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Recepción: 14 Noviembre 2022
Aprobación: 12 Febrero 2023
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v23i1.316
Resumo: Neste artigo pretendo apresentar de forma introdutória o campo de investigação da Intencionalidade Coletiva. Entretanto, optei por concentrar a exposição em um tipo particular de explicação do fenômeno. Na primeira seção, apresento as dificuldades que motivam o desenvolvimento de teorias no campo da Intencionalidade Coletiva dentro da Filosofia da Ação. Na segunda seção, identifico a origem da linhagem teórica tratada com a explicação da noção de intenção compartilhada, uma interligação reflexiva dos estados mentais dos indivíduos envolvidos em uma ação coletiva, desenvolvida por Michael Bratman. Na terceira seção, apresento a reforma proposta por Deborah Tollefsen para diminuir as demandas cognitivas exigidas pela proposta Bratman, tornando possível que crianças pequenas possam satisfazer as condições da teoria. Por fim, na quarta seção discuto a proposta de Olle Blomberg de uma intenção em ação socialmente estendida que objetiva explicar como seria possível incluir resultados das ações de outros indivíduos no conteúdo de uma intenção em ação individual.
Palavras-chave: Intencionalidade Coletiva, Interacionismo, Ação coletiva, Intenção coletiva, Michael Bratman.
Abstract: In this paper, I intend to present an introduction to the research field of Collective Intentionality. However, I will concentrate the exposition on one particular branch of explanation of this phenomenon. In the first section, I present the problems that prompt the development of Collective Intentionality theories for the Philosophy of Action. In the second section, I determine the origin of the theoretical lineage discussed with the explanation of shared intentions, the reflexive linkage of mental states maintained by the individuals engaged in collective action, developed by Michael Bratman. In the third section, I present Deborah Tollefsen’s adjustments to Bratman’s proposal in order to reduce its cognitive demands and make it possible for small children to satisfy them. Finally, in the fourth section, I discuss Olle Blomberg’s proposal of a socially extended intention-in-action that aims at explaining how it would be possible to embed results of other individuals’ actions in the content of an individual’s intention-in-action.
Keywords: Collective Intentionality, Interactionism, Collective action, Collective intention, Michael Bratman.
Introdução
Neste artigo buscarei fazer uma apresentação da discussão sobre Intencionalidade Coletiva acompanhando a evolução de uma proposta específica de explicação desse tipo de fenômeno. De maneira geral, Intencionalidade Coletiva é o campo de investigação sobre a possibilidade de que entidades sociais (p.e. uma universidade, um partido político, um Estado Nacional, uma empresa, um time de futebol, uma família) sustentem estados mentais como crenças e intenções. A princípio, essa ideia pode soar muito estranha, fantasiosa ou exagerada, mas encontramos sentenças de atribuição desses estados (ou outras afirmações que implicam essas atribuições) à coletivos em inúmeras manchetes de jornal, na nossa fala ordinária ou em artigos científicos (especialmente nas Ciências Humanas):
Ditadura de Belarus ameaça usar armas letais
Exército apreende madeira ilegal
Corinthians contrata novo técnico
A Universidade vai oferecer um novo curso
Nós estamos escrevendo um artigo juntos
“Grandes operações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal e Estadual têm investigado servidores públicos e condutas que contradizem o perfil esperado pelo país.” (FERENTZ; GARCIAS; SETIM, 2020, p. 189)
A ebulição social dos anos de 1970 no país foi marcada pela mobilização dos operários, dos movimentos sociais congregando distintos atores sociais para além das classes assalariadas urbanas e rurais, tendo como eixo das reivindicações a restauração de uma ordem democrática e a conquista de direitos civis, políticos e sociais. (COHN, 2020)
Como os exemplos apontam, o mais usual é que façamos atribuições de ações à coletivos. Seguindo as teorias mais aceitas em Filosofia da Ação, é necessária a presença de uma intenção para que essas atribuições estejam corretas. Assim, esses exemplos sugerem a atribuição de um estado mental a uma entidade social.
Na primeira seção vou apresentar dois desafios teóricos para a formação de intenções individuais envolvidas na execução de ações coletivas, i.e. ações que dependem da participação de mais de um agente individual. O problema da racionalidade e o problema da eficiência apontam dificuldades particulares que motivam o desenvolvimento de teorias sobre Intencionalidade Coletiva. Ao longo das seções subsequentes apresentarei a evolução de uma proposta para lidar com esses dois desafios. Uma característica distintiva dessa proposta (em comparação com as suas concorrentes) é seu caráter redutivista, onde os proponentes buscam construir explicações para a Intencionalidade Coletiva que não mobilizam conceitos e entidades distintas ou adicionais daquelas oferecidas pelas teorias tradicionais (individualistas) de Filosofia da Ação. Essa característica é uma das principais razões da popularidade da proposta apresentada.
O elemento distintivo da proposta é a descrição de um tipo particular de interação entre os agentes individuais envolvidos no empreendimento coletivo. A ideia é que a Intencionalidade Coletiva pode ser explicada por meio de uma interligação reflexiva, uma rede de conexões característica entre os estados mentais dos indivíduos envolvidos. Na segunda seção apresento o nascimento dessa linhagem de teorias a partir da proposta de Michael Bratman que descreve essa interligação reflexiva com especial atenção à forma como os planos, os conteúdos das intenções dos agentes individuais envolvidos na ação coletiva, são entrosados. No entanto, uma das críticas à proposta de Bratman é que ela é muito exigente, a interligação reflexiva parece excluir crianças pequenas de se engajarem em ações coletivas e levanta dúvidas sobre a possiblidade de que esse tipo de ação seja originada de forma espontânea. Assim, na terceira seção apresento o refinamento proposto por Deborah Tollefsen que tenta diminuir as demandas cognitivas exigidas pela proposta original de uma intenção compartilhada, oferecida por Bratman. Por fim, na última seção, comento a discussão técnica que Olle Blomberg faz na tentativa de assegurar que o modelo interacionista consiga acomodar uma ação coletiva figurando no conteúdo das intenções dos agentes individuais envolvidos.
Porque a Intencionalidade Coletiva apresenta um problema para a Filosofia da Ação?
Nesta seção apresentarei uma motivação para o desenvolvimento de teorias sobre Intencionalidade Coletiva, isto é, apontarei quais problemas uma investigação desse tipo poderia solucionar. Ainda que o problema da Intencionalidade Coletiva possa se estender para vários tipos de atitudes proposicionais, e até outros tipos de fenômenos/estados mentais2, ele parece mais claramente construído no âmbito da Filosofia da Ação, i.e. é nesse campo que essa noção tem mais desafios teóricos a resolver. Além de ser a questão metafísica mais saliente, pois as atribuições de ações parecem ser o tipo de afirmações mais usuais quando falamos sobre entidades coletivas.
Se nossa investigação se concentra na intencionalidade, uma propriedade mental, e restringimos nossas atenções à Filosofia da Ação, de acordo com a teoria padrão da ação, a teoria causal, um estado mental específico deve ser examinado: a intenção.3 Seguindo essa teoria, algo é uma ação intencional somente se for causado da maneira apropriada por certos estados e eventos mentais corretos (SCHLOSSER, 2019). Esses estados e eventos mentais deveriam ser intenções (para defesa dessa tese, veja: HARMAN, 1976; MELE, 1992; BRATMAN, 1999a; e ENÇ, 2003). Intenções são estados mentais que causam, de maneira apropriada, determinados eventos ou estados no mundo como o levantamento do braço do agente, as louças limpas no escorredor, uma cesta no basquete, e até eventos mais simbólicos ou abstratos como o pagamento de uma conta ou a declaração de uma guerra. É em virtude da relação causal com uma intenção que esses eventos são apropriadamente chamados de ações, ao menos no sentido técnico que interessa à Filosofia da Ação.
Entretanto, quando estamos falando de ações coletivas4, duas especificidades das intenções parecem levantar problemas bastante complicados para que uma intenção esteja envolvida nesse tipo distintivo de ação. Um deles tem a ver com o fato de que intenções são estados mentais sujeitos a certas regras de racionalidade. Bratman (1999a) ressalta essa semelhança das intenções com as crenças no sentido de ambas serem estados mentais sujeitos a uma restrição de consistência: nossas intenções devem ser consistentes com nossas crenças e com nossas outras intenções. A outra dificuldade surge das características metafísicas endossadas pela teoria padrão da ação, a teoria causal da ação. Como visto antes, essa teoria diz que ações são eventos causados de maneira apropriada por intenções. Ações coletivas parecem depender de eventos que não estariam adequadamente relacionados às intenções dos agentes individuais que nelas participam: ações coletivas dependem da ação de outros indivíduos.
O primeiro problema, que chamaremos de problema da racionalidade, explora a conscientização dos agentes individuais envolvidos em uma ação coletiva de que eles não poderiam realizar essas ações enquanto agentes individuais. Pense em ações extremamente complexas que demandam ajuda de terceiros. Projetos complexos como enviar espaçonaves à Lua, construir um prédio ou (nomicamente) impossíveis para a maioria dos seres humanos, como carregar um piano pelas escadas de um edifício. Dificilmente alguém formaria uma crença de que é capaz de realizar, sozinho, esses tipos de ações. Outras ações parecem até mesmo logicamente impossíveis de serem realizadas por agentes individuais, pois sua própria existência depende de algum tipo de interação com outros seres humanos como a execução de uma peça orquestral ao vivo, se casar, conversar, etc.
Assim, não seria racional para uma agente individual formar uma intenção para a realização de uma ação coletiva, quando se conscientizar que agentes individuais não são capazes de realizar ações coletivas. Podemos montar o seguinte argumento a partir do problema da racionalidade:
Argumento do Problema da Racionalidade
P1 – Um agente individual não pode ter a intenção de fazer aquilo que toma como sendo incapaz de executar5;
P2 – Um agente individual racional se conscientizaria de que não é capaz de realizar uma ação coletiva;
C – Um agente individual racional não pode formar uma intenção para executar uma ação coletiva.
O segundo problema, que chamaremos de problema da eficiência apresentará um percalço para a formação de uma intenção por parte de um agente envolvido em uma ação coletiva que se conscientize de que não é capaz de realizá-la, mas tente levar em conta as contribuições individuais dos demais agentes envolvidos na ação coletiva. Tomemos o exemplo da execução de uma peça orquestral ao vivo para elucidar o que está em jogo aqui. Esse tipo de ação depende da participação de muitos indivíduos, cada um realizando sua parte na performance da peça, executando a parte que lhe cabe de acordo com a partitura. Nesse caso, ainda que não explicitamente, todos os envolvidos sabem que não são capazes de executar a peça orquestral sozinhos, mas acreditam que serão capazes de fazê-lo conjuntamente, porque acreditam que cada um dos membros da orquestra executará a parte que lhe cabe. Entretanto, o problema da eficiência surge em virtude da intenção de um agente individual não poder causar adequadamente os eventos pertinentes às ações de outros agentes individuais. Nós não controlamos as ações dos outros da mesma forma que controlamos as nossas ações. A intenção de um agente individual não causa de maneira adequada as contribuições individuais dos outros agentes individuais que participam de uma ação coletiva.
Novamente, podemos construir um argumento para explicitar o desafio que o problema da eficiência traz para a investigação da Intencionalidade Coletiva.
Argumento do Problema da Eficiência
P1 – Ações coletivas dependem de ações de mais de um agente individual;
P2 – Um agente individual apenas pode ter a intenção de realizar suas próprias ações;
C – Um agente individual não pode formar uma intenção para executar uma ação coletiva.
O surgimento da linhagem interacionista: a proposta das intenções compartilhadas de Bratman
A linhagem interacionista de Intencionalidade Coletiva surge exatamente com um filósofo cuja obra é caracterizada por preocupações acerca das restrições racionais às quais nossas intenções estão sujeitas. Essa ênfase se dá em virtude do autor ancorar sua proposta geral de teoria da intenção na noção de planos. 6 Essa teoria foi muito importante nas discussões sobre a natureza da intenção ao direcionar a atenção para o conteúdo desse estado mental. Se crenças são claramente atitudes proposicionais, isto é, seu conteúdo é uma proposição, intenções são atitudes mentais cujos conteúdos não são tão claramente identificáveis. Bratman (1999a; 1999b) joga luz nessa questão ao interpretar agentes como sujeitos que planejam; que formam planos.
Planos são os conteúdos apropriados para intenções e a sua formação é a principal função da faculdade do raciocínio prático. Dessa forma, por meio dessa estreita conexão com o raciocínio prático, Bratman consegue discutir a importância das restrições racionais às quais nossas intenções estão sujeitas. Vimos na seção anterior que no caso de ações coletivas há justamente um “problema de racionalidade” que, claramente, é o foco das atenções de Bratman (1992; 1993) em sua contribuição para a discussão sobre Intencionalidade Coletiva.
Juntando o desafio lançado pelo problema da racionalidade e a ênfase nos planos que a teoria da intenção de Bratman sempre salientou, a proposta de uma intenção compartilhada como explicação da Intencionalidade Coletiva se estrutura a partir do conceito de entrosamento de subplanos (meshing subplans). Basicamente, a estratégia é transformar os requisitos de consistência interna de um agente individual, a coerência entre suas crenças e intenções, em uma condição interpessoal para casos de ação coletiva.
O recorrente exemplo de Bratman (1992; 1993), de duas pessoas pintando uma casa, ilustra bem o foco no entrosamento de subplanos. Quando duas pessoas realizam uma ação coletiva de pintar as paredes externas de uma casa, elas devem coordenar suas ações. Para tanto, elas devem planejar a divisão das tarefas, bem como alguns detalhes das ações que cada um executará. Por exemplo, os dois pintores devem negociar quais paredes cada um deve pintar (p.e. um fica responsável pela pintura das faces leste e sul da casa; o outro ficando responsável pelas faces norte e oeste) e qual cor será utilizada (geralmente as paredes externas são pintadas da mesma cor ou com cores harmônicas). O próprio autor destaca esse elemento de coordenação como o foco da proposta de Intencionalidade Coletiva interacionista ou, como ele mesmo chama, a proposta das intenções compartilhadas (shared intentions):
Nossas intenções compartilhadas, então, executam, pelo menos, três trabalhos inter-relacionados: Elas ajudam a coordenar nossas ações intencionais; elas ajudam a coordenar nosso planejamento; e elas podem estruturar negociações relevantes. [...] nossas intenções compartilhadas nos ajudam a organizar e unificar nossa agência intencional de certa forma análoga à forma como intenções de indivíduos organizam e unificam sua agência individual ao longo do tempo (BRATMAN, 1999b, p. 112, tradução nossa).
Como característico de outras obras do autor (notadamente, BRATMAN, 1999a), é a partir das funções que observamos serem desempenhadas por intenções que podemos analisar sua natureza (claramente a adoção da tese funcionalista sobre estados mentais). Sua proposta de Intencionalidade Coletiva não foge dessa orientação metodológica. Assim, para acomodar as exigências de coordenação, planejamento e negociação, que uma intenção deve cumprir para guiar a execução de ações coletivas, Bratman sugere a seguinte definição para uma intenção compartilhada:
Nós temos a intenção [de executar a ação coletiva] J se e somente se:
1. (a) Eu tenho a intenção de que nós [executemos] J e (b) você tem a intenção de que nós [executemos] J.
2. Eu tenho a intenção de que nós [executemos] J de acordo com e por causa de 1a, 1b, e o entrosamento de subplanos de 1a e 1b; você tem a intenção de que nós [executemos] J de acordo com e por causa de 1a, 1b, e o entrosamento de subplanos de 1a e 1b.
3. 1 e 2 são conhecimento comum entre nós. (BRATMAN, 1999b, p. 131, tradução nossa)
Agora podemos ver mais claramente como a noção de entrosamento de subplanos é aplicada na definição de Intencionalidade Coletiva proposta por Bratman, ou seja, na explicação do que está envolvido em expressões do tipo “Nós temos a intenção de executar J”, onde J é uma ação coletiva. Note como a condição (2) da definição provê o entrosamento ao interligar reflexivamente as intenções dos indivíduos que participam da ação coletiva. A manutenção das intenções individuais “de acordo e por causa” das intenções individuais dos companheiros de ação coletiva capturaria o elemento de união (togetherness) distintivo de ações coletivas. Esse elemento estaria ausente, por exemplo, quando um dos indivíduos é coagido a participar da ação coletiva ou quando há um resultado coletivo não intencional, como a poluição de um rio como resultado de um conjunto de ações individuais de descarte de lixo. Essa é uma característica enfatizada pelo autor: sua análise de ações coletivas é restrita a um tipo específico, que ele chama de atividade compartilhada cooperativa (shared cooperative activity).
O entrosamento de subplanos a partir da interligação reflexiva das intenções dos indivíduos que participam da ação coletiva marca a característica interacionista da proposta, afastando-a de suas competidoras. Bratman (1999, p. 122-123, tradução nossa) destaca essa comparação da seguinte forma:
[...] intenção compartilhada, como eu a entendo, não é uma atitude em uma mente. Ela não é uma atitude na mente de um agente fundido, pois não existe esse tipo de mente; e ela não é uma atitude na mente ou nas mentes de ambos os participantes também. Mais propriamente, ela é um estado de coisas que consiste principalmente em atitudes dos participantes (nenhuma das quais é a intenção compartilhada) e inter-relações entre essas atitudes.7
Voltando à análise da definição, cabe ainda ressaltar que a condição (3) também colabora para a satisfação dos requisitos de racionalidade. Parece bastante irrazoável que alguém forme uma intenção para realizar uma ação que dependa de outros agentes, se ele não souber que seus potenciais companheiros partilham dessa intenção. Assim, as condições (2) e (3) são elementos centrais da solução para o problema da racionalidade na proposta de Bratman. A interligação reflexiva de crenças (ou, mais forte, como geralmente figura nas propostas de Intencionalidade Coletiva, de conhecimento) e intenções parece livrar o agente individual da irracionalidade na medida em que sabe que os seus companheiros de ação coletiva possuem uma intenção para a realização dessa ação, sabe que os planos (conteúdo da intenção) são compatíveis e sabe que os outros também estão cientes disso. Tendo sido satisfeitas essas condições, parece razoável formar a intenção para executar a ação coletiva.
