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A felicidade utilitarista de John Stuart Mill
Léo Spagnolo
Léo Spagnolo
A felicidade utilitarista de John Stuart Mill
John Stuart Mill's utility happiness
Griot: Revista de Filosofia, vol. 23, núm. 1, pp. 245-258, 2023
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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Resumo: Para John Stuart Mill prazer e felicidade não são a mesma coisa, pois uma determinada quantidade de prazer desfrutado não significa necessariamente que a pessoa alcance a felicidade na mesma proporção. A felicidade seria um apanhado geral de bem estar presente não apenas no indivíduo, mas em toda a sociedade na qual ele vive. Desta forma Mill compreende que não pode haver uma sociedade onde todos os indivíduos tenham uma quantidade ilimitada de prazeres e que sendo assim existiram pessoas sofrendo e infelizes dentro da sociedade. Contudo essa situação se alterna com o tempo entre os indivíduos, e seu ponto de vista valoriza o somatório do bem estar presente entre todas as pessoas, levando ao seu princípio da maior felicidade. Felicidade esta que não é igual a presente na escola das virtudes ou mesmo na deontológica, ela se diferencia por abordar outras questões como a razão para promover o bem, a implementação do princípio da prevenção de danos, da ajuda aos inocentes e a consideração de que os números efetivamente contam, ou seja, sua preocupação vai além do aspecto individual. Para tanto, a felicidade não pode estar desvinculada da moralidade, assim a análise das consequências das ações em pro da maior felicidade não deve contrapor os princípios morais da sociedade humana. Esses princípios morais servem como um guia para o julgamento das ações humanas, que por sua vez se são considerados corretos e bons, tendem ao caminho do prazer e consequentemente da felicidade do ponto de vista utilitarista de Mill.

Palavras-chave: Mill, Utilitarismo, Felicidade, Prazer, Moral.

Abstract: For John Stuart Mill pleasure and happiness are not the same thing, because a certain amount of pleasure enjoyed does not necessarily mean that a person achieves happiness in the same proportion. Happiness would be a general overview of well-being present not only in the individual, but in the entire society in which he lives. In this way Mill understands that there cannot be a society where all individuals have an unlimited amount of pleasures and that therefore there are suffering and unhappy people within the society. However, this situation changes over time among individuals, and his point of view values the sum of the well-being present among all people, leading to his principle of greater happiness. This happiness is not equal to that present in the school of virtues or even in deontology, it differs by addressing other issues such as the reason to promote the good, the implementation of the principle of preventing harm, helping the innocent and the consideration that the numbers do count, that is, your concern goes beyond the individual aspect. Therefore, happiness cannot be separated from morality, so the analysis of the consequences of actions in favor of greater happiness should not contradict the moral principles of human society. These moral principles serve as a guide for the judgment of human actions, which in turn, if considered correct and good, tend to the path of pleasure and consequently of happiness from Mill's utilitarian point of view.

Keywords: Mill, Utilitarianism, Happiness, Pleasure, Moral.

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A felicidade utilitarista de John Stuart Mill

John Stuart Mill's utility happiness

Léo Spagnolo1
Universidade de Caxias do Sul, Brasil
Griot: Revista de Filosofia, vol. 23, núm. 1, pp. 245-258, 2023
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepción: 24 Octubre 2022

Aprobación: 08 Febrero 2023

Introdução

A felicidade do ponto de vista utilitarista vai além da maximização do prazer e minimização da dor, ela depende também da harmonia social e do bem estar de todos os homens; as ações devem seguir a moralidade e o espírito ético. Tudo isso a fim de que todos os seres humanos consigam a felicidade através do convívio social, da valorização do ser e do equilíbrio de nossos desejos em nossas atitudes e comportamento, o que Mill expressa ao dizer: “Fazer aos outros o que gostaria que lhe fizessem e amar ao próximo como a si mesmo constituem a perfeição ideal da moralidade utilitarista.” (MILL, 2000, p. 202).

