. Mas o senhor precisa do escravo para ter a certeza de si, e a vontade expressa nas ações e objetos que o escravo trabalha na verdade, mostra dependência do senhor quanto ao escravo para se determinar.

Se o senhor depende do escravo para ter sua certeza, então “a verdade da consciência independente é por conseguinte a consciência escrava” (HEGEL, 2012, p.148). A consciência escrava que treme diante da vida se mostrando inicialmente enquanto dependente no movimento do reconhecimento frente ao senhor torna-se a consciência independente. Sua independência advém do seu vínculo entre objeto e trabalho, que se faz necessário para que o senhor se reconheça enquanto senhor, dependendo desta última.

Se analisarmos a consciência escrava por si mesmo e sua relação com o trabalho observamos que existe também uma diferença entre o modo como o escravo lida com o desejo ou objeto do desejo. O senhor expressa o desejo e goza o objeto de desejo mediado pelo escravo. Este desejo do senhor se encontra enquanto uma satisfação subjetiva sem vínculo direto com a coisa e “lhe falta o lado objetivo ou subsistir” (HEGEL, 2012, p.150), isto é, lhe falta a ligação com a coisa além da dimensão subjetiva do desejo. Já o escravo apresenta-se enquanto desejo refreado ao lidar com o objeto que ele trabalha e com a realidade, isto é, a independência do objeto quanto ao desejo. A manifestação do desejo será mediada pelo trabalho10 que dá forma ao objeto para atender o desejo: “ o agir formativo […] que agora no trabalho se transfere para fora de si no elemento do permanecer; a consciência trabalhadora, portanto, chega assim à intuição do ser independente, como [intuição] de si mesma” (HEGEL, 2012, p.150).

Quanto à figura do senhor e do escravo, Sartre é extremamente crítico, pois para ele nada mais seria que “um relato ideal e idealmente verdadeiro”(SARTRE,1983, p.80), mas sem vínculo histórico. As falsificações para assegurar esse relato ideal do espírito seriam, por exemplo, que o escravo nunca inventou algo na antiguidade, sendo um doméstico ou um trabalhador agrícola, fugindo da visão hegeliana do escravo como aquele que dominou a natureza através do aprimoramento da técnica. As figuras do espírito seguinte à do escravo na fenomenologia são o estoicismo e o ceticismo11, que “não foram inventados por escravos, mas por homens livres” (SARTRE, 1983, p.79). Para Sartre o estoicismo, por exemplo, serviu historicamente como uma teoria do senhor, em que aqueles que tinham bens se preveniam do perigo virtual de se tornarem escravos se perdessem seu patrimônio, ao se refugiarem na independência do pensamento. Era uma teoria para os que tinham algo a perder e não para os que não tinham nada, ao menos em Roma imperial. Uma terceira dificuldade que Sartre coloca é que ainda que haja uma luta mortal entre o escravo e o senhor, isto é apenas válido numa primeira geração, mas não para as demais gerações que se habituam a esta relação, nascidos já cativos: “o escravo nascido em casa, tratado de modo familiar, não tem tanto medo [...] e se encontra em situação naturalizada”(SARTRE, 1983, p.79). Outra dificuldade é que o senhor tem uma história intrínseca, não sendo o escravo mobilizador através do seu trabalho como força motriz da história com o aperfeiçoamento técnico. O senhor se liga concretamente a outros senhores e mantém relações comerciais, bélicas e familiares que modificam a realidade. Uma outra dificuldade elencada por Sartre é que as descobertas científicas e técnicas não são do âmbito do escravo: “são os clérigos ou os homens livres da classe média que em maior parte as realizam” (SARTRE, 1983, p.80). Ou seja o próprio olhar concreto sobre a história desabilita o olhar universal ou ideal hegeliano das figuras do espírito, segundo Sartre.

