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Deleuze e seu outro
Deleuze and his other
Griot: Revista de Filosofia, vol. 23, núm. 1, pp. 120-133, 2023
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepción: 03 Diciembre 2022

Aprobación: 11 Febrero 2023

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v23i1.3200

Resumo: O conceito de outrem (autrui) não recebeu a devida atenção no conjunto da filosofia de Deleuze até recentemente (VENTURA, 2020; FERREIRA, 2021). Outrem aparece na obra deleuziana em alguns momentos de Diferença e Repetição, em O que é a filosofia? – obra escrita juntamente a Félix Guattari – mas, sobretudo, num texto presente no apêndice de Lógica do sentido intitulado “Michel Tournier e o mundo sem outrem”, no qual ele comenta o romance de M. Tournier, Sexta-feira ou os limbos do pacífico. Outrem nada mais é do que a expressão de um mundo possível, ou ainda, uma estrutura que organiza a percepção e assegura as margens e transições do mundo. Quando esta estrutura se dissolve, os simulacros ascendem às superfícies, destruindo as formas e libertando as forças e intensidades. Acreditamos que o agente dessa dissolução é Sexta-feira, cuja vinda desarranja a ordem forjada por Robinson em sua ilha. Sexta-feira já não funciona como a estrutura outrem, visto que ele é um outro de outrem, que vai possibilitar o acesso a um campo transcendental impessoal, pré-individual, povoado de singularidades livres. Os conceitos de Emmanuel Lévinas de “rosto” e “absolutamente outro” (tout autre) auxiliará nesse movimento a fim de compreender o outro de Deleuze, embora seja necessário apontar a sua pertinência e as suas limitações.

Palavras-chave: Deleuze, Estrutura-outrem, Virtual, Lévinas.

Abstract: The concept of the other (autrui) did not receive due attention in Deleuze's philosophy as a whole until recently (VENTURA, 2020; FERREIRA, 2021). The Other appears in Deleuze’s work in some moments of Difference and Repetition, in What is philosophy? – a work written together with Félix Guattari – but, above all, in a text present in the appendix of Logic of Sense entitled “Michel Tournier and the world without others”, in which he comments the M. Tounier’s novel, Friday or the pacific limbo. The Other is nothing but the expression of a possible world, or even a structure that organizes perception and ensures the margins and transitions of the world. When this structure dissolves, the simulacra ascend to the surfaces, destroying the forms and releasing the forces and intensities. We believe that the agent of this dissolution is Friday, whose coming disrupts the order forged by Robinson on his island. Friday no longer functions as the structure-other, since it is another of the Other, which will allow access to an impersonal, pre-individual transcendental field, populated by free singularities. Emmanuel Lévinas's concepts of “face” and “wholly other” (tout autre) will help in this movement in order to understand Deleuze's other, although it is necessary to point out its pertinence and its limitations.

Keywords: Deleuze, Other-structure, Virtual, Lévinas.

Salvo algumas recentes incursões, o conceito de outrem recebeu pouca atenção na literatura referente à filosofia de Gilles Deleuze. Destacamos os artigos “The intensive Other: Deleuze and Lévinas on ethical status of the other”, de David Ventura (2020) e “O conceito de outrem”, de Filipe Ferreira (2021)2. Os autores concordam que este conceito recebeu atenção isolada e limitada, possuindo um estatuto marginal e relegado a mera condição de apêndice, embora permaneça um dos pontos mais problemáticos da filosofia inicial de Deleuze (VENTURA, 2020). Convém destacar que o conceito de outrem aparece, pelo menos, em três momentos da obra deleuziana, a saber, em Diferença e Repetição, em O que é a filosofia? – momento em que o conceito é retomado – e, sobretudo, no apêndice de Lógica do Sentido, em um texto dedicado ao livro “Sexta-feira ou os limbos do pacífico”, de Michel Tournier, qual seja: “Michel Tournier e o mundo sem outrem”. Um dos motivos para isso, talvez, seja o fato de o conceito de outrem sugerir a ideia de uma transcendência, o que Deleuze não pode admitir em seu projeto filosófico.

Desse modo, o presente texto pretende revisitar este conceito e se inserir neste debate, chamando a atenção para um detalhe do romance de Tournier: o momento em que Robinson – após agredir Sexta-feira – vislumbra seu rosto, pois é este momento que enseja o encontro da filosofia de Deleuze com a de Emmanuel Lévinas, principalmente, a partir do conceito de rosto, que encarna a ideia de um absolutamente outro – uma alteridade radical – que ultrapassa infinitamente o eu. Isso se justifica na medida em que o conceito de outrem tem o conceito de rosto entre seus componentes, haveria, então, nessa zona de vizinhança, um prolongamento de um conceito no outro3. Para isso, propõe-se apresentar em linhas gerais o romance de Tournier, “Sexta-feira ou os limbos do pacífico”; o conceito de outrem, em Deleuze e, finalmente, confrontar o outrem deleuziano com o conceito de rosto e absolutamente outro (tout autre), de Emmanuel Lévinas.

Robinson e o mundo sem outrem

Inspirado no romance de Daniel Defoe4, Sexta-feira ou os limbos do pacífico, de Michel Tournier, narra a história de Robinson: o naufrágio de seu navio, Virginie; sua luta para fugir da ilha, inicialmente, batizada de Ilha da Desolação; a construção seu barco Evasão e seu insucesso em conseguir sair da ilha; seu estabelecimento na ilha – agora, rebatizada de Speranza –; as medidas adotadas para não se desumanizar (ordenação do tempo e do espaço); seu encontro com Sexta-feira e sua transformação elementar. À diferença do Robinson de Defoe, que remete às origens, o Robinson de Tournier deve ser remetido aos fins. A imagem da origem, observa Deleuze (1998, p. 312), “pressupõe o que ela pretende engendrar”; reproduzindo o nosso mundo; já, no segundo caso, isto é, referido aos fins, ele se desvia necessariamente de nosso mundo, conduzido “a fins completamente diferentes e divergentes dos nossos, em um mundo fantástico ele mesmo desviado” (DELEUZE, 1998, p. 313). Mas qual é o fim de Robinson? Ora, seu fim não é senão a desumanização, isto é, devir-inumano, onde “o encontro da libido com os elementos livres, a descoberta de uma energia cósmica ou de uma grande Saúde elementar, que não pode surgir a não ser na ilha e ainda na medida em que a ilha se tornou aérea e solar” (DELEUZE, 1998, p. 313).