Tanto a felicidade quanto o utilitarismo podem parecer questões complexas para se trabalhar no dia a dia. Contudo Mill pensa que pode existir uma espécie de acordo entre os homens, uma universalidade, para que através dos princípios morais se encontrem os meios necessários para a coexistência destes conceitos no cotidiano da vida social. Isso viria a gerar uma harmonia entre as pessoas, que apesar de suas diferenças conseguiriam solucionar tais implicações a respeito da felicidade.

Nós pensamos utilidade, ou felicidade, como sendo algo muito complexo e indefinido, para ser alcançado, exceto por meio de vários fins secundários, sobre os quais pode haver, e muitas vezes há, acordo entre pessoas que diferem em seu padrão final; e sobre o qual prevalece uma unanimidade muito maior entre pessoas do que se pensa, do que se poderia supor da sua divergência fundamental sobre as grandes questões da metafísica moral. (MILL, 1969, p. 110, tradução nossa).

A relação entre o prazer e a felicidade

Mill relaciona o prazer e a felicidade sustentando que eles são tão necessários para o ser humano quanto o hidrogênio e o oxigênio são para a composição da água. Um acompanha o outro e um não existe sem o outro. Para Mill, a felicidade pode ser vista como um bem, bem este que se resume no somatório dos prazeres em sobreposição às situações de dor, sendo que esses prazeres devem ser tratados de forma igualitária para todos os indivíduos, ou seja, de maneira imparcial. Em contrapartida ele sabe que é impossível gerar prazeres ilimitados para toda a população, por isso essa questão é relativizada para que envolva a maior parte possível da população como sendo a maior felicidade agregada possível para a sociedade, assim como é defendido por Terence Irwin.

O comentário de Mill sobre a "soma" de bens individuais sugere que ele possa estar dependendo de alguma suposição sobre imparcialidade. Ele espera que concordemos que, se a felicidade de A, a felicidade de B, e assim por diante são todos os bens, temos as mesmas razões para promover a felicidade de cada um, já que é igualmente bom, e por isso temos razões para promover a felicidade agregada. Através de uma visão imparcial, não temos boas razões para promover a maior felicidade de uma pessoa do que a de outra.

Mas esta explicação de "felicidade geral" como "felicidade agregada" não se encaixa na explicação normal de Mill. Ele normalmente se refere à "maior felicidade", entendida como o superávit total e máximo de prazer sobre a dor. Não temos motivos para supor que isso coincida com a felicidade de todos. Se conseguíssemos um maior prazer total fazendo uns felizes e outros infelizes, o que conseguiríamos, fazendo com que todos fossem felizes, devemos escolher o total mais elevado. O fato (concordando que seja um) que a felicidade de cada pessoa é boa, não parece fazer o máximo de felicidade total boa. (IRWIN, 2009, p. 416-417, tradução nossa).

Mas se Mill afirma que a imparcialidade deve estar presente na hora de disponibilizar o prazer para uma pessoa e que não é possível gerar prazer para todas as pessoas, o que acontece com aqueles menos favorecidos de prazer e mais suscetíveis a dor? A questão que se apresenta é como este tipo de felicidade da maioria pode ser boa se ela não considera que todas as pessoas devem gozar de prazeres. O que acontece com aqueles que ficam com a dor, isto estaria gerando uma parcialidade contraditória em Mill, e sua felicidade geral não seria tão boa e tampouco imparcial dependendo das situações que se apresentem para cada pessoa no meio social. Talvez a solução esteja em rever a diferença existente entre prazer e felicidade, que apesar de coexistirem, não são a mesma coisa dependendo do ponto de vista.