Existem ainda falhas no processo de reconhecimento na figura do espírito do senhor e escravo. Uma das dificuldades é que Hegel propõe que o senhor tem sua certeza e verdade na relação com o escravo, mas que há também uma dimensão que não concerne o reconhecimento e define o indivíduo: “Mas há também verdade nele mesmo como homem de desejo, de medo, etc.” (SARTRE, 1983, p.467). Vimos que em Hegel o reconhecimento que o escravo dá ao senhor o tornaria essencial, mas como o escravo é inessencial na relação, o que há de essencial no senhor também é inessencial no escravo, já que ele depende do reconhecimento. Sartre argumenta, entretanto, que esta dialética é correta no que concerne a como outro nos capta, isto é, a essencialidade no reconhecimento de nosso ser-para-outro. No ser-para-outro, como o senhor é captado pelo escravo define-o, mas não no seu ser-para-si, isto é, a visão que o senhor tem de si e a perspectiva que o escravo tem de si não é alcançada no processo de reconhecimento.

Além disto, Sartre argumenta que a relação real entre senhor e escravo não é um reconhecimento entre duas consciências, mas que na história o que existe é um reconhecimento entre senhores que reciprocamente reconhecem-se enquanto tais. Haveria uma sociedade de senhores que apresentaria uma unidade própria e uma “força constante e então estática”(SARTRE, 1983, p.467) e que, por sua vez, propiciaria a permanência não dialética que perpetuou o escravo na história. O desenvolvimento do escravo enquanto aquele que pelo medo e pelo trabalho desenvolveu supostamente a técnica e o domínio da natureza só é possível com essa sociedade de senhores que se autorreconhecem. Essa associação de senhores não tem cunho dialético e não depende do escravo para subsistir ou precisa antes mais do reconhecimento dos seus pares igualmente mestres. A história de senhores aparece como elemento não dialético oculto que possibilita o desenvolvimento da figura do escravo. Esta sociedade de senhores é exemplificada na pólis grega e nos romanos livres do período imperial.

Por fim, Sartre coloca ainda que há mais na história que a dialética tradicional porque há “infinitamente mais que dois agentes históricos” (SARTRE,1983, p.61). Não existem desdobramentos consequentes ou sequências de contradições e suprassunção de situação. A multiplicidade de perspectivas históricas e agentes históricos faz com que haja uma multiplicidade de agentes históricos perfazendo diferentes narrativas.

Assim, Sartre expõe que “o verdadeiro princípio motor da história é o outro que é alteridade, é mais larga que a dialética e a engloba” (SARTRE,1983, p.61). A história aparece enquanto alteridade porque os homens recepcionam os atos dos outros anteriores e contemporâneos a eles como situações às quais se tem de responder/agir inventivamente nas decisões. De fato, toda a consciência retoma numa situação o que os outros fizeram. Porém a consciência que retoma através de uma situação um fato pode continuar ou descontinuar o projeto anterior, escolher uma proposta ou orientação de uma consciência B e não da consciência A. Existe uma pluralidade de possibilidades de como a consciência retoma a situação e os feitos anteriores. Mas é comum uma terceira consciência, ao observar dois eventos históricos próximos, observar um caráter de sucessão e causalidade: fato X vem depois do fato Y. Não considera que os eventos X e Y retoma livremente o fato Z e que poderia ter se dado de outro modo. E que esta necessidade de encadeamento da História que ocorre na representação de Dialética também: “assim a ambiguidade de toda dialética é que ela é sustentada pela causalidade” (SARTRE, 1983, p.44). A alteridade é mais ampla que a dialética, porque abarca não só um movimento de contradições que geram novas, mas uma polivalência de respostas e compreensões de mundo distintas e indefinidas.

Para Sartre há uma síntese do contínuo e do descontínuo, “feita e desfeita como a tapeçaria de Penélope” (SARTRE,1983, p.38). Esse fazer-se e desfazer-se que ocorre na história se refere, principalmente, à passagem de gerações. Existe um rompimento de projeto com a morte de uma pessoa ou grupo e nascimento de outra. Não há garantias que uma geração retomará o projeto da outra, assegurando um progresso. Para Sartre a história quando vista num caráter de unidade aparece como uma “ continuidade ideal” (SARTRE,1983, p.33), isto é, num conjunto encadeado de eventos, mas a história é o descontínuo entre gerações e projetos que mudam.

