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A efemeridade dos entes e a eternidade de Deus na terceira via tomásica

The effemerity of entities and God's eternity in the third tomasic way

Clodoaldo da Lu 1
Universidade Federal do Paraná, Brasil

A efemeridade dos entes e a eternidade de Deus na terceira via tomásica

Griot: Revista de Filosofia, vol. 23, núm. 1, pp. 166-174, 2023

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepción: 26 Octubre 2022

Aprobación: 09 Febrero 2023

Resumo: A fugacidade é própria de todo o ente, pois esse recebe o ser e não tem por si a sua existência. Já a eternidade é atributo único do Ser, de Deus, pois é o necessário por si. Nesse sentido, o presente artigo visa refletir sobre a efemeridade dos entes corruptíveis e dos entes incorruptíveis, bem como acerca da eternidade de Deus na terceira via tomásica. Deste modo, em primeiro lugar, apresentar-se-á a referida prova acerca da existência de Deus. Num segundo momento, será tecido um apontamento acerca da efemeridade dos entes corruptíveis, os quais sofrem os efeitos da dinâmica da geração e corrupção. Depois, verificar-se-á que os entes incorruptíveis também possuem uma existência efêmera, pois podem ser aniquilados por Deus. Por fim, será elucidado que Deus é o Ser necessário por si e por isso é eterno. Haja vista que Deus concede e mantém a existência de todo o ente.

Palavras-chave: Ente, Efemeridade, Ser, Deus, Eternidade.

Abstract: The fugacity is characteristic of every being, because it receives or being and has no case for its existence. Eternity is the unique attribute of Being, of God, which is necessary in itself. In this sense, this article aims to reflect on the ephemerality of corruptible and incorruptible beings, as well as on the eternity of God in the third way of Thomas. In this way, in the first place, the aforementioned proof of the existence of God will be presented. In a second moment, a note will be made about the ephemerality of corruptible entities, which suffer the effects of the dynamics of generation and corruption. Afterwards, it will be seen that incorruptible beings also have an ephemeral existence, as they can be annihilated by God. Finally, it will be elucidated that God is the Being necessary in itself and therefore eternal. In view of the fact that God grants and maintains the existence of all beings.

Keywords: Entity, Ephemeral, Being, God, Eternity.

Introdução

A Filosofia Medieval concebe que ente é aquele que recebe o ser, a existência de outrem. Já o Ser possui a existência por si. Nesse panorama O Ser por excelência enseja e mantém a existência dos entes materiais e dos entes imateriais. Os primeiros devido a sua fugacidade, pelo fato de estarem à mercê do tempo, são contingentes, podendo ser ou não ser.

Já os imateriais, apesar de serem imunes às vicissitudes temporais e de serem necessários, não possuem a causa de sua necessidade, recebem-na de outro. Deste modo, somente Deus, ao não receber de outro a sua necessidade, é o Ser necessário por si; logo, Ele não tem princípio e tampouco fim, sendo, portanto, eterno.

Tal é a constatação que se pode verificar na terceira via tomásica. Sendo, assim, possível constatar, na referida via, a efemeridade dos entes materiais e, inclusive, a dos entes imateriais e a eternidade de Deus.

Nesse sentido, o presente artigo, primeiramente, irá apresentar a terceira via tomásica; para, à luz dessa prova de Tomas acerca da existência divina, num segundo momento, refletir sobre a efemeridade dos entes contingentes; depois investigar sobre a possibilidade da aniquilação dos entes imateriais, os quais, embora imunes ao tempo, podem ser extintos por Deus; e, por fim, redigir uma consideração acerca da eternidade divina.

Apresentação da terceira via tomásica

A discussão filosófica sobre a existência divina fora um assunto importante no Medievo. Pertencente a esse momento histórico e filosófico, Tomás de Aquino (1224-1275) construiu seu discurso acerca de Deus norteado por uma dinâmica ascendente, ou seja, por meio de elementos sensíveis, a posteori e através desses embasou as suas cinco vias, as quais constituem as suas provas da existência de Deus.