Complementando a proposta, a condição (1) introduz uma tecnicalidade ao evidenciar a natureza proposicional das intenções individuais envolvidas em ações coletivas. Isso fica mais claro ao compararmos os conteúdos sendo atribuídos à intenção compartilhada, a entidade sendo definida, e à intenção individual que integra as condições da definição. Note que a intenção compartilhada segue a apresentação tradicional de intenções, tendo com conteúdo uma ação: “Nós temos a intenção de executar J”. Por outro lado, as condições (1) e (2) têm como conteúdo das intenções individuais a execução da ação coletiva como um estado de coisas: “Eu tenho a intenção de que nós [executemos] J”. Note como esse movimento faz com que a intenção individual tenha um conteúdo que não está plenamente sob o controle do agente. O conteúdo não é mais estritamente conativo, passando a ter uma caraterística mais descritiva e identificando que o sujeito responsável por produzir o estado de coisas descrito não é o agente individual, mas a primeira pessoa no plural: nós.
Essa medida, além de corroborar com a estratégia geral de solução para o problema da racionalidade, é a peça fundamental para a solução do problema da eficiência, pois, dada a natureza proposicional do conteúdo da intenção, esse conteúdo não precisa ser uma ação que esteja completamente sob o controle do agente. Bratman (1993) argumenta que a intenção “de que nós executemos J”, não é significativamente distinta de intenções individuais corriqueiras como “de que Pedro limpe seu quarto” ou “de que João prepare o jantar”. Para Bratman, ainda que essas intenções, por envolverem ações de outros indivíduos, não estejam sob o controle total daquele que forma a intenção, elas mantêm uma relação de influência apropriada entre o agente e o conteúdo de sua intenção, dando conta do problema da eficiência.
Assim, Bratman busca defender que o tratamento teórico de intenções envolvidas em ações coletivas não necessita da introdução de estados mentais novos e distintos dos que já foram desenvolvidos pela tradicional teoria da ação individual. Vimos que sua proposta trilha esse caminho ancorada, principalmente, na característica interacionista de interligação reflexiva dos estados mentais individuais pertinentes para a execução da ação e destacando a natureza proposicional do conteúdo das intenções, que permite uma ampliação dos elementos que integram o conteúdo das nossas intenções e, mais relevante no presente contexto, a possibilidade de que a ação coletiva figure no conteúdo de uma intenção individual.
No entanto, nem todos estão convencidos de que essa estratégia é bem-sucedida. Alguns filósofos (BAIER, 1997; STOUTLAND, 1997; VELLEMAN, 1997; SCHMID, 2009) insistem que agentes só podem ter a intenção de realizar ações que estão sob seu controle em um sentido mais robusto que a mera influência. Os agentes precisam estar em posição de estabelecer (settle) que o conteúdo de suas intenções ocorrerá; que a ação, de fato, será realizada.
Outros (KUTZ, 2000; PETERSSON, 2007) identificam uma circularidade na proposta. Tuomela (2007), discorrendo sobre propostas individualistas para a explicação da Intencionalidade Coletiva de maneira geral, aponta claramente onde podemos encontrar essa circularidade. A interligação reflexiva, marcada pela expressão “de acordo e por causa” da condição (2), parece conduzir os indivíduos envolvidos na ação coletiva a um impasse: “Eu farei minha parte, dado que você fará sua parte; mas você fará sua parte, dado que eu farei a minha parte; mas eu farei minha parte, dado que você fará sua parte; mas você ...”. Assim, parece que o primeiro indivíduo que forma a intenção está agindo irracionalmente, pois a condição para que ele faça isso, que seu companheiro de atividade na ação coletiva tenha formado uma intenção para fazê-la, ainda não se deu. Parece muito estranho que uma teoria sobre Intencionalidade Coletiva esteja fundamentalmente marcada por um passo inicial irracional, um salto de fé que algum dos indivíduos deve dar para possibilitar que seus companheiros formem atitudes racionais (aliás, note como as coisas ficam mais complicadas em instâncias de ações coletivas com muitos membros: somente o último membro a formar a intenção estaria operando racionalmente!). Seguindo os problemas derivados da circularidade, outros críticos da proposta (PETERSSON, 2007) enfatizam que ela pressupõe a coletividade, não sendo, portanto, uma definição adequada do fenômeno. Isso pode ser claramente visto no conteúdo das intenções individuais da condição (1): “que nós [executemos] J”. Esses autores observam que os elementos coletivos já estão presentes nas proposições que deveriam explicar o fenômeno, tornando a proposta redundante.
Por fim, muitos críticos (MILLER, 2001; TOLLEFSEN, 2005; PACHERIE, 2011; 2013) alertaram para o fato de que o quadro proposto por Bratman, de uma rede de inter-relações entre atitudes que precisam ser apreendidas por todos os participantes envolvidos, é muito demandante. Essa necessidade de acesso às intenções (e crenças ou conhecimentos) dos companheiros parece excluir instâncias significativas de ações coletivas. Nem sempre conseguimos (e precisamos) rastrear atitudes mentais dos outros indivíduos envolvidos em uma ação coletiva, especialmente em ações coletivas espontâneas, em que não há momento prévio de comunicação explícita (planejamento) entre os indivíduos envolvidos. Além disso, essa demanda impede que crianças, que não têm uma teoria da mente desenvolvida, possam ser agentes engajados em ações coletivas. Esse é exatamente o ponto que avançaremos na próxima seção, com a reforma proposta por Deborah Tollefsen para acomodar a participação de crianças pequenas em instâncias de ações coletivas.
Brincadeira de criança: Tollefsen e o problema da mente robusta
Tollefsen (2005) discute a proposta de Bratman enfatizando o seu caráter restritivo, por não conseguir acomodar a participação de crianças pequenas (entre 1 e 4 anos) como agentes integrantes de ações coletivas. Para Tollefsen é muito evidente que a realização de muitas brincadeiras são ações coletivas. Crianças se engajam em brincadeiras cooperativas simples como montar uma torre de blocos, onde um participante coloca um bloco por vez, crianças brincam de ciranda, veem (talvez não leiam) livros junto com seus pais, conversam e realizam muitas outras atividades de caráter cooperativo durante seu desenvolvimento. Aliás, é muito difícil que crianças pequenas ajam sozinhas, a interação que elas têm com o mundo é frequentemente guiada e, muitas vezes, associada a um adulto.
Entretanto, as condições da proposta de Bratman, vistas na seção anterior, parecem muito demandantes para que crianças as cumpram. Isso se dá, especialmente, com a parte fundamental da teoria de Bratman: a interligação reflexiva dos estados mentais individuais pertinentes para a execução da ação, onde os indivíduos envolvidos devem formar crenças e intenções em respostas às crenças e intenções dos seus companheiros de ação coletiva. Crianças não têm uma teoria da mente robusta8 e, portanto, não são capazes de cumprir as condições da definição da intenção compartilhada proposta por Bratman.
Mais especificamente, Tollefsen identifica dois problemas nesse contexto da impossibilidade de crianças satisfazerem os critérios defendidos por Bratman: o problema da responsividade mútua e o problema do conhecimento comum. O último é claramente observado na condição (3) da proposta de Bratman, de que os indivíduos envolvidos na ação coletiva tenham conhecimento comum das demais condições. Por si só, conhecimento comum já é um critério que envolve uma teoria da mente robusta, pois é um conceito que se refere a um estado iterativo de conhecimento dos agentes envolvidos. Tollefsen (2005, p. 82, tradução nossa) apresenta essa rede iterativa da seguinte forma:
X sabe que p.
Y sabe que p.
X sabe que Y sabe que p.
Y sabe que X sabe que p.
X sabe que Y sabe que X sabe que p.
Y sabe que X sabe que Y sabe que p ... e assim por diante.
Por mais que os elementos dessa iteração não precisem estar conscientemente presentes nas mentes dos indivíduos envolvidos, a exigência de conhecimento comum parece pressupor uma teoria da mente robusta. Sem essa competência sócio-cognitiva, um indivíduo parece incapaz de saber que outros têm conhecimento, ainda mais se levarmos em conta a definição tradicional de conhecimento que apresenta o estado mental de crença como condição necessária.
Fortalecendo o ponto, cabe lembrar que o que é exigido que seja conhecimento comum na condição (3) são as condições (1) e (2) que versam sobre as intenções que os indivíduos devem ter para a execução de uma ação coletiva. Assim, o próprio conteúdo do conhecimento comum exigido em (3) também pressupõe que os indivíduos tenham uma teoria da mente robusta. Essas outras condições buscam capturar o entrosamento e cooperação dos indivíduos envolvidos na ação coletiva, o que nos leva para o outro problema: o problema da responsividade mútua.
As condições (1) e (2), segundo Bratman (1992), também dariam conta de garantir uma relação de responsividade entre os agentes individuais, isto é, eles estariam dispostos a corrigir e adequar seus comportamentos em resposta às intenções e comportamentos dos demais. Visto que todos estão engajados e comprometidos em promover a ação coletiva, na medida em que têm a intenção “de que nós [executemos] J”, estariam dispostos a fazer pequenas adaptações de comportamento para atingir esse objetivo. Entretanto, isso parece exigir que os agentes envolvidos na ação coletiva sejam profícuos leitores de mentes (mind readers). Essa capacidade, muito obviamente, pressupõe que eles tenham uma teoria da mente robusta, capaz de satisfazer a condição (2) da proposta de Bratman que, explicitamente, exige que os participantes reconheçam as intenções dos demais.
Diante desses problemas, objetivando construir uma alternativa à proposta de Bratman, Tollefsen apresenta algumas competências sócio-cognitivas que crianças pequenas possuem, de acordo com a literatura recente em psicologia social e psicologia do desenvolvimento. A autora destaca três dessas competências: (i) atenção compartilhada (joint attention); (ii) sugestão social (social referencing); e (iii) interpretação de intenções (intention-reading); a seguir, delinearemos cada uma dessas competências:
(i) atenção compartilhada: conceito popularizado por Michael Tomasello (1995; 2009) nas discussões sobre Intencionalidade Coletiva, consiste, tipicamente, em uma relação triádica de dois seres cognoscentes com um objeto ou evento para o qual a atenção dos indivíduos é atraída. Para alcançar a atenção compartilhada, as crianças já devem ter desenvolvido a habilidade de seguir o olhar dos seus parceiros de interação. Como destaca Tollefsen, a partir dos 9 meses de idade, as crianças passam a chamar a atenção dos outros, geralmente através de gestos, e direcionar essa atenção para um objeto como um livro, brinquedo, animal, etc. Há uma sintonização (tune in) característica no fenômeno da atenção compartilhada que não se restringe ao fato de dois indivíduos direcionarem a atenção ao mesmo objeto. Essa sintonização implica que, além de estarem atentos ao mesmo objeto, os indivíduos monitoram a atenção uns dos outros. Um exemplo corriqueiro de uma instância de atenção compartilhada é quando a criança segue o olhar do seu parceiro de interação, para garantir que ele esteja, de fato, atento ao seu brinquedo preferido, por exemplo.
(ii) sugestão social: geralmente não-verbais, as sugestões sociais são sinais que guiam as interações sociais. Exemplos de sugestões sociais são a direção do olhar, expressões faciais, linguagem corporal e o tom de voz. A partir desses sinais, as crianças podem orientar seu comportamento: se o adulto tiver uma expressão de medo ou reprovação, a criança tenderá a se afastar ou deter o comportamento em execução; se o adulto tiver uma expressão de calma e conforto, a criança tenderá a se aproximar ou continuar o comportamento em execução. Ainda que a competência de interpretar sugestões sociais seja muito próxima de uma teoria da mente, Tollefsen (2005, p. 87, tradução nossa) assevera que: “[a] sugestão social é pensada como sendo uma precursora de uma teoria da mente robusta, pois envolve a interpretação da emoção dos outros, mas essas emoções não são compreendidas como mentais”
(iii) interpretação de intenções: focando em casos de brincadeiras envolvendo faz de conta (pretending), como as histórias criadas nas brincadeiras com bonecos ou a simulação de um chá da tarde, Tollefsen argumenta que crianças são capazes de interpretar intenções. Ela aponta como exemplo significativo dessa habilidade uma brincadeira como o adulto fazendo de conta que uma banana é um telefone. Para que essa brincadeira faça sentido para a criança, é preciso que ela interprete a intenção do adulto. Do contrário, se tomar a ação literalmente, a criança simplesmente ficará confusa. Apesar do caso ser uma ótima evidência em favor da capacidade de crianças de interpretarem intenções, parece corroborar, também, a tese de que crianças possuem uma teoria da mente robusta.
Tollefsen descarta essa conclusão por duas razões: (a) a competência de interpretar intenções pressupõe a compreensão de apenas um estado mental, as intenções, sendo que mais é requerido para uma teoria da mente robusta. A competência de interpretar intenções não implica que as crianças possuam compreensão de outros estados mentais como crenças e pensamentos. De maneira um pouco mais radical, Tollefsen (b) questiona se a competência de interpretar intenções envolve, de fato, a compreensão de um estado mental. Para a autora, parece razoável sugerir uma posição mais fraca, onde a intenção interpretada por crianças pequenas não é propriamente uma intenção que está na mente (in mind) dos agentes que a criança observa. Para desenvolver essa ideia, Tollefsen lança mão da distinção entre intenção prévia (prior intention) e intenção em ação (intenion-in-action), proposta por Searle (2002). Intenções prévias são o exemplo paradigmático de intenções como planos para ação e, necessariamente, entidades mentais representacionais. Por outro lado, a intenção em ação é a entidade que causa o movimento corpóreo, é o iniciador da cadeia causal que o agente espera que resulte naquilo que é desejado. Justamente por estar conectada com as características comportamentais, o movimento do corpo, e, portanto, externas à mente do agente, é que Tollefsen sugere que a competência de interpretar intenções de crianças pequenas captura intenções em ação como estados de coisas, que se apresentam em conjunto com a efetiva realização da ação, e não como estados mentais dos agentes.
Com base nas competências sócio-cognitivas de atenção compartilhada, sugestão social e interpretação de intenções, Tollefsen (2005, p. 92-93, tradução nossa) propõe a seguinte versão alternativa das condições de Bratman para a definição de uma intenção compartilhada:
1. (a) Eu tenho a intenção de que nós [executemos] J e (b) você tem a intenção de que nós [executemos] J.
2. Eu tenho a intenção de que nós [executemos] J de acordo com e por causa de 1a, 1b, e o entrosamento de subplanos de 1a e 1b; você tem essa mesma intenção pelas mesmas razões.
3. 1 e 2 são percebidas conjuntamente.
Efetivamente, a alteração explícita se dá apenas na condição (3). Na proposta de Bratman, era exigido conhecimento comum das duas primeiras condições por parte dos indivíduos envolvidos na ação coletiva. Para Tollefsen, isso gera o problema do conhecimento comum, visto que crianças não têm uma teoria da mente robusta para satisfazer essa condição. Dessa forma, a alteração para uma condição de percepção conjunta parece adequada, uma vez que crianças possuem a competência sócio-cognitiva da atenção compartilhada que é menos demandante, exigindo menor sofisticação cognitiva, ao mesmo tempo em que apresenta uma estrutura iterativa muito similar ao conhecimento comum. Assim, a percepção conjunta pode ser suficiente para capturar o tipo de inter-relação necessária para a execução de ações coletivas. A estrutura iterativa da atenção compartilhada forma um espaço perceptual comum aos participantes, onde as ações coletivas de caráter cooperativo podem ser realizadas. Para ilustrar essa estrutura, muito próxima da apresentada anteriormente, Tollefsen utiliza a caracterização da atenção conjunta de Christopher Peacocke (2005, p. 301, tradução nossa):
X percebe que X e Y estão atentos à O.
Y percebe que X e Y estão atentos à O.
X percebe que Y percebe que X e Y estão atentos à O.
Y percebe que X percebe que X e Y estão atentos à O.
X percebe que Y percebe que X percebe que X e Y estão atentos à O.
Etc.
Solucionado o problema do conhecimento comum, ainda resta o problema da responsividade mútua que emerge da condição (2) de Bratman. A responsividade é marcada por uma disposição para corrigir e adequar o comportamento em resposta às intenções e comportamentos dos demais. Essa disposição demanda um rastreamento das intenções dos outros indivíduos e, portanto, exige que os agentes envolvidos na ação coletiva tenham uma teoria da mente robusta. A solução de Tollefsen para esse problema não vem na forma de uma proposta alternativa para a condição (2), mas de uma reinterpretação das competências sócio-cognitivas envolvidas em sua satisfação. A competência de interpretação de intenções, que crianças pequenas parecem exibir, é a peça-chave da solução.