Sartre expõe ainda que cada ato histórico tem também um aspecto ao acaso, um aspecto físico, e mesmo um ato com significação carrega também o aspecto de não-significado que é o suporte para a significação ou a dimensão do Em-si para que o Para-si o atue e signifique. Sartre nos dá um exemplo: “se não tivesse uma tempestade, o mensageiro chegaria a tempo para impedir a execução. Então a não-significação no coração da significação ou antes a perpétua significação do que uma não-significação” (SARTRE,1983, p.33). Isto é, nos eventos históricos há elementos contingentes, não necessariamente de ação humana que se historicizam como o acaso, o campo físico, clima, etc.

Além destes aspectos de críticas particulares da filosofia da história hegeliana em Sartre, este acredita que Hegel deu uma perspectiva de filosofia da história através da “ideia que Espírito se recuperou e que a História é finita” (SARTRE, 1983,p.482). Isto é, que a dialética hegeliana retroativamente capta a realidade de uma perspectiva de totalidade de uma história que tem um fim. Mas, Sartre levanta a hipótese, se a história não for finita? Se for o caso, a dialética não passará de uma hipótese, pois não há garantia que o futuro seguirá um modelo dialético e não há um todo como referência para que as partes ou momentos da história constituam um sentido inequívoco rumo ao espírito absoluto:

É uma filosofia retrospectiva e de morte, que pode trabalhar dialeticamente porque todas as empresas humanas são passadas e por consequência reduzidas por eles ao estado de conceito. O passado é necessariamente do ultrapassado. Então ao pegar por absoluto o momento presente, Hegel pode considerar cada passado como um ultrapassado e ver na História um movimento de ultrapassamento perpétuo (SARTRE, 1983, p. 483).

A autorreferência ao absoluto e a história como finita é o que habilita a Hegel esse procedimento retroativo e de uma história sempre já ultrapassada. Se a dialética não é finita, cada momento do presente não é um absoluto a ser ultrapassado como os outros ou um momento da história rumo ao todo ou a um estado final da humanidade ou do espírito. Para Sartre, se não existe um estado final da humanidade já estabelecido, há no presente um “absoluto a se viver” (SARTRE,1983, p.483) que determina sua realidade na limitação de sua perspectiva e na incerteza do futuro e como serão recepcionados os atos deste presente. A história não apresenta um sentido unívoco que escapa à relação dos agentes históricos que a fazem, mas o oposto. Isto é, o momento histórico se liga aos que perfazem a história agora e a vivem como um momento absoluto na relação com estes outros. Este momento absoluto é a vivência concreta que se estabelece em conexão com os projetos e fins de outros agentes, formando a situação. O valor e sentido histórico não está para além dos homens que constituem a história, mas está nos próprios homens que agem nela.

A história e os acontecimentos históricos nunca apresentam um sentido absoluto que seja transcendente ao relativo, mas, ao contrário, cada conjuntura histórica é relativa e o absoluto é imanente no relativo. O absoluto não é o ponto de vista de Deus sobre a história, é a forma como cada homem e cada comunidade concreta vive a sua história. Ao renunciar ao absoluto transcendente, você não cai no relativismo, você restaura o homem ao seu valor absoluto (SARTRE, 1983, p.495)

Neste caso, o absoluto está imerso nas relações e circunstâncias contingentes, pois este absoluto é constituída pelas liberdades que doam sentido à realidade e, entretanto, esses atos presentes, arriscados e imprevisíveis do que irão se tornar visam um todo, mas um todo dado e concebido de modo projetado pelos agentes que perfazem a situação, no caso de Sartre, esta totalidade visada não é um fim, mas a totalidade é baseada na própria condição humana:

Se nós admitimos que o homem possa conceber o todo (estado final da humanidade), é então supor que o todo é sempre dado. Isto que eu creio. Ele é sempre dado como todo da liberdade (a liberdade como compreensão da condição humana e implicando a liberdade de todos). Somente não há mais dialética (SARTRE,1983, p.483).

