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O fundamento de deliberação moral e a dimensão da normatividade em Ser e tempo: a posição de Steven Crowell em face da interpretação de E. Tugendhat
The ground of moral deliberation and the dimension of normativity in Being and time: Steven Crowell's analysis of E. Tugendhat's interpretation
Griot: Revista de Filosofia, vol. 23, núm. 1, pp. 191-206, 2023
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepción: 14 Octubre 2022

Aprobación: 08 Febrero 2023

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v23i1.3147

Resumo: Esse trabalho pretende apresentar a problemática da ação moral e da normatividade em Ser e tempo a partir da posição de Steven Crowell expressa no texto Conscience and Reason: Heidegger and the Grouds of Intentionality [2007], em face da interpretação de Ernst Tugendhat, exposta no texto “Wir sind nicht fest verdrahtet”: Heideggers “Man” und die Tiefendimensionen der Gründe [1999].

Palavras-chave: Normatividade, Deliberação, Ontologia.

Abstract: This study aims to present the problem of moral action and normativity in Being and Time from the interpretation of Steven Crowell, expressed in the text Consciousness and Reason: Heidegger and the Fields of Intentionality [2007], in which he questions Tugendhat's interpretation exposed in the 1999 text “Wir sind nicht fest verdrahtet”: Heideggers “Man” und die Tiefendimensionen der Gründe.

Keywords: Normativity, Deliberation, Ontology.

Introdução

O presente texto é parte de um trabalho mais amplo em que eu pretendo investigar a dimensão da normatividade em Ser e tempo a partir da relação entre o logos [discurso/linguagem] e o caráter intencional do Dasein. Essa proposta seria composta de duas partes. Na primeira, o objetivo é apresentar, em linhas gerais, a questão acerca da ação moral e da normatividade em Ser e tempo a partir da posição de Steven Crowell, expressa no texto Conscience and Reason: Heidegger and the Grouds of Intentionality [2007], em face da interpretação de Ernst Tugendhat, exposta no texto “Wir sind nicht fest verdrahtet”: Heideggers “Man” und die Tiefendimensionen der Gründe [1999]. Nesse texto, Tugendhat afirma que, em Ser e tempo, a moral, e mesmo o normativo em geral, não aparecem. Como sintetiza Crowell em sua análise, embora Tugendhat considere que o “das Man” envolva um tipo de normatividade, ela seria convencional, ora, a normatividade, em seu sentido próprio, é distinguível de “normas convencionais” precisamente porque reivindica uma dimensão constituída pela capacidade de “dar razões”. A essa possibilidade corresponderia, então, a noção de “propriedade”, porém, no modo de ser próprio do Dasein, ainda segundo Tugendhat, estariam completamente ausentes os elementos cruciais para se pensar a normatividade e a ação moral. Assim, o tipo de deliberação ontológico-existencial – enquanto deliberação correspondente ao modo de ser próprio do Dasein –, não seria equivalente à questão da normatividade e do que é moralmente correto. Steven Crowell, em face dessa interpretação, questiona: a deliberação ontológico-existencial exclui uma explicação moral? A presente exposição pretende, após a reconstrução dos argumentos de Tugendhat, apresentar e analisar a resposta de Crowell a essa questão. Assim, na segunda parte desse projeto, ainda em elaboração, e através do caminho traçado por Crowell nos anos subsequentes ao texto aqui analisado, pretendo investigar como a interpretação normativa da intencionalidade transcendental envolve uma específica compreensão de sua relação com logos [ou Rede] no pensamento de Heidegger.

Antes de iniciar propriamente a exposição, considero necessário apresentar uma definição básica dos termos utilizados. Ação é o termo de significado geral que denota operação, performance ou comportamento, e cuja marca distintiva é dar início ou produzir efeitos. Normatividade é uma noção que indica as normas ou prescrições que justificam o pensamento e a ação humana, mas essas normas e prescrições não podem ser deduzidas de maneira direta das leis naturais, ou, ainda, são irredutíveis às leis naturais. A moralidade, por sua vez, indica uma determinação segundo a qual a ação tem um critério ou uma medida, e cuja escolha possui uma justificação racional. Desse modo, é possível dizer que a ação moral é um modo de agir conforme algum critério, de maneira que a deliberação pode ser justificada segundo razões, isto é, a partir de critérios normativos que não são deduzidos de maneira direta das leis naturais, ou são irredutíveis a elas. Essa elucidação mínima dos conceitos tem em vista pôr em tela, segundo compreendo, o fato de que que pensar a moralidade e, por conseguinte, a ação moral, no horizonte da filosofia contemporânea, não pode prescindir de algum tipo de investigação acerca da normatividade, pois ela figura como uma investigação prévia em que a medida está relacionada ao fenômeno da liberdade humana, portanto, condição de possibilidade para a justificação de uma norma ou prescrição moral.

Feitas essas considerações, passo à primeira parte do texto, a posição de Tugendhat segundo a qual não é possível encontrar qualquer sentido normativo na filosofia de Heidegger como exposta em Ser e tempo.

I- A posição de Ernst Tugendhat

A presente exposição e análise concentram-se no texto intitulado “Wir sind nicht fest verdrahtet”: Heideggers “Man” und die Tiefendimensionen der Grüde [1999] – Ensaio nº 8 da edição alemã [2001], ou, “Nós não somos de arame rígido”: o conceito “das Man” de Heidegger e as dimensões de profundidade das razões – Ensaio nº 10 da edição castelhana [2002]2. A expressão presente no título “nós não somos de arame rígido” seria, segundo Tugendhat, uma metáfora para a liberdade humana, ou melhor, para o fenômeno da liberdade humana. Contudo, adverte o autor, esse fenômeno é compreendido à luz de uma perspectiva biológica, ou seja, a liberdade humana é contraposta aos comportamentos de outros animais, nos quais o instinto ou uma série de processos químicos determinariam suas escolhas, assim como arames controlam a atuação de fantoches. No entanto, filósofos como Kant e Heidegger abordam o fenômeno da liberdade humana fora da esfera biológica. Kant compreende a liberdade humana como um fenômeno transcendental e separado de qualquer determinação empírica, Heidegger, por sua vez, em Ser e tempo, elabora uma “antropologia filosófica” cindindo o Dasein da esfera animal. De modo irônico, Tugendhat diz sobre essa cisão: “Parece que esses filósofos pensam dentro de uma tradição segundo a qual Deus criou todos os animais em um dia e o ser humano em outro” [2002, p.182]. Mas o autor não deixa de reconhecer que Ser e tempo “possui algumas intuições importantes que deveriam ser resgatadas de seu misticismo” [TUGENDHAT, 2002, pp.182-183]. Uma dessas intuições seria a noção “das Man”, termo que em castelhano foi vertido, pelo próprio Tugendhat, pelo pronome indefinido “uno”. Em português, na tradução de Ser e tempo realizada por Fausto Castilho [2012], o termo foi traduzido por “A- gente”, já na tradução de Márcia Schuback [2009], por “o impessoal”3. Feitas essas considerações – que, vale notar, abrem o texto da edição em castelhano, mas não o texto da edição alemã4-, diz o autor:

Um aspecto estranho na antropologia de Ser e tempo é que a moral, e o normativo em geral, aparentemente não existem. Heidegger evita conceitos como “bom”, “dever” ou “correto”. Devemos questionar se a estrutura que se expressa no contraste entre o fazer o que “A-gente” faz e o autêntico ocupa, em Heidegger, o lugar da moral. É esse aspecto da autenticidade o que resta quando já não se crê na moral, ou se trata de uma estrutura mais geral que a distinção entre o moral e o imoral? [2002, p. 183]5

O trecho acima faz uma afirmação, seguida de uma questão que, por sua vez, parece indicar, para o autor, duas possibilidades de resposta. Voltaremos à questão e suas possibilidades mais tarde6. Em seguida, Tugendhat sugere que o primeiro passo para elaborar essa problemática é ter em vista o fato de que, no texto de Heidegger, não é claro qual é o conceito oposto ao “das Man”. Segundo o autor, embora o conceito Eigentlichkeit [propriedade]7, por um lado, seja utilizado como oposto ao “das Man”, por outro, Heidegger “expõe o conceito das Man na primeira seção do livro, enquanto que somente na segunda seção introduz o de ser-próprio”[TUGENDHAT, 2002, 183]. É preciso indicar que essa afirmação é particularmente estranha, pois Heidegger pode não desenvolver o conceito “ser-próprio”, porém ele já o introduz na primeira parte, por exemplo, no §9 e no próprio §278, dedicado ao tema da impessoalidade. Prossigo no texto de Tugendhat, diz o autor: “Deve-se acrescentar que nos textos em que Heidegger descreve o ‘das Man’, não somente não aparece o termo ‘ser-próprio’ como conceito oposto, mas em seu lugar encontra-se um termo diferente, a palavra ‘echt’, que se pode traduzir por ‘autêntico’ ou ‘genuíno’” [TUGENDHAT, 2002, 183]. Outra afirmação estranha, pois no §27 de Ser e tempo podemos ler: “O si mesmo do Dasein cotidiano é a- gente ela mesma que distinguimos do si-mesmo próprio, isto é, do si-mesmo possuído de modo apropriado” [HEIDEGGER, 2012, p. 371 [129]]9. De todo modo, o fundamental dessa introdução ao argumento é que, segundo Tugendhat, o termo “echt” [genuíno, originário] não é devidamente explicitado por Heidegger, de modo que é necessário questionar se “echt” seria uma palavra provisória para o ser-próprio. Essa possibilidade é rejeitada pelo autor, pois os usos dos termos autêntico ou genuíno [echt] parecem envolver o comportamento do Dasein em direção às coisas: “Nesse caso o contraste está entre a crença no que é dito através do ‘das Man’; o que em geral se diz, e a preocupação com a verdade. Nesse caso, diz Heidegger, o autêntico é a adequação às coisas [Sachmäβheit]” [2002, p.184].10 Afinal, é preciso reconhecer, argumenta Tugendhat, que não é necessário que a relação genuína de alguém com as coisas, isto é, segundo a verdade do ente, precise envolver a relação com o ser-próprio do Dasein consigo mesmo segundo os elementos expostos em Ser e tempo: a angústia, o chamado de consciência e a morte. Nesse sentido, diz Tugendhat:

Por isso me parece que Heidegger descreve com “A-gente” uma estrutura muito mais ampla, e que o ser-próprio é um caso especial dessa estrutura; concretamente aquele caso em que uma pessoa se relaciona de modo autônomo não a uma determinada coisa, como na ciência, na pintura ou qualquer outro assunto, mas em relação a sua vida mesma.” [2002, p.184]

O argumento é, portanto, que o “das Man” – o modo segundo o qual o Dasein, em sua facticidade e de início, lida com o mundo, com os entes do interior do mundo, com os outros seres humanos e consigo mesmo – é uma estrutura ampla a partir da qual emergem possibilidades de relações autênticas do Dasein, de modo que o ser-próprio, isto é, um comportamento autêntico em relação a si e a sua existência mesma, é um caso particular dessas possibilidades. E por isso, continua Tugendhat, embora o relacionamento autêntico consigo mesmo, no modo de ser-próprio, seja o caso mais importante de se relacionar autonomamente com algo, esse caso especial não pode esclarecer a estrutura geral, de modo que Heidegger usa o termo “echt” para os comportamentos autênticos do Dasein direcionados aos entes em geral. O problema é que Heidegger não esclarece verdadeiramente qual seria a estrutura oposta ao “das Man” – apenas lhe oferece um contraposto terminológico; “autêntico” [echt] –, e de tal modo que lança sombras no próprio “das Man”. Sobre o solo dessa análise, continua Tugendhat:

E acredito que seja mais: acredito que Heidegger não apenas não o esclareceu, mas que em sua antropologia ele não tinha uma base conceitual para compreendê-lo. Se assim fosse, teríamos que partir de uma base antropológica fundamentalmente diferente para entender a estrutura que Heidegger vislumbrou no "A-gente", e a partir dela explicar também o caso do ser-próprio como um caso especial.[2002, p. 184]

Essa é a tarefa que Tugendhat se propõe no texto de 1999; partir de uma base antropológica fundamentalmente diferente daquela indicada em Ser e tempo a fim de iluminar a estrutura que Heidegger vislumbrou no "A-gente", e, a partir dela, explicar o caso do ser-próprio como um caso especial. Esse é o modo em que o problema da moral e da normatividade será abordado.

Tugendhat afirma, em primeiro lugar, que Heidegger estaria disposto a concordar com a metáfora acerca da especificidade da liberdade humana: “Nós não somos de arame rígido”, porém, o faria segundo os termos de sua filosofia, isto é, considerado que o modo de ser-próprio do Dasein é o comportamento correlato à experiência da liberdade, na medida em que elege a si mesmo enquanto existência livre. Isso não é, porém, em sentido estrito, uma teoria geral sobre a liberdade e a autonomia humana. Ou seja, a maneira como Heidegger apresenta o ser-próprio estaria relacionada à indicação de como alguém elege viver sua vida, e não é a explicação de como alguém delibera de maneira livre. De maneira mais precisa: o decisivo, para Tugendhat, é que o modo de ser-próprio do Dasein não é uma teoria geral acerca da liberdade e da autonomia humana porque não explica o critério de deliberação, isto é, como se justifica, segundo razões, a capacidade de escolha humana em face de várias opções de agir. Nesse sentido, é preciso ter em vista, como já indicado, que Heidegger elabora a análise do Dasein cindida da esfera biológica/animal e, de maneira explícita [§10], se opõe à intenção de compreender a especificidade humana a partir de uma perspectiva biológica. Desse modo, Heidegger nega a definição de Aristóteles que o ser humano seria um “animal racional”, ou, segundo Tugendhat, “como se deveria entender mais corretamente a frase grega; como um animal que fala [na forma] de oração” [2002, p.185]. É essa base que Heidegger nega, e todos seus desdobramentos – novamente: a esfera biológica/animal do ser humano e, por conseguinte, a sua diferença em relação aos outros animais de possuir linguagem que se articula em orações –, que Tugendhat recupera na tentativa de jogar luz na estrutura “das Man”, e para pensar a questão acerca da deliberação segundo razões em Ser e tempo [que de algum modo deve corresponder a noção de “autêntico” / “echt”].

Parece-me muito ingênuo afirmar simplesmente que os seres humanos têm essa característica de “ser aberto” [Erschlossenheit]. Por acaso a maioria dos animais não possuem consciência? Qual é, então, a diferença entre a consciência humana [ou "abertura"] e a de outros animais? A explicação que os humanos têm linguagem articulada em orações, que foi a definição que Aristóteles deu no segundo capítulo de sua Política [1253 a9-18], me parece ser, ainda hoje, a definição mais esclarecedora que temos para entender a diferença entre os seres humanos e os outros animais. Essa capacidade linguística parece ser a base que possibilita perguntar por razões, e parece ter algo a ver com o que chamamos liberdade, isto é, com o fato de que os seres humanos se encontram sempre diante de várias opções. O que quero demostrar é que essa estrutura é a que nos permite entender o “das Man” de Heidegger a partir de seu contrário. [TUGENDHAT, 2002, p.185]11

É preciso notar que o autor dos Aufsätze insere, no interior da problemática acerca da liberdade e da deliberação, a afirmação de Heidegger segundo a qual os seres humanos são aqueles que possuem a característica de “estar/ser aberto” [Erschlossenheit]. Isso não é arbitrário e remete à obra de Tugendhat Der Wahrheitsbegriff bei Husserl und Heidegger [1967 e 1970]. Nela, o autor afirma que na tentativa de Heidegger em fundamentar a verdade proposicional em uma verdade mais originária, isto é, na verdade como abertura ou desvelamento, o significado próprio à noção de “verdade” se perde. Tugendhat argumenta que, porque Heidegger não fornece nenhuma explicação sobre o que, afinal, governa a distinção entre correção e incorreção, o apelo à entidade que mostra a si mesma como ente do interior do mundo [mostração oportunizada pela abertura do Dasein], seria insuficiente. Dito de outro modo: recorrer à mostração dos entes como medida de correção, sem explicar o que prescreve os critérios através dos quais compreendemos e podemos agir de modo adequado em relação aos entes manifestos, não é verdadeiramente explicar ou esclarecer as normas da ação através das quais algo pode se mostrar de maneira correta ou adequada. Nesse sentido, é preciso considerar também que a estrutura pré-predicativa da compreensão-interpretante [§32], oportunizada pelo comportamento do Dasein12,e que, em Ser e tempo, seria mais originária que a proposição enunciativa [§33], é igualmente insuficiente para oferecer a medida de justificação normativa, ou “oferecer razões” para a deliberação humana. O que exige, portanto, um retorno à linguagem proposicional. É nesse sentido que, em uma antropologia diversa daquela apresentada por Heidegger, e que o ponto de partida é o âmbito biológico/animal, a linguagem articulada marcaria a diferença humana [como viu Aristóteles] e, por conseguinte, estaria envolvida naquilo que é designado como fenômeno da liberdade: deliberar em função de várias opções e justificar, oferecer razões, ao ato de escolha.

Assim, pensar a metáfora “não somos de arame rígido” do ponto de vista de uma antropologia que parte do escopo biológico, de modo que a linguagem articulada marcaria a diferença humana no âmbito animal, é também considerar que a linguagem dos animais, principalmente aqueles que possuem relações socias – como as abelhas e as formigas – é um discurso que não implica opções, de modo que não há nele índices expressivos correspondentes ao “correto” e ao “incorreto”13. Nesse sentido, para o autor de Aufsätze, o ponto decisivo que pode iluminar nossa compreensão sobre a capacidade de deliberação [individual] e seu vínculo com o discurso, seria aquele que diz respeito a condição prévia dessa capacidade, a saber; a possibilidade de cisão, na esfera do comportamento, dos componentes da intenção e da crença.

Essa separação entre desejo e crença parece ser consequência da linguagem proposicional: o indivíduo tem uma disposição para usar orações que expressam crenças, por um lado, e orações que expressam intenções, por outro. Uma linguagem desse tipo não tem apenas uma função comunicativa, [...] de modo que, tanto o próprio indivíduo quanto seu interlocutor, podem agora se posicionar em face de sua crença ou intenção, podem negá-la e colocá-la em questão, e isso permite confrontá-la com outras opções, deliberar sobre elas e perguntar se há razões a favor ou contra. Somente quando a situação de agir é diferenciada desse modo; em um componente de crença e em um componente de intenção, ocorre algo até então inédito na evolução biológica, que é o fenômeno da deliberação e do perguntar por razões. Enquanto o comportamento ainda for um todo, esse novo passo não é possível, pois o comportamento não é um objeto suscetível de deliberação. [TUGENDHAT, 2002, p.187]

A capacidade de deliberar está fundada na possibilidade de cisão, na esfera do comportamento, dos componentes da intenção e da crença. E, para Tugendhat, essa cisão seria consequência do fato de possuirmos uma linguagem articulada: a deliberação pressupõe julgamento e, por sua vez, julgamento é expresso na forma da proposição. A linguagem proposicional seria, portanto, a condição de possibilidade para a deliberação, pois é através dessa estrutura discursiva que crença e intenção podem ser destacadas, de modo que o próprio comportamento passe a ser objeto de deliberação e, portanto, questionável segundo razões. O ponto decisivo é que a cisão entre os aspectos de um comportamento, na medida em que coloca o agente frente às suas próprias crenças e intenções, permite a consciência de opções, ou seja, oferece a dimensão das ações/comportamentos possíveis e, consequentemente, exige alguma justificação para a escolha deliberada por uma ou outra opção. Em suma, a consciência da própria conduta a partir da qual uma atuação é justificada em relação a outra. Nessa perspectiva, afirma Tugendhat:

A forma como os conceitos de liberdade e autonomia são apresentados em Heidegger, como algo suspenso no ar e sem conexão com o fenômeno de poder perguntar por razões, parece fenomenologicamente errado e, além disso, não poderia ser entendido a partir de uma perspectiva evolutiva. A metáfora de não ser feito de arame rígido alude justamente a essa liberdade, ligada à perspectiva de poder pedir por razões, que é uma dimensão em que o indivíduo, tendo opções, chega a estar ciente da possibilidade e da necessidade de deliberar. [2002, p.187]

É preciso considerar que Tugendhat está partindo de uma antropologia de horizonte biológico, portanto, a possibilidade e a necessidade humanas de deliberar não são alheias ao princípio de causalidade, mas o que a metáfora que compõe o título de seu texto indica é que não há, no nível do comportamento humano, um padrão esquemático “de estímulo e reação, seja inato ou aprendido” [2002, p.188]. Ou seja, por um lado, embora sejamos animais, o que prescreve os comportamentos humanos não pode ser deduzido de maneira direta das leis naturais ou sociais segundo a lógica estímulo/reação, por outro, embora várias opções sejam contempladas na deliberação, isso não significa que nosso comportamento seja alheio à causalidade. Diz Tugendhat: “a liberdade não é algo metafísico”. [2002, p.188]. O problema, que o próprio autor admite, é que não está claro como a deliberação pode estar relacionada à determinação causal e, ainda, qual o nexo entre causas e razões. Ademais, Tugendhat afirma não estar apto a oferecer uma satisfatória explicação do que são, afinal, “razões”, de maneira que utiliza uma definição prévia: “uma razão é algo que conta a favor de algo. Quando deliberamos, deliberamos sobre o que conta a favor ou contra querer ou acreditar em algo” [2002, p.188].

Mas como toda essa análise pode ser compreendida tendo em vista a existência dos indivíduos como membros de uma sociedade? No interior da sociabilidade humana, deliberar conforme razões exige que os indivíduos apreendam as regras sociais ao mesmo tempo em que se relacionem com essas regras segundo seus próprios desejos. Isto é, os indivíduos, na medida em que não vivenciam as normas sociais como se estivessem conectados por fios [pois é possível se opor ou mesmo transgredir uma norma social], portanto, não respondem ao esquema estímulo/reação, terão que ter razões para aceitar as regras sociais. Como se naquilo que Heidegger apresentou apenas pelo índice de indeterminação próprio à vida social dos indivíduos, Tugendhat admitisse a possibilidade de assentimento deliberado. É essa, afinal, a compreensão de regras de ação segundo o nosso sentido familiar:

[...] um imperativo geral e, como tal, pertence à classe das orações intencionais. Isso significa que uma norma exige ações dos indivíduos a quem se dirige, mas essa demanda não tem um sentido causal, mas sim significa que o indivíduo tem a possibilidade de não agir de acordo com eles, e isso implica que o indivíduo deve ter razões para agir de acordo com eles. [TUGENDHAT, 2002, p.188- grifo nosso]

Para Tugendhat, é exatamente essa composição do fenômeno da liberdade humana, formada por deliberação, razões e normas, que não aparece em Ser e tempo, de tal modo que “o que Heidegger quer dizer com o ‘das Man’ somente poder ser entendido como uma ação de evitar a deliberação, bem como evitar a confrontação com a necessidade de perguntar por razões” [2002, p. 189]. Na medida em que Heidegger considera o enunciado e a proposição como derivados e tardios, ele não teria sido capaz de ver como a liberdade humana está na dimensão das razões. Porém, ele teria abordado corretamente o fato de que a tendência humana de agir segundo as orientações impessoais é um modo de contornar o fenômeno da liberdade. Então, uma pergunta se impõe: “por que afastamos a liberdade? Em Heidegger parece que isso se deve a uma intimidação metafísica, enquanto agora parece que o que evitamos é o esforço de entrar na deliberação” [TUGENDHAT, 2002, p.190].

A primeira tarefa que Tugendhat assumiu para si no artigo, isto é, iluminar a estrutura que Heidegger vislumbrou no "A-gente", possui, finalmente, o solo necessário para sua apresentação. Segundo o autor, é possível dizer que em nossa vida ativa existem dois âmbitos de insegurança, a saber, o da crença e o do desejo, e eles podem ser articulados em uma mesma questão: “como deveria ver o mundo e o que deveria querer?” [2002, p.189]. Naturalmente, para Tugendhat, a orientação do “das Man” seria a primeira medida de correção através da qual podemos orientar nossa crença e nosso desejo, porém, tendo em vista que:

[...] em Heidegger não aparece nem uma palavra como "certo", tampouco uma palavra como "dever", ele não pode ver que confiar no que se diz ou no que se faz - o que ele chama de "das Man" - já constitui uma primeira resposta à questão pelo correto. Que o comportamento humano não seja determinado por arames rígidos não significa que o indivíduo esteja em uma situação de ter que escolher arbitrariamente [...], mas significa que, em ambas as áreas [crer e desejar], um indivíduo não é determinado, pois somente assim pode adquirir uma orientação e através da deliberação adquirir um novo nível de flexibilidade empírica. [TUGENDHAT, 2002, p.190]

Essa “flexibilidade” diz respeito ao que o autor denomina de “dimensões de profundidade”. Com essa expressão Tugendhat faz referência “a diferença entre como as coisas aparecem à primeira vista e como as mesmas coisas aparecem quando justificadas” [2002, p.190]. É essa diferença que ilumina o fato de que, embora a orientação do “das Man” seja a primeira medida de correção, não é propriamente o espaço de autonomia. Por qual motivo? Porque autonomia diz respeito a capacidade de um indivíduo em deliberar, e consciente de sua própria conduta, justificar, oferecer razões para sua ação. De modo que “deliberar é algo que só pode ser feito como indivíduo, mesmo ao deliberar com os outros. Um grupo de pessoas pode ser o sujeito de uma escolha, mas não pode ser o sujeito de uma deliberação” [2002, p.190].

É nesse ponto que o autor retoma o problema da relação entre as noções “das Man”, echt e eigentlichen. Ele afirma que, também em Ser e tempo, autonomia é o oposto do “das Man”, porém, para Heidegger, ela significa uma ação de eleição/escolha do Dasein em relação a si mesmo [lembremos que, segundo a interpretação de Tugendhat, o modo de ser-próprio do Dasein é o comportamento correlato à experiência da liberdade, na medida em que o Dasein elege a si mesmo]. Desse modo, a deliberação enquanto tal não é abordada em meio à questão do modo de ser-próprio do Dasein, pois Heidegger teria apresentado apenas uma escolha privilegiada, deixando de explicar o que é afinal um comportamento que delibera de maneira autônoma. E, para Tugendhat, esse seria o motivo pelo qual Heidegger precisou recorrer ao conceito de echt [genuíno/autêntico], embora não explique seu sentido. Se a estrutura em que Heidegger vislumbrou no "A-gente" foi de algum modo iluminada, então, como foi proposto, resta explicar o caso do ser-próprio como um caso especial. Para tanto, Tugendhat pergunta o que, afinal, significa o conceito Eigentlichkeit [ser-próprio] e oferece a seguinte resposta:

É possível dizer que é o conceito heideggeriano de autonomia. Isso explica o motivo pelo qual Heidegger usa os termos “ser-próprio” e “A-gente” como opostos. Porém, como acabamos de ver, o “das Man” representa dizer e fazer as coisas como se diz e se faz em contraste com a abertura para as respectivas dimensões de profundidade, de modo que é possível compreender que Heidegger confunde, em seu conceito “ser-próprio”, três diferentes matizes do que está contido na palavra “próprio” ou “mesmo”. A primeira é a atitude autônoma que deve ser adotada para não ficar no “A -gente”. Nesse primeiro sentido, o “próprio” ou “mesmo” tem um sentido adverbial: eu mesmo que tenho que deliberar, tenho que deliberar autonomamente. Mas isso não significa que o que estou escolhendo sou eu mesmo. A segunda matiz do “mesmo” seria substantiva. Existem escolhas autônomas no sentido da primeira matiz, que não são escolhas de mim mesmo, no sentido de eleger uma maneira como creio que devo viver. Nesse segundo caso, trata-se de um caso especial de escolha autônoma, uma escolha que não está dirigida a uma ou outra crença, ou a um desejo, senão à minha vida. Essa primeira confusão entre as duas primeiras matizes agora foi resolvida depois que vimos que o oposto de “A-gente" não é a preocupação com o meu próprio ser, mas sim a atitude autônoma ou autêntica em qualquer campo. [TUGENDHAT, 2002, p.195]

Em seguida, Tugendhat apresenta o que seria a terceira matiz que está contida na palavra “próprio” ou “mesmo”. Ela corresponde a interpretação das possibilidades da própria vida quando o Dasein se confronta com a morte, isto é, quando ele toma consciência de suas possibilidades por ocasião da transparência de sua própria morte enquanto poder-ser irrevogável e pertencente apenas a ele mesmo e a nenhum outro. O autor alega que esse apelo à morte torna a questão de como devo entender minha vida completamente injustificada. Ou seja, não oferece verdadeiramente uma justificação, não oferece “razões” para a escolha do modo como optei escolher viver. De maneira que, mesmo se se concedesse à interpretação segundo a qual a decisão de como devo viver minha vida é um modo de deliberação último, seria preciso reconhecer que há a sobreposição da decisão sobre a deliberação, porque não há um critério último que justifique uma ou outra escolha. Em suma, Tugendhat alega que o ser-resoluto [Entschlossenheit] do Dasein não implica em uma deliberação do tipo normativa e justificável segundo razões, mas somente em uma decisão/resolução ontológico-existencial. Portanto, o “ser-próprio” seria um caso especial daquilo que Heidegger vislumbrou no "A-gente", pois diz respeito a uma escolha que não está dirigida a uma ou outra crença, ou a um desejo, senão à minha vida, porém, os critérios a partir dos quais é possível pensar a questão da normatividade e da moral, isto é, normas, razões e deliberação, estão ausentes. De tal modo que, para Tugendhat, as passagens sobre a consciência e a culpa em Ser e tempo [§58] teriam um caráter sofístico, pois o “dever” que o sentimento de culpa pressupõe precisa de uma estrutura intersubjetiva, ou seja, uma normatividade moral cujos critérios são compartilháveis.

Finalmente, podemos retornar às palavras e à questão colocadas por Tugendhat no início de seu texto. A afirmação: existe um aspecto estranho na antropologia de Ser e tempo, a saber; a moral e o problema da normatividade em geral não existem na obra ou, ao menos, não de maneira explícita. A questão: a estrutura contraposta ao "das Man" e o autêntico ocupam o lugar da moralidade? Como foi possível observar, embora essa figure em alguma medida a pretensão de Heidegger, para Tugendhat, porém, não é possível considerar essa possibilidade. Em primeiro lugar, a noção indicada pelo conceito “autêntico” [echt] não é explicitada, pois a antropologia apresentada em Ser e tempo oblitera o sentido mesmo da deliberação. De que maneira? Na medida em que Heidegger não oferece uma explicação sobre o que, afinal, governa a distinção entre correção e incorreção, não seria possível encontrar na obra o que prescreve os critérios através dos quais compreendemos e podemos agir de modo adequado em relação aos entes em geral. Assim, a noção contrária ao “das Man”, enquanto comportamento genuíno/ autêntico em geral, não encontra uma norma e, por conseguinte, não encontra a medida de justificação [razões]. Em segundo lugar, o conceito Eigentlichkeit [ser-próprio], que seria o conceito heideggeriano de autonomia e, para Tugendhat, corresponde a um caso especial de escolha autônoma, isto é, uma escolha que não está dirigida a algo ou alguém segunda a crença ou desejo, senão ao modo de como se deve viver a própria vida, sobrepõe o sentido de deliberação pelo de decisão, de modo que os critérios que orientam a escolha sobre a vida própria não são os mesmos a partir dos quais é possível pensar a questão da normatividade e da moral: normas, razões e deliberação.

II- A interpretação crítica de Steven Crowell

Crowell apresenta sua interpretação, explicitamente crítica ao argumento de Tugendhat, no texto “Conscience and Reason: Heidegger and the Grouds of Intentionality”, publicado em 2007, na obra organizada em conjunto com Jeff Malpas intitulada Transcendental Heidegger. Segundo o argumento de Tugendhat, como exposto, algo assim como “dever” [como devo viver a minha própria vida], entrevisto através da existenciaridade14 da ação, em Ser e tempo, não é moral ou normativo, pois não tem em vista justificar ou fundamentar razões para o agir de maneira geral, mas apenas em função de um sentido existencial individual, isto é, segundo um tipo de deliberação, ou melhor, decisão ontológico-existencial. Decisão que, por sua vez, não é equivalente à questão do que é moralmente correto. Em face dessa interpretação, a questão que Steven Crowell apresenta é: a deliberação/decisão ontológico-existencial, em Ser e tempo, exclui uma explicação de tipo moral?

É preciso notar que a questão proposta por Crowell não tem em vista refutar os argumentos de Tugendhat. O pano de fundo da questão é o fato de que a concepção de normatividade e, por conseguinte, a noção de moralidade que é possível dela depreender, como colocada por Tugendhat, seria restritiva e não alcança uma explicação moral de tipo transcendental descritiva. De maneira que, para Crowell, a apresentação acerca da deliberação/decisão ontológico-existencial realizada por Heidegger, na exposição do ser-próprio do Dasein, não possui como objeto a questão de como eu deveria viver minha vida, mas que tipo de fundamento norteia a escolha e a justificação de minhas ações. Nesse sentido, a questão normativa e moral, em Ser e tempo, seria: como faço para entrar na dimensão da profundidade das razões? É como se Crowell estivesse demarcando uma linha entre duas investigações distintas: a primeira diz respeito à descrição das ações e da própria prática de deliberar moralmente; a segunda diz respeito à descrição do engajamento do ator moral no espaço das razões. É o segundo tipo de investigação que estaria em jogo para Heidegger, e que poderíamos apresentar, lançado mão da terminologia do filósofo alemão, da seguinte maneira: qual é o fundamento ontológico do modo de ser do Dasein enquanto agente moral?

Em primeiro lugar, é preciso ter em vista que o elemento derradeiro para Tugendhat está no fato de que o ser-resoluto [Entschlossenheit] do Dasein não implica em uma deliberação do tipo normativa, justificável segundo razões. Crowell captura esse ponto e alega que os parágrafos sobre a consciência [§§54-60], em Ser e tempo, não tratam de decisões apartadas da racionalidade, mas, precisamente, articulam nossa capacidade de entrar no “espaço das razões”. É possível notar, portanto, que o desafio de todo o argumento de Crowell é localizar a racionalidade na noção de consciência como exposta em Ser e tempo. Desse modo, a partir do conceito de culpa [Schuld], o autor recupera a ideia exposta por Heidegger acerca da exigência de, existindo, o Dasein assumir ser-fundamento15, e, então, quer mostrar que assumir “ser-fundamento” deve incluir uma referência à “razão”.

Para compor a base de sua argumentação, Crowell16, em primeiro lugar, alega que Heidegger opera uma transformação crucial na filosofia transcendental como realizada por Kant, Fichte e mesmo por seu mestre Husserl. O ato primordial do Dasein não é posicionar a si mesmo a fim de instituir a posição a partir da qual os entes são constituídos, mas, enquanto projeto lançado, o Dasein constitui a abertura de manifestabilidade dos entes, isto é, o mundo. Mas, ao mesmo tempo, também é fundando a partir das possibilidades dessa abertura, sem a qual ele não poderia ser o ente que é. As possibilidades dessa abertura, contudo, constituem a chamada facticidade do Dasein. Nesse sentido, é preciso distinguir entre fundamento como facticidade e fundamento como razão. O fundamento fático, aquilo pelo qual o ser humano se torna responsável, mas cuja fundação permanece fora de seu alcance fundar, é refletido em um projeto normativo a partir do qual, em sua própria assunção decidida, oportuniza-se algo como razões. Naturalmente, para Crowell, a questão que se impõe nesse ponto é: o que pode ser entendido por “razão”? Para responder a essa questão, o autor põe em tela o caráter discursivo do chamado ou apelo da consciência [Stimme des Gewissens], pois é preciso considerar o vínculo entre razão e discurso em que, por um lado, é possível observar o julgamento como prática discursiva através da qual a justificação de um comportamento pode ser oferecida, e, por outro, a razão no sentido de “dar razão a”, isto é, dizer/ falar em favor de algo [aquele sentido absorvido por Tugendhat]. Para Crowell, essa dupla conexão entre razão e discurso corresponde a uma dupla normatividade: a da justificação e daquilo para o qual a justificação é empreendida. Nas palavras do autor:

A esta dupla ligação corresponde uma dupla normatividade: primeiro, como uma prática; oferecer razões, como toda prática, depende de regras constitutivas que determinam [de antemão] o que é considerado como sucesso e fracasso; em segundo lugar, o que é dado nessa própria prática está em uma relação normativa com algo, a saber, aquilo para o qual ela fornece uma razão. [CROWELL, 2007, p.50]

De que modo essa dupla normatividade, proveniente do duplo vínculo entre razão e discurso, está relacionada ao caráter discursivo do chamado ou apelo da consciência [Stimme des Gewissens]? A tese de Crowell é que o discurso próprio à consciência é a condição ontológica da dupla normatividade: a regra de responsabilização inerente à prática de justificar [oferecer razões] e a regra de legitimação subjacente ao falar por algo [dar razão a].

Para Heidegger, apresentar as estruturas existenciárias do fenômeno da consciência é algo diverso da descrição psicológica, biológica ou teológica do conceito de consciência. A consciência só pode ser identificada como um fenômeno do Dasein. Mas o que isso significa? Que “consciência” não é algo cuja existência pode ser identificada e descrita como um ente subsistente, isto é, como um ente em si mesmo. Ela não é algo cuja descrição é feita de maneira a lhe atribuir algumas qualidades ou propriedades específicas. A consciência como fenômeno do Dasein que dizer que algo como “consciência” só “é” no modo de ser do Dasein e se enuncia como facto apenas e somente na existência factual do Dasein17. Ora, dizer que algo “é” segundo o modo de ser do Dasein é indicar sua posição segundo a estrutura do cuidado [Sorge], e dizer que algo é na existência factual do Dasein implica considerar a relação entre facticidade e abertura. É a articulação desses elementos, e seu respectivo vínculo com o Discurso [Rede], que Crowell passa a analisar.

O autor inicia sua análise a partir da noção de abertura [Erschlossenheit], em que são articulados três existenciários fundamentais; a disposição [Befindlichkeit], a compreensão [Verstehen] e o Discurso [Rede]. Para Crowell, “juntos, esses três compõem a estrutura da explicação da intencionalidade de Heidegger” [2007, p.51]. A disposição indica o fato de que não habitamos um mundo em que as coisas estão disponíveis de modo neutro, ou seja, é um existenciário que caracteriza o modo de posicionamento em função do qual é modulado o vínculo de relevância em relação aos entes, de maneira que o Dasein afeta e é afetado por aquilo que lhe vem ao encontro. A compreensão, por sua vez, não indica uma habilidade cognitiva ou uma operação mental, mas o entendimento projetivo em possibilidades de ser. Ou seja, diz respeito ao engajamento mais elementar do Dasein, já atravessado por sentido, em relação às coisas em geral e aos seus projetos existenciais, de modo que fins e meios são mobilizados sem que precisem ser propriamente teorizados. Finalmente, o discurso, é aquilo que Heidegger denomina “articulação da entendibilidade”18, isto é, a articulação da compreensão. Ele diz respeito ao modo como, disposto e engajado compreensivamente, o Dasein, por meio de seus comportamentos, mobiliza/executa uma articulação, isto é, um discurso [logos] responsável por deixar que os entes envolvidos em uma disposição engajada se manifestem enquanto tais [apofansis]19, isto é, se manifestem enquanto [como] algo.

Embora disposição e compreensão sejam condições necessárias para a intencionalidade, elas não são suficientes. Para que as coisas sejam significativas, elas não devem apenas ser úteis para alguma coisa, mas também expressas: o que estou fazendo deve poder ser nomeado. Só assim é possível que as coisas apareçam como são, e sem esse “como” – aquele que codifica o sentido normativo do “próprio” em qualquer mundo dado – não temos intencionalidade. [CROWELL,2007, p.52]

Em seguida, o autor expõe que, em Ser e tempo, o cuidado [Sorge] é inicialmente descrido a partir do modo cotidiano e impessoal [das Man] do Dasein20. Dessa maneira, “o que constitui o significado do mundo no qual estou engajado não é algum conteúdo que pertença à minha consciência; antes, pertence ao “público”, às práticas sociais sempre históricas e culturalmente particulares daqueles entre os quais me encontro” [CROWELL,2007, p.52]. Isso possui um duplo aspecto: a articulação do que é compreensível já está previamente dada, ou seja, as possibilidades discursivas [o “como” da manifestação das coisas e dos estado de coisas] são aquelas que o mundo público já decidiu por mim, por conseguinte, meu engajamento compreensivo com o mundo não é realizado segundo uma forma de deliberação, mas algo como “adaptação”. Essa adaptação acena ao modo “irracional” em que o Dasein encontra a si mesmo aberto ao mundo, não porque as coisas, o estado de coisas e o mundo se tornam opacos e de difícil entendimento, mas, precisamente, porque tudo já está “claro”; tudo é e pode ser compreendido porque já está em conformidade habitual às normas públicas [ou à normatividade oferecida pelo das Man]. Pode-se dizer: no modo de ser cotidiano e impessoal, a falta de autonomia é propiciada pelo horizonte conformado em que a medida da ação e a medida daquilo para o qual estou engajado não precisam ser decididas, de modo que a responsividade tem caráter de adaptação, não propriamente de escolha deliberada. Mas isso não é exatamente o que Tugendhat diz, mas de outra maneira (o das Man poder ser entendido como uma ação de evitar a deliberação)? O decisivo é o que Crowell depreende dessa constatação, a saber, o fato de que, embora a atuação segundo as normas do “das Man” seja condição necessária para toda e qualquer performance intencional do Dasein fático, ela não é condição suficiente para a realização intencional em sentido próprio, isto é, segundo a genuína postura em primeira pessoa. É essa diferença acerca de “quem” é propriamente o agente e “quem” figura como medida da atuação intencional que Tugendhat não admitiu no modo de ser próprio do Dasein, mas que Crowell pretende recuperar através do chamado da consciência, chamado oportunizado pelo colapso das orientações cotidianas:

Heidegger [...] considera uma possibilidade mais extrema - não a perturbação do enfrentamento cotidiano, mas seu colapso completo - em que o eu [self] é explicitamente questionado como um eu [self]. Aqui a deliberação é impossível porque o mundo cotidiano do qual ela depende “tem o caráter de completamente desprovido de significado” [231/186]. No entanto, é apenas à luz desse modo limite de ser que a condição suficiente da intencionalidade - a possibilidade de uma postura genuinamente em primeira pessoa - se torna evidente. Como argumentarei, a descrição da consciência, que encontra aqui o seu lugar, articula o que significa dizer “eu”, de modo que eu – e não apenas “alguém” [one]21 – tenha e possa ter razões sobre as quais delibero; explica como as razões de alguém podem ser minhas razões.[CROWELL, 2007, p.53]

A ruptura ou colapso das orientações cotidianas, enquanto situação limite, é também a possibilidade de modulação da estrutura da Sorge, portanto, envolve os três existenciários da abertura: a disposição, a compreensão e o discurso22. E a responsividade a esse colapso pode vir a se manifestar no “ter consciência” do Dasein. A análise que ilumina o fenômeno da consciência, em Ser e tempo, se mostrou através da voz ou chamado, isto é, enquanto apelo [Ruf]. Apelar é um modo do discurso. O apelo da consciência tem o caráter de uma intimação [Anruf]; que o Dasein assuma o seu mais próprio poder-ser-si-mesmo, ele é o despertar [Aufrufs] do Dasein para o seu mais próprio ser-culpado [Schuldigsein]23. O tipo de discurso [Rede] que modula a estrutura da Sorge, e figura como um chamado, é aquele capaz de articular o entendimento do Dasein oportunizado pela disposição [Befindlichkeit] da angústia e sua compreensão [Verstehen] correspondente; a morte. Ou seja, é a abertura [Erschlossenheit] mesma, enquanto dimensão factual de seu ser-no-mundo, ou a dimensão de possibilidades fáticas de seu próprio ser, que está em jogo para o Dasein. Nesse sentido, se a disposição, a compreensão e o discurso, juntos, compõem a estrutura da intencionalidade, então, é exatamente o modo de realização intencional que poderá ser rearticulado, embora sua realização seja, ainda, como a mesma existência situada em meio aos entes e junto aos outros de um mundo fático. Em outras palavras, realização intencional ainda direcionada ao “aí” que o Dasein tem que ser e que ele radicalmente é. Nesse sentido, para o Dasein, trata-se de ouvir o apelo discursivo capaz de neutralizar a escuta, que de início e continuamente, ouviu a medida pública indeterminada e a assumiu dispositiva e compreensivamente como se sua própria fosse. É por essa razão que “assumir o seu mais próprio poder-ser-si-mesmo” é o despertar do Dasein para o seu mais próprio ser-culpado. A culpa coloca o Dasein face a face consigo mesmo como ser-no-mundo, de modo que ele deve prestar contas a si mesmo e responsabilizar-se sobre seu ser, o qual ele delegou à indeterminação impessoal. Assumir ser-culpado, portanto, diz respeito à transparência do caráter indeterminado da ações, deliberações e escolhas as quais o Dasein conformou seu ser. Não podemos perder de vista o caráter desse ser-culpado para Heidegger. Essa culpa do Dasein é a assunção “consciente” de que ele já sempre deixou seu ser sob tutela do mundo e das orientações cotidianas – por sua condição de só ser suas possibilidades a partir da absorção imediata no mundo fático. Essa culpa não é a mesma, por exemplo, da concepção cristã, ou seja, não é privação de “outra” natureza. Para Heidegger, a culpa é consequência do fato de não termos qualquer natureza. Em não há como se retirar dessa condição, nossa queda é irremediável e perfaz nossa culpa constitutiva. Mas se a queda é uma condição irremediável e perfaz nossa existência fática, então, por qual razão ainda somos culpados? Pela mesma razão, isto é, porque não termos qualquer natureza determinada, de modo que não estamos condenados a agir, deliberar e escolher segundo a indeterminação imperiosa do impessoal. Mas não estar condenado à indeterminação impessoal não significada que o Dasein tem o poder de instituir, a partir de si mesmo, um outro conjunto normativo e, a partir dele, “viver excentricamente” em meio aos outros Dasein. Tampouco significa que o Dasein tem o poder de suspender e apartar seu ser do mundo. Para Heidegger, nós não somos de arame rígido porque, em face da indeterminação normativa do das Man, podemos assumir ser “quem” propriamente é o agente, isto é, o responsável que figura de maneira determinada [própria] na atuação conforme às regras e práticas do “aí” que crescemos e desde o início somos lançados. Ou seja, não é, como entende Tugendhat, uma decisão do Dasein que elege a si mesmo e, de maneira injustificada, delibera como deve viver sua vida. De maneira que a interpretação acima está mais próxima, precisamente, daquilo que o autor dos Aufsätze compreendeu pela possibilidade de dar assentimento deliberado, ou oferecer razões, às regras sociais. O ponto decisivo do argumento é, contudo, a passagem do ser-culpado ao ser-resoluto, de maneira que o Dasein esteja disposto a assumir ser-fundamento.

O apelo da consciência direciona a compreensão do Dasein em direção a si mesmo, de modo que o ser-no-mundo por ele aberto seja a realização da possibilidade de ser segundo um modo próprio. O ponto é – vazio em seu conteúdo – a estrutura formal do apelo é compreendida enquanto intimação para o poder-ser enquanto poder-ser. Essa intimação, porém, acontece na medida em que o Dasein desperta para seu ser-culpado. O que é, então, esse caráter de ser culpado o qual o Dasein reconhece no apelo? Na palavras de Heidegger:

Pertence à ideia de ‘culpado’ o que no conceito de culpa é expresso indiferentemente como ‘ser responsável por...’, ‘ser fundamento para’. A ideia ontológica existencial formal do ‘culpado’, nós a determinamos, portanto, assim: ser fundamento de um ser determinado por um não, isto é, ser fundamento de uma nulidade [2012, p.777 [283]]

O Dasein resoluto [Entschlossenheit], existindo, e agora transparente em seu ser- culpado, assume o fundamento de seu poder-ser, mas ainda lançado em sua facticidade, ou seja, ele deve assumir ser fundamento de seu ser a partir de um “ai” que ele mesmo não decidiu. Dessa maneira, ser-fundamento é, consciente de sua condição irrevogável; ser um projeto lançado, o Dasein projeta a si mesmo na possibilidades que ele tem que ser, nas possibilidades as quais ele foi lançado. Ou seja, ele assume para si ser o próprio agente determinado de ação, deliberação e escolha, mas das mesmas possibilidades que anteriormente ele delegava à agência indeterminada do impessoal. “O si mesmo, como tal, deve pôr o fundamento de si mesmo, embora nunca tome posse e ou torne o senhor desse fundamento, e tem que, existindo, assumir, no entanto, ser-fundamento” [HEIDEGGER, 2012, p.779 [284]]. É, ainda segundo o autor, ser o próprio fundamento lançado o que está em jogo no poder-ser da Sorge.

A partir dessa exposição podemos, finalmente, recuperar a tese de Crowell, aquela segundo a qual o discurso próprio à consciência é a condição ontológica dessa dupla normatividade: a regra de responsabilização inerente à prática de justificar e a regra de legitimação subjacente ao falar por algo [dar razão a]. A regra de responsabilização diz respeito ao fato de que, em função do apelo da consciência, o fundamento fático [aquilo que o Dasein não pode fundar] fica sujeito a uma escolha pela qual o Dasein, em primeira pessoa, torna-se responsável. De modo mais preciso: o Dasein resoluto recupera o fundamento fático a partir de um âmbito normativo, isto é, em que é possível, pela primeira vez, oferecer razões em termos de primeira pessoa, de modo que transforma causas [como no modo impessoal : faço x, porque se faz x] em suas “próprias” razões para fazer o que faz.

Assumir ser o fundamento – isto é, possibilitar o que me fundamenta – é transformar as reivindicações da natureza ou da sociedade [o que o “das Man” simplesmente faz] em termos de primeira pessoa, em minhas razões para fazer o que faço. A consciência revela que sou um ser para quem, lançado, os fundamentos nunca podem funcionar simplesmente como causas: porque o Dasein foi “libertado do fundamento, não por si mesmo, mas para si mesmo, para ser como este [fundamento]” [330/285], ele assumem o caráter de razões pelas quais sou responsável.[CROWELL, 2007, p.58]

A regra de legitimação subjacente ao falar por algo [dar razão a] diz respeito, em primeiro lugar, ao que John Haugeland caracterizou como “compromisso existencial”24. Esse compromisso indica ser responsável no sentido de assumir o engajamento com as práticas que realizo. De modo mais preciso: “ser-resoluto é assumir a responsabilidade pelas medidas inerentes às práticas em que estou engajado; somente assim é possível a existência de práticas em vez de ocorrências” [CROWELL, 2007, p. 59]. Por outro lado, para Crowell, a noção de compromisso não absorve totalmente o que é “falar por algo”, pois não reflete o aspecto especificamente discursivo pertencente ao tornar-se fundamento: ser responsável é ser aquele que pode responder por ...[ to be answerable], e ser aquele que responde por algo é ser responsável por esse algo, isto é, estar preparado para prestar contas da coisa mesma enquanto/como tal e, sobretudo, de si mesmo enquanto tal. Como indica Crowell, nesse argumento é possível notar o vínculo entre o ser-resoluto do Dasein – enquanto possibilidade de recuperar os fundamentos fáticos como razões normativas – e a prática de “dar razões”, de modo que em qualquer projeto ou compromisso ôntico existencial, o Dasein está, simultaneamente, comprometido com algo assim como uma “prestação de contas”, isto é, um discurso que alega motivos [ratio reddende]. Mas, afinal, como conciliar essa posição interpretativa segundo a qual a prática de dar razões possui sua origem no chamado de consciência e o fato de que Heidegger alegar ser o discurso autêntico um discurso reticente? De outro modo, se o discurso autêntico, proveniente do chamado/apelo da consciência, é sem qualquer conteúdo, então, qual o sentido da afirmação, apresentada por Crowell, de que o caráter reticente desse discurso autêntico é compatível com o projeto discursivo de prestar contas das coisas como tal, de si mesmo a si e aos outros? O autor reconhece essa dificuldade e, para justificar sua interpretação, recorre ao texto 1929 Sobre a essência do Fundamento, em que:

Identificando a transcendência com uma noção de liberdade ontologicamente mais original do que aquela extraída do conceito de causalidade, Heidegger observa que, antes de todo comportamento, a liberdade é a condição para ser sujeitado ao normativo. Transcendência significa que os seres humanos podem sujeitar a si mesmos, ou seja, serem livres por si mesmos. E isso, por sua vez, torna possível “algo obrigatório, na verdade obrigação em geral” [EG, 126]. Portanto, a liberdade –que Ser e Tempo é denominada como “assumir ser o fundamento” – é a “origem do fundamento em geral. A liberdade é a liberdade para o fundamento” [EG, 127]. Ao desvendar o que esta última afirmação significa, Heidegger nos mostra onde o surge o projeto de dar razão. [CROWELL, 2007, p. 60]

Crowell elabora que se a liberdade é liberdade para o fundamento, mas a estrutura da Sorge é fundamental, então, na três formas em que “na fundamentação, a liberdade dá e ganha fundamento” [EG, 127] , cada uma, corresponde a um aspecto da estrutura do cuidado [Sorge]” [2007, p.60]. A forma correspondente ao discurso diz respeito à liberdade do Dasein que, uma vez disposto em sintonia com os entes [Befindlichkeit] e engajado em função de um projeto compreensivo [Verstehen] - que no ser-resoluto assume o sentido de Agathón -, “o Dasein se defronta com a questão “Por que desta forma e não de outra forma?” [EG, 130], e assim se torna responsável.” [CROWELL, 2007, p.61]. De maneira que a resposta a essa pergunta é oferecer uma razão.

Em suma, a consciência chama o Dasein, enquanto culpado, a assumir o ser-fundamento, isto é, a responder por si mesmo, legitimar ou não, as normas de seu mundo o qual ele tem que ser. Ser-próprio é dever-ser fundamento livre para si mesmo, condição de possibilidade ontológica para qualquer justificação normativa e legitimação de uma medida prescritiva, portanto, condição para a moralidade e para a ação moral em sentido próprio. Interpretação que joga luz nas palavras de Heidegger no §58 de Ser e tempo: “Esse ser-culpado essencial é igualmente originário como condição existenciária para o bem e o mal, no sentido ‘moral’, isto é, para a moralidade em geral e para a suas formas factualmente possíveis” [2012,785 [286]].

Referências

CROWELL, Steven. Conscience and Reason: Heidegger and the Grouds of Intentionality In Transcendental Heidegger. New York, NY: Stanford University Press, 2007, pp. 43-62;

HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit [Gesamtausgabe 2]. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann,1977;

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. e organização; Fausto Castilho. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes, 2012;

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2011;

TUGENDHAT, Ernst. Wir sind nicht fest verdrahtet”: Heidegger “Man” und die Tiefendimensionen der Gründe In Aufsätze 1992-2000, Sunrkamp Verlag AG, 2001;

TUGENDHAT, Ernst. No somos de alambre rígido. El concepto heideggeriano de «uno» [man] y las dimensiones de profundidad de las razones In Problemas. Gedisa editorial, Barcelona, 2002.

Notas

2 As duas edições do texto foram escritas por Ernst Tugendhat, e o texto da edição castelhana, publicado em 2002, na coletânea Problemas 1992-2000, é mais completo do que aquele da edição alemão Aufsätze 1992-2000, publicada em 2001 [o próprio conjunto da textos da edição castelhana é também mais completo]. Utilizo as duas versões nesse trabalho. Referente às citações diretas, priorizo a edição em castelhano, pois é a versão mais recente publicada.

3 Nesse artigo opto em não traduzir o termo “uno” para o português, mas utilizar ou a tradução de “das Man” segundo Fausto Castilho; “A-gente”, inclusive nas citações diretas, ou utilizar o próprio termo em alemão. A expressão “o impessoal”, utilizada por Márcia Schuback, embora muito oportuna para a compreensão do conceito “das Man” na economia interna de Ser e tempo, seria problemática tendo em vista o que está em discussão no artigo de Tugendhat, isto é, qual o sentido contraposto ao “das Man”, que envolvem os termos “Echt” e “Eigentlichkeit”.

4 A citação a seguir é o que abre o texto da edição alemã [2001].

5 Gostaria de apresentar a primeira sentença dessa citação em alemão e em castelhano. Em alemão: “Eine der merkwürdigsten Seiten der Anthropologie von Heideggers Sein und Zeit ist, dab in ihr moralische, já das Normative überhaupt nicht vorkommt” [2001, p.138]. Em castelhano: Un rasgo extraño en la antropología de Ser y tiempo es que la moral y lo normativo en general aparentemente no existen. [2002, p.183]. É possível notar uma ambiguidade no texto alemão, “[...] das Normative überhaupt nicht vorkommt” poderia dar a entender algo como “[...] o normativo não aparece de forma alguma”. Como a versão em castelhano foi feita pelo próprio autor a tradução do trecho citado segue o sentindo dessa edição, pois ela amortiza a ambiguidade da edição alemã.

6 A citação tem a seguinte estrutura: A afirmação: existe um aspecto estranho na antropologia de Ser e tempo, a saber; a moral e o problema da normatividade em geral não existem na obra ou, ao menos, não de maneira explícita. A questão: a estrutura contraposta ao "das Man" e o autêntico ocupam o lugar da moralidade? Em caso positivo, ocupam em que sentido e por qual razão? 1. Porque a estrutura contraposta ao "das Man" e o comportamento autêntico é o que pode ser apresentado quando não há mais moral? Ou; 2. Porque a estrutura contraposta ao "das Man" e o comportamento autêntico pertencem a uma esfera mais ampla que a distinção moral e imoral?

7 Também termos derivados: eigentliches [[ser]- próprio].

8 Cf. HEIDEGGER, 2012, p.141 [42-43] e HEIDEGGER, 2012, p.371 [129].

9 “Das Selbst des alltäglichen Daseins ist das Man-selbst, das wir von dem eigentlichen, das heiBt eigens ergriffen Selbst unterscheiden” Op.Cit É possível notar a distinção expressa que opõe, por um lado, o si mesmo do Dasein segundo o modo do “das Man” e, por outro, o si mesmo do Dasein segundo a propriedade ou o ser-próprio [eigentlichen].

10 Embora Tugendhat não indique a referência em seu artigo, essa passagem parece estar vinculada ao §35 [168] de Ser e tempo, em que podemos ler: “O ouvir e o entender estão antecipadamente vinculados ao discorrido a respeito como tal. A comunicação não ‘partilha’ a primária relação-de-ser como o ente de que discorre; mas o ser-um-com-o-outro move-se no discurso uns com os outros e no ocupar-se daquilo de que o discurso discorre. Para este o que conta é que se discorra. O ser-dito, o dictum e a expressão respondem agora pela autenticidade e conformidade à coisa [Echtheit und Sachmäβheit] do discurso e de sua compreensão. E porque o discurso perdeu ou nunca conquistou a primária relação de ser com o ente de que discorre, não se comunica no modo da apropriação originária desse ente, mas pelo caminho de uma difusão e repetição do discorrido”

11 No prólogo à edição em castelhano [2002, p.9], Tugendhat afirma que a ideia fundamental dos textos sobre antropologia que compõem a coletânea é a tese de Aristóteles segundo a qual os seres humanos se distinguem dos outros animais pelo fato de possuírem uma linguagem de estrutura proposicional, isto é, uma linguagem predicativa.

12 Isto é, pelo ente que se manifesta como aquele em virtude do qual ou em-vista-de-quê [Worum-willen] a conjuntura [e, por conseguinte, a conformação dos entes particulares] é mobilizada, portanto, enquanto ente privilegiado aberto ao mundo que, através de seus comportamentos, estabelece o sentido da relação [Bezugssein], de modo que “a totalidade-da-conjuntação ela mesma retrocede por último a um para-quê [Wozu], junto ao qual não há conjuntação, pois já não se trata de um ente no modo-de-ser do utilizável” [HEIDEGGER, 2012, p.253 [84]].

13 Aqui, como reconhece Tugendhat, poder-se-ia questionar que para os humanos as noções de correto e incorreto não são genéticas, mas sociais. Dessa maneira, embora identificar opções e justificar pela linguagem articulada os atos de escolha signifique uma flexibilidade maior às sociedades humanas, os seres humanos enquanto indivíduos não são aqueles que efetivamente escolhem e oferecem razões. Porém, Tugendhat alega [mas não desenvolve a questão nesse ensaio], que isso está longe do que realmente podemos observar, pois a experiência concreta da vida humana exige escolhas individuais e demanda justificação dos próprios agentes.

14 Faço opção de tradução segundo a tradução de Ser e Tempo realizada por Fausto Castilho [2012]. Os termos Existenzial e Existenzielle são traduzidos por “existenciário” e “existencial” respectivamente. A diferença foi estabelecida por Heidegger para marcar a determinação constitutiva da existência [ou sua estrutura], cuja determinação cabe à ontologia [existenciário], da determinação existencial [existencial], que trata de um assunto ôntico do Dasein [HEIDEGGER, 2012, §4-9].

15 Cf. HEIDEGGER, 2012, pp.781-783 [284-285].

16 Seguindo a leitura de Carl-Friedrich Gethmann em Verstehen und Auslegung: das Methodenproblem in der Philosophie Martin Heideggers. Bouvier Verlag, 1974

17 Essa descrição, entendo, não é capturada pela crítica de Tugendhat sobre a falta de clareza sobre o que significa “ter consciência” e seu rompimento com o caráter biológico. Pois o que Heidegger está recuperando não é simplesmente uma noção de consciência própria aos seres humanos e que é irredutível a determinação biológica, mas, radicalmente, como o fenômeno de consciência se manifesta e é experienciado pelos seres humanos. Assim, dizer que algo como “consciência” só “é” no modo de ser do Dasein e se enuncia como facto apenas e somente na existência factual do Dasein, implica que nenhuma concepção de consciência [ulterior] pode ignorar essa experiência [primária] situada e em primeira pessoa a partir da qual algo como “ter consciência” pode ser compreendido.

18 Cf. §34 de Ser e tempo.

19 Para Heidegger, discurso [Rede] é o sentido fundamental de logos, pois retém de maneira precisa o caráter de apofansis, isto é, deixa e faz ver a manifestação de algo [como algo]. Cf. §7 de Ser e Tempo.

20 A estrutura da Sorge é apresentada no §43 do seguinte modo: “ser –adiantado-em-relação-a-si-em [-o-mundo] como ser-junto- a [ao-ente-do interior do-mundo que vem-de-encontro]” [HEIDEGGER, 2012, p.539 [192]]. O Dasein é projeto, é poder-ser [existenciariedade], mas como projeto jogado realiza seu ser nas possibilidades em que foi lançado, isto é, em um mundo interpretado [facticidade], compreendendo a si mesmo e os outros em meio aos entes já descobertos e sedimentados na cotidianidade [queda].

21 Nessa citação, a tradução de “one” por “alguém” parece ser a mais adequada. Embora o termo seja relacionado ao conceito de “A-gente”, isto é, “das Man”, o termo utilizado “one” – em letra minúscula – indica o sentido usual do pronome.

22 Essa parte do texto de Crowell, acredito, está em pleno acordo com o §9 de Ser e tempo. Heidegger inicia a analítica do Dasein a partir de uma dupla caracterização desse ente, ele é: existência [Existenz] e o ser-cada-vez-meu [Jemeinigkeit]. Essa dupla caracterização traz algo de especial sobre o ser-aí, a saber; a impossibilidade de determiná-lo de maneira categorial, pois a adequada apreensão desses caracteres excede o conceito e acena à existência individual. Ou seja, qualquer atribuição predicativa que vise determinar conceitualmente esse ente nunca alcança aquele [eu / tu] que existe factualmente como tal. O fenômeno da existência cada vez meu é irredutível a qualquer determinação, de maneira que ele se manifesta a partir da sua possibilidade [Möglichkeit]. A relação entre possibilidade [Möglichkeit], existência [Existenz] e caráter de ser cada vez meu [Jemeinigkeit] parece indicar que, em cada caso, a “ipseidade” de cada ente humano é articulada pela possibilidade. Mas possibilidade de quê? De ser-existência no modo da propriedade ou da impropriedade. Se, ainda conforme o §9, o “ser-si-mesmo” é uma possibilidade existencial do ser-cada-vez-meu [Jemeinigkeit], porém, o modo como inicialmente o Dasein encontra a si mesmo lançado no mundo é em meio a impropriedade, então, o “ser-si-mesmo” só pode ser determinado como uma modificação existencial do impessoal [das Man]. Porém, enquanto possibilidade existencial, é preciso ter em vista que está sendo investigado: a. um poder-ser do Dasein que seja próprio; b. mas que seja atestado pelo próprio Dasein enquanto possibilidade existencial. Isso significa: que o encontro com essa possibilidade [o poder-ser do Dasein que seja próprio] deve ter suas raízes no ser do Dasein, isto é, o encontro com a identificação de um poder-ser próprio deve ter sua origem na constituição de ser do Dasein [Sorge]. É importante notar que Heidegger, em alguns momentos de Ser e tempo, também apresenta a “Queda” [Verfallen] como um existenciário da abertura [enquanto modo existenciário de ser-no-mundo], por exemplo, no §38, 2012 p.495 [176] e, talvez no momento mais esclarecedor, no §68,2012 p.949 [349], em que o modo existenciário da queda está vinculado a execução/realização [Vollzugssinn] da abertura do “aí”. Isso significa que na realização, situada e factual, da abertura do “aí”, a queda, enquanto modalidade, pode sofrer um abalo, mas não pode ser simplesmente alijada, pois constitui de maneira necessária [mas não suficiente], a abertura de seu correlato: o sentido de temporalização das possibilidades de ser.

23 De outro modo: a manifestação da consciência na disposição e na compreensão, deixa que o Dasein “conheça” e “saiba” o que ocorre com ele. Mas esse conhecer e saber é dado através da escuta da medida pública impessoal. O que o Dasein fático efetivamente conhece e sabe é a normatividade oferecida pelo impessoal, retroalimentada de modo indeterminado pelo falatório, pela curiosidade e pela ambiguidade. Ademais, é através da normatividade oferecida pelo impessoal que a dimensão de ser-no-mundo, que concerne ao ser do Dasein, é oferecida. Essa é a situação decaída que deve ser rompida pela intimação. Como isso é possível? Por um apelo capaz de neutralizar essa escuta que ouve a medida pública impessoal indeterminada e a assume dispositiva e compreensivamente como se sua própria fosse. O apelo é um modo do discurso [Rede], oportunizado pela situação limite da angústia por ocasião do confronto do Dasein com sua morte própria. E, segundo nos instrui o §34 de Ser e tempo, se as possibilidades do discurso são o falar e, mais originariamente, o ouvir, então, o apelo capaz de neutralizar a audição do que a medida impessoal fala só pode ser um ouvir oposto em relação esse. O apelo rompe o ouvir do impessoal e desperta um ouvir em tudo caracterizado como oposto em relação a voz impessoal, o chamado da consciência através do apelo é sem barulho, sem ambiguidade e sem dar sustentação à curiosidade.

24 Truth and Finitude: Heidegger’s transcendental Existentialism In Heidegger, Authenticity, and Modernity. Cambridge, MA: MIT Press, 2000.

Notas de autor

1 Doutor(a) em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro – RJ, Brasil.


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