Ainda que crianças pequenas não tenham uma teoria da mente robusta e sejam incapazes de rastrear intenções prévias, que são necessariamente estados mentais de agentes, elas parecem conseguir interpretar intenções em ação. Isso é possível na medida em que as intenções em ação se apresentam abertamente na execução da ação, na realização do conteúdo da intenção do agente. A luta de um indivíduo com uma gaveta revela, publicamente, sua intenção em ação de abri-la. Como enfatiza Tollefsen (2005, p. 91, tradução nossa): “Essa ação apresenta suas condições de satisfação e a criança pode, com a ajuda da sugestão social, literalmente ver essas condições.”
Assim, parece que as competências sócio-cognitivas apresentadas por Tollefsen parecem dar conta do problema da responsividade. A competência de interpretar intenções possibilita que crianças pequenas façam o rastreamento de intenções em ação dos seus parceiros de ação coletiva. A responsividade, ou seja, a adaptação do comportamento derivada desse rastreamento parece indicar que até mesmo as especificidades dos subplanos podem ser capturadas pelas crianças por meio da competência de sugestão social. Pense na ação coletiva de pintar uma figura, desempenhada por uma criança pequena e seu cuidador. Talvez a criança não tenha uma noção de harmonia das cores e pegue um lápis de cor inapropriada. O cuidador pode esboçar uma feição que indique reprovação. Nesse contexto, essa seria uma instância de negociação de subplanos: os agentes envolvidos na ação coletiva estão combinando quais cores são apropriadas para utilizar na atividade que estão desenvolvendo conjuntamente.
Um último ponto, pouco desenvolvido pela autora, é a simples aceitação de que crianças podem formar a intenção com um conteúdo peculiar, como exigido pelas condições (1) e (2) da proposta de Bratman e que permanecem inalteradas na sua reformulação. Já vimos que Bratman explora uma tecnicalidade para inserir a ação coletiva no conteúdo das intenções individuais em forma proposicional, atenuando os compromissos conativos do agente com esse conteúdo, isto é, permitindo que o conteúdo se estenda além daquilo que está sob o controle do indivíduo. Tollefsen não discorre muito sobre esse ponto, mas transparece que ele não fica plenamente claro na sua proposta. Ela dá a entender que a jogada teórica de Bratman não é isenta de complicações e faz uma afirmação bastante cuidadosa de que “[o] conteúdo dessa intenção em ação deve ser algo como ‘que nós [executemos] J’” (TOLLEFSEN, 2005, p. 93, grifo e tradução nossa).
Esse é exatamente o ponto que será explorado na próxima seção deste artigo, onde apresentaremos uma nova adequação da proposta interacionista. O movimento de Tollefsen, de inserir intenções em ação na análise da intenção compartilhada, parece conduzir a proposta para o extremo oposto da tentativa de Bratman de modificar o conteúdo das intenções individuais necessárias para a execução de uma ação coletiva. Lembremos que a manipulação técnica do conteúdo da intenção sugerida por Bratman objetivava permitir que esse conteúdo não fosse, exclusivamente, uma ação que estivesse completamente sob o controle do agente, resolvendo, assim, o problema da eficiência. Entretanto, as intenções em ação de Tollefsen (e Searle) estão intimamente ligadas às características comportamentais, ao movimento do corpo do agente e, consequentemente, à efetiva realização do conteúdo da intenção; características que parecem voltar a exigir o controle direto do agente sobre a produção do conteúdo da intenção. É essa tensão em torno do problema da eficiência e uma tentativa de solução que veremos na sequência, com a proposta de uma intenção em ação socialmente estendida desenvolvida por Blomberg (2011).
Entretanto, antes de avançarmos, observo que outras críticas podem ser feitas à proposta de Tollefsen. Uma crítica preliminar, e um tanto quanto inoportuna, seria disputar as interpretações de Tollefsen sobre a literatura em psicologia social e psicologia do desenvolvimento. Poderíamos insistir que alguns autores (TOMASELLO, 1995; WOODWARD, 1998; CARPENTER, 2009) são mais concessivos em suas interpretações dos casos explorados pela autora e não teriam problemas em atribuir uma teoria da mente robusta para crianças pequenas. O principal problema dessa crítica é que ela diz muito pouco sobre teorias de Intencionalidade Coletiva, não sendo interessante para darmos continuidade às discussões sobre esse conceito.
Outra crítica, apontaria a possibilidade de uma instrumentalização envolvida no apelo às intenções em ação. O problema aqui seria a incapacidade das crianças pequenas de considerar seus companheiros de ação como agentes. Como visto brevemente no início do artigo, as teorias tradicionais em Filosofia da Ação dão um lugar de destaque para o papel que a intenção tem na própria constituição de uma ação: uma ação intencional é um evento causado da maneira apropriada por certos estados e eventos mentais. O fato de crianças não possuírem uma teoria da mente robusta pode implicar que elas são incapazes de identificar ações intencionais. Talvez a interpretação de intenções por meio de intenções em ação não seja suficiente para estabelecer a distinção entre ações intencionais e outras relações causais. É possível que a mesma competência de interpretação de intenções seja utilizada por crianças para atribuir intenções em ação a eventos que não são ações intencionais legítimas. Isso pode acontecer quando estiverem diante de meros comportamentos de indivíduos, como quando instanciam movimentos involuntários (como piscar os olhos, bocejar, espirrar, etc.). Entrando em um terreno mais cinzento, pode ocorrer na atribuição de intenções em ação a animais (que talvez esteja correta), ou até mesmo de fenômenos naturais como o vento fechando portas e janelas, raios queimando aparelhos eletrônicos, as ondas do mar destruindo um castelo de areia, etc.
Sendo a interpretação de intenções uma competência para identificação de intenções em ações por meio das características públicas, externas ao agente, que se apresentam no mundo como estados de coisas, é possível sugerir que as crianças apenas se adequam a maneira como o mundo é, ou seja, coordenam suas ações com o estado de coisas a sua volta com a finalidade de atingir objetivos estritamente individuais. Esse tipo de coordenação não é suficiente para gerar uma ação coletiva legítima. Fazemos esse tipo de adequação a realidade social constantemente. Quando atravessamos a rua, observamos o estado de coisas apresentado pelo trânsito e coordenamos nossas ações de forma a realizar a travessia em segurança. Entretanto, essa não é uma ação coletiva que realizamos juntos (together) com os demais indivíduos que estão no trânsito.
Teóricos da sociologia (WEBER, 2002; ELIAS, 1993, 1994) enfatizaram como as estruturas sociais apresentam um estado de coisas a partir do qual os indivíduos devem se adaptar. Essa ideia pode ser capturada mais precisamente na metáfora de Bourdieu (1996, p. 24) quando comenta em A educação sentimental:
[...] cinco adolescentes - entre os quais o herói, Frédéric -, provisoriamente reunidos por sua posição comum de estudantes, serão lançados nesse espaço, como partículas em um campo de forças, e suas trajetórias serão determinadas pela relação entre as forças do campo e sua inércia própria. Essa inércia está inscrita, de um lado, nas disposições que eles devem às suas origens e as suas trajetórias, e que implicam uma tendência a perseverar em uma maneira de ser, portanto, em uma trajetória provável, e, do outro lado, no capital que herdaram, e que contribui para definir as possibilidades que lhes são destinadas pelo campo.
Claramente, as ações derivadas da “inércia” (das características individuais dos sujeitos) não são ações coletivas, mesmo que o contexto social, o campo de forças, seja fundamental para sua realização, seja o campo de possibilidades dessas ações individuais. Sendo assim, mesmo concedendo que crianças consigam identificar adequadamente outros agentes, restaria ainda a dúvida sobre se elas conseguiriam conceber as atividades sendo realizadas em termos colaborativos ou veem os demais como uma estrutura social na qual podem interagir para alcançar seus objetivos estritamente individuais.
Solucionando a restrição de exclusividade para conteúdos coletivos: a proposta de Blomberg
Nesta última seção trataremos do conflito que Blomberg (2011) identifica na proposta de Tollefsen. A sugestão de Tollefsen, de que as intenções individuais envolvidas em instâncias de ações coletivas sejam intenções em ação, parece reintroduzir o problema da eficiência. Mais detalhadamente, Blomberg concebe esse conflito apoiado na restrição da exclusividade (exclusivity constraint), um princípio amplamente aceito na literatura em Filosofia da Ação (KUTZ 2000; SEARLE 2002; BARDSLEY, 2007), que defende a ideia de “que a execução da ação de outro agente não pode ser parte do conteúdo da intenção de alguém de fazer alguma coisa” (BLOMBERG, 2011, p. 336, tradução nossa).9 Esse princípio parece minar completamente a proposta de uma intenção em ação cujo conteúdo seja coletivo (como no caso de “Eu tenho a intenção de que nós executemos J”), pois intenções em ação deveriam estar intimamente ligadas à efetivação da ação, à realização do conteúdo da intenção, sendo necessário, portanto, o controle das ações de outros agentes para sua formação (e execução) no contexto das ações coletivas.