Tomás considerou que todo o conhecimento começa com a experiência sensível, sobre a qual podem ser desdobrados vários graus de abstração. Também o conhecimento que se tem de Deus é a partir de seus efeitos, conforme explana Wippel: “Tomás inicia observando que toda perfeição inscrita nas criaturas descende de Deus como de sua causa exemplar e, portanto, de um princípio que contém em si as perfeições de todas as coisas2” (Wippel, 2007, p. 154-155, tradução nossa).

O Aquinate, conforme indica Wippel, reconhece que Deus inscreve seus sinais na criação. Haja vista que nela pode ser encontrada resquícios da perfeição divina. Com efeito, é possível, ao partir das criaturas, ascender ao Criador, porque sua marca se faz, indelével e significativamente, impregnada em sua obra. Além do mais, tal itinerário é outrossim balizado pela Escritura: “a grandeza e a beleza das criaturas, fazem, por analogia, contemplar seu Autor (Sb 13,5)” (A BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2000, p. 1226).

Nesse sentido, a especulação racional, sobretudo no que tange a existência divina, sob a ótica tomásica, poderia estar em comunhão com a doutrina cristã católica. Pois, à guisa de razão, todo efeito possui similitude com sua causa e, à luz da Palavra, Deus deixa sua imagem na obra criada. Sob semelhante viés de dialogicidade, partir do sensível ao inteligível constitui, na visão de Aquino, o modo eficaz de tecer uma argumentação sobre Deus.

Outrossim, o Aquinate tinha a intenção de, ao evangelizar e encarnar a Palavra na vida hodierna medieval do século XIII, mostrar a razoabilidade da fé, ao harmonizar a razão com a crença cristã católica, no seu escopo de reafirmar a existência divina.

Assim, igualmente exortado pela Palavra, Tomás inicia sua investigação observando seu entorno e chega à consideração que há diversas coisas, entes, que são mutáveis e por isso suscetíveis ao tempo, sendo, desse modo, possíveis, contingentes e, assim, não necessários. Todavia, na linha do raciocínio do Aquinate é impossível tão somente haver entes contingentes. Sendo mister a existência de entes necessários, os quais, por serem imateriais, são incorruptíveis, pois seriam imunes aos efeitos temporais.

Mesmo auferindo tal argumento da existência dos entes necessários por outro, Aquino, no prosseguimento de sua elucubração, destaca que se faz imprescindível a existência do Ser por excelência, o qual, diferindo dos entes necessários por outro e dos contingentes, possui em si a causa de sua existência, não recebendo o ser de outro; logo, configurando-se no Ser necessário por si.

Eis a via na qual Tomás redigi semelhante argumentação:

A terceira via é tomada do possível e do necessário. Ei-la. Encontramos, entre as coisas, as que podem ser ou não ser, uma vez que algumas se encontram que nascem e perecem. Consequentemente, podem ser e não ser. Mas é impossível ser para sempre o que é de tal natureza, pois o que pode não ser não é em algum momento. Se tudo pode não ser, houve um momento em que nada havia. Ora, se isso é verdadeiro, ainda agora nada existiria; pois o que não é só passa a ser por intermédio de algo que já é. Por conseguinte, se não houve ente algum, foi impossível que algo começasse a existir; logo, hoje, nada existiria: o que é falso. Assim, nem todos os entes são possíveis, mas é preciso que algo seja necessário entre as coisas. Ora, tudo o que é necessário tem, ou não, a causa de sua necessidade de um outro. Aqui também não é possível continuar até o infinito na série das coisas necessárias que têm uma causa da própria necessidade, assim como entre as causas eficientes, como se provou. Portanto, é necessário afirmar a existência de algo necessário por si mesmo, que não encontra alhures a causa de sua necessidade para os outros: o que todos chamam Deus (AQUINO, 2016, p. 167-168).