Isto é, a dialética hegeliana com o momento da síntese e de um todo referencial que retroativamente estabelece a verdade dos momentos do espírito não é mais válida se a história não apresenta este estado final. O todo a que se refere Sartre numa história aberta é um todo projetado pelos indivíduos no presente através de uma livre captação/reinvenção do sentido dos eventos passados, mas sem a certeza de um estado final que recupere os eventos passados em sua totalidade:

[…] a História é finita ou nós não podemos agarrar a dialética senão parcialmente, no passado e prolongando (um pouco) por extrapolação. Mas nossa limitação mesma nos interdita de prolongá-la mais longe do que o termo seguinte. E se a dialética não é um sistema fechado, então é necessário viver na incerteza do momento presente. E esta vida na incerteza se torna um absoluto. Mas isto não é mais o absoluto hegeliano, mas o absoluto do vivido (SARTRE, 1983, p.483)

Este absoluto do vivido é aceitação da incerteza da ação, sem possibilidade de uma redenção de uma síntese que justifique a situação histórica posteriormente. O absoluto vivido não tem privilégio sobre outros momentos históricos diferentes, nem os passados, nem os vindouros. Sartre neste sentido repõe a relevância da vivência individual. Pode-se até enquadrar um momento histórico e suas condicionantes em correntes de pensamento ou momentos, mas não o vivido dos indivíduos, que não são reintegrados numa dialética ou em algum esquema de saber: “nós podemos integrar o estoicismo, mas não a escolha de ser estoico tomada na incerteza de ter razão. Podemos integrar o noema da revolução de 89, não a expectativa dos deputados do terceiro estado no jogo de Péla12” (SARTRE,1983, p.483).

Assim, o caráter individual preservado subverte também a ênfase de momentos na história que apresentam-se enquanto meros momentos frente ao absoluto. O passado e aqueles que viveram o passado tiveram uma significação e contradições próprias, assim como o presente, não havendo uma superioridade ou superação de uma situação anterior sobre a posterior: “e se o momento presente é um absoluto vivido, e se não há o privilégio especial sobre os outros, então se torna claro que os momentos passados foram também os absolutos vividos e que aquilo não é recuperável” (SARTRE, 1983, p.483).

Sartre toma como exemplo, embora seja possível qualquer época histórica, a Idade Média. O aparecimento do canhão e o surgimento da burguesia nas cidades faz com que “[…] a Idade Média [seja] constituída por elementos assimiláveis e não assimiláveis” (SARTRE,1983, p.86). Isto é, há elementos novos que surgem no interior da idade média que retroativamente são vistos como não perfeitamente ajustados ao modelo medieval e geram germes de mudança. E, embora a burguesia seja retroativamente vista como grupo que sucede a decadência da Idade Média, a realidade vivida da idade média não a vive como decadência e esta visão se liga ao modo como se projeta o futuro em relação ao passado:

Mas a realidade vivida da Idade Média é que ela não a vive como sua morte, e que ela não distingue isto que é o futuro verdadeiro e passado e o que ele ultrapassa em direção ao seu futuro próprio (futuro vivido de suas possibilidades), sendo de uma vez o passado e os germes do futuro verdadeiro. De modo que o futuro verdadeiro é de uma vez só em parte determinado pelo futuro próprio e em parte negação do futuro próprio (SARTRE, 1983, p.86).

O homem do medievo não percebe que o seu futuro real ou verdadeiro caminha para o fim da Idade Média, embora contribua para este futuro verdadeiro sem ter necessariamente uma compreensão disto. O verdadeiro futuro, o qual só aparece como verdadeiro devido a esse olhar retroativo dos posteriores, foi determinado por este homem medieval que tinha suas possibilidades frente ao horizonte medieval (futuro próprio), e, mesmo não ciente das mudanças que adviriam, compôs e viveu sua realidade dentro de uma compreensão de mundo que posteriormente seria abolida, em parte devido à sua própria ação no mundo. A questão é que este projeto vivido e que se tornou ultrapassado por uma outra forma histórico-social não é para este indivíduo medieval que o vivenciou um momento menor. As contradições e problemas que este homem medieval padece no seu tempo não são recuperáveis pelo tempo atual. O que foi vivido por este homem no medievo não pode ser reconciliado pela extinção de um problema no tempo atual.

Tal relação que trata sobre a impossibilidade de recuperação do vivido ressignifica de modo diferente o modo como Hegel indicia o tratamento do indivíduo na sua obra frente ao desenvolvimento do Espírito:

Com efeito, o que o indivíduo para si é na sua singularidade não pode ser lei para a realidade efetiva universal, da mesma maneira que a lei universal não é apenas para os indivíduos singulares, os quais podem nela ser deixado para trás. […] pode também acontecer que o indivíduo seja injustamente tratado; mas isso em nada afeta a história universal, à qual os indivíduos servem como meio da sua progressão (HEGEL, 2020, p.77).

A perspectiva do desenvolvimento do Espírito mitiga a vivência e padecimentos dos indivíduos em prol desta progressão. Hegel evidencia bem esta proeminência de desenvolvimento ao tratar sobre as figuras heroicas que promovem o movimento do espírito:“os grandes indivíduos na história universal são, pois, os que apreendem este universal superior e o convertem em fim seu; são os que realizam o fim conforme o conceito superior do espírito” (HEGEL,2020, p.96). Estas figuras histórico-universais estão habilitadas, para além de questões morais, a destruir antigas estruturas e indivíduos para a démarche do espírito: “uma grande figura que caminha emproadamente esmaga muitas flores inocentes, destrói por forças muitas coisas no seu caminho” (HEGEL,2020, p.103). Há uma identificação, em Sartre, deste modelo com um processo de instrumentalização do homem em prol deste espírito que se desdobra.

A história enquanto processo dialético hegeliano compreendido por Sartre pressupõe não uma história de liberdade onde o futuro aparece como possibilidade imprevista, mas como história definida com um fim de realização da razão e que é retroativamente capturada pelo sábio: “[...] sabedoria supõe o fim da história. Ela é, pois, sobretudo, inteiramente contemplativa” (SARTRE, 1983, p.96). A sabedoria já pressupõe a realização do movimento no espírito sendo, meramente descritiva e reconhecida retroativamente. Como propõe Ang:

Para Sartre, Hegel entendeu a história como totalizada, primeiro objetivando os seres humanos na história como conhecedores e, em seguida, localizando-os na história onde eles aparecem como o conhecido. Isso porque Hegel via os seres humanos não mais como motores da história, mas com a liberdade que foi já constituída e, portanto, a história tornou-se Conhecimento objetivo totalizado sem a necessidade de se provar. Dessa forma, Sartre considerava Hegel ter reduzido a existência a um objeto de conhecimento ao não reconhecer a separação entre a subjetividade do Ser e o processo de conhecimento. Isso resultou em uma compreensão totalizada da história que se transformou em idealismo. Para Sartre, o historicismo de Hegel começou no início do fim da História e, como tal, sua história estava acabada e completa fornecendo uma previsão do passado, e sem nenhuma doutrina de ação, ela poderia apenas adivinhar o futuro (ANG, 2014, p.239, tradução nossa).

Mas Sartre marca que existe uma implicação entre liberdade e história que não pode resumir o futuro a uma extensão de presente e do passado ou a um autodesdobramento de uma ideia racional. Quando se ensaia ligar a liberdade ao campo das necessidades, ainda que o necessário seja o desdobramento da ideia e do espírito, existe a destruição da história enquanto aparição do novo, do singular: “se a história tem uma consistência própria , se ela recusa, por ela mesmo, de desvanecer em sociologia, é precisamente por causa de sua unicidade” (SARTRE,1983, p.64). A história traz sempre o único, o contingente que torna possível o não prescritível em estruturas e invenção. Sartre assim identifica: “ […] história é liberdade” (SARTRE, 1983, p.64).

Sartre nota, por fim, que a dialética hegeliana, a qual descreve as figuras diversas do espírito, mostra um processo dolorosos e de trabalho de vidas humanas descrita com “[…] a mais profunda indiferença” (SARTRE,1983, p.96).