No caminho de solução para esse problema, Blomberg observa que a restrição da exclusividade atrelada às intenções em ação deveria implicar uma outra restrição, muito mais limitante, quando consideramos alguns pressupostos adicionais muito populares na Filosofia da Ação. Tentando capturar qual é o evento que deveria ser causado por uma intenção para constituir uma ação, temos a influente resposta de Davidson (2001, p. 59, tradução nossa): “Nós nunca fazemos mais do que mover nossos corpos: o resto fica a cargo da natureza”. Assim, o evento que é intimamente relacionado às intenções em ação, o que é concretamente realizado pelo agente, é o seu movimento corpóreo.10 Essa consideração leva Blomberg a propor a restrição do próprio-corpo (own-body constraint) segundo a qual o conteúdo das intenções em ação deveriam se restringir aos movimentos corpóreos do agente.
A proposta de Davidson se coloca no contexto da discussão do problema da individuação de ações (GOLDMAN, 1970; THOMSON, 1971; DAVIDSON, 2001; SANDIS, 2010) que, tradicionalmente, é motivado pela pergunta “Quantas ações há aqui?” para casos em que é possível descrever o agente fazendo várias coisas, ou seja, casos onde é possível fazer múltiplas descrições com diferentes verbos de ação. Um caso apresentado por Searle (2002, p. 136) ilustra claramente o que está envolvido no problema:
Consideremos Gavrilo Princip e seu assassinato do arquiduque Ferdinando em Sarajevo. Dizemos de Princip que
puxou o gatilho
disparou o revólver
atirou no arquiduque
matou o arquiduque
assestou um golpe contra a Áustria
vingou a Sérvia
Analize esse exemplo a partir da questão que ilustra o problema da individuação de ações: Quantas ações há aqui? Quantas ações foram realizadas por Gavrilo Princip? Será que cada verbo corresponde a uma ação distinta ou essa é uma característica meramente linguística e, apesar de ser a mesma (e única) ação, somente é o caso que conseguimos dar diferentes descrições para ela? A resposta de Davidson (2001) segue essa última sugestão: há uma ação, as demais descrições são apenas formas distintas de se referir a um evento, muito específico, que em casos de ações será sempre o movimento do corpo do agente. Note ainda que no caso de Gavrilo ilustrado acima nem está listada a descrição do movimento corpóreo que ele faz ao puxar o gatilho, algo como o movimento de suas mãos ou dedos.
A classe dos movimentos corpóreos parece identificar o conceito de ação básica (DANTO, 1965) que é apresentada como o tipo de ação que é feita sem que o agente precise fazer algo mais. Ações básicas são ações diretas, aquelas que o agente não faz por meio de fazer outra coisa (ou por meio de uma descrição mais básica). Podemos voltar ao caso de Gavrilo, para esclarecer essa relação de fazer algo por meio de outra coisa. No caso apresentado, podemos ver que Gavrilo matou o Arquiduque por meio de outras ações (ou descrições de ação), como disparar a arma, puxar o gatilho e, finalmente, mover seu corpo. Mas parece que nunca mexemos o nosso corpo por meio de outras ações (ou descrições), assim, aparentemente, a classe dos movimentos corpóreos são fundamentalmente o conjunto das ações básicas.11
É a partir de uma objeção a essa restrição do próprio-corpo que Blomberg encontrará a solução para uma proposta de uma intenção em ação cujo conteúdo seja coletivo. Obviamente, o objetivo é argumentar a favor de uma extensão do conteúdo apropriado para as intenções em ação. O primeiro passo será a proposta de uma extensão tecnológica, que permite aos agentes individuais romperem a restrição do próprio-corpo. A partir desse avanço, Blomberg pretende argumentar a favor de uma extensão social, que permitirá romper a restrição da exclusividade, mostrando de que forma alguém pode ter uma intenção em ação que inclua ações de outros agentes em seu conteúdo.
O caso de Gavrilo, apresentado anteriormente, permite identificarmos muito claramente o que se deseja ao propor uma extensão do conteúdo de uma intenção em ação. A partir da discussão da restrição do próprio-corpo, nos deparamos com a ideia de que o conteúdo de intenções em ação deveriam ser, exclusivamente, os movimentos corporais dos agentes. O desafio agora é mostrar como a intenção em ação poderá estender seu conteúdo para outros eventos, como puxar o gatilho, disparar a arma ou, até mesmo, alvejar um alvo. Blomberg (2011) propõe a noção de uma extensão tecnológica para romper a restrição do próprio-corpo.12 A ideia central da proposta é que a habilidade desenvolvida no uso competente de ferramentas possibilita que agentes façam diretamente uma ação mais complexa do que meramente o movimento dos seus corpos. O desenvolvimento dessas habilidades faz com que o uso da ferramenta se torne transparente ao agente, integrando-se a ele, rompendo os limites impostos pelo seu corpo e gerando um sistema cognitivo dinâmico distinto que pensa e faz coisas de maneira que não seria possível sem a integração da ferramenta.13
Voltando ao caso de Gavrilo, dependendo do seu grau de habilidade com armas de fogo, pode-se dizer que ele atinge o alvo diretamente, isto é, sem fazer algo mais. Mesmo Gavrilo não sendo tão habilidoso no uso dessa ferramenta, dificilmente o movimento corpóreo captura o que ele faz diretamente (lembre-se que essa descrição nem foi elencada originalmente por Searle). Ao menos a habilidade para puxar o gatilho diretamente, sem fazer algo mais, é plausivelmente creditada a Gavrilo. Blomberg, no entanto, utiliza-se de outro exemplo, que ilustra mais detalhadamente características fenomenológicas relevantes que evidenciam o elevado grau de familiaridade com a manipulação de determinadas ferramentas, fazendo com que essas ferramentas sejam integradas ao agente quando seu uso se torna transparente. Particularmente, Blomberg se baseia em um caso já conhecido na literatura, proposto por Merleau-Ponty (2018), da experiência de um cego explorando o ambiente a sua volta por meio de sua bengala. Ao analisar esse caso específico, Blomberg (2011, p. 344, tradução nossa) diz:
Sua experiência não é aquela de manipular seu braço, pulso e dedos a fim de causar um certo movimento da bengala, como se ele estivesse segurando a bengala pela primeira vez em sua vida. Pelo contrário, o cego simplesmente bate o chão com a ponta da bengala diretamente. A bengala, ela mesma, desaparece de sua consciência e atenção, assim como nossos braços e mãos estão fora do foco de nossa consciência e atenção quando nós “os usamos” em uma ação. [...]. A experiência perceptual do cego é de tocar o chão que está na ponta da bengala: ele toca o chão através da bengala. A experiência não é aquela de tocar a bengala em sua mão a fim de inferir como o chão é.
De modo similar à listagem de possíveis descrições para a ação de Gavrilo Princip no exemplo de Searle, nesse caso do cego que explora o ambiente a sua volta, poderíamos dizer que ele:
moveu seu braço, pulso e dedos
moveu sua bengala
tocou o chão
explorou o ambiente a sua volta
A tese de uma extensão tecnológica rompe a restrição do próprio-corpo ao possibilitar que desconsideremos algumas das descrições mais básicas que poderíamos dar para a ação do agente. A habilidade no uso de certas ferramentas possibilita que eventos mais complexos sejam considerados como a ação básica do agente, são as descrições mais adequadas para capturar aquilo que o agente faz diretamente, sem fazer algo mais. Voltando ao exemplo, talvez a exploração do ambiente não possa ser básica, por ser realizada por meio dos toques que o cego faz em diferentes posições. Mas, como argumentado por Blomberg, parece razoável (e apropriado) dizer que um cego habilidoso com sua bengala toca o chão diretamente, sem realizar nenhuma ação mais básica para satisfazer sua intenção.
Para aplicar os resultados dessa intenção em ação tecnologicamente estendida nos casos de ações coletivas, Blomberg começa com a inspiração de algumas considerações de Axel Seemann sobre um tipo muito específico de controle compartilhado (joint control) experienciado em um caso de patinadores no gelo realizando uma coreografia. Refletindo a partir desse caso, Seeman (2009, p. 508, tradução nossa) afirma:
É uma experiência de que realmente estamos controlando nossas ações. E essa experiência é corporificada: nos tipos de casos mais óbvios, tal como o exemplo dos patinadores, nossos corpos realmente parecem formar uma unidade experiencial. A consciência que eu possuo do seu corpo na execução da coreografia é significativamente diferente da sensação a qual posso estar sujeito do seu corpo sendo pressionado contra o meu em um vagão de metrô lotado. Seu corpo parece formar parte de nossa interface conjunta com o mundo.