De posse da terceira via tomásica, faz-se oportuno refletir, percorrendo a mesma dinâmica ascendente do Aquinate, acerca da efemeridade dos entes contingentes, imersos no tempo, de uma ‘possível finitude’ dos entes imateriais através da possibilidade de aniquilação e da eternidade do Ser, de Deus, o qual concede e sustenta a existência aos entes.

A passagem temporal dos entes contingentes

A Filosofia Clássica, mormente os filósofos naturalistas pré-socráticos (Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, etc.), legou à posteridade o asserto de que as coisas temporais estão sujeitas à dinâmica da geração e corrupção. Aquino, ciente dessa constatação filosófica e embasado na sua elucubração calcada nos elementos sensíveis e a posteriori, inicia sua argumentação, na sua terceira via, realçando a existência de entes corruptíveis, os quais podem ser ou não ser.

Aqui, nesse ponto da explanação de Tomás, talvez possa surgir uma dificuldade: como é possível entender a indicação tomásica que os entes contingentes podem ser e não ser; será que esses teriam o poder de existir e não existir em si mesmos, podendo trafegar da existência a não existência a bel prazer, tendo assim o ser em si? Faz-se mister, a fim de apreender a intenção tomásica nessa inferência, apresentar que para o Aquinate “o tempo nada mais é que o número do movimento segundo o antes e o depois” (AQUINO, 2016, p. 236).

Perante tal indicação, o tempo serve como instrumento de medição, porém não como uma régua, pois essa é um objeto físico real. O tempo, assim, é o instrumento da nossa razão, baseado na abstração da quantidade e usado para medir as mudanças do mundo segundo o antes e o depois. Por ser próprio da inteligência humana medir as mudanças do mundo, o tempo, como criação mental, não é um ser. É um ente de razão. Como instrumento mental criado por nós, possui função instrumental e basilar para que, a cognição humana, mensure o modo de ser cambiante e mutável do mundo físico (do que é contingente), a fim de facilitar a compreensão do modo de ser das criaturas do universo físico. Pelo fato de ser uma criação mental do intelecto do ser humano, o tempo não tem realidade metafísica. Pois passou a existir, na cognição humana, após o primeiro movimento. Tendo em vista que Deus, ao criar, deseja que da criação emane efeitos contingentes, os quais se movem, e que, por isso, são, pelo intelecto do ser humano, medidos pelo tempo.

Em posse dessa asserção é possível inferir que Aquino, ao expor a fugacidade do que é contingente (mensurada pelo tempo), certamente visualiza os efeitos da passagem temporal nos entes materiais. Prova disso é a possibilidade de nascer e padecer dos entes contingentes apresentada por Tomás. Podendo, assim, ser e não ser.

O natural da existência é nascer, crescer, amadurecer e fenecer. Não obstante, é notório que diversos entes padecem antes mesmo de amadurecer, diversos deles não experenciam o crescimento. Isso denota a imprevisibilidade e a importância fulcral do agora na existência do contingente, pois não se sabe o depois, mesmo que este o chegue, já é presente. Nessa esteira, inferir que podem ser e não ser é reconhecer a precariedade da existência nos entes que são temporais.

Nessa imprevisibilidade, vê-se que, apesar do itinerário existencial ser perpassado pelo nascimento, crescimento, amadurecimento, envelhecimento e fenecimento, nem todos os entes contingentes perfazem semelhante trilha: muitos decaem no alvorecer da existência, vários decaem antes do amadurecimento e diversos não vislumbram a senilidade existencial.

Enfim, o itinerário dos entes contingentes é incerto. O que faz pensar, à luz da terceira via tomásica, a impossibilidade de o contingente ensejar a existência, pois o que pode não existir em algum dado momento não é, porque num certo instante não existia. Assim, sendo, é natural supor que em um determinado instante nada havia e agora nada existiria, se de fato, tudo fosse dessa natureza. Isto porque, o que não existe só começa a existir a partir do que já é.

Assim, se somente existissem tais tipos de entes seria impossível que hoje houvesse algo, pois não haveria a necessária estabilidade para que algo nesse instante existisse. Conforme se nota, as coisas existem. Ademais, se tão só houvesse o contingente nada teria sequer existido, pois é impossível, lógica e ontologicamente falando, haver a transposição do não ser ao ser. Pois é fato que algo somente concede o que possui e nunca algo que não detém.

Obviamente, a constatação da existência das coisas corrobora que algo existe, assim, é plausível assentir que algo é necessário, pois do nada, nada vem. Destarte, é razoável asseverar a existência de coisas necessárias. Ratificando, desse modo, a impossibilidade de uma cadeia infinita de coisas contingentes, entes materiais, pois semelhante infinitude contingencial obstaria invencivelmente a existência do que agora se faz presente na realidade.

O contingente não tendo em si a existência, pois a tem e a não possui, numa imprevisibilidade contínua, não poderia, num primeiro momento, doar a existência a outro contingente e assim por diante, caso não houvesse algo fora do contingencial, que principia a existência.

Disto, Tomás obtém uma consideração importante a existência de entes necessários. Semelhante asserção que se sustenta pela verificação da realidade mundana, poderia, deste modo, talvez conceder a devida consideração para o Aquinate asseverar o seu intento de edificar e consolidar sua terceira via sobre a existência divina.

Todavia, ao que tudo indica, considerando inconclusa a sua argumentação no que tange a existência divina, na sua terceira via, Tomás insere a possibilidade de dois necessários. Para tanto, Tomás indica que todo necessário o é por outro ou por si. Destarte, Aquino estabelece a existência de dois necessários: os entes que são necessárias por outro e o que é necessário por si. Os entes necessários por outro, conquanto sendo incorruptíveis por não serem acometidos pelas intempéries temporais, mas pelo fato de não possuírem em si a causa de sua necessidade, são, em alguma medida, ‘efêmeros’ e não eternos.

A possiblidade de aniquilação dos entes imateriais

O Aquinate, embora tenha, a contento, elucidado que não há somente os entes contingentes, intenta na sua terceira via apresentar a existência de entes necessários por outro para, posteriormente, enfatizar que há o Ser necessário por si. Para tanto, considera inexequível uma série infinita de entes necessários por outro. Isto porque, obrigatoriamente deve haver o ser necessário que confere a necessidade a outro e, assim, sucessivamente. Pois, do contrário não poderia existir os demais necessários, no caso os entes necessários por outro, caso não houvesse o necessário que enseja a necessidade. Havendo, de forma consequente, o necessário por si.

Assim, novamente aludindo à impossibilidade de uma série infinita de entes, no caso agora de entes necessários por outro, Aquino, deveras, pode ter em mente uma ‘possível efemeridade’ desses entes, apesar de esses serem imunes aos efeitos do tempo.

Já nessa possibilidade, Tomás defende a ideia de que tais entes por serem imateriais e não restringidos pelo tempo devem ser ‘mensurados’ pelo evo e não pela eternidade, a qual só convém a Deus.

O evo é assim conceituado pelo Aquinate:

O evo difere do tempo e da eternidade, existindo como o meio entre eles. E alguns assinalam essa diferença dizendo que eternidade não tem começo nem fim; o evo tem um começo e não tem fim, o tempo, por sua vez, tem um começo e um fim. – Mas, já foi dito, essa diferença é acidental, pois se o que está no evo tivesse sempre existido e houvesse de existir sempre, como alguns o pressupõem, ou se viesse a desaparecer, o que é possível para Deus, mesmo nesse caso o evo se distinguiria da eternidade e do tempo. Outros assinalam esta diferença entre os três: a eternidade não tem antes nem depois; o tempo tem antes e depois, com renovação e envelhecimento; o evo tem antes e depois, mas sem renovação nem envelhecimento. – Esta posição, porém, é contraditória (AQUINO, 2016, p. 236).

O referido excerto tomásico indica que o evo possui um início, implicando que todos os entes pelo evo mensurados carecem de um princípio, isto é, do Ser que lhes conceda a existência. Pelo fato do evo não ter um fim indica que os entes nele inscritos não são sujeitos à corruptibilidade. Grosso modo, pode-se afirmar que o evo pode ser considerado como o ‘tempo’ dos necessários por outro.

Faz parte do número dos entes incorruptíveis, os quais a sua existência é mensurada pelo evo, os anjos e os corpos celestes3. Na Suma de Teologia na questão 10 A eternidade Deus, no artigo 6 Existe apenas um único evo, mais precisamente na resposta à segunda objeção, Tomás enfatiza a asserção de que não somente os anjos estão no evo: “Deve-se dizer que, embora os corpos celestes e as criaturas espirituais difiram no gênero natureza, eles coincidem em que têm o ser imutável e por isso são medidos pelo evo”(AQUINO, 2016, p. 248). Com efeito, o fato de não serem entes temporais, senão imateriais, faz com que entes distintos possam compor a fileira dos entes necessários por outro. E, desse modo, constituírem o grupo dos entes mensurados pelo evo.

Todavia, apesar da incorruptibilidade dos entes imateriais, eles podem ter sua existência cessada por Deus, conforme traz o Aquinate na Suma de Teologia, na resposta da objeção três, do artigo 5 O evo difere do tempo?, da questão 10 A eternidade de Deus:

Deve-se dizer que no próprio ser do anjo, considerado em si mesmo, não existe diferença entre passado e o futuro, mas apenas quanto às mudanças que aí se acrescentam. Quando dizemos que o anjo é, foi ou será, a diferença existe no conceito de nosso intelecto, que apreende o ser angélico por comparação com o qual seu oposto não está subordinado ao poder divino. Mas, quando diz que o anjo será, ainda não supõe algo. Portanto, como o ser ou o não-ser do anjo dependem do poder divino, Deus pode fazer, absolutamente falando, que o ser do anjo não mais existirá; mas não pode fazer que este ser não exista enquanto ele é, nem que não tenha sido quando já foi (AQUINO, 2016, p. 245).

Assim, Tomás ratifica que os entes imateriais, aqui simbolizado nos anjos, podem ser aniquilados por Deus, caso Ele queira. Logo, Deus pode aniquilar, pondo um termo na existência dos entes incorruptíveis. Tal asserção suscita uma certa dificuldade: se Deus viesse a extinguir alguma de suas criaturas, a Sua Benevolência poderia ser posta em xeque, pois ao findar algum ente Deus teria a Sua Bondade atenuada e até mesmo dirimida?

Aquino, no seu livro Questões Disputadas sobre o Poder de Deus, escrito provavelmente em 1271 (Torrell, 1999, p. 244), advoga no capítulo 5 A preservação das coisas existentes por Deus, mais especificamente no artículo 3 Deus pode aniquilar uma criatura?, que em nada arrefece, obsta ou serra a bondade divina a possibilidade de Deus extinguir a existência das criaturas:

De maneira semelhante, Deus não produz as criaturas por necessidade de natureza, como se a potência de Deus estivesse determinada para ser da criatura, como se provou na outra questão. De modo semelhante, a bondade de Deus também não depende das criaturas, como se elas não pudessem existir, porque as criaturas nada acrescentam à bondade divina. Logo, segue-se que não é impossível que Deus reduza as criaturas ao não-ser, já que não é necessário que Ele lhes forneça o ser, a não ser por suposição de sua ordenação e presciência, porque assim ordenou e preconcebeu, para manter a coisa perpetuamente no ser (AQUINO, 2014, p. 133).

Ou seja, até mesmo os entes incorruptíveis, não por causa da ação temporal, senão pelo fato de poderem ser extinguidos por Deus, tem uma existência ‘efêmera’. Logo, só Deus é permanente e perene, pois somente Ele é eterno.

A eternidade do Ser

O desfecho do argumento da existência das coisas necessárias por outro, que é igualmente o gancho para auferir o asserto de que há o Ser necessário por si, prepara o fecho da terceira via tomásica: “Portanto, é necessário afirmar a existência de algo necessário por si mesmo, que não encontra alhures a causa de sua necessidade para os outros: o que todos chamam Deus” (AQUINO, 2016, p. 167-168).

O argumento tomásico da terceira via deságua em Deus, o ápice do argumento da referida prova da existência divina, a qual, pode-se dizer, orienta-se, também, pela ‘durabilidade’ da existência dos entes frente a eternidade de Deus.

Nessa esteira, a existência de tudo que há, dos entes materiais e dos entes imateriais, provém tão só e exclusivamente de Deus, o Princípio imprincipiado. Haja vista que:

Como a ordem das ações é segundo a ordem dos agentes, por isso a ação mais nobre pertence ao agente mais nobre, é necessário que a primeira ação seja própria do agente primeiro. Ora a criação é a primeira ação, pois não pressupõe nenhuma outra, e todas as outras a pressupõem. Logo, a criação é ação própria de Deus, que é o agente primeiro. Igualmente. Demonstrou-se que Deus cria as coisas, porque nada pode ser, exceto Ele, que não seja causado por Ele. Ora, isso não pode convir a nenhum outro, pois nada diferente é causa universal de ser. Logo, só a Deus compete a criação, como sua ação própria (AQUINO, 2015, p. 46).

O ato criativo, por excelência, sendo apanágio único e somente do Ser necessário por si conjuntamente com a visível e palpável existência dos entes, leva a considerar razoável que Deus, além de criar todas as coisas, mantém o ser em tudo que há. Pois, do contrário, a vida teria se dissipado. Logo, o Ser necessário por si é eterno, não tendo princípio, tampouco fim. Se tivesse início deveria ser causa de si mesmo, o que é improvável, além do que deveria ter dois necessários por si e assim infinitamente, o que se apresenta ilógico e ontologicamente inviável. Por outro lado, se tivesse fim, nada haveria agora, o que é refutado pela mais simples observação do mundo.

Ciente disso, o Aquinate na Suma de Teologia, ao conceituar a eternidade, embasado na consideração de Boécio (BOÉCIO, 2016, p. 150), a distingue do tempo, acentuando que Deus é o Ser permanente:

É claro que o tempo e a eternidade não são o mesmo. Mas alguns assinalaram como causa dessa diversidade o fato de a eternidade não ter começo nem fim, ao passo que o tempo tem um começo e um fim. Mas esta diferença é acidental e não essencial. Supondo que o tempo tenha sempre existido e que deva existir sempre, de acordo com a posição dos que afirmam no céu um movimento sempiterno, ainda restará a diferença entre a eternidade e o tempo, como diz Boécio, porque a eternidade é inteiramente simultânea, o que não convém ao tempo; pois a eternidade é a medida do ser permanente, e o tempo a medida do movimento (AQUINO, 2016, p. 241).

Nessa consideração, pela qual tece a distinção entre o tempo e a eternidade, Tomás, outrossim cônscio, conforme já visto (AQUINO, 2016, p. 243), da discrepância entre o evo, o tempo e a eternidade, ao advogar literalmente a concepção de eternidade boeciana, reafirma o asserto de que Deus é eterno. Consistindo que Ele é a causa primeira, o dispensador da existência, do ser a tudo que há. Consequentemente, Deus é decididamente o Ser necessário por si.

Ao redigir sua consideração, na Suma contra os Gentios I, sobre o atributo divino da eternidade, Tomás assevera que Deus na condição de eterno é necessário por si: “Logo, é necessário afirmar um primeiro necessário. E este é Deus; uma vez que é a causa primeira, como foi demonstrado. Deus é, portanto, eterno, uma vez que todo necessário por si é eterno”. (AQUINO, 2015, p. 72).

Tal argumentação, conjuntamente com as proposições inscritas na terceira via tomásica, auxiliam na reflexão de uma possível ligação da referida prova da existência de Deus com o atributo da eternidade divina. Um possível excerto comprobatório desse liame é a resposta de Tomás da questão do artigo 3 Ser eterno é próprio de Deus?, presente na questão 10 A eternidade de Deus:

A eternidade, em seu sentido próprio e verdadeiro, só se encontra em Deus. Pois a eternidade corresponde à imutabilidade, como fica evidente pelo que precede. Ora, só Deus é totalmente imutável, como foi demonstrado. No entanto, à medida que dele recebem a imutabilidade, alguns participam assim de sua eternidade. Alguns recebem de Deus a imutabilidade pelo fato de que nunca cessam de existir, e é nesse sentido que se diz da terra no Eclesiastes: ‘A terra permanece para sempre’. Assim também certas coisas na Escritura são ditas eternas em razão de sua prolongada duração, ainda que sejam corruptíveis: como no Salmo se fala de montanhas eternas. E no Deuteronômio se fala mesmo dos frutos das colinas eternas. Outros participam mais amplamente da razão da eternidade, pois estão isentos de qualquer mutabilidade ou quanto ao ser, ou quanto ao agir, como os anjos e os bem-aventurados que fruem do Verbo. Pois, nesta visão do Verbo, não há nos santos pensamentos volúveis, como explica Agostinho. Por conseguinte, dos que veem a Deus, se diz, no Evangelho, que têm a vida eterna, de acordo com estas palavras de João: ‘A vida eterna é que eles te conheçam etc. (AQUINO, 2016, p. 239).

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Além de reafirmar a eternidade divina, o Aquinate assegura que alguns entes adquirem a imutabilidade de Deus, o Ser necessário por Si. Desse modo, semelhantes entes incorruptíveis não possuem em si a causa de sua necessidade, recebem-na de Deus. Por isso, são os entes necessários por outro.

Embora, a solução tomásica da indagação - ‘Ser eterno é próprio de Deus?’ - não faça referência direta aos entes contingentes, os quais são restringidos pelo tempo, é possível notar que reflexivamente esses estão presentes. Porque, quando Tomás de Aquino afirma que algumas coisas não são mutáveis, faz pensar que outras são.

Deste modo, todos os entes inscritos na terceira via são revisitados na resposta do Aquinate. Contudo, isso ocorre de uma forma inversa. Se na terceira via os entes contingentes eram os primeiros, depois os entes necessários por outro, até chegar ao Ser necessário por si; agora este é o primeiro, depois os entes necessários por outro e, por fim, os entes contingentes.

Destarte, os entes contingentes, por serem suscetíveis à dinâmica da geração e corrupção, tem uma existência efêmera vinculada à passagem temporal. Por outro lado, os entes incorruptíveis, pelo fato de receberem de Deus a imortalidade, não são restringidos pela incessante fugacidade do tempo. Não obstante, por serem receptores e não detentores da imutabilidade podem ter sua existência considerada como ‘efêmera’ perante a possibilidade de serem aniquilados. Assim, pode-se corroborar que o Ser por Excelência, só Deus É.

Considerações finais

A efemeridade dos entes corruptíveis - imersos na temporalidade e à mercê da dinâmica da geração e corrupção - e dos entes incorruptíveis - embora ilesos aos efeitos do tempo são sujeitos à aniquilação - é possível de ser inferida pela investigação sobre a terceira via tomásica.

O argumento de Tomás, principiando por essa inferência da finitude dos entes, atinge a consideração da eternidade de Deus. Desse modo, aponta para uma possível vinculação entre a referida prova da existência de Deus e o atributo da eternidade de Deus.

Destarte, O Ser por Excelência, o necessário por si, Deus é o ápice e a fonte da existência. É Ele que concede a existência a tudo que há, sendo, portanto, essencial para a vida de todos os entes. Logo, Deus eterno É.

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Notas

2 No original: “Thomas begins by observing that every perfection present in creatures descends from God as from its exemplar cause and hence as from a principle that precontains in itself the perfections of all things” (Wippel, 2007, p. 154-155).

3 No século XIII, a ciência considera que os corpos celestes eram feitos de uma matéria leve o éter e que, por isso, eram considerados incorruptíveis (GRANT, 1996, p. 63-64).

Notas de autor

1 Doutorando(a) em Filosofia na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba – PR, Brasil.
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