Sartre conclui a crítica à Hegel lembrando que o modo de tratar a história hegeliana é a de uma ciência do passado enquanto o seu projeto é de fazer uma historialização (historialization) no sentido do Para-si compreender a história se remetendo às possibilidades, riscos e inacabamentos do presente e de um futuro projetado: “[a história enquanto] uma historialização no sentido que ela desvelaria verdadeiramente a dimensão do futuro” (SARTRE, 1983, p.486). O futuro historializado corretamente mostra sua abertura, indeterminação e ignorância, mas não um asseguramento, progressão ou desenvolvimento histórico garantido previamente por uma dialética ou qualquer evolução de eventos: “risco de não mais poder existir, risco de estagnar indefinidamente num dos aspectos de sua história” (SARTRE, 1983, p.483). Além disso, como acrescenta Moura, o Para-si nessa historialização se depara com a facticidade do real, gerando sua própria dimensão histórica subjetiva:

O projeto pelo qual o para-si se historializa encontra-se perpetuamente em tensão com a historicização do mesmo projeto, isto é, com as maneiras pelas quais ele se tornará objetivo no processo histórico. A liberdade da consciência se depara com a adversidade inerente da faticidade, constituindo a relação entre o projeto subjetivo e historicização desse projeto sob o fundo da ignorância do para-si acerca de si mesmo: nada está pronto e não há aquele que tenha conhecimento onisciente de si e do mundo. O projeto ou a sucessão dos projetos constituem a dimensão histórica que o sujeito tem de si e do mundo. O projeto ou a sucessão dos projetos constituem a dimensão histórica que o sujeito tem de si mesmo (MOURA, 2010, p.107).

2. Considerações finais

Observamos neste artigo o diálogo constituído por Sartre acerca da história em relação a Hegel. Iniciamos explicitando o contexto de interesse para que Sartre avalie o assunto da história, isto é, a relação entre moral e história. Evidenciamos inicialmente que a perspectiva histórica é ligada inicialmente às indagações morais na medida que o modo como percebemos a história e os atos dos agentes históricos são ligados a noção de liberdade e o que o indivíduo pode fazer numa dada situação. Histórias deterministas mitigariam a liberdade, sendo relevante a avaliação se a noção de história hegeliana e sua relação dialética trazem elementos elusivos no que concerne a liberdade.

Analisamos que para tal revisão do processo hegeliano, existem alguns esclarecimentos próprios de Sartre acerca da história como a ausência de neutralidade na percepção da história e o perspectivismo inerente a lidar com o fato histórico. Existe também um processo de desconstrução do conceito hegeliano da história, relacionando a história hegeliana a um relato de um processo idealizado e uma história constituída por uma finalização e acabamento. Sartre recorre a Fenomenologia do Espírito para reavaliar o relato idealizado da história contido na dialética do senhor e do escravo e recorre a contraexemplos onde o processo de dialética aparece enquanto ambíguo ou mesmo desvinculando alguns eventos históricos de um desenvolvimento dialético. Sartre também critica o processo pressuposto de finalização da história contido na especulação hegeliana, frisando o caráter de incompletude do fazer histórico. Há o processo contínuo de transformação dos projetos a serem alcançados de acordo com a relação e disputa entre agentes históricos.

Sartre frisa ainda sua noção de uma história que seria uma totalidade destotalizada, um processo em devir e que se vincula a uma plasticidade das finalidades históricas de acordo com os agentes. Por fim, o caráter de historialização aparece enquanto processo rico de inacabamento das possibilidades históricas vindouras, onde as virtualidades do fazer histórico e do que está em porvir continuam em disputa.

Referências

ANG, J. Sartre and Hegel on Thymos, History and Freedom. Cosmos and History: The Journal of Natural and Social Philosophy, vol. 10, no. 2, 2014.

HEGEL, G. A razão na História. São Paulo: Martins Fontes, 2020.

HEGEL, G . Fenomenologia do Espírito. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

LAFLAMME, S. Sartre et la Sociologie: La notion de totalisation. Philosophiques, vol. X, n. 1, 1983.

MOURA, C. E. Psicanálise Existencial, Existencialismo e História : a dimensão sócio-material e a autenticidade no processo da construção de si. Tese (Doutorado em Filosofia). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015.

RAMOS, C. O Conceito hegeliano de liberdade como estar junto de si em seu outro. Filosofia Unisinos, São Paulo, v.10. n. 1, p.15-27, 2009.

SARTRE, J. P. Cahiers pour une morale. Paris: Gallimard, 1983.

SILVA, F. Sartre e o humanismo. ed. 70. São Paulo:Almedina, 2019.

SILVA, F. Para a compreensão da história em Sartre. Tempo da Ciência, v. 11, n.22, p. 25-37, 2004.

Notas

2 O homem que passa por tal conversão, entende a liberdade como condição e um fim, entretanto essa liberdade em situação não pode ser uma mera empresa individual, visto que a alienação e a objetivação da liberdade humana advém do outro e da sociedade na qual ele está inserido. Seria preciso engajar essa liberdade, reconhecendo a liberdade do Outro para que surjam maiores possibilidades não alienantes e objetificantes.

3 O espírito de seriedade é uma postura humana problemática, pois propõe, no interior de seu discurso, dados valores como independentes e autônomos da significação humana. Há uma transferência do que é valorado/desejado não mais como uma expressão da escolha do Para-si, mas como algo que apresentaria valor intrínseco. Assim o espírito de seriedade projeta equivocadamente todo valor para além da realidade humana, como um valor em si ou um desejo não originado da liberdade do Para-si.

4 Franklin Leopoldo constitui uma ressalva quanto ao fato que está no horizonte da avaliação sartriana “[…] é preciso evitar que a facticidade humana (histórica) seja abordada como fatos ou conjunto de fatos, de acordo com as exigências epistemológicas do determinismo factual de cunho naturalista. Entenda-se: o caráter inelutável da facticidade não pode ser assimilado ao determinismo natural, porque a facticidade não determina propriamente o indivíduo de forma direta, mas institui os limites da situação em que a liberdade será exercida a partir de fatos que transcendem o sujeito” (SILVA, 2004, p.33).

5 “Convém que a história tenha sua crise como a física e se libere do absoluto hegeliano e marxista” (SARTRE,1983, p.61).

6 Ou como coloca de forma mais sintética Ramos: O que deve caracterizar a liberdade é, precisamente, a conciliação entre os dois aspectos que a constituem, aparentemente dicotômicos: o aspecto subjetivo que ampara a moralidade (Moralität) e a objetividade institucional das ações humanas que fundamenta a realidade social (Sittlichkeit) (RAMOS, 2009, p.26).

7 “ A totalidade destotalizada, [...] consiste numa totalização inacabada, itinerário de subjetivação” (SILVA, 2019, p.62). A história sendo por excelência feita pelos homens apresenta a mesma característica de destotalização ou inacabamento do homem enquanto um devir , um processo não terminado na atuação de sua liberdade e no seu fazer.

8 “A História , em relação à liberdade ,é exatamente o Outro” (SARTRE, 1983, p.123).

9 Hegel, na realidade, trata do Oriente em obras como Princípios da filosofia do direito, na Introdução a História da filosofia e preleções e escritos conhecidos como Razão na história. Mas sua forma de tratamento, comparativamente ao tempo e diversidade de povos e organização social do oriente, é sempre breve e avaliada de modo bastante resumido como um momento em que existe uma forte teocracia em que o Estado não deixa espaço para o campo individual, frisando o aspecto servil e autoritário do modelo oriental: “ Os edifícios sumptuosos dos Estados orientais constituem configurações substanciais em que estão presentes as determinações racionais de modo que os sujeitos permanecem apenas acidentes” (HEGEL, 2020, p.234).

10 Hegel frisa que não é apenas o trabalhar como caráter positivo do escravo lidar com o objeto que é relevante no agir do escravo, mas também o medo relacionado originalmente com o fazer do escravo sobre o senhor. Do medo procederá o caráter disciplinar e constante de lidar com a coisa-objeto.

11 A ênfase na dialética do senhor e do escravo para a compreensão de Hegel, muitas vezes negligenciando ou mitigando a relevância das figuras posteriores do espírito, advém das interpretações francesas particularmente na interpretação de Kojéve em Introdução à leitura de Hegel (1947) ao qual trata a pare IV da fenomenologia como base geral de compreensão da dialética hegeliana. Sartre não está isento desta influência.

12 Referência ao juramento do jogo da péla, local onde o terceiro estado de origem plebeia e burguesa se reuniu e ficou para elaborar um constituição francesa.

Material suplementario
Notas
Notas de autor
1 Doutor(a) em Filosofia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia – GO, Brasil.
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