A partir dessa reflexão, Blomberg argumenta a favor de uma noção de intenção em ação socialmente estendida. Para tanto, ele destaca algumas características que parecem estar presentes em casos de ações coletivas que envolvam habilidades distintivas de coordenação entre os indivíduos participantes, sendo os patinadores no gelo executando coreografias um caso paradigmático desse tipo particular de interação. Seguindo a tradição interacionista, Blomberg observa que há uma interligação entre as intenções dos agentes expressa em um relação de interdependência: a intenção em ação de um agente é dependente da intenção em ação do outro agente.
A proposta distintiva da intenção em ação socialmente estendida é estabelecer que o conteúdo dessas intenções em ação interligadas pode ser o movimento complexo de ambos os indivíduos e, dado o grau elevado de sintonia e cooperação entre eles, esse movimento complexo pode ser tomado como uma ação básica, algo que os agentes fazem diretamente. Assim, a intenção em ação individual, cujo conteúdo compreende o movimento complexo de ambos os indivíduos, terá em seu conteúdo o movimento corporal de seu companheiro, pois esse evento é uma condição de satisfação da intenção. Visto que intenções em ação estão ligadas diretamente à execução da ação e à realização do seu conteúdo, ambas intenções em ação são bem sucedidas em realizar as condições de satisfação expressas pelo seu conteúdo. Essa estrutura de uma intenção em ação socialmente estendida deveria implicar em uma interessante interdependência dos movimentos corpóreos dos agentes envolvidos, onde “[a] intenção em ação de cada patinador causa não somente seus próprios movimentos corpóreos, mas também os movimentos corpóreos do outro.” (BLOMBERG, 2011, p. 347, tradução nossa).
Blomberg, ele mesmo, levanta uma série de possíveis objeções a essa proposta. Além de questões sobre a plausibilidade das análises de extensão, tanto tecnológica quanto social, frente a discussões próprias do campo da ciência cognitiva, o autor considera os problemas tradicionais da Intencionalidade Coletiva, em especial o problema da eficiência e a aparente impossibilidade de que um agente tenha a intenção de realizar a ação de outro agente. Nesse momento, Blomberg aproveita para reiterar que sua proposta pretende ser bastante limitada, para casos específicos em que os agentes envolvidos tenham uma conexão bastante singular, uma sintonia derivada do desenvolvimento da habilidade por meio de exaustivas repetições da ação coletiva sendo executada, como em uma coreografia. Blomberg ressalta que a proposta não deve ser tomada como uma proposta geral para os problemas de Intencionalidade Coletiva, ainda mais que não se concentra em adaptar as condições (2) e (3) de Bratman, onde efetivamente se apresentam as demandas para a dimensão cognitiva, por explicitarem a interligação reflexiva de crenças e intenções dos agentes envolvidos. Blomberg destaca que a proposta, focada em intenções em ação e seu conteúdo (tema da condição (1) da proposta de Bratman), tem como objetivo explicar a responsividade das ações dos agentes envolvidos e não a responsividade de suas intenções.
Creio que, através dessas elucidações, Blomberg abre espaço para uma nova onda de críticas baseadas na instrumentalização. Em primeiro lugar, a própria estratégia argumentativa depende de uma analogia com ferramentas. Um agente individual expande sua capacidade de agir mediante o domínio de um instrumento. Desta forma, fica a dúvida se os agentes envolvidos em ações coletivas que envolvam habilidade não estejam tratando os outros como meros instrumentos e não como agentes. O que torna delicada a interpretação de trechos em que o autor diz: “como nos casos de uso habilidoso de ferramentas, agentes algumas vezes experienciam uns aos outros como extensões transparentes de suas próprias atividades.” (BLOMBERG, 2011, p. 347). Complementando esse ponto, ao discutir as dificuldades para a aplicação nos casos de crianças pequenas, Blomberg (2011, p. 349) diz:
Isso [desenvolvimento de habilidade social por repetição] parece especialmente plausível em atividades conjuntas assimétricas, onde uma criança está brincando com um adulto, visto que um adulto coparticipante está, normalmente, mais disposto a ser controlado e “manipulado” pela criança do que um par estaria (o adulto pode, portanto, compensar a falta de habilidade fluente da criança).
Nesse trecho, volta a hipótese de que crianças, munidas da capacidade de interpretação de intenções que as habilita, tão somente, a identificar de intenções em ações, apenas se adequam à maneira como o mundo é. Ou seja, coordenam suas ações com o estado de coisas a sua volta para atingir objetivos estritamente individuais, sem considerar que estão interagindo com outros agentes. Fazendo com que esse tipo de coordenação seja insuficiente para o surgimento de uma ação coletiva legítima.
Outra fonte de críticas a essa proposta residiria na determinação de quem é, efetivamente, o agente nesse tipo de caso. Uma consequência metafísica singular da tese da mente estendida é que a incorporação de instrumentos externos (como cadernos, notas, calculadoras, computadores, etc.) fazem surgir uma nova entidade. Os indivíduos que integram essas ferramentas em suas atividades cognitivas não são mais apenas seres humanos, mas passam a constituir um sistema cognitivo único (CLARK; CHALMERS, 1998), são um ser humano integrado com a ferramenta que dominam. Da mesma forma, parece que no caso de ações coletivas habilidosas, onde um agente se integra ao seu companheiro, tal qual um agente individual se integra a sua ferramenta, é o sistema cognitivo (e conativo) constituído pelos dois que deveria possuir os estados mentais relevantes para que a ação lhe fosse atribuída adequadamente. Em outras palavras, a proposta teórica parece exigir que se abandone uma das marcas distintivas do projeto interacionista: seu reducionismo.
Conclusão
Neste artigo busquei apresentar a discussão sobre Intencionalidade Coletiva acompanhando a evolução da linhagem interacionista de explicação para esse fenômeno. Além do objetivo geral de apresentar o problema da Intencionalidade Coletiva, essa estratégia expositiva, mais concentrada nas modificações de uma proposta específica de solução, possibilita o contato com inovações teóricas bastante técnicas que foram desenvolvidas por seus proponentes.
Assim, pretendeu-se apresentar as características centrais da proposta interacionista que foram delineadas pelo trabalho de Michael Bratman (1992, 1993). O autor busca explicar a Intencionalidade Coletiva por meio de uma configuração particular de estados mentais individuais, que ele chama de intenção compartilhada. Haveria uma interligação reflexiva desses estados mentais individuais, evidenciando a natureza interacionista da proposta. Além de existirem crenças sobre os outros indivíduos e seus estados mentais, a proposta se preocupa em descrever como se daria o entrosamento de subplanos desses agentes individuais, ou seja, como a inter-relação dessas atitudes deve ser coerente, respeitando as normas de racionalidade que a Filosofia da Ação defende que restringem a formação e sustentação de nossas intenções.
Entretanto, essa interligação reflexiva exigida pela proposta de Bratman foi criticada por ser muito demandante. Ela exige certa sofisticação cognitiva por parte dos indivíduos envolvidos, além de impossibilitar que ações coletivas sejam realizadas espontaneamente, sem um momento prévio de planejamento e acordo entre os indivíduos que se engajarão na atividade. Tratando principalmente da primeira questão, mais propriamente da exclusão de crianças pequenas de figurarem como participantes de ações coletivas, Deborah Tollefsen (2005) desenvolve uma reinterpretação da proposta de Bratman a partir do conjunto de competências sócio-cognitivas que a literatura em psicologia social e psicologia do desenvolvimento atribui a crianças pequenas. A autora destaca que as competências de atenção compartilhada, sugestão social e interpretação de intenções poderiam licenciar que crianças pequenas satisfaçam as condições apresentadas por Bratman.
Entretanto, justamente por não possuírem uma teoria da mente robusta, ou seja, não serem capazes de atribuir estados mentais a outros indivíduos, Tollefsen argumenta que as intenções individuais que fazem parte da intenção compartilhada deveriam ser intenções em ação. Essa noção técnica identifica um tipo especial de intenção que estaria conectada com as características comportamentais do agente, mais precisamente, com o movimento do seu corpo. Dadas essas características, essa intenção pode se apresentar publicamente, externamente ao indivíduo, quando da produção de seus efeitos no mundo. Tollefsen argumenta que é esse tipo de intenção, as intenções em ação, que crianças identificam através da competência de interpretação de intenções.
Essa sugestão, no entanto, reintroduz um problema para a linhagem interacionista, visto que o esforço teórico de Bratman foi de incluir a ação coletiva no conteúdo das intenções individuais que compõem a intenção compartilhada. A proposta de Tollefsen, de que intenções em ação deveriam figurar na intenção compartilhada, faz emergir a questão de como é possível que a ação de outros indivíduos façam parte do conteúdo da intenção (em ação) de um agente. Objetivando solucionar esse problema, Olle Blomberg (2011) propõe a ideia de uma extensão social do conteúdo de intenções em ação. A proposta se inspira na noção de uma intenção em ação tecnologicamente estendida, fruto da habilidade que agentes desenvolvem na manipulação de ferramentas e que permite a eles alcançar resultados ou produzir eventos complexos diretamente, rompendo a aparente restrição do próprio corpo para as intenções em ação. A partir desse modelo de extensão plausível, Blomberg defende a ideia de uma intenção em ação socialmente estendida, que permitiria a inserção de resultados coletivos, resultados de ações de outros agentes individuais, no conteúdo de intenções em ação.
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Notas
2 Usualmente crenças, desejos e intenções são listadas como exemplos de atitudes proposicionais, i.e. estados mentais que têm proposições como seu conteúdo. Nesse artigo nos concentraremos no estado mental apropriado para a Filosofia da Ação, a intenção, e seguiremos essa posição padrão de considerá-la como uma atitude proposicional. Veja Campbel (2019) para uma discussão crítica dessa posição.
Além do foco em intenções, as discussões sobre Intencionalidade Coletiva se concentram em propostas de “coletivização” de crenças. Há, inclusive, bibliografia em português sobre o tema (MOREIRA, 2017; RUIVO, 2017; RUIVO; CICHOSKI, 2017). Mas outros estados/fenômenos mentais, inclusive não proposicionais, também já foram discutidos no que diz respeito à sua coletivização (SCHMID; ONZELMANN ZIV, 2014; SCHMID; SALICE, 2016; SZANTO; MORAN, 2016).
3 Alertamos que o termo “intencionalidade” não é derivado de “intenção”. “Intencionalidade” é um termo técnico em Filosofia da Mente, cunhado por Brentano (1973), que busca capturar a capacidade que estados mentais têm de representarem objetos, propriedades ou estados de coisas (em inglês se caracteriza essa capacidade como “aboutness”, aproximadamente “ser sobre algo”). A posição padrão em Filosofia da Mente é que a maioria de nossos estados mentais têm essa capacidade: crenças são sobre proposições; desejos são sobre objetos, pessoas, projetos; imaginações são sobre alguma coisa, podendo ela, inclusive, não existir, ser uma entidade ficcional, por exemplo. Um dos poucos tipos de estados mentais não intencionais seria a dor, por exemplo, que simplesmente é sentida, mas não carrega um conteúdo, não representa algo, não é “sobre alguma coisa”. Apesar dessa nota, neste artigo não exploraremos a propriedade intencional, de “ser sobre algo”, das intenções, nosso foco será na análise de outras características desse estado mental que parecem impedir sua atribuição em contextos de ações coletivas.
4 Apesar de muitas tentativas, não há uma definição precisa ou taxonomia consensualmente aceita sobre o termo “ação coletiva” (para algumas tentativas de taxonomia, veja MILLER, 2001; SCHWEIKARD, 2008). Inclusive, muitos autores utilizam outros termos para capturar o fenômeno: ação social, ação conjunta, ação compartilhada, ação de grupo. Comum a todas essas tentativas, e fundamental para os propósitos do presente trabalho, é o pressuposto intuitivo de que ações coletivas são ações que envolvem mais de um agente.
5 Essa formulação, derivada da restrição de consistência das intenções, é explicitamente articulada em Schmid (2009) com o nome de Princípio da Autoconfiança Intencional e em Enç (2003), sob o nome de Versão Fraca, quando o autor discute a relação que intenções mantêm com as crenças do agente sobre a ação que figura no conteúdo de suas intenções. Veja Mele (1989) para uma possível objeção. Mele argumenta que intenções não precisam ser relacionadas a quaisquer crenças do agente; crenças não interferem nas funções causais executadas pelas intenções. Entretanto, ele apresenta casos de grau de crença, não sendo claro o que ele diria nesse caso extremo, onde o grau de crença do indivíduo aparentemente é zero. Nesse caso o agente toma a ação como sendo impossível de ser realizada e não, meramente, que seu sucesso é improvável, como os casos discutidos por Mele.
6 A discussão sobre a importância dos planos na compreensão das ações é o grande diferencial da contribuição de Bratman para a Filosofia da Ação. Essa tese é a marca de sua obra seminal (1999a), sendo essa tese e seu desenvolvimento o foco central de muitas outras contribuições do autor (veja, por exemplo, o destaque dado a esse tema na introdução da coletânea de artigos Faces of Intention (1999b), como elemento articulador das ideias do autor).
7 Destacamos que nossa apresentação do problema da Intencionalidade Coletiva está circunscrita a uma proposta específica: o interacionismo. Assim, vale notar que existem propostas concorrentes disponíveis na literatura sobre o tema. As principais alternativas à linhagem interacionista vão negar que as teorias tradicionais de Filosofia da Mente e Filosofia da Ação possuem todas as ferramentas conceituais para a explicação de fenômenos da realidade social. Uma dessas correntes alternativas defenderá que é necessária a postulação de um tipo de estado mental específico entretido pelos indivíduos envolvidos, ou seja, seres humanos teriam a capacidade de formar crenças, intenções, emoções no modo-nós. As propostas mais populares que seguem essa alternativa são Raimo Tuomela (1988, 2013) e John Searle (1990, 2010). Outra corrente defenderá que é necessária a postulação de um tipo de sujeito específico, um sujeito coletivo, que é apropriadamente o detentor dos estados mentais envolvidos, ou seja, haveria sujeitos que não são seres humanos individuais e essas entidades seriam capazes de sustentar estados mentais. Os principais proponentes dessa alternativa são Margaret Gilbert (1987, 1994, 2014) e Philip Pettit (2003, 2011). Note que são essas as alternativas sendo consideradas por Bratman na citação.
8 Tollefsen (2005, p. 81) define uma teoria da mente como a prática de conceber uma entidade em termos de constituintes mentais tais como crença, desejo, intenção e pensamento. Para a autora, alguém teria uma teoria da mente robusta se satisfizesse três condições: (1) compreendesse os outros em termos de seus pensamentos, intenções e crenças; (2) compreendesse que os pensamentos, intenções e crenças dos outros podem ser diferentes do seus; (3) compreendesse que outros podem ter pensamentos e crenças que não estejam de acordo com o estado de coisas atual (i.e. podem ter crenças falsas).
9 Note que a restrição da exclusividade justifica (P2) “Um agente individual apenas pode ter a intenção de realizar suas próprias ações” do Argumento do Problema da Eficiência apresentado na primeira seção.
10 Importante notar que a discussão passa a ser relativa à Metafísica das ações. Davidson, por exemplo, não faz distinções entre tipos de intenções e não acredita que seja usual que o conteúdo das nossas intenções façam referência a movimentos corpóreos, ainda que esse seja o elemento metafísico (evento) fundamental da ação; aquilo que, de fato, nós fazemos quando agimos. A ligação entre conteúdo da intenção e movimentos corpóreos se dá, especificamente, na discussão sobre a noção de intenção em ação de Searle adotada por Tollefsen e discutida por Blomberg: “Ora, à primeira vista, o conteúdo da intenção prévia e o da intenção em ação parecem bem diferentes, pois, embora ambos sejam causalmente auto-referentes, a intenção prévia representa a ação completa como o resto de suas condições de satisfação, mas a intenção em ação apresenta, e não representa, o movimento físico e não a ação completa como o resto de suas condições de satisfação. No primeiro caso, a ação completa é o ‘objeto Intencional; no segundo, o movimento é o ‘objeto Intencional’. A intenção em ação, tal como a intenção prévia, é auto-referente no sentido de que seu conteúdo Intencional determina que seja satisfeito apenas se o evento que constitui sua condição de satisfação for ocasionado por ele. Outra diferença é que, em qualquer situação da vida real, a intenção em ação terá muito mais determinantes que a intenção prévia, incluindo não só que meu braço se erga, mas também que se erga de um certo modo, a uma certa velocidade etc.” (SEARLE, 2002, p. 130). Sou grato a um parecerista anônimo pela ressalva de que, para Davidson, a descrição segundo a qual uma ação é primitiva não precisa ser a descrição que torna a ação intencional.
11 No contexto da citação anterior de Davidson, é justamente o conceito de ação básica (chamada pelo autor de “ação primitiva”) que estava sendo discutido: “Nós devemos concluir, talvez com certa surpresa, que nossas ações primitivas, aquelas que nós não fazemos por meio de fazer outra coisa, meros movimentos do corpo – essas são todas as ações que efetivamente existem”. (DAVIDSON, 2001, p. 59, tradução nossa).
12 Há outros caminhos para se argumentar contra a restrição do próprio-corpo, ou seja, em favor da extensão dos itens que podem fazer parte do conteúdo de intenções em ação. As críticas à própria noção de ação básica ou à tese de que ela seja exclusivamente a classe de movimentos corpóreos geram discussões nesse sentido. Baier (1971) e Sneddon (2001) são exemplos dessas outras abordagens.
13 Qualquer semelhança com a tese de mente estendida não é mera coincidência. Os autores dessa tese (HUTCHINS, 1995; CLARK, 2008), apesar de mais focados na dimensão cognitiva, exploram frequentemente as implicações práticas, relacionadas a ações, da extensão da mente.
Notas de autor