Pouco a pouco, enquanto Robinson se desumanizava, o mundo se tornava i-mundo, na medida em que “o mundo e suas significações ruíram-se completamente a partir do naufrágio” (JARDIM, 2007, p. 110). O que dava coerência ao seu mundo habitual era a multidão de seus semelhantes, sem a qual “não tinha forças para, sozinho, se aguentar de pé” (TOURNIER, 2014, p. 39). Na ausência de outrem, a relação de Robinson com as coisas se encontrava desnaturada, mesmo a linguagem deixava de funcionar adequadamente, na medida em que “a linguagem depende fundamentalmente daquele universo povoado onde os outros são faróis que criam em seu redor um ilhéu luminoso, em cujo interior tudo é, se não conhecido, pelo menos cognoscível” (TOURNIER, 2014, p. 53). Assim, ele passa a duvidar do sentido das palavras que não designam coisas concretas, uma vez que a linguagem estava perdendo sua dimensão metafórica, o seu uso retórico: a linguagem só podia ser compreendida literalmente, e, para ele, as figuras retóricas só designavam o absurdo e o irreal. Isso porque a linguagem é precisamente aquilo que se partilha com outrem, e sua razão de ser é comunicar mundos distintos. Sem esses faróis – quer dizer, sem outrem – “reina uma noite insondável”, onde não se é rodeado a não ser pelas trevas. É preciso outrem para conjurar “a ilusão de ótica, a miragem, a alucinação, o sonho desperto, o fantasma, o delírio, a perturbação auditiva... a mais segura muralha é o nosso irmão, vizinho, amigo ou inimigo, alguém, em suma” (TOURNIER, 2014, p. 53). Nesse sentido, Robinson confessa que a sua solidão:

[...] não ataca apenas a inteligibilidade das coisas: vai também minando os próprios alicerces delas. Cada vez mais, assaltam-me dúvidas quanto à veracidade testemunhal dos meus sentidos. Sei agora que a esta terra, sobre a qual os meus pés se apoiam, seria necessário, para não vacilar, que outros além de mim a pisassem (TOURNIER, 2014, p. 53).

O episódio envolvendo seu encontro com o cãozinho Tenn ilustra seu processo de desumanização: Tenn, o cachorro do capitão do navio que havia sobrevivido ao naufrágio, “pertencia a uma raça de cães que manifestam uma necessidade vital, imperiosa, da companhia humana, da voz e da mão de uma pessoa” (TOURNIER, 2014, p. 33-34). Mas o cão foge, ao encontrar Robinson pela primeira vez. Era um indício da desumanização de Robinson, pois, Tenn não reconhecia nele um homem. Robinson conclui que: “de nós dois, era eu o selvagem, e não duvido de que foi o meu aspecto feroz, o meu rosto alucinado que afugentaram o pobre bicho, que permanecia mais profundamente civilizado do que eu” (TOURNIER, 2014, p. 60-61). Quando Robinson reconquista sua humanidade, ao impor uma ordem à ilha, Tenn regressa, então, o náufrago declara triunfante que o retorno do cão o enchia de alegria, porque atestava e recompensava a sua vitória sobre as forças destrutivas que o arrastavam para o abismo: “o cão é o companheiro natural do homem (TOURNIER, 2014, p. 61). Mas a humanidade de Robinson só é, de fato, recuperada, num processo demorado e artificial de reconstrução de outrem. Para compensar a ausência de outrem, “Robinson procura um substituto, capaz de manter apesar de tudo, o hábito que outrem dava às coisas: a ordem, o trabalho” (DELEUZE, 1998, p. 323). Ele sabe que a “se a presença de outrem é um elemento fundamental do indivíduo humano, [mas] nem por tal motivo ela é insubstituível. Decerto necessário, mas não indispensável” (TOURNIER, 2014, p. 104).

Inicialmente, Robinson “sentia uma insuperável repugnância por tudo o que pudesse assemelhar-se a medidas para estabelecer-se na ilha” (TOURNIER, 2014, p. 24). Não contava os dias que passavam, nem se esforçava para se alimentar, a única iniciativa que adotou foi construir uma embarcação para sair da ilha, a qual nomeou Evasão. Todavia, seu plano fracassa, assim, começa a tomar medidas para se estabelecer na ilha. É preciso, diz Robinson, “contra os efeitos destruidores da ausência de outrem, construir, organizar e legislar” (TOURNIER, 2014, p. 73). A vida perfeita deveria ser regida ou comandada por uma lei de economia e harmonia; apenas isso poderia evitar ou adiar seu processo de desumanização. Com efeito, seu triunfo sobre a degradação passava pelo domínio sobre a ilha. Manter a humanidade significava, para ele, racionalizar, a partir da medição e cálculo do tempo e do espaço. Ele exigia que tudo à sua volta fosse “medido, provado, certificado, matemático, racional” (TOURNIER, 2014, p. 63). O seu tempo deveria ser “controlado por um tique-taque matinal, objetivo, irrefutável, exato, verificável” (TOURNIER, 2014, p. 63). Seu projeto resumia-se em tornar “esta ilha opaca, impenetrável, repleta de surdas fermentações e de maléficos remoinhos[...] numa construção abstrata, transparente, inteligível até os ossos” (TOURNIER, 2014, p. 63). Segundo Deleuze (1998, p. 323):

A ordenação do tempo pela clepsidra, a instauração de uma produção superabundante, o estabelecimento de um código de leis, a multiplicidade dos títulos e funções oficiais de que Robinson se encarrega, tudo isto dá testemunho de um esforço para repovoar o mundo de outros que são ainda ele mesmo e para manter os efeitos da presença de outrem quando a estrutura abre falência.

A administração total da ilha parecia ser sua única salvação, afinal, era sua última ligação com o mundo dos homens, isto é, do “comportamento humano a que tinha permanecido fiel depois do naufrágio” (TOURNIER, 2014, p. 112). Ventura (2020, p. 330-331) afirma que, a despeito de sua tentativa de resgatar sua humanidade, sob “um rígido regime de disciplina produtiva e criando um código de moral para o governo de Speranza”, Robinson pressente uma “outra força que o leva a outras experiências”. Nesse sentido, pode-se concluir que “todo este espartilho de convenções e prescrições que a si impunha para não cair não o impedia de sentir com angústia a presença selvagem e indomável da natureza tropical e, dentro de si, o trabalho erosivo da solidão sobre a sua alma de homem civilizado” (TOURNIER, 2014, p. 75-76).

É quando a clepsidra para – pois, Robinson havia esquecido na noite anterior de alimentá-la –, que ele começa a descobrir a ilha e a ter experiências diferentes do que estava habituado. Trata-se do seu “momento de inocência”, em que ele “julgou descobrir outra ilha atrás daquela onde há tanto tempo penava, outra ilha mais fresca, mais quente, mais fraternal, que a mediocridade das suas preocupações normalmente lhe mascarava” (TOURNIER, 2014, p. 86). Speranza não era mais apenas um domínio a ser regido, “tornava-se, sim, uma pessoa, de natureza indiscutivelmente feminina, para a qual o inclinavam tanto as suas especulações filosóficas como as novas necessidades do seu coração e da sua carne” (TOURNIER, 2014, p. 92). E, de fato, Robinson toma Speranza como sua esposa:

Repelindo os seus escrúpulos, Robinson pensou que certas árvores da ilha podiam atrever-se a utilizá-lo, tal como as orquídeas faziam com os himenópteros, para veicular o respectivo pólen. Então, os ramos dessas árvores metamorfosear-se-iam em mulheres lascivas e perfumadas, cujos corpos dobrados estariam prontos a recebê-lo... (TOURNIER, 2014, p. 108).