Podemos entender Mill de forma errada, ainda assim, se levarmos a sério a diferença entre prazer e felicidade. Precisamos distinguir duas concepções de felicidade: (a) A concepção pessoal. Nós falamos da felicidade de A como a condição em que A é feliz como oposição a infeliz. Por isso, queremos dizer (qualquer que seja nossa concepção de felicidade) que as coisas estão indo bem no geral, em vez de mal para A. Neste sentido, a felicidade é uma coisa distinta do prazer; se A tiver um pouco de prazer e muita dor, A é infeliz ao invés de feliz no geral. Ao dizer que a felicidade é nosso objetivo final, pensamos em felicidade nesse sentido. (b) A concepção quantitativa. Falamos de felicidade como uma quantidade do qual podemos ter mais ou menos. Neste sentido, a felicidade é idêntica ao prazer, de modo que se A tiver um pouco de prazer, A tem um pouco de felicidade, por mais dores que possam sofrer com isso. Nesse sentido, A ter adquirido a felicidade (ou seja, alguma quantidade de prazer) não implica que A é feliz. Portanto, ser feliz, ao invés de felicidade, é nosso objetivo final. (IRWIN, 2009, p. 417, tradução nossa).

No primeiro momento Mill aborda uma visão pessoal, relacionando o prazer e a felicidade como sendo coisas diferentes, desta forma o prazer por si só não irá gerar felicidade e fazer a pessoa feliz. Neste ponto de vista o prazer não aparece como único responsável para a felicidade do indivíduo, mas sim como um complemento necessário para torná-lo feliz. Se for isso, pode-se dizer que o indivíduo é feliz quando sua vida está em paz e harmonia. Ao passo que na sua visão quantitativa de prazer, este se equipara à felicidade, se você sente prazer, você sente também a felicidade. Contudo isso não significa dizer que a pessoa é feliz, diz apenas que ela está desfrutando de prazeres, os quais são momentâneos. A questão é definir qual desses aspectos deve ser considerado para a felicidade, uma vida harmoniosa e de paz onde as coisas se encaminham bem ou uma vida de prazeres na qual a aprazibilidade se equipara à felicidade. Mill não descarta nenhuma das duas hipóteses, e sim as agrega. Sendo assim, as duas devem ser consideradas, pois as duas são coisas boas.

Mill fala de felicidade em ambos os sentidos. Sua concepção holística baseia-se na concepção pessoal, mas sua explicação oficial depende da concepção quantitativa. Para entender sua transição da bondade da felicidade de A para a bondade geral da felicidade, devemos considerar ambas as concepções. Até agora, vimos que a concepção pessoal não garante sua transição. Mas se ele pretende a concepção quantitativa, sua explicação diz que se o prazer de A é bom, o prazer de B é bom, etc., qualquer soma de prazeres também é bom. A propriedade dos prazeres por diferentes pessoas é irrelevante para decidir se os prazeres são bons. (IRWIN, 2009, p. 417, tradução nossa).

Como os prazeres são bons por si só, o oposto também pode ser considerado, ou seja, as dores não são boas, e sim más em si mesmas, essas qualidades lhe sendo intrínsecas. Portanto essas propriedades não são o problema para a concepção de qual delas é melhor e pode levar a felicidade, tendo em vista que todos os homens buscam o bem ou bom como fim em si mesmo. Dessa forma, sabendo o caminho que deve seguir, o homem consegue orientar seus desejos e prazeres em prol da felicidade. Sendo esse caminho carregado de preceitos morais relacionados à conduta humana, não surpreende que eles estejam presentes no agregado da vida social.

Não pode ser dada nenhuma razão do porque a felicidade geral é desejável, exceto que cada pessoa, na medida em que ela acredita que seja atingível, deseja sua própria felicidade. Isso, no entanto, sendo um fato, temos não apenas a prova final que se pode admitir, mas tudo o que é possível exigir sobre a bondade da felicidade: que para cada pessoa a felicidade é um bem, e a felicidade geral, portanto, é um bem para a soma de todas as pessoas. A felicidade tem em seu próprio título um dos fins da conduta e, consequentemente, um dos critérios da moralidade. (CRISP, 1997, p. 72, tradução nossa).

Essa análise moral da conduta humana presente nas ações que geram prazer não está relacionada de forma alguma com o egoísmo, pois o utilitarismo manifestadamente não se apresenta como uma teoria individualista, mas antes coletiva em sua essência. Pois as ações não podem ser analisadas isoladamente no universo humano, todas elas apresentam consequências que reverberam na natureza e na sociedade. Com isso se uma ação gera prazer para um único indivíduo e dor para os demais membros de sua sociedade, não se pode dizer que ela é um bem, pois seu impacto no universo não é positivo.

No entanto, quando o egoísta avança, implícita ou explicitamente, a proposição de que o seu prazer ou felicidade é bom não só para si, mas também do ponto de vista do universo – ao dizer que a natureza o concebeu para procurar a própria felicidade -, torna-se importante apontar que a sua felicidade não pode ser uma parte mais importante do bem, considerado universalmente, do que uma igual felicidade de qualquer outra pessoa. (SIDGWICK, 2013, p. 590).

A convergência das ações que geram o bem como consequência não pode ser tratada isolada e individualmente, de modo que as outras pessoas presentes na sociedade também fazem parte da equação da felicidade. E diante disso as relações de afeto, mesmo não se encaixando diretamente no critério de imparcialidade, ainda é o que faz dos seres humanos um único conglomerado para ser analisado com relação à sustentação da felicidade, que deve ser entendida como a do maior número de pessoas, ou maior felicidade. Esta está associada também às emoções e não fica restrita apenas à razão, uma vez que essas relações emocionais geram novas emoções que também geram prazer nos indivíduos que desfrutam delas, criando de certa forma uma corrente do bem, o que resulta em um aumento da condição da felicidade para a sociedade como um todo.

[...] a subsistência de afectos benevolentes entre os seres humanos é em si um meio importante para o fim utilitarista, dado que os nossos prazeres mais intensos e valorizados derivam desses afectos, pois a própria emoção é extremamente aprazível e transmite essa qualidade às actividades que suscita e sustenta, e a felicidade assim produzida aumenta constantemente através do eco simpático dos prazeres concedidos aos outros. (SIDGWICK, 2013, p. 606).

Existem assim vários aspectos que devem ser considerados na relação entre o prazer e a felicidade, e uma complexidade de fatores a serem considerados. Portanto, na felicidade se incluem a razão, que analisa as consequências das ações e regula os desejos, as emoções, que intensificam as sensações de aprazibilidade, a benevolência que se apresenta na empatia do convívio social, o coletivo que visa agregar e maximizar a felicidade para o maior número de pessoas. Ponto importante a ter presente é a necessidade de compreender que todas essas relações devem ser vistas como tendo flexibilidade em suas interações, pois esta é a forma como Mill apresenta e desenvolve seu pensamento. A partir do momento em que se compreende essa flexibilização de Mill em relação à Bentham pode-se tanto analisar como compreender a postura utilitarista diante das abordagens negativas de seus críticos. Apesar destas considerações não há como chegar à conclusão de que todas as pessoas podem estar felizes ao mesmo tempo. O que Mill mostra é como o prazer máximo pode ser alcançado pela sociedade, o qual resultará necessariamente de um somatório do prazer em relação à ausência de dor entre os indivíduos de uma determinada sociedade. É o que explica Irwin:

Sua conclusão diz que a felicidade (ou seja, o prazer) é boa e não importa quem esteja feliz ou quantos estejam felizes (ou seja, melhor no geral); Tudo o que importa é o prazer total alcançado. Para chegar a essa conclusão, ele confia em uma suposição questionável sobre "a felicidade geral" e "o agregado de pessoas". A felicidade geral não é a condição em que todos estão felizes (ou seja, bem, em vez de mal); e então Mill não afirma que a felicidade geral é boa para todas as pessoas que estão felizes. A felicidade geral é o excedente máximo de prazer; Mill afirma que isso é bom em relação às pessoas cujos prazeres e as dores estão sendo agregadas. Ele não diz, portanto, que a felicidade geral é boa para todas essas pessoas. Seu argumento assume que esse prazer, no entanto, é distribuído entre as pessoas, e que ele é o único bem. (IRWIN, 2009, p. 417, tradução nossa).

Porém as divergências que podem estar presentes nessa relação entre os prazeres e a felicidade faz com que a universalização dessa análise não seja possível. Dependendo das experiências e crenças das pessoas, existem divergências em relação aos diversos e diferentes aspectos discutidos, mas o importante é não deixar que isso chegue a um relativismo e permaneça dentro da lógica desenvolvida por Mill, sem esquecer da presença do empirismo defendido por ele e a importância por ele atribuída aos princípios secundários. Além disso, é necessário que abordemos a questão referente ao princípio da maior felicidade e que voltemos às relações morais envolvidas no utilitarismo e em sua concepção de felicidade.

O princípio da maior felicidade

Com a relação utilitarista entre prazer e felicidade estabelecida, resta tratar a questão dos princípios que regem a felicidade, ou mais especificamente o princípio da maior felicidade. Mas antes de definir e discorrer sobre o princípio da maior felicidade vamos abordar o conceito da felicidade sob a ótica das virtudes e dos deveres. O intuito é comparar as peculiaridades e diferenças existentes entre as teorias filosóficas mencionadas ao início deste trabalho.

A felicidade foi trabalhada por Aristóteles na formação da ética das virtudes desenvolvida em seus escritos. Mais especificamente, interessa-nos aqui o modo como ele trata da felicidade no Livro 10 da Ética a Nicômaco, sem esquecer que sua posição de defesa da felicidade como sendo o maior bem desejado pelos homens e como o fim último das ações humanas, está já presente no Livro 1º da mesma obra, onde Aristóteles (2004, p. 3) diz que “... o bem é aquilo a que todas as coisas tendem”.

Aristóteles aborda várias questões que, do seu ponto de vista, se relacionam com a felicidade, sendo ela conceituada como um bem desejado e como uma atividade virtuosa da alma que estiver conforme a virtude perfeita. A felicidade é tratada como o fim da natureza humana, o que traz à tona o que existe de melhor na natureza humana. Assim, quando nos propusermos a fazer o nosso melhor e nos orientarmos pela reta razão, a virtude que existe em nós aflorará, se tornando alinhada com a bondade e consequentemente nos direcionando para a felicidade.

Se a felicidade é atividade conforme à virtude, será razoável que ela esteja também em concordância com a mais alta virtude; e essa será a do que existe de melhor em nós. Quer seja a razão, quer alguma outra coisa esse elemento que julgamos ser o nosso dirigente e guia natural, tornando a seu cargo as coisas nobres e divinas, e quer seja ele mesmo divino, quer apenas o elemento mais divino que existe em nós, sua atividade conforme à virtude que lhe é própria será a perfeita felicidade. (ARISTÓTELES, 2004, p. 190).

Mesmo que a felicidade seja o objetivo final de todo o ser humano Aristóteles não a relaciona diretamente com o prazer. Para Aristóteles, a felicidade não está necessariamente ligada diretamente ao prazer, mas sim em sermos virtuosos e fazermos as coisas da melhor maneira possível. Quando estamos empenhados a desenvolver o nosso melhor, ou nossas virtudes, estamos nos direcionando para a felicidade, o que não quer dizer que para isso devamos buscar unicamente uma satisfação prazerosa seja ela do corpo ou do intelecto. Também não existe o conceito de maior felicidade para o maior número de pessoas, da forma como foi defendido por Mill; a virtude é trabalhada mais do ponto de vista individualista do que coletivo; é o desenvolvimento da virtude do indivíduo que o guiará para a felicidade.

Em contrapartida, para a ética do dever a felicidade não se apresenta da mesma forma. A felicidade para Kant, tal como é caracterizada na Fundamentação da Metafísica dos Costumes possui outro viés. A busca da felicidade é tratada como um dever para o homem, pois para ele os homens felizes conseguem se manter mais facilmente no caminho correto. Os homens que não se consideram felizes, diante de sua condição de descontentamento podem mais facilmente se desviar do caminho dos deveres considerados corretos por Kant, transgredindo assim suas leis e preceitos a priori.

Assegurar cada qual a sua própria felicidade é um dever (pelo menos indirectamente); pois a ausência de contentamento // com o seu próprio estado num torvelinho de muitos cuidados e no meio de necessidades insatisfeitas poderia facilmente tornar-se numa grande tentação para a transgressão dos deveres. Mas, também sem considerar aqui o dever, todos os homens têm já por si mesmos a mais forte e íntima inclinação para a felicidade, porque é exatamente nesta ideia que se reúnem numa soma todas as inclinações. (KANT, 2009, p. 29-30).

A característica do padrão de felicidade estabelecido por Kant se baseia na intenção da ação humana, enquanto a visão de felicidade proposta por Aristóteles está focada em uma atividade virtuosa e divina, que tende a guiar o ser humano ao bem e à consequente felicidade. Esses aspectos não são e nem podem ser considerados errados. Contudo, a ética utilitarista, muito diferentemente, foca seus esforços em analisar as consequências das ações humanas, e como essas consequências podem guiar o ser humano a maximizar seu prazer e evitar ou minimizar sua dor. Ela não observa apenas um ser humano de forma isolada, como poderia pensar um egoísta, mas sim de forma coletiva e social.

Assim, Kant trabalha o dever do indivíduo, de modo que o cumprimento de sua obrigação lhe permita ser feliz, contribuindo assim para que ele não busque meios torpes para se sentir feliz. O prazer também não se apresenta diretamente como um fator ligado à felicidade, porém o homem deve aceitá-lo como uma inclinação para sua própria felicidade. Aqui também não é possível observar a preocupação com a felicidade do maior número de pessoas, mas sim a felicidade do indivíduo, sendo esta uma aspiração interna, que não se estende para outras pessoas. A inclinação para buscar a felicidade pertence e parte do próprio indivíduo.

Estando a ética aristotélica preocupada com a virtude das ações do indivíduo e a ética kantiana com a felicidade como uma aspiração do indivíduo, surge a ética utilitarista com o interesse em analisar mais amplamente o contexto das ações dos indivíduos humanos. Contexto este que não visa só a satisfação de um único ser, mas sim de todo um conjunto de relações humanas presentes na busca da felicidade. Busca essa que tem como alicerce principal o prazer, mas não um prazer unicamente hedonista, um prazer de certa forma responsável e que é analisado em um contexto geral de sociedade.

Portanto o indivíduo deve pensar em desfrutar dos prazeres tendo em mente as consequências de suas ações, para que elas não interfiram na liberdade alheia e que esta não venha a trazer dores futuras, seja para ele próprio seja para as outras pessoas. Pode-se ter em mente também uma questão de sustentabilidade ou até mesmo de altruísmo nas ações prazerosas a serem praticadas em conformidade com a ética utilitarista. Mas é claro que não existe a utopia de agradar ou satisfazer todos ao mesmo tempo, o que deve ser considerado é o somatório dos prazeres, respeitando os direitos e individualidades de cada um para a felicidade geral.

Tudo o que lhe diz respeito, é o total de prazer e dor. E assim, se pudéssemos aumentar o prazer de uma pessoa prejudicando outras dez pessoas, nós seríamos obrigados a fazê-lo, se isso aumentasse o prazer total. De acordo com Mill "a maior felicidade do maior número" não implica que devemos buscar alcançar o maior número possível de seres conscientes felizes. Devemos buscar a maior felicidade total possível, somando o maior número de seres conscientes, quer a maioria deