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Contribuições do personalismo para a logoterapia e análise existencial
Contributions of personalism to logotherapy and existential analysis
Griot: Revista de Filosofia, vol. 23, núm. 1, pp. 229-244, 2023
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Artigos


Recepción: 20 Octubre 2022

Aprobación: 08 Febrero 2023

DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v23i1.3154

Resumo: A contribuição do personalismo para a Logoterapia, será de fundamental importância, especificamente através do conceito de pessoa como dimensão noética. Para V. Frankl conhecer a pessoa para trata-la terapeuticamente, se tornará o lema que fará da Logoterapia essa busca positiva por sentido, por meio das vivências e da realização de valores superiores. Max Scheler será um filósofo que inspirará de forma ampla e direta o pensamento logoterapêutico de Frankl, fundamentalmente através da teoria dos valores e com sua contribuição fenomenológica da antropologia. A busca por sentido e valor é uma espécie de motivação humana intuída emocionalmente em nossas vivências e compreendida pela nossa consciência. Por isso conceitos como o de pessoa e o de valor são peças importantíssimas para a Logoterapia e a Análise Existencial.

Palavras-chave: Pessoa, Valor, Personalismo, Logoterapia, Análise Existencial.

Abstract: The contribution of personalism to Logotherapy, will be of fundamental importance, specifically through the concept of person as a noetic dimension. For V. Frankl to know the person to treat him her therapeutically, it will become the motto that will make Logotherapy this positive search for meaning, through experiences and the realization of superior values. Max Scheler will be a philosopher who will broadly and directly inspire Frankl's logotherapeutic thinking, fundamentally through the theory of values and with his phenomenological contribution from anthropology. The search for meaning and value is a kind of human motivation that is emotionally intuitive in our experiences and understood by our conscience. That is why concepts such as person and value are very important pieces for Logotherapy and Existential Analysis.

Keywords: Person, Value, Personalism, Logotherapy, Existential analysis.

Introdução

O ponto de partida que propomos para esta investigação será fazer uma análise existencial do indivíduo como sujeito da “ação”, enquanto a ação revela à pessoa. Entendendo a ação como o mais característico da pessoa, já que moralidade e liberdade entram em jogo, como também entendendo a pessoa como portadora de valores existenciais. Para isso partiremos do conceito de pessoa, e isto, nos leva necessariamente, à antropologia filosófica, a uma “filosofia da pessoa”. Questionamentos como: O que e quem é o homem? Qual é seu lugar no mundo? Qual o sentido de sua existência? Exigem respostas para aqueles que queiram de forma responsável ter consciência clara de qual é o sentido da sua vida, a partir de seu agir.

A partir daqui contribuições filosóficas de autores como Max Scheler, Emanuel Mounier, Martin Buber, junto com Martin Heidegger e Karl Jaspers, são importantíssimas bases de fundamentação filosófica, com as que o filósofo e psiquiatra austríaco Viktor Frankl (1905-1997) constituirá a base teórica da Logoterapia e Análise Existencial. No nosso caso, concretamente, delimitaremos nossa pesquisa desde o personalismo fenomenológico de Max Scheler e a contribuição do pensamento de este autor para a Logoterapia. Fazendo eco das palavras de Emanuel Mounier, em nossa investigação não somente temos pretendido tratar do ser humano, mas combater pelo ser humano.

Problematização

O conceito de pessoa era um conceito tranquilo até faz umas décadas. O que aconteceu para esta mudança tão repentina? Por um lado, temos uma discussão interdisciplinar mais abrangente a partir da problematização trazida pela neurociência (HARRIS, 2013; SANGUINETI, 2014), pelo direito (REGAN, 1983) e pela bioética (SINGER, 1993), sobre temas referentes à vida dos humanos e dos não humanos, e pela estruturação, consciente e inconsciente da psiquê humana. A especialização do homem no plano científico vai acompanhada pela atomização de seu conceito no plano teórico-filosófico, especificamente desde visões fenomênicas que reduzem ao ser humano a uma dimensão puramente imanente e materialista, esquecendo a dimensão ontológica-metafísica.

Por outro, a própria antropologia filosófica, se tem ramificado em outros vários campos, como a filosofia da mente, da liberdade, da corporalidade, a dos afetos, que adquiriram certa autonomia e independência da antropologia filosófica, e que poderíamos entender todas estas áreas como necessárias para uma discussão e argumentação sobre a “filosofia da pessoa”.

Pois bem!. O conceito de pessoa passa de ser um conceito assentado na nossa cultura, com uma forte argumentação axiológica e tido como conceito central dos Direitos Humanos, a ser um conceito problemático e não evidente, objeto de discussão e problematização, (SPAEMAN, 2015).

Perante tantas formas atualmente de anular ou dissolver a pessoa de forma reducionista , por parte da ciência, da filosofia, quanto da psicologia, em que se fundamenta o homem no nada, no vazio, na ruptura com a tradição, no individualismo, no utilitarismo, no hedonismo atuais, nos impulsos, na mente, na cultura. Poderíamos nos perguntar se dá para pensar na sua inexistência, pensar na demolição do “sonho antropológico” e entoar o réquiem pela pessoa?.

A problematização tem dado nova atualidade ao conceito. Continua sendo uma das questões principais da antropologia, pois implica uma pluralidade de aspectos e âmbitos diferentes como (ética, direito, política, religião...) O conceito é um conceito que poderíamos considerar de basilar, já que nele confluem estruturas do ser humano como, a corporeidade, afetividade, sociabilidade, espiritualidade, linguagem. Todas estas estruturas são reunidas em um eu, em um si-mesmo, em um sujeito, em um agente ativo que carrega a responsabilidade, a consciência e a liberdade, e que responde pelo “quem” da existência: O SER HUMANO COMO PESSOA.

O conceito de pessoa continua sendo uma das questões centrais da antropologia filosófica. A pessoa é o que designa a qualidade propriamente humana, define que o ser humano é um quem ou alguém, e não só um “algo”. O ser humano se distingue dos outros seres vivos pela sua pessoalidade ou a capacidade de levar uma vida pessoal, ter individualidade subjetiva. Que quer dizer isto? Levar sua própria vida e traçar seu próprio destino, a partir de uma série de valores/qualidades como a autorrealização e a autonomia, que desenvolvem o estatuto intelectivo (memória, inteligência) como também o estatuto ético-moral, e dão ao ser humano sua característica individual frente aos outros seres vivos.

Para Wojtyla, por exemplo, o ponto de partida da reflexão sobre o homem como “pessoa” será que o homem age, atua, (agente ativo) entendido como um dado que se nos dá na experiência fenomenológica. Mas também como “desvelamento” da pessoa através da ação e do valor moral da ação. A ação revela à pessoa e olhamos à pessoa através da sua ação. A conjunção entre experiência e moralidade será a base de fundamentação da antropologia e da ética (WOJTYLA, 2017, p. 46).

É preciso distinguir dois planos ao falar da pessoa humana: o plano ontológico e o plano dinâmico-existencial. No plano ontológico a pessoa é substância individual, cujo ser é incomunicável, porém aberto intencionalmente a toda a realidade. Este substrato subsistente não é uma “coisa” e sim uma identidade que permanece no tempo. A identidade individual está garantida pelo princípio de individuação. No plano dinâmico-existencial, a pessoa implica um crescimento do seu ser pessoal. A pessoa se determina através de suas ações livremente assumidas. A pessoa não é só o que já é, mas o que ainda não é e pode chegar a ser quando desenvolva existencialmente sua liberdade (GARCÍA CUADRADO, 2010, p. 130).

A Viktor Frankl lhe interessa saber quem é o ser humano, não só de forma teórica, mas de forma integral e prática, para trata-lo terapeuticamente. Frankl por meio da Logoterapia pretende fundamentar a análise existencial a partir de uma proposta antropológica. Para ele, a própria experiência como prisioneiro em vários campos de concentração e como médico, será fundamental para refletir sobre o lugar que ocupa o ser humano na sua relação com o mundo, com os outros e os sentidos que encontra para a sua existência. Frente a qualquer tipo de reducionismo, em que o ser humano se coisifica, e portanto o tratamento sobre ele se tecnifica, Frankl faz questão de distinguir entre pessoa e coisa, já que o ser humano nunca poderá ser tratado como tal. Como ele mesmo afirma: “Não há psicoterapia sem uma imagem do homem” (FRANKL, 1964, p. 191).

Nesta pesquisa nos interessa aprofundar na base de fundamentação filosófica da Logoterapia, no personalismo fenomenológico, e não tanto o desdobramento desta com relação às psicoterapias de matiz existencialista e/ou personalista em que possam ser aplicadas. Essa não é nossa intenção, nem nossa vocação, deixamos essa tarefa para a área da psicoterapia. Neste caso vamos dividir a nossa pesquisa em três partes: na primeira faremos um estudo sobre o personalismo e suas características antropológicas principais; na segunda parte será abordada a fenomenologia personalista de Max Scheler como um dos autores mais influentes no pensamento de Frankl e, na terceira, veremos quais são as confluências entre a antropologia personalista e a Logoterapia.

Personalismo e Fenomenologia

O termo “pessoa”, segundo Vaz (1992) transita por diversos territórios desde o teatro (prósopon/máscara), (personare/personagem), onde provavelmente reside sua origem, passando pela retórica e pela linguagem jurídica e teológica, até chegar na filosofia. Daí, o termo prósopon passou a designar, na cultura greco-romana, o próprio papel representado pelo ator e, posteriormente, a significar a função ocupada pelo indivíduo na sociedade, entendido como os atributos e funções exteriores (sociais e jurídicas), sem vir a significar o indivíduo em si mesmo.

Fazendo um pequeno exercício de memória filosófica, poderíamos dizer que a filosofia começou a tratar questões sobre o homem já no início da sua história, quando o homem era considerado como parte do cosmos e da polis. O conceito de pessoa neste momento ainda era desconhecido, será a partir do cristianismo que este conceito se desenvolverá. O homem era tratado como “animal cívico” e “animal de linguagem”, segundo Aristóteles na sua obra Política, mas será nesta etapa filosófica, em que se inaugura a antropologia filosófica, a aplicarem conceitos como os de substância, natureza, essência ao homem e não concretamente ao conceito de pessoa.

Depois com o desmoronamento das polis gregas na época helenística, os estoicos elaboraram o conceito do homem como “ser universal” a partir da influência do Império Romano, mas sempre ligado ao viver e ao agir segundo a Natureza. Ou seja, o agir virtuoso deveria ser a realização do ser humano determinado pela razão ou pela natureza (FERRIZ apud BORGHI, 2019, p. 103-121).

Depois, esta forma cosmocêntrica de entender o homem, foi substituída pela abordagem teocêntrica, própria da patrística e da escolástica da Idade Média, especificamente com pensadores como Santo Agostinho, Ricardo de São Victor, Alexandre de Hales e São Tomás de Aquino. Segundo este enfoque, a história e o próprio homem encontram seu lugar, já não mais no cosmos, e sim em Deus, entendido como princípio providente de tudo o que existe.

É conhecida e frequentemente utilizada a definição de pessoa de Boécio (480-525) que aparece na sua obra A Consolação da Filosofia: “persona est rationalis naturae individua substantia” (a pessoa é substância individual de natureza racional). O homem para Boécio só pode ser indivíduo de natureza racional. Podemos dizer que com Boécio se fundamenta a primeira formulação doutrinária de definição sobre o conceito de pessoa. Nesta definição de Boécio se distinguem três elementos: a substancialidade, a individuação e a racionalidade. A substancialidade indica o existir em si e para si, em virtude exclusiva de seu mesmo ato de ser e independente de outra substância ou de suas qualidades; predicados como imutabilidade, permanência e identidade fazem parte da ideia de substância. A individuação seria entendida como o caráter irrepetível e único da pessoa. O corpo será o elemento diferenciador, materializador da forma, existência concreta da essência e encarnação do espírito. Enquanto à natureza racional, ser dotado de razão, o autor entende como a faculdade intelectual que permite abstrair, pensar e universalizar o mundo (BOÉCIO, 2016)

Posteriormente, São Tomás de Aquino define a pessoa como subsistente indivíduo em alguma natureza racional. Uma abordagem de dimensão claramente ontológica de terminologia substancialista e que vai fortalecer o caráter unitário da pessoa através dos conceitos de corpo e alma, como princípios constitutivos do ser humano. Prevalecendo uma concepção moral da pessoa, no sentido de dignidade, de ser moral, sujeito agente e paciente, responsável. Assim, a persona est subsistens in rationalis natura de São Tomás de Aquino é uma definição na qual já se encontra implícita a noção de sujeito subsistente, na medida em que a substância é aquilo que recebe o ser em si, o qual, por sua vez, confere pelo seu ato um caráter de unidade e totalidade ao sujeito (GONÇALVES, 2008).

Uma terceira abordagem do homem está na Modernidade, tendo início em Descartes e terminando em Hegel, em que o próprio homem se autoafirma como consciência e como razão. Nesta época descobre-se a subjetividade. A antropologia da subjetividade nasce, pois, no contexto da filosofia moderna, marcada, essencialmente, pela atitude da dúvida filosófica. Esta atitude filosófica acarreta, como inevitável consequência, uma alteração do objeto da filosofia: do estudo da ontologia do ser, a filosofia passa a ter por objeto o próprio sujeito cognoscente – o homem, antes e primeiro como um sujeito que conhece.

A alteração conceitual é grande: se a reflexão teleológica cristã havia construído uma noção metafisica de pessoa e mesmo seu prestigio moral, na época moderna observa-se uma desconstrução do conceito, retirando-lhe o conteúdo ôntico, para identifica-la com uma realidade psíquica, emotiva, subjetiva (ALMEIDA, 2017, p. 229)

Não podemos deixar de pensar nas contribuições que as formulações de Kant fizeram para o conceito de pessoa. O Eu se transforma em Kant no Eu do “dever ser”. Pessoa, então, é aquele sujeito que age, e suas próprias ações determinam sua natureza. Em Kant, por exemplo o homem tem um valor a partir de sua condição de ser pessoa. Racionalidade e Liberdade caracterizam a pessoa, e estas lhe possibilitam ser autônomo e livre. É considerar o homem como fim em si mesmo, como valor absoluto, e portanto é considerar cada homem como uma pessoa.

A razão que nos leva a unir o personalismo e a fenomenologia é que ambas têm uma grande afinidade, por serem novas propostas filosóficas contemporâneas que refletem sobre o homem de forma integral. A intencionalidade por parte da fenomenologia e o conceito de pessoa como unidade tridimensional (físico-psíquico-espiritual) por parte do personalismo serão a base de fundamentação da Logoterapia.

Tanto a fenomenologia quanto o personalismo nascem praticamente na mesma época, na época de entre guerras, a partir de uma grave crise existencial e de identidade e entre uma forte crítica à Modernidade. Essa afinidade se percebe também com relação aos autores, que podemos identificar com certa integração de pensamentos, como Husserl, Scheler, Stein, Jaspers, Hartmann, Heidegger, Mounier, Buber, Marcel, Wojtyla, Frankl, mas também a própria fenomenologia fala de uma atitude personalista para caracterizar a atitude fenomenológica. Personalismo e fenomenologia são duas formas de fazer filosofia e que ambas precisam uma da outra, para continuar pensando no homem e lutando pelo homem.

O personalismo não é um sistema filosófico propriamente dito, mas é uma filosofia que desde 1903 com Charles Renouvier (Le personnalisme), vem inspirando diversas correntes de pensamento, muito além da influência de E. Mounier a meados dos anos cinquenta do século XX, até os nossos dias atuais. É uma atitude e ao mesmo tempo uma filosofia que coloca no centro de sua investigação, a pessoa. Reconhece o ser humano com um valor especial, uma dignidade singular e com um papel relevante em vários âmbitos: social, político, econômico, histórico, etc. Por outro lado, é uma tentativa de ruptura anti-ideológica contra o individualismo e o coletivismo, muito presentes no pensamento do século XX.

O personalismo se tem transformado numa grande árvore cujas raízes filosóficas afundam na ontologia cristã, no moralismo kantiano, na fenomenologia husserliana e na axiologia scheleriana. Segundo o filósofo espanhol Carlos Díaz (2002, p. 42-43), o personalismo se desenvolve dentro das escolas ou influências presentes:

A Escola de Péguy (existencial-bergsoniana): 1. Charles Péguy 2. Jacques Maritain3. Emmanuel Mounier 4. Jean Marie Domenach 5. Jean Lacroix 6. Nikolái A. Berdiaev 7. José Manzana. A escola de Scheler (personalismo ético): 8. Max Scheler 9. Dietrich von Hildebrand 10. Paul-Louis Landsberg 11. Joaquín Xirau. A escola fenomenológico-tomista: 12. Karol Wojtyla 13. Edith Stein 14. Maurice Nédoncelle. A escola de X. Zubiri (ontologia personalista): 15. Xavier Zubiri 16. Ignacio Ellacuría 17. José Luis L. Aranguren 18. Pedro Laín Entralgo. A escola dialógica veterotestamentária: 19. Franz Rosenzweig 20. Martin Buber 21. Emmanuel Lévinas A escola dialógica neotestamentária: 22. Soren Kierkegaard 23. Ferdinand Ebner 24. Emil Brunner 25. Gabriel Marcel. A escola dialógica católica: 26. Romano Guardini 27. Juan Luis Ruiz de la Peña 28. Andrés Manjón 29. Julián Marías 30. J. M. Burgos. A escola hermenêutica: 31. Paul Ricoeur. Importar lista

Como vemos é difícil catalogar o personalismo dentro de uma escola ou tendência filosófica, já que se expressa de abundantes formas, mas isso também nos indica a grande contribuição de múltiplos e diversificados pensadores que fortalecem ainda mais, o diálogo com a antropologia filosófica e com o ser humano como ser existencial, relacional e comunitário. Temas como a liberdade, a responsabilidade, o sentido existencial, a relação com o outro, são conceitos tidos como indispensáveis para compreender o personalismo, como uma filosofia da vida que coloca a pessoa no centro de tudo.

Copleston (2000), explica que as ideias personalistas estão espalhadas em diferentes correntes filosóficas como as filosofias do espírito, a fenomenologia, o existencialismo e o tomismo, principalmente.

O personalismo pode entender-se “como o modo de ser próprio da pessoa enquanto ela é expressão e realização do indivíduo consciente, livre e responsável, dotado de dignidade e por si mesmo titular de direitos e deveres e, dito em termos kantianos, fim em si mesmo” (COLL, 2015, p. 193).

O personalismo é uma filosofia que afirma o valor da pessoa enquanto valor absoluto. O absoluto aqui é entendido enquanto fim que dá sentido à toda organização biológica, psicológica, política e social. Emanuel Mounier explica o que quer dizer o conceito de pessoa como absoluto, como totalidade:

1º - que uma pessoa não pode jamais ser considerada como meio por uma coletividade ou por outra pessoa; que não existe espírito impessoal, acontecimento impessoal, valor ou destino impessoal; o impessoal é a matéria; 2º - que, em consequência, excluídas as circunstâncias excepcionais em que o mal não pode ser detido se não à força, é condenável qualquer regime que, de direito ou de fato, considere as pessoas como objetos intercambiáveis, as dirija ou as constranja contra a vocação do homem [...]; 3º - que a sociedade, isto é, o regime legal, jurídico, social e econômico não tem por missão nem subordinar a si pessoas, nem assumir a realização de sua vocação [...] 4º - É a pessoa que faz seu destino: outra pessoa, nem homem, nem coletividade pode substituí-la (MOUNIER apud PEIXOTO, 1992, p. 209-210).

O próprio Frankl denomina isto como “ontologia dimensional”, porque permite o acesso à realidade total e integral do homem como “unidade múltipla”, como um ser biopsicoespiritual (ETCHEBEHERE, 2011, p. 34).

Ao lançar as diretrizes básicas da filosofia personalista, Mounier coloca a pessoa como núcleo central de suas preocupações. A pessoa passa a ser o centro orientador da reflexão e da ação do movimento personalista.

Para o personalismo, tomar o ser humano como pessoa é apreendê-lo como ser que se constrói historicamente, como ser situado, ser de comunicação, de adesão, de transformação. Isto faz referência à estrutura psicofísica do ser humano, que o próprio Mounier denomina de “existência incorporada” ou “existência encarnada”, para afirmar a profunda unidade entre sujeito e corpo. Esta experiência será fundamental para refletir sobre a radical unidade do homem como dimensão corporal e espiritual. É facticidade e existencialidade ao mesmo tempo, ele é ex-sistência.

Outra característica no personalismo será a transcendência da pessoa com relação ao mundo. O ser humano vai além do mundo por meio do conhecimento e pela sua ação, pela sua capacidade de transformar o mundo. O mundo de que fala a fenomenologia e o personalismo é o mundo humano, é o mundo da cultura, produto das relações homem-homem, homem-natureza.

Com isto, a fenomenologia personalista provocou uma profunda revisão, tanto da concepção do sujeito (consciência) quanto do objeto (mundo). Consciência e subjetividade não são percebidas apenas como inteligência, espírito, liberdade, nem só corporeidade, determinismo, inconsciente, mas tudo numa constante relação dialético-existencial.

Através desta mesma transcendência, o ser humano se caracteriza pela abertura para os outros e para o mundo mediante a comunicação. A pessoa se expõe, pelo movimento que faz o ser. A nossa natureza é comunicável, “quase se poderia afirmar que eu não existo senão na medida em que existo para o outro, e, no limite, ser é amar” (MOUNIER, 1990, p. 475).

Em definitivo, a pessoa se define como abertura, comunicação, encontro com o “tu” e com o “nós”. Esta abertura comunicativa que se desdobra no encontro com o tu e com o nós, é sociabilidade, é comunidade. “O eu exige o tu, o nós o ‘outro’. E ainda mais, o eu (como pessoa) exige a referência ao mundo das coisas. Assim, eu, nós, o mundo, se co-pertençem” (HUSSERL, 1997, p. 336)

Essa relação com o mundo e com os outros manifesta outra característica: a sua estrutura dinâmica. Ou seja, a pessoa não é, se faz. Se faz fazendo, através do trabalho, da formação, da cultura, da vivência dos valores, das escolhas, da relação com os outros e com o mundo exterior. Para o personalismo não existe a subjetividade pura (desconexa do mundo), e sim, a subjetividade que se encarna nas atitudes existenciais em que se deverá escolher. O sujeito se afirma perante o mundo. É o que se define como subjetividade incorporada. Afirma Edmund Husserl “O sujeito encontra conscientemente em seu mundo circundante [...] não somente coisas, mas também outros sujeitos” (HUSSERL, 1997, p. 236).

Intersubjetividade e empatia, temas muito desenvolvidos pela fenomenologia e o personalismo, serão fundamentais para a definição do conceito de pessoa, como esses substratos constitutivos da pessoa sempre em relação com os outros sujeitos ou pessoas.

Esta dinâmica com o mundo e com os outros, não se manifesta de forma anônima, entre as massas, pelo contrário, se singulariza, adquire sua singularidade como vocação própria. Implica que cada um tem uma tarefa que lhe é própria. Contribuição singular que cada um pode e deve fazer, e que é insubstituível. Este indivíduo singular e único, a pessoa, não deve confundir-se com identidade. A identidade é propriedade das coisas, dos objetos. A pessoa tem como propriedade específica sua singularidade, que dá significado e sentido ao seu ser, à sua existência.

Mas também caracteriza o seu agir através da liberdade, que não é simplesmente uma qualidade a mais, e sim sua essência, mais como um dom e não tanto como condenação (Sartre). A liberdade é sempre uma tarefa complexa de decisão e de liberação (liberdade de). Mas também a liberdade é responder à vida de forma originária, esta resposta à vida é a responsabilidade (liberdade para).

Existência encarnada, transcendência com relação ao mundo, abertura aos outros, dinamismo, e a vocação singular e livre, é o que vai definir de forma geral o personalismo como proposta de pensamento, e que depois a logoterapia vai acolher estas categorias para aplica-las terapeuticamente. Interessa ao personalismo trazer uma visão integral da pessoa para evitar reducionismos. É uma visão moral da pessoa como fim em si mesma e portadora de dignidade e valor, que inspirará os pensadores fenomenológicos e personalistas, e que servirão de guia ao próprio Frankl para fundamentar sua contribuição antropológica, na liberdade, na responsabilidade e no sentido existencial.

Max Scheler e seu projeto fenomenológico-antropológico

Max Scheler (1874-1928) concentra e reforça as teses do personalismo e da fenomenologia. Antes de expor suas principais contribuições como pensador, podemos dizer que Scheler foi uma das grandes figuras “geniais” do pensamento do século XX, reconhecimento este vindo de autores como Martin Heidegger, José Ortega y Gasset, Dietrich von Hildebrandt, Erich Rothacher, Heinrich Lützeler, Edith Stein, entre outros.

Seu pensamento também inspirou outros muitos pensadores de diferentes áreas como, Emanuel Mounier, Karol Wojtyla, Emanuel Levinas, José Ortega y Gasset, Xavier Zubiri, Martin Heidegger, Martin Buber, Jean Paul Sartre, Karl Jaspers, Gabriel Marcel, Merleau-Ponty, Paul Ricoeur, e ao próprio Viktor Frankl. Teve grande influência em áreas como a Ética, a Psicologia, a Antropologia, a Axiologia, a Sociologia, dando origem às disciplinas Antropologia Filosófica e Sociologia do Conhecimento, entre outras. Escreveu inúmeras obras, compiladas em treze volumes de mais de quinhentas páginas cada um, entre as quais podemos destacar: O formalismo na ética e a ética material dos valores (1916) e A posição do homem no cosmos (1928). Autores como Aquino defendem esse aspecto centralizador no pensamento de Max Scheler, de dar resposta à questão central da filosofia, como é: o que é o homem?

É importante ressaltar que a problemática antropológica, apesar de produzir um foco unificador das interrogações, não configura o núcleo principal dos interesses da filosofia nem funciona necessariamente como ponto de partida da interrogação. O motivo para a rejeição da antropologia como centro ou início do questionamento filosófico é a compreensão de filosofia elaborada por Scheler, que está em clara dissonância com as tendências dominantes da modernidade inaugurada com Descartes. A estratégia utilizada por Scheler para definir a filosofia revela o modo como é estabelecido o vínculo entre a problemática filosófica e a essência humana, justificando, assim, a importância e o lugar sistemático da problemática antropológica na filosofia. (AQUINO, 2015, p. 65)

Recebeu uma grande influência da fenomenologia de Edmund Husserl, especialmente na análise que faz da ética (ética dos valores) e da vida emocional humana. De Husserl recebe especificamente a ideia de intuição, uma intuição eidética que tem como objetivo as essências. Podemos considerar que o pensamento de Scheler não tem um fio condutor, mas não por isso deixa de ser instigante, criativo e inédito em temas que até hoje são fundamentais para a reflexão fenomenológica e antropológica. Max Scheler junto com Nicolai Hartmann (1882-1950) são os principais expoentes de uma teoria dos valores, aplicada à axiologia antropológica.

Antes de nos adentrar no conceito scheleriano de pessoa, temos que lembrar alguns rasgos característicos de sua concepção de homem, já que se pressupõem no conceito de pessoa e constituem seu marco de referência.

a. O homem e a dimensão espiritual

O que é o específico no ser humano?, se pergunta Scheler. O homem para Max Scheler é uma relação dinâmica entre vida e espírito (Level/Geist). Em Scheler, a técnica – ou ciência – fruto da razão, não é aquilo que distingue o homem dos animais, mas sim, o é seu caráter contemplativo. A diferença específica do ser humano, do homem, não está no âmbito da vida, do bio-psiquíco, e sim em algo mais profundo e fundamental, o que o nosso autor denomina de “espírito”.

Os gregos já afirmavam um tal princípio e chamavam-no ‘razão’. Nós preferimos usar uma palavra mais abrangente para aquele χ, uma palavra que certamente abarca, concomitantemente, o conceito de ‘razão’, mas que, ao lado do ‘pensamento das idéias’, também abarca concomitantemente um determinado tipo de intuição, a intuição dos fenômenos originários ou dos conteúdos essenciais, e, mais além, uma determinada classe de atos volitivos e emocionais tais como a bondade, o amor, o remorso, a veneração, a ferida espiritual, a bem-aventurança e o desespero, a decisão livre: a palavra ‘espírito (SCHELER, 2003, p. 35)

Então o que entende Scheler por espírito? Max Scheler enumera uma série de características para fundamentar o ser como espiritual como centro da existência, entre elas a autonomia e a liberdade. É a capacidade de decisão, de decidir por ele mesmo, e não através de impulsos internos ou estímulos externos. Essa independência da vida, poderíamos dizer da vida orgânica, faz do ser humano que seja também independente do mundo da vida, do mundo que o rodeia. O animal tem um “entorno” que o determina e o limita, o ser humano, a pessoa, tem mundo, porque está sempre em “abertura ao mundo”. Mundo (Welt) em este sentido podemos entendê-lo como livre de entorno, de limitação, e portanto como um horizonte que rompe com qualquer tipo de fixação e delimitação.

Outra característica que podemos juntar às anteriores, ou seja, liberdade e autonomia perante o entorno, e abertura ao mundo, podemos acrescentar a de “objetivar o mundo”. Objetivar significa circunscrever, delimitar, estar além do que é objetivo, além do puro entorno. Isto é fundamental para entender o ser humano como pessoa, já que objetivar o mundo será ver o mundo desde seu ser e existir, em sua autonomia e alteridade, e não determinado pelas necessidades, desejos, ou a utilidade (impulsos, instintos, memória associativa, inteligência prática).

Se colocarmos no ápice do conceito de espírito uma função particular de conhecimento, a espécie de conhecimento que só ele pode dar, então a determinação fundamental de um ser espiritual, como quer que este venha a ser constituído psicologicamente, é o seu desprendimento existencial do orgânico, sua liberdade, sua separabilidade – ou ao menos a separabilidade de seu centro existencial – ante os laços, a pressão e a dependência do orgânico, da ‘vida’ e de tudo o que pertence à vida – portanto, também de sua própria ‘inteligência’ pulsional. (SCHELER, 2003, p. 36).

Na compreensão de Scheler, a categoria espírito se refere, em primeiro lugar, à capacidade de autoconsciência, que faculta ao homem a possibilidade de objetivar sua constituição bio-psíquica e a própria realidade, capacitando-o, inclusive, a oferecer resistência às pressões advindas das pulsões que marcam o mundo natural de que participa. A esfera do espiritual se refere não apenas ao campo da racionalidade e da lógica, posto que inclui o sentir emocional dos valores.

O espírito não se reduz à capacidade de raciocinar, de pensar conceitualmente. Essa forma tão característica, o espírito, inclui os atos volitivos, os juízos morais, os atos emocionais, os sentimentos como bondade, amor, arrependimento, admiração, felicidade,.. que Scheler entende como atos intencionais, regidos por motivações. Os atos intencionais não podem derivar-se de condicionamentos causais, eles são expressão da espontaneidade do espírito. Aqui está implicado um conceito ético e existencial de pessoa, que consiste na realização de suas possibilidades, que nunca se darão de forma plena, mas não por isso deixa de ser pessoa. O ser humano forma uma unidade perante a diversidade de atos que realiza, já que ele dá sentido a esses atos que possibilitam a sua existência. Poderíamos dizer que esta ideia de integração/unidade se soma ao aspecto da transcendência. A integração se manifesta quando a transcendência se encontra acompanhada de autogoverno e de autopossesão na subjetividade. Com isso chegamos ao conceito de pessoa.

b. O conceito de pessoa

Pessoa é a forma concreta em que existe o espírito no homem. Pessoa e espírito são equivalentes, já que a primeira é o modo concreto e real de existência do segundo. O homem, para Scheler, é a pessoa que se transcende a si mesma e ao mundo da vida. Seu espírito não está determinado a não ser pelo ser essencial das coisas. O homem é a pessoa espiritual. A pessoa é a unidade (de existência) concreta, de atos essencialmente diversos. Cada pessoa é individual, é uma essência espiritual, é um indivíduo livre. A liberdade para Scheler é o princípio de individuação, a partir do qual todo ato que realizo é “meu”, é o que o autor alemão chama de “microcosmos”.

É através da transcendência que a pessoa conhece e descobre outros microcosmos, e assim enriquece o seu próprio, em que descobre valores, através de sua liberdade e de sua autoconsciência, dando significação e sentido completo a sua existência e à dos outros. A pessoa faz com que os valores sejam reconhecidos, poderíamos dizer que a pessoa “dá à luz” os valores, tira eles da escuridão e os ilumina com sua presença. A pessoa “atualiza” em seu mundo pessoal, no seu microcosmos, valores como a justiça ou o amor. Os valores são objeto da experiência e se manifestam na vida emocional, deixando de ser fatos para ser essências, ou seja, os valores são dados originários que se enxergam através dos atos humanos. Como muito bem afirma Souza Neto, os valores são qualidades autênticas e verdadeiras, que possuem consistência por si mesmas, em que o valor pessoa se destaca como valor fonte, valor-ser (Wertsein):

A seus olhos os valores da pessoa figuram como fonte, da qual se origina a captação e compreensão dos valores supremos, pois os valores, sem o ser humano, seriam como uma massa sem forma. Somente a partir da concepção do ser humano redimensionado como centro das atenções é que se tornaria possível entender o valor que Scheler atribui à intuição. Ele põe em relevo a supremacia da pessoa como valor fonte em toda trama interna dos valores, a intuição da pessoa ao descobrimento dos valores. Imprescindíveis ao estudo da pessoa e de sua dignidade em relação com os valores. (SOUZA NETO, 2004, p. 42).

O que quer dizer Max Scheler quando afirma que a pessoa é uma valor em si mesma? Para o autor alemão, temos que ver ela no contexto dos valores, mas não no sentido de considerar ela como um valor mais, senão de considerar ela o valor por antonomásia. Para entender isto temos que partir da crítica que faz Max Scheler à ética formal de Kant e a ética material de fins dos clássicos. Para o nosso autor, o valor é um ato emocional, e os valores não são apreendidos pela razão e sim pelo sentimento. Aqui é que reside a força da teoria de Scheler, na possibilidade de uma ética absoluta partindo das emoções. Toda ética material deve ser para Scheler necessariamente Ética de bens e de fins, já que nos bens e somente nos bens os valores se tornam reais. Para Max Scheler não é o dever que estabelece o conceito fundamental da ética e sim o valor. A fenomenologia de Husserl está aqui presente, porque evidencia um mundo real e objetivo de valores ou essências eternas que são captadas por intuição emocional.

Um grande interlocutor de Scheler vai ser Pascal com sua “lógica do coração” ou a “ordem do coração”.

Conhecemos a verdade, não somente pela razão, mais ainda pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os primeiros princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los. [...] Pois o conhecimento dos primeiros princípios, como o de que há espaço, tempo, movimento, números, é tão firme como nenhum dos que nos dão os nossos raciocínios. E é sobre esses conhecimentos do coração e do instinto que é preciso que a razão se apoie e funde todo o seu discurso. [...] Os princípios se sentem, as proposições se concluem; e tudo com certeza, embora por diferentes vias. E é tão ridículo que a razão peça ao coração provas dos seus primeiros princípios, para querer consentir neles, quanto seria ridículo que o coração pedisse à razão um sentimento de todas as proposições que ela demonstra, para querer recebê-los. (PASCAL, 2002, p. 266).

Segundo Max Scheler, possuímos uma intuição emocional, graças à qual não só temos possibilidades de conhecer valores como os incorporamos à nossa personalidade. Isso a enlaça logicamente com a hierarquia axiológica como uma escala ascendente, assim como uma rampa que possibilita ao ser humano a ascender aos valores supremos. Scheler, estabelece uma hierarquia de valores a partir de: duração, indivisibilidade, fundamentalidade, satisfação e grau de relatividade. A multiplicidade de valores, denota uma integração total dos valores no ser humano.

Os valores morais só são realizáveis em um meio comunitário através de um portador, que é a pessoa. Com relação às propriedades do homem enquanto ser racional, “pessoa” e portadora de valores, Max Scheler descreve que:

[...] além do “pensamento por ideias”, abarca também uma espécie de terminada de intuição (Anschauung) – a intuição dos protofenômenos ou dos conteúdos eidéticos -,e ainda uma certa classe de atos volitivos e emocionais como bondade, amor, arrependimento, veneração, admiração espiritual, beatitude e desespero, a livre decisão: ou seja, a palavra espírito (Geist). Mas ao centro de atos, em que o espírito se manifesta no seio das esferas finitas do ser, caracterizamo-lo como “pessoa”, em contraste incisivo com todos os centros vitais funcionais que, do ponto de vista interno, se chamam também centros “psíquicos” (SCHELER, 2008, p. 7-8).

A tese central da ética axiológica scheleriana se pode enunciar dizendo que a vontade se torna moral ajustando-se, na realização dos seus atos, à hierarquia apriorística dos valores que se fazem presentes em nossa consciência através dos atos de preferência ou não dos mesmos valores. Ainda mais: o ato moral é verdadeiramente moral, unicamente enquanto em tal ato se manifesta a pessoa. Somente as pessoas são boas ou más, os demais fenômenos podem ser qualificados de morais somente em relação à pessoa. Daqui que o próprio Scheler chame de personalismo moral a sua filosofia ética.

Personalismo e Logoterapia

O personalismo e a logoterapia se enriquecem mutuamente. Em diferentes lugares o próprio Frankl identifica “o espiritual” com o pessoal, como o que pertence propriamente ao ser humano (FRANKL, 2007; 2008). Por isso Frankl define a Logoterapia como uma terapia que parte do espiritual e que se orienta para o espiritual (noodinâmica), o que o autor está propondo é uma terapia em clave personalista, pois tem na pessoa sua origem, como sua função personalizante. No entanto, re-humanizar a psicoterapia para Frankl ganha um significado peculiar, tem a ver com voltar-se aos fenômenos e dimensões especificamente humanos (FRANKL, 2005).

A logoterapia propõe uma concepção de homem e de mundo, que parte de uma relação entre o mundo interior do homem e a objetividade do mundo, valorizando suas experiências e situações como significados pessoais e situacionais através da análise existencial (AQUINO, 2013, p. 78).

É o que o filósofo Karl Jaspers chama de ser-no-mundo-enquanto ser-em-situação. Situação que tem a ver como tudo faz sentido para a existência humana: temporalidade, historicidade, liberdade, finitude, sofrimento, morte, transcendência, vida. O que é entendido, salvando as devidas diferenças, como amor fati especialmente em Spinoza e Nietzsche.

A Logoterapia e a Análise Existencial pretende uma práxis personalista (personalismo terapêutico), ou seja, que a pessoa chegue a ser ao que está chamada a ser, com aqueles com quem está chamada a sê-lo. Isto explica algumas das principais contribuições da Logoterapia:

Mostrar os caminhos pelos quais a pessoa pode “tornar-se” de novo como pessoa, recuperar seu próprio rosto, devolver à sua existência uma vida autêntica; Indicar os caminhos pelos quais a pessoa se pode construir como pessoa, através de uma educação para a liberdade e a responsabilidade da pessoa concreta, em suas condições concretas; Desvelar os modos e lugares em que a pessoa pode encontrar o sentido para a vida, e encontrando nos fenômenos do sofrimento, a culpa e a morte, uma compreensão de sentido. Importar lista

Isto revela na prática terapêutica da Logoterapia um encontro dialógico face a face em que é possível captar a essência do ser humano. Se trata, segundo a terminologia buberiana de um EU-TU, que sempre reclama de reciprocidade, um estar juntos de ambos num encontro existencial e relacional.

O espírito em sua manifestação humana é a resposta do homem ao seu Tu... Este espírito é a resposta ao Tu que se revela nos mistérios, e que do seio desde mistério o chama. O espírito é palavra. O espírito não está no Eu, mas entre o Eu e o Tu. Ele não é comparável ao sangue que circula em ti, mas ao ar que respiras (BUBER, 2010, p.75).

Para o personalismo, o sentido da própria existência se descobre, com os outros. São os outros com os que convivo comunitariamente os que me oferecem um contexto de sentido. Isto é fundamental para conectar o personalismo com a logoterapia, já que a própria relação com os outros é fonte de sentido, é iluminadora e inclusive sanadora. Os dons que somos não estão em nós estaticamente e sim em forma de dynamis, em forma de força centrífuga, que me levam à ação. Tanto para o personalismo quanto para a logoterapia é importante o querer e o fazer, porque isso determina a própria vocação ou projeto de cada um, que se transforma em acontecimento, entendido como “aventura de ser”. Se trata de descobrir o para que que me leve a uma prática. Ou seja ser-sendo-com-os-outros.

Quando a pessoa é capaz de recuperar a capacidade de encontro, de diálogo, de responsabilidade pelo outro e, é capaz de fazer espaço na vida para ou outros, aí é que começa a sua recuperação. Como afirma Domínguez Prieto (2006: 112), “o lugar terapêutico por excelência é a comunidade”.

Esta necessidade de pensar sobre o outro que o personalismo e a logoterapia nos “impõem” como prioridade ética e ontológica, nas palavras de Emmanuel Levinas é o que faz elevar-se o nosso ser: “É na relação pessoal, do eu ao outro, que o acontecimento ético, caridade e misericórdia, generosidade e obediência, conduz além ou eleva acima do ser” (LEVINAS, 1997, p. 269).

O próprio Viktor Frankl (2019: 259) afirma que “uma coisa pode ter valor para mim, valor efetivo; só uma pessoa, porém, é capaz de ter dignidade, e essa dignidade representa em si um valor”.

Esta será a grande diferença entre a Logoterapia e outras escolas psicológicas e por tanto de outras terapias, já que não se centra na pessoa como “automaton” de um aparelho físico e sim na autonomia da existência pessoal. Para isso será fundamental partir da diferença entre pessoa e coisa. A partir da análise existencial se procede para uma orto-praxe vital como caminho concreto e comunitário de ser-pessoa. Assim, também em Frankl, o homem se inventa a cada instante. O homem é o único autor do homem. O seu ser não está pronto, ao contrário, está sendo. É um poder-ser. Mais precisamente, o ser-aí, o Dasein. Para Buber e Frankl a existência da pessoa é coexistência, é “encontro” que se realiza desde o logos, desde a possibilidade e o amor.

Outro ponto de reflexão na Logoterapia que vai ao encontro do personalismo são os valores, como construtores de sentido na pessoa e que se estabelecem de forma hierárquica.

Para Scheler esse mundo dos valores não só se encontra plenamente ordenado em sua estrutura objetiva, como também sua percepção afetivo-cognoscitiva por parte do homem se distingue por certa ordem apriorística. E trata-se de uma ordem objetiva, visto que o puro sentimento não a cria entre os valores, mas apenas a capta como está disposta. A ordem se expressa em uma estrutura particular de correlações e vínculos entre os valores. Trata-se, sobretudo, de relações hierárquicas; alguns valores são, a priori, superiores a outros. A superioridade a priori de alguns valores sobre outros, percebe-a o homem emocionalmente; não apenas mediante a comparação discursiva recíproca e sim imediata e intuitivamente (WOJTYLA, 1993, p. 22).

Max Scheler formula uma concepção dos valores que promove a unidade do ser humano. Scheler tem como objetivo resgatar o valor da pessoa humana, pois o ser humano em sua concepção é o valor fonte.

Por conseguinte, a compreensão do analista existencial é a de que existem valores no mundo que esperam por realização. Para tanto, o ser humano necessita transcender, ou seja, deve ir além de si mesmo em direção ao sentido para a sua efetivação. A princípio, os valores e sentidos se encontram como possibilidades (poder ser) e entram na realidade por meio da ação, o que torna o ser humano portador dos valores existenciais (AQUINO; CRUZ, 2020, p. 362).

E o mais importante de todos é o amor, que associado à vontade, seria o mais nobre de todos os sentimentos humanos, pois teria a primazia sobre os outros. A conexão do amor com a experiência intencional brota da própria natureza do amor, pois este é prioritariamente experiência, ao fazer participar a pessoa de maneira ativa no próprio ato de amar. Amar significa comunicar-se, que é o dom de si mesmo aos demais, para que se construa uma unidade interpessoal. Demonstrando a importância da relação afetiva, que se faz comunitária. Nesse particular, Scheler assegura que amar a outrem, como um amigo, denota sempre que se sai de si mesmo para participar de maneira direta na própria realização do outro.

Liberdade e responsabilidade são segundo Frankl, as características da ação propriamente pessoal, ou seja, do espiritual. Inspirado em Heidegger, para Frankl a liberdade é um existencial, um elemento essencial do ser humano que permite à pessoa escolher um projeto de futuro, além das necessidades e daquilo que lhe determina (biológica e psiquicamente), um conjunto de possibilidades com as que realize uma vida autêntica. Não somente uma liberdade-de para nos distanciar das tendências, condicionantes ou pressões, mas uma liberdade-para o compromisso e a realização de valores que proporcionem sentido à pessoa.

Viver é responsabilidade, assumir deveres e compromissos. A responsabilidade é o para que da liberdade. Se trata de optar por algo ou alguém em função de um sentido e de valores a serem realizados. É a forma que a pessoa tem de se dar conta que somente ela poderá realizar certas tarefas e empreendimentos.

Provavelmente não podemos deixar de evitar a pressão que recebemos do ambiente externo e interno, nem do medo perante certas circunstâncias, ou a dor, mas mesmo assim somos donos de nós mesmos. A liberdade é possível sempre, e dessa atitude dependerá o nosso futuro.

"El devenir de una persona no depende ni de la predisposición ni del entorno, ni de lo que la herencia le haya deparado ni de lo que en su educación le haya tocado en suerte, sino que, al fin y al cabo, todo esto depende de la propia persona, todo se deja al criterio de su propia decisión y, dentro de los límites que las condiciones y las circunstancias le permitan, esta decisión será una decisión libre” (FRANKL, 2000, p. 90).

O sentido é algo objetivo, que uma vez descoberto, convida a ser realizado. A pessoa, além do poder e do prazer, pode encontrar um sentido como horizonte último de existência. Todo momento da vida é significativo, todo momento deve ser iluminado desde e para o sentido. É o que poderíamos chamar de horizonte de sentido ou horizonte axiológico que pede ser realizado. Descobrindo o sentido através da autotranscedência é como a pessoa se autorrealiza através dos valores. Os valores é o locus onde o sentido se encontra e se realiza através de:

Valores de criação: em que a pessoa se realiza através do fazer ou produzir alguma atividade concreta;

Valores vivenciais: especialmente na experiência da vivência e do encontro com o outro, ou seja, através do amor. É essa relação EU-TU em que deve prevalecer não o prazer ou o poder, e sim a dignidade e o cuidado pelo outro. Só desde o amor se pode conhecer ao outro, só se pode conhecer a pessoa. É um acesso ao outro de forma existencial, de forma relacional, precisamente porque somos pessoas e não coisas, somos alguém e não algo.

Mas também segundo Frankl podemos encontrar o sentido, na limitação, no sofrimento, na incapacidade ou impotência humanas, através dos valores de atitude, que consistem na transformação ou mudança de si mesmo perante a realidade. Adquirir atitude de sofrimento é transcende-lo, e fazer do sofrimento, da culpa e da morte um triunfo, precisamente pelo sim que devemos fazer sempre à vida. Sempre podemos encontrar um lado positivo perante momentos de tragédia e dor. Frankl soube superar o pessimismo trágico, a tríade trágica com o otimismo trágico. Encontrar sentido para o sofrimento nos faz ser aptos para ele, nos faz ser capazes do sofrimento. Aqueles que tem um por que para viver, sempre farão mais lúcida e diáfana sua existência.

Considerações finais

Ao refletir e dialogar sobre a pessoa desde a filosofia personalista, a fenomenologia e desde a Logoterapia, como foi o objetivo de nosso trabalho, nos deparamos de forma como “sine qua non” com aquilo que a antropologia discute como a condição humana. É uma forma de problematizar o sujeito desde sua concretude humana, que em muitos momentos da nossa História não deixa de ser assustadora.

O nosso intuito foi buscar uma fundamentação filosófica e ética para a questão do sujeito, entendido como pessoa e buscador de sentido, em meio aos impasses racionais e éticos da nossa civilização contemporânea. Encontrar sentido na vida nos dias de hoje se transformou num grande desafio, quase se poderia dizer que uma questão imperativa. Perante tantos momentos de pessimismo trágico, especialmente em estes momentos pandêmicos, nos deve fazer refletir sobre o Logos da Existência. Um logos que se nos oferece como acontecimento, responsabilidade, liberdade e compromisso diante de si, do outro e do mundo.

Questões como: Quem somos nós? Qual o sentido da nossa existência a partir de nosso agir? Nos deixa um tanto que preocupados, já que se pode transformar em uma das mais insólitas e bem pouco sucedidas respostas, na nossa contemporaneidade. Afastar de nós a responsabilidade nos entrega ao vácuo existencial e por conseguinte, à falta de sentido autêntico, que faça de nossa existência um verdadeiro acontecimento relacional.

Tanto a filosofia quanto a Logoterapia devem ajudar a encontrar sentido à existência das pessoas, esse era o objetivo do doutor Viktor Frankl, como o de tantos filósofos que inspiraram a trajetória da própria Logoterapia.

Para isso se precisa recuperar os recursos “espirituais” das pessoas de forma analítica, desde a própria existência. Já que sem uma autorreflexão sobre o ser, sem uma autocompreensão sobre o essencial, não pode ter transcendência, e sem transcendência não temos sentido para a vida, porque fechamos a possibilidade de ler a vida, de nos encontrar e vivenciar o outro de forma afetiva que nutre e garante que o indivíduo se transforme em pessoa de forma integral.

EU-TU, estar junto a outro, ser junto a, são categorias que a filosofia personalista e a Logoterapia consideram fundamentais para entender o amor, a liberdade, a responsabilidade como relação ontológica, afetiva e ética, mas que como forma de conhecimento.

Compreensão do propriamente humano, o que nos faculta como pessoas, a capacidade de amar, de sentir, de sofrer e assumir uma atitude responsável diante da dignidade da vida será um grande desafio nós e para as próximas gerações.

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Notas de autor

1 Doutor(a) em Filosofia pela Universidad Complutense de Madrid (UCM), Madrid – Espanha. Professor da Universidade Católica de Salvador (UCSAL), Salvador – BA, Brasil.


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