Em sua primeira experiência, Robinson descobre em uma quilaia – uma espécie de árvore local – a companheira que lhe auxiliaria em sua descoberta: a árvore é descrita como possuindo a casca lisa e tépida, “macia no interior da forquilha, cuja axila era forrada por um líquen fino e sedoso”; além de seus troncos se assemelharem a “duas enormes coxas negras” (TOURNIER, 2014, p. 109). Apesar de sua hesitação inicial, “estendeu-se nu sobre a árvore fulminada, abraçado ao tronco – e o sexo aventurou-se na pequena cavidade musgosa que se abria na junção dos dois ramos. Amoleceu-o um venturoso torpor” (TOURNIER, 2014, p. 109). Quando uma aranha pica sua genitália, ele interpreta o acidente como uma doença venérea. É assim que Robinson descobre sua sexualidade elementar, a sua via vegetal.

A estrutura outrem e seu rumor benevolente

Deleuze (1998, p. 314) caracteriza o romance de Tournier como um “romance cômico de aventuras e um romance cósmico de avatares”, no qual não é desenvolvido senão uma tese, qual seja, “o homem sem outrem em sua ilha” (DELEUZE, 1998, p. 314). Trata-se de saber, segundo Deleuze (1998, p. 314), “que vai acontecer no mundo insular sem outrem?”. Antes de tudo, outrem se revela como um efeito, ou melhor, um efeito sem causa, mais ou menos, como se fala de efeito sonoro, efeito ótico etc. Isso porque esse efeito só se mostra, justamente, quando a causa está ausente: outrem – considerado como um efeito – só se mostra em sua ausência. Assim, pensar os efeitos de outrem significa considerar outrem como um efeito. Para Deleuze (1998, p. 314), devemos procurar, “primeiro o que significa outrem por seus efeitos: buscaremos os efeitos da ausência de outrem na ilha, induziremos os efeitos da presença de outrem no mundo habitual, concluiremos o que é outrem e em que consiste sua ausência”. Um mundo sem outrem é, em larga medida, um mundo desestruturado, visto que outrem tem, aqui, uma função organizadora e regulativa, pois “o primeiro efeito de outrem é, em torno de cada objeto que percebo ou de cada ideia de que penso, a organização de um mundo marginal, de um arco, de um fundo que outros objetos, outras ideias podem sair segundo leis de transição que regulam a passagem de uns aos outros” (DELEUZE, 1998, p. 314, itálico nosso). À guisa de exemplo, outrem deve ser suposto como que habitando por detrás de cada objeto que vejo e toco, isto é, a parte escondida que não vejo e toco deve ser tida como visível para outrem, assim, “quando eu tiver feito a volta para atingir esta parte escondida, terei alcançado outrem por trás do objeto, para dele fazer uma totalização previsível” (DELEUZE, 1998, p. 315). Em suma, tudo aquilo que excede meu campo perceptivo deve ser suposto como percebido por outrem5. Dessa forma, outrem é o fiador de um mundo estável, quer dizer, pacificado, na medida em que é

outrem [que] assegura as margens e transições no mundo. Ele é a doçura das contiguidades e das semelhanças. Ele regula as transformações da forma e do fundo, as variações de profundidade. Ele impede os assaltos por trás. Povoa o mundo de um rumor benevolente. Faz com que as coisas se inclinem uma em direção às outras e de uma para a outra encontrem complementos naturais (DELEUZE, 1998, p. 315).

Um mundo sem outrem é um mundo que deixou de funcionar, pois outrem não é apenas o próximo, o semelhante, mas aquilo que torna possível o mundo funcionar adequadamente. Tudo indica, portanto, que outrem confere estabilidade ao nosso mundo, pois “ao fornecer ao sujeito uma concepção possível do que pode ser visto como um objeto, Outrem organiza o campo perceptivo desse sujeito de acordo com as categorias de expectativa e possibilidade” (VENTURA, 2020, p. 335). Com efeito, poder-se-ia dizer que um mundo em que outrem falta é um “mundo cru e negro, sem potencialidades e virtualidades: é a categoria do possível que desmoronou’ (DELEUZE, 1998, p. 316). Reconhece-se aí uma cumplicidade entre outrem e o possível. Quando outrem falta, o possível deserta. Somos assaltados por um mundo que devém traiçoeiro, assim, “cada coisa, tendo abdicado do seu modelo, reduzida as suas linhas mais duras esbofeteia-nos e golpeia-nos pelas costas” (DELEUZE, 1998, p. 316). Outrem implica, então, a organização de um mundo marginal, porquanto “é porque o primeiro objeto dispunha de toda uma margem em que eu sentia já a preexistência dos seguintes, de todo um campo de virtualidades e potencialidades que já sabia capazes de se atualizarem” (DELEUZE, 1998, p. 315). O mundo se torna insuportável e já não é mais possível habitá-lo, justamente, porque não há mais possível. Segundo Deleuze (1998, p. 316), na ausência de outrem:

Não há mais transições; acabou-se a doçura das contiguidades e das semelhanças que nos permitem habitar o mundo. Mais nada subsiste além das profundidades infranqueáveis, das distâncias e das diferenças absolutas ou então, ao contrário, de insuportáveis repetições, assim como extensões exatamente superpostas.

Eis o que é outrem: “nem um objeto no campo de minha percepção, nem um sujeito que me percebe: é, em primeiro lugar, uma estrutura do campo perceptivo, sem a qual este campo no seu conjunto não funcionaria como o faz” (DELEUZE, 1998, p. 316). Ferreira (2021) lembra que o problema da percepção não se coloca mais na relação sujeito-objeto, qualquer que seja o foco dessa relação, mas, sim, a partir de outrem, isto é, sobre a “relação que o próprio sujeito estabelece com este fundo, outrem, com o que o campo perceptivo do sujeito pressupõe no seu conjunto (pré-conscientemente) em relação a outrem” (FERREIRA, 2021, p. 469). Outrem, ou melhor, a estrutura outrem é o que torna possível a percepção, inversamente, outrem define-se, como a estrutura do possível. Doravante, o possível não se compreende mais como uma categoria abstrata – a qual já havia sido alvo de críticas por parte de Deleuze6 –, que designa alguma coisa que não existe, uma vez que “o mundo possível expresso existe perfeitamente, mas não existe (atualmente) fora do que o exprime” (DELEUZE, 1998, p. 317). O possível deixa de ser abstrato e imaginário, ao contrário, ele se torna real. A esse propósito, Franco (1998, p.48) diz que “o possível tem uma realidade que não deve ser confundida com o real, cujo possível é o possível”. O possível já não incide sobre as alternativas atuais, tampouco, se projeta; ele deve ser pensado como efetuação, e não realização. Efetuar, a esse título, nada mais é do que atualizar. De um possível deve-se dizer que ele insiste antes de existir, pois há no possível uma insistência, mas não uma existência. Segundo Tournier (2014, p. 115-116), “há uma grande e comum aspiração do inexistente à existência. O que não ex-siste in-siste. Insiste para existir. Todo este pequeno mundo se empurra à porta do grande, do verdadeiro mundo” (TOURNIER, 2014, p. 115-116). A título de ilustração:

Outrem não aparece aqui como um sujeito, nem como um objeto mas, o que é muito diferente, como um mundo possível, como a possibilidade de um mundo assustador. Esse mundo possível não é real, ou não o é ainda, e todavia não deixa de existir: é um expressado que só existe em sua expressão, o rosto ou um equivalente do rosto. Outrem é, antes de mais nada, esta existência de um mundo possível. E este mundo possível tem também uma realidade própria em si mesmo, enquanto possível: basta que aquele que exprime fale e diga “tenho medo”, para dar uma realidade ao possível enquanto tal (mesmo se suas palavras são mentirosas) (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 28).

Deleuze afirma que o possível não deve mais ser entendido por qualquer semelhança, mas como “o estado do implicado, do envolvido, em sua própria heterogeneidade em relação àquilo que o envolve: o rosto aterrorizado não se assemelha àquilo que o aterroriza, mas o envolve em estado de mundo aterrorizante” (DELEUZE, 1988, p. 413). Mais ainda, “ele a implica, a envolve como algo de diferente, numa espécie de torção que põe o expresso no exprimente” (DELEUZE, 1998, p. 316). Assim, apreender outrem não é senão explicá-lo, isso porque outrem é essencialmente implicado e implicante, ou seja, ele está implicado naquilo que o explica; desse modo, apreender outrem é desenvolver aquilo que ele envolve. Com efeito, a existência do possível, se for permitido dizer, é uma “existência” virtual e, a esse título, inseparável da existência atual. Vê-se, aqui, que virtual e possível coincidem. Deleuze (1998, p. 316) afirma que “Outrem é a existência do possível envolvido”, inversamente, “o eu é o desenvolvimento, a explicação dos possíveis, seu processo de realização no atual”. Por conseguinte, outrem é virtual, isto é, uma estrutura virtual. Segue-se daí um esquema: outrem-virtual-implicado-envolvido, de um lado, eu-atual-explicado-desenvolvido, de outro. A título de exemplo:

Povoando o mundo de possibilidades, de fundos, de franjas, de transições, – inscrevendo a possibilidade de um mundo espantoso quando ainda não estou espantado ou então, ao contrário, a possibilidade de um mundo tranquilizante quando eu me encontro realmente assustado com o mundo –, envolvendo sob outros aspectos o mesmo mundo que se mantém diferentemente desenvolvido diante de mim – constituindo no mundo um conjunto de bolhas que contém mundos possíveis: eis o que é outrem (DELEUZE, 1998, p. 319, itálico nosso).

Segundo Deleuze (1988, p. 414), “outrem funciona, pois, como centro de enrolamento, de envolvimento, de implicação”; o eu, por outro lado, caracteriza-se “por funções de desenvolvimento ou de explicação: eles não só experimentam as qualidades em geral como já desenvolvidas no extenso de seu sistema, mas tendem a explicar, a desenvolver o mundo expresso por outrem” (DELEUZE, 1988, p. 413). Deve-se dizer, portanto, que explicar outrem é, em certa medida, degradá-lo7. Mas como falar de outrem sem explicá-lo? Como se explicar (a) outrem? Ora, só posso apreender outrem, como tal, a partir de condições especiais – condições que se revelam apenas a partir do estudo transcendental8 –, motivo pelo qual Deleuze (1988, p. 414) declara que “temos o direito de exigir condições de experiência especiais, por mais artificiais que elas sejam: o momento em que o expresso ainda não tem (para nós) existência fora daquilo que o exprime”. A não-explicação não é apenas um conselho, como sugere Franco (1998)9, ela uma regra, ou ainda, uma injunção que se aplica não apenas ao conhecimento, mas, sobretudo, à ética. Deleuze (1988, p. 414, grifo nosso) afirma que “a regra que invocávamos anteriormente, isto é, não se explicar demais, significava antes de tudo não se explicar demais com outrem, não explicar outrem demais, manter seus valores implícitos”. Temos que evitar nossa tendência a explicação. Se não se deve explicar, não é em nome de algum valor que deve permanecer oculto, misterioso ou dissimulado, antes, a não-explicação é exigida porque outrem não é da ordem da explicação, mas da implicação. Isso porque “para Deleuze, desde que há desenvolvimento ou explicação, Outrem fica na encruzilhada de duas influências: a ascendente que o faz subir até o sujeito, e o descendente que não deixa de Outrem senão um objeto petrificado” (FRANCO, 1998, p. 55). Não explicar outrem ou não explicá-lo em demasia não significa não prestar atenção ou ignorá-lo, tampouco, não lhe dar satisfações ou dar-lhe as costas. É porque só se faz jus a outrem quando não o explicamos. Explicar equivale a identificar; aliás, “a fórmula segundo a qual ‘explicar é identificar’ é uma tautologia”, diz Deleuze (1988, p. 364). Assim, o imperativo da não-explicação assume também outros contornos: não se deve explicar outrem para que não se acredite que o possível já está inteiramente realizado, observa Franco (1998).

Outrem é mundo possível que o eu atualiza: não há virtualidade do lado do eu, mas apenas do lado de outrem. Não é mais o eu que torna a percepção possível, ao contrário, é outrem a priori que organiza todo o campo perceptivo. Não haveria sequer diferença de sexos sem outrem, nesse sentido, Deleuze (1998, p. 319) observa que “o efeito fundamental é a distinção de minha consciência e de seu objeto. Esta distinção decorre com efeito da estrutura Outrem”. Trata-se de uma estrutura de distinção, pois outrem nada mais é que um princípio de distinção. É outrem, e não eu, o operador das distinções: não há sujeito nem objeto, não há consciência nem coisa, antes da intrusão de outrem, porquanto “outrem assegura, por conseguinte, a distinção da consciência e de seu objeto, como distinção temporal” (DELEUZE, 1998, p. 320). Outrem deve então se atualizar nas diferenças de sexo. Um mundo sem outrem é, então, um mundo indistinto e informal, aqui, “a consciência que tenho de um objeto é o próprio objeto” (TOURNIER, 2014, p. 89). Em suma, antes de outrem advir, o mundo é um lugar tranquilizante, indistinguível da minha consciência, todavia, quando outrem surge o mundo se torna distinto e distinguível para mim. Trata-se de um estágio ingênuo, primário e impulsivo, mais ainda, “uma virgindade das coisas que possuem em si próprias – como outros tantos atributos da sua essência íntima – cor, odor, sabor e forma” (TOURNIER, 2014, p. 89). Assim, outrem é descoberto como um fator de perturbação. Segundo Deleuze (1998, p. 321):

[...] a perda de outrem, ele o experimentara primeiro como uma perturbação fundamental do mundo; nada mais subsistia além da oposição da luz e da noite, tudo se fazia contundente, o mundo tinha perdido suas transições e virtualidades. Mas ele descobre (lentamente) que é outrem, ao contrário, que perturbava o mundo. Ele era a perturbação.

Em primeiro lugar, se outrem nos perturba, é porque ele nos arranca do pensamento atual10, dando-nos acesso ao pensamento virtual, ou ainda, pensamento do virtual. É o ponto de vista de outrem – ponto de vista possível – que acrescenta à minha consciência “indispensáveis virtualidades” (TOURNIER, 2014, p. 52). Com efeito, Tournier (2014, p. 52) observa que “em Speranza, há só um ponto de vista, o meu, despojado de qualquer virtualidade”. Em segundo lugar, se outrem nos perturba, é porque ele cria uma cisão entre eu e o mundo, pois, “antes que outrem apareça, havia por exemplo um mundo tranquilizante, do qual não distinguíamos minha consciência. Outrem surge, exprimindo a possibilidade de um mundo assustador, que não é desenvolvido sem fazer passar o precedente” (DELEUZE, 1998, p. 319-320). Quando outrem falta, “a consciência e seu objeto não fazem mais do que um” (DELEUZE, 1998, p. 320). Donde a necessidade de uma inversão: “não devemos falar aqui de uma vela que projeta um raio luminoso sobre as coisas. Tal imagem deve ser substituída por outra: a de objetos fosforescentes por si próprios, sem algo exterior a iluminá-los” (TOURNIER, 2014, p. 89). O espírito não é a luz que tira as coisas da obscuridade, ao contrário, as próprias coisas são feixes de luz sem a necessidade de uma vela para iluminá-las, assim, “a consciência deixa de ser uma luz sobre os objetos para se tornar uma pura fosforescência das coisas em si” (DELEUZE, 1998, p. 321). Segundo Deleuze (2016, p. 100), “são as coisas que são luminosas por si mesmas, sem nada que as ilumine: toda consciência é qualquer coisa, confunde-se com a coisa, isto é, com a imagem de luz”. Dito de outro modo, a consciência não é mais consciência de algo (intencionalidade), mas a própria consciência é algo. A consciência é segunda em relação ao transcendental11, mas, também, segunda em relação ao campo perceptivo. Por isso, devemos nos desvincular da imagem corriqueira que se faz do conhecimento: “representando a vela o sujeito que conhece, e todo o conhecido sendo representado pelos objetos iluminados. Eis agora o que minha solidão me ensinou: esse esquema só se refere ao conhecimento das coisas através de outrem” (TOURNIER, 2014, p. 87).

O rosto de Sexta-feira

Robinson só encontra Sexta-feira no sétimo capítulo, ou seja, na segunda metade do romance, portanto, boa parte do livro é voltada a mostrar a solidão Robinson, tida como sua “implacável esposa” (TOURNIER, 2014, p. 43), e seu sentimento de “órfão de humanidade” (TOURNIER, 2014, p. 47). Sexta-feira chega, como observa Ventura (2020, p. 331), quando “duas tendências se cristalizam na mente de Robinson”, a saber: sua inclinação a racionalizar e dominar a ilha, e sua inclinação de se envolver com a natureza elementar da ilha. Assim, sua intrusão é “o período mais radical na metamorfose dos modos de vida robinsoneano” (JARDIM, 2007, p. 149). Ele chega como um acontecimento, ou melhor, Sexta-feira é o nome de um acontecimento. Por considerar que o araucano não era digno de receber um nome cristão – porquanto “um selvagem não é, de todo, um ser humano” (TOURNIER, 2014, p. 131) –, mas também não queria batizá-lo com um nome de uma coisa, Robinson decide dar-lhe o nome do dia da semana que o encontrou: Sexta-feira, uma vez que “não é nome de pessoa, nem um nome vulgar, está a meio caminho entre os dois, o de uma entidade meio viva, meio abstrata, fortemente marcada pelo seu caráter temporal, fortuito e como que episódico...” (TOURNIER, 2014, p. 131).

É Sexta-feira também o agente de um acontecimento que explode a relação recoberta de hábitos humanos, divorciando Robinson “de sua antiga humanidade, reconectando-o com a natureza elementar da ilha que inicialmente lhe causou tanto mal” (VENTURA, 2020, p. 332).

Após ter roubado o cachimbo de seu patrão e se esconder em uma caverna repleta de barris de pólvora para fumar o tabaco proibido, Sexta-feira acidentalmente causa uma explosão na ilha inteira, destruindo toda a infraestrutura artificial que Robinson havia construído, desde a ordem econômica à ordem moral. Com essa explosão, afirma Jardim (2007, p. 157), “perdem-se não só as configurações que garantiam o apaziguamento pela estrutura outrem – temporalidade, hábitos, modelos e memória, mas a impossibilidade de uma gênese”. A partir daí, Robinson deixa “de gostar da encosta, tendo feito crescer, segundo seu próprio prazer, uma outra espécie de mandrágora” (DELEUZE, 1998, p. 325). Tournier (2014, p. 167-168) comenta que:

O araucano, depois de tê-lo libertado, contra a sua vontade, das raízes terrenas, ia arrastá-lo para outra coisa. Substituiria este reino telúrico que lhe era odioso por uma ordem que lhe era própria, e que Robinson ansiava por descobrir. Debatia-se na sua velha pele um novo Robinson, que aceitava, de antemão, deixar ruir a ilha administrada para enveredar, atrás de um iniciador acidental, por um caminho desconhecido.

Tudo se passa como se Sexta-feira pudesse, enfim, substituir outrem para Robinson, ou seja, dar efetividade à estrutura que se encontrava vazia. Porém, Sexta-feira não funciona mais como “outrem reencontrado”, visto que ele chegou tarde demais e a estrutura outrem já está em processo de falência. Mesmo quando, finalmente, um navio chega para resgatá-lo, “Robinson saberá que não pode mais restaurar os homens em sua função de outrem, uma vez que a própria estrutura que preencheriam desapareceu” (DELEUZE, 1998, p. 319). Então de que maneira Sexta-feira funciona? Segundo Deleuze (1998, p. 326), “ele indica um outro mundo suposto verdadeiro, um duplo irredutível unicamente verdadeiro e neste outro mundo um duplo de outrem que ele não é mais, que não pode mais ser”. Mais do que isso, Sexta-feira é “o revelador dos elementos puros, aquele que dissolve os objetos, os corpos e a terra” (DELEUZE, 1998, p. 326). Tornar-se outra coisa que si mesmo: é Sexta-feira o responsável pelo devir-cósmico de Robinson, isto é, pelo seu devir-outro. É a vinda desse outro, ou melhor, outro de outrem (tout autre) que desarranja a ordem artificial que Robinson impunha à ilha. Nesse sentido, Sexta-feira, insiste Deleuze (1998, p. 326), já “não é um outrem, mas um outro de outrem”. Não sendo simplesmente outrem, o mestiço é um absolutamente-totalmente-radicalmente outro (tout autre). Sexta-feira não reproduz outrem – pois já não pode mais funcionar dessa maneira –, ele não é uma réplica, mas um Duplo. Seu funcionamento é ambíguo:

ora ele funciona como um objeto insólito, ora como um estranho cúmplice. Robinson trata-o ora como um escravo que procura integrar à ordem econômica da ilha, pobre simulacro, ora como o detentor de um segredo novo que ameaça a ordem, misterioso fantasma. Ora quase como um objeto ou animal, ora como se Sexta-feira fosse um além de si mesmo, uma além de Sexta-feira, o duplo ou a imagem de si. Ora aquém de outrem, ora além (DELEUZE, 1998, p. 325-326).

Assim, Robinson descobre a “existência possível de um outro Sexta-feira” (DELEUZE, 1998, p. 325). Ou ainda, um outro de outrem. O que Robinson, enfim, descobre é que “não é o mundo que é perturbado pela ausência de outrem, ao contrário, é o duplo glorioso do mundo que se acha escondido por sua presença” (DELEUZE, 1998, p. 328). É o rosto de Sexta-feira que mostra a Robinson “a possível existência de outro Sexta-Feira” (TOURNIER, 2014, p. 161). O momento que precede a descoberta dos “elementos livres” se dá a partir de um conflito entre Robinson e Sexta-feira, resumido da seguinte maneira: “Foi então que viu sob as folhas duas pequenas nádegas pretas. Estavam em plena atividade, percorridas por uma vaga que as relaxava, logo as contraía duramente, voltava a relaxá-las, e apertava-as de novo” (TOURNIER, 2014, p. 156-157). Robinson é tomado por ciúmes – não de Sexta-Feira, mas de Speranza – que se entregara ao mestiço como antes havia se entregado a ele. Espanca Sexta-Feira, chuta-o e esmurra-o. Mas algo acontece: “quatro palavras pronunciadas num último fôlego pelo mestiço trespassam de repente, a sua surdez divina. O punho esfolado de Robinson golpeia ainda uma vez, mas sem firmeza, travado por um esforço de reflexão: ‘Patrão, não me mates!’, gemeu Sexta-Feira, cego pelo sangue” (TOURNIER, 2014, p. 157). Robinson ouve o apelo de Sexta-feira, é a partir desse momento que ele vislumbra o rosto ferido do mestiço:

Voltando a cabeça um pouco à esquerda, viu o perfil direito de Sexta-Feira. Lavravam-lhe o rosto hematomas e cortes e, na maçã do rosto proeminente, afastavam-se as bordas roxas de uma lesão feia. Robinson observou, como sob uma lupa, essa máscara prognata, um tanto bestial, que a tristeza tornava mais obstinada e amuada. Foi então que notou nessa paisagem de carne sofrida e feia algo de brilhante, puro e delicado: o olho de Sexta-Feira. Sob os cílios longos e curvos, o globo ocular perfeitamente liso e límpido era incessantemente varrido, refrescado e lavado pelo movimento da pálpebra. A pupila contraiu-se sob a ação variável da luz, ajustando com precisão o seu diâmetro à luminosidade ambiente, de modo a que retina fosse sempre igualmente atingida pela luz. Na massa transparente da íris, encontrava-se imersa uma ínfima corola de plumas de vidro, uma tênue rosácea, infinitamente preciosa e delicada. Robinson estava fascinado por esse órgão tão sutilmente composto, tão perfeitamente novo e brilhante. Como é que tal maravilha podia estar incorporada num ser tão grosseiro, ingrato e vulgar? E se, neste instante preciso, descobria por acaso a beleza anatômica, espantosa, do olho de Sexta-Feira, não deveria, honestamente, perguntar-se se o araucano não era todo ele uma adição de coisas igualmente admiráveis que ele ignorava só por cegueira? (TOURNIER, 2014, p. 161).

O rosto é o próprio apelo, mais ainda, ele é o próprio do apelo. O rosto, observa Lévinas (1982, p. 70), é uma exposição absoluta, um pouco “como se nos convidasse a um acto de violência. Ao mesmo tempo, o rosto é o que nos proíbe de matar” (LÉVINAS, 1982, p. 70). Uma vez mais, Lévinas afirma que rosto é portador de uma injunção, visto que “o rosto é o que não se pode matar ou, pelo menos, aquilo cujo sentido consiste em dizer: ‘tu não matarás’” (LEVINAS, 982, p. 70). No entanto, o rosto não se expõe, antes, se impõe, isso porque o rosto – sendo sempre rosto do outro – se recusa à interpretação, resistindo à tematização. O rosto se recusa em ser conteúdo, isto é, compreendido e englobado. Assim, não posso falar do rosto de outro, mas somente falar ao rosto de outro. O rosto nunca é o meu, tampouco um rosto de um conhecido, mas sempre o rosto de outro, ou melhor, de um absolutamente outro. Paradoxalmente, o rosto não pode ser “nem visto, nem tocado – porque na sensação visual ou táctil, a identidade do eu implica a alteridade do objecto que precisamente se torna conteúdo” (LÉVINAS, 1980, p. 173). O rosto, deve-se lembrar, não é da ordem do visto ou do visível: nem objeto nem sujeito, mas alteridade irredutível ao si. É por meio do rosto que outrem se dá em pessoa, por assim dizer, considerando que é pelo rosto que o outro aparece. Mas sua aparição não é fenomênica, uma vez que apesar de se exprimir no sensível, “o rosto rasga o sensível” (LÉVINAS, 1980, p. 177). Se há irredutibilidade de outrem em relação a mim, é porque “a alteridade de Outrem não depende de uma qualquer qualidade que o distinguiria de mim, porque uma distinção dessa natureza implicaria entre nós a comunidade de género, que anula já a alteridade” (LÉVINAS, 1980, p. 173). Ele só está presente, de fato, quando não se mostra, ou ainda, quando não posso fitá-lo, pois “o rosto desconcerta a intencionalidade que o visa” (LÉVINAS, 2012, p. 52). Dito de outro modo, o rosto de outrem me ultrapassa infinitamente; trata-se, com efeito, da “presença de um ser que não entra na esfera do Mesmo, presença que a extravasa, fixa o seu ‘estatuto’ de infinito” (LÉVINAS, 1980, p. 174). Portanto, o rosto encarna o infinito, afinal, “a ideia do Infinito, o infinitamente mais contido no menos, produz-se concretamente sob a aparência de uma relação com o rosto” (LÉVINAS, 1980, p. 175). Numa palavra, o rosto é uma alteridade radical. Outrem me excede justamente porque me transcende, nesse sentido, observa Lévinas (1980, p. 173), “outrem permanece infinitamente transcendente, infinitamente estranho, mas o seu rosto, onde se dá a sua epifania e que apela para mim, rompe com o mundo comum e cujas virtualidades se inscrevem na nossa natureza que desenvolvemos também na nossa existência”. Desse modo, a imposição do rosto faz com que a consciência perca sua prioridade. Já não estou mais no comando, isto é, perco minha soberania: o eu deserta diante do rosto do outro. A consciência se vê questionada pelo rosto, uma vez que o “‘absolutamente outro’ [tout autre] não se reflete na consciência” (LÉVINAS, 2012, p. 52). Lévinas (1980, p. 180) afirma que “a relação com o rosto, com o outro absolutamente outro que eu não poderia conter” (LÉVINAS, 1980, p. 176). Por isso, “o ‘pensamento’ despertado ao rosto ou pelo rosto é comandado por uma diferença irredutível: pensamento que não é pensamento de, mas imediatamente pensamento para...” (LÉVINAS, 1991, p. 237). De acordo com Lévinas (2012, p. 51):

A nudez do rosto é um despojamento sem nenhum ornamento cultural – uma absolução (absolution) –, um desprendimento de sua forma no seio da produção da forma. O rosto entra no nosso mundo a partir de uma esfera absolutamente estranha, quer dizer, precisamente a partir de um absoluto que é, aliás, o próprio nome da estranheza radical.

Pode-se dizer, de fato, que também Lévinas quer evitar que o rosto de outrem seja objeto de uma explicação, na medida em que o rosto tem que permanecer inexplicável, embora seja fonte de toda explicação. É certo, igualmente, que “nem Deleuze, nem Lévinas jamais quiseram fazer uma filosofia moral. Trata-se de outra coisa. É insistir que a moral, que formular não basta” (FRANCO, 1998, p. 61). Haveria aí uma proximidade entre as filosofias de Deleuze e Lévinas, sobretudo, no que se refere à crítica à intencionalidade fenomenológica e à consciência em geral. Todavia, essa proximidade para por aí. Lévinas se encontra muito distante de um pensamento da imanência. Lévinas (2012, p. 61) chega a falar que “a abstração do rosto é visitação e vinda que desordena a imanência sem se fixar nos horizontes do Mundo”, e que o rosto do outro “é uma transcendência que não se tornará nunca imanência (LÉVINAS, 2014, p. 27-28). Ele ainda arremata dizendo que:

O rosto é precisamente a única abertura onde a significância do transcendente não anula a transcendência para fazê-la entrar numa ordem imanente, mas onde, ao contrário, a transcendência se recusa à imanência precisamente enquanto transcendência sempre passada do transcendente (LÉVINAS, 2012, p. 62).

Para Lévinas, quando a transcendência se torna imanência, a alteridade começa a se dizer do mesmo, e o outrem de si. Depreende-se, portanto, que, em Lévinas, a imanência é sempre segunda em relação à transcendência; para Deleuze, ao contrário, a transcendência é sempre um produto da imanência. Nesse sentido, as filosofias de Lévinas e Deleuze são incompatíveis. Se falta em Deleuze um conceito abrangente de alteridade, é porque ele se recusa a pensar a transcendência, considerando que se para fazer jus ao outro deve-se pensá-lo transcendentemente, o que Deleuze não pode admitir. De todo modo, não seria necessário pensar outrem em Deleuze? Como pensar outrem sem transcendência? Ou, o que é a mesma coisa, como pensar outrem de maneira imanente? Seria preciso pensar um outro conceito de outrem ou, indo mais adiante, um outro Deleuze, isto é, um Deleuze que pensa a partir da transcendência. Se Deleuze (1998, p. 330) concluía dizendo que era preciso “imaginar Robinson perverso”, diremos que é preciso imaginar o outro (em) Deleuze.

Em Lévinas, o rosto é, antes de tudo, ético, isto é, a convocação para a ética como filosofia primeira. Só a ética faz jus ao outro, quer dizer, só a ética faz jus ao humano. Em Deleuze, por outro lado, a ética se diz do corpo – a construção de um CSO é um empreendimento ético –; trata-se então de uma ética inumana ou do inumano, do devir-inumano, numa palavra, ética elementar, das potências e dos afetos. A despeito do imperativo da não-explicação, a ética deleuziana é uma ética do devir, e não do dever. Motivo pelo qual Ventura (2020, p. 333) diz que “o pensamento inicial de Deleuze dita que a filosofia só pode se tornar ética ao abandonar sua dependência conceitual do humano”. Mais do que isso, em Deleuze, “adotar a perspectiva limitada do humanismo é colocar em risco a própria ética: é separar o pensamento dos próprios poderes da diferença e, assim, impedi-lo de se engajar na tarefa ética de criar novos modos e potencialidades da vida” (VENTURA, 2020, p. 333). No entanto, não podemos aceitar de bom grado a afirmação de Ventura (2020, p. 328) de que “a filosofia da alteridade de Lévinas mostra que o Outro pode e deve fazer parte do projeto ético de Deleuze” (VENTURA, 2020, p. 328). Pois, não apenas a ética tem um estatuto diferente nas filosofias de Deleuze e Lévinas, mas também o próprio conceito de outrem, que, em Lévinas, faz apelo a uma transcendência, e para Deleuze, “outrem não devolve a transcendência a um outro eu, mas traz todo outro eu à imanência do campo sobrevoado” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 65). Se há outrem em Deleuze, ele só pode ser imanente. Não restitui a transcendência ao eu, mas o arrasta ao plano de imanência. Deleuze também enxerga o rosto de maneira diferente:

Mesmo quando consideramos o corpo de outrem como um objeto, suas orelhas e seus olhos como peças anatômicas, não suprimimos toda sua expressividade, se bem que simplifiquemos ao extremo o mundo que eles exprimem: o olho é uma luz implicada; o olho é a expressão de uma luz possível e a orelha é a expressão de um som possível (DELEUZE, 1988, p. 413).

A título de conclusão, outrem não é, para Deleuze, transcendente, na verdade, ele é transcendental, apontando, de alguma forma, para o seu empirismo superior. Embora seja um mundo possível, outrem é a condição da experiência real. Não sendo nem sujeito nem objeto, outrem é um princípio de distribuição que arranja “não somente o objeto e o sujeito, mas a figura e o fundo, as margens e o centro, o móvel e o ponto de referência, o transitivo e o substancial, o comprimento e a profundidade” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 30). Pode-se dizer que a ética só se estabelece como filosofia primeira quando remetida ao seu princípio genético, o qual deve ser pensado imanentemente, e não de maneira transcendente, ou ainda, deve ser pensado de maneira virtual, e não atual. Assim, outrem não é senão o virtual, sem o qual nem mesmo o eu não seria possível. Outrem não é somente a condição de toda percepção, ou ainda, a condição de transição de um mundo a outro, ele é também é o princípio inumano anterior a qualquer humanidade.

Referências

DELEUZE, Gilles. Cinema 1: A imagem-movimento. Tradução de Sousa Dias. Lisboa: Documenta, 2016.

DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1998.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. E Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

FERREIRA, Filipe. O conceito de Outrem. In: Griot: Revista de Filosofia, v.21, n.02, p. 466-480, 2021.

FRANCO, Daniel. Sur faces: Positions du visage chez Lévinas et Deleuze. In: STENGERS, Isabelle ; VERSTRAENTEN, Pierre. Gilles Deleuze. Paris: J. Vrin, 1998, p. 45-62.

JARDIM, Alex Fabiano Correia. Como sair da ilha deserta da minha consciência? 2007. 219 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.

KAUFMAN, Eleanor. Ethics and the World without Others. In: JUN, Nathan; SMITH, Daniel W. (eds.). Deleuze and Ethics. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2011, pp. 108-122.

LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Tradução coordenada por Pergentino Stefano Pivatto. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.

LÉVINAS, Emmanuel. Ética e infinito. Tradução de João Gama. Lisboa: Edições 70, 1982.

LÉVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Tradução de Pergentino Stefano Pivatto [et al.]. 4ª ed. Petrópolis, RJ: 2012.

LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980.

LÉVINAS, Emmanuel. Violência do rosto. Tradução de Fernando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

THIELE, Kathrin. The world with(out) Other, or how to unlearn the desire for the other. In: BURNS, Lorna; KAISER, Birgit M. (eds.). Postcolonial literatures and Deleuze. London: Palgrave Macmillan, 2012, p. 55-75.

TOURNIER, Michel. Sexta-feira ou os limbos do pacífico. Tradução de Fernanda Botelho. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2014.

VENTURA, David. The intensive Other: Deleuze and Levinas on the ethical status of the other. In: The Southern Journal of Philosophy. Volume 58, Issue 2. June 2020, pp. 327-350. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/sjp.12369. Acesso em 10 de set. de 2022.

Notas

2 Enquanto o artigo de D. Ventura estabelece uma relação da filosofia deleuziana com a ética de Lévinas, o artigo de F. Ferreira adota a hermenêutica heideggeriana como vínculo entre Deleuze e Tournier. Vale destacar ainda a Tese de doutorado de Alex Jardim – “Como sair da ilha deserta da minha consciência?” –, cujo terceiro capítulo faz uma demorada análise tanto do livro de Tournier quanto do comentário de Deleuze, adotando Husserl como um interlocutor a fim de realizar uma crítica à fenomenologia.

3 “Cada conceito tem componentes que podem ser, por sua vez, tomados como conceitos (assim Outrem tem o rosto entre seus componentes, mas o Rosto, ele mesmo, será considerado como conceito, tendo também componentes). Os conceitos vão, pois, ao infinito e, sendo criados, não são jamais criados do nada” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 31).

4 Vale observar que enquanto o romance de Defoe privilegia Robinson, o de Tournier se coloca ao lado de Sexta-feira. Deleuze (1998) ainda enxerga mais diferenças entre as duas obras: primeiramente, o Robinson de Defoe é assexuado, o de Tournier, por sua vez, é sexuado. Em segundo lugar, o Robinson de Defoe é referido às origens, o Robinson de Tournier é referido aos fins.

5 “O problema geral do conhecimento deve pôr-se num estágio anterior e mais fundamental, visto que para podermos falar de um estranho em minha casa, bisbilhotando aquilo que lá se encontra, é necessário que eu esteja presente, envolvendo com o olhar o meu quarto e observando a movimentação do intruso” (TOURNIER, 2014, p. 87-88).

6 Em seu artigo The intensive Other: Deleuze and Levinas on the ethical status of the other, Daniel Ventura (2020, p. 337) destaca que “é importante nesta fase reconhecer que a associação de Outrem com o possível carrega uma conotação fortemente negativa para Deleuze. […] Como explica Deleuze, sob os termos de possibilidade, a diferença real é sempre entendida como aquela que possui uma semelhança essencial com um conjunto de possibilidades preexistentes: […] processo cuja categoria de possibilidade nada mais é do que uma representação abstrata ou estéril”. Ora, o que Deleuze chama a atenção é justamente para o fato de que o possível já não é mais uma categoria abstrata. Seria necessário fazer uma distinção entre um possível abstrato e um possível real, este último ligado ao virtual.

7 “[...] a explicação de outrem pelo eu representa uma degradação conforme à lei” (DELEUZE, 1988, p. 414).

8 “Somente o estudo transcendental pode descobrir que a intensidade permanece implicada em si mesma e continua a envolver a diferença no momento em que ela reflete no extenso e na qualidade que ela cria e que, por sua vez, só a implicam secundariamente, apenas o suficiente para explicá-la” (DELEUZE, 1988, p. 384).

9 “Donde o conselho deleuziano: ‘Não se explicar demais com outrem, não explicar demais outrem, manter seus valores implícitos’” (FRANCO, 1998, p. 56).

10 “Descobriu assim que outrem é para nós um poderoso fator de distração, não apenas porque nos perturba constantemente e nos arranca do pensamento atual, mas ainda porque a simples possibilidade de seu aparecimento lança uma vaga luz sobre um universo de objetos que, embora situados à margem de nossa atenção, são capazes a todo momento de se tornar o seu centro” (TOURNIER, 2014, p. 37).

11 “[...] um campo transcendental impessoal não tendo a forma de uma consciência pessoal sintética ou de uma identidade subjetiva – o sujeito ao contrário sendo sempre constituído” (DELEUZE, 1998, p. 101). Segue-se, portanto, que o sujeito é derivado ou segundo em relação ao transcendental que o produz.

Notas de autor

1 Doutorando(a) em Filosofia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos – SP, Brasil. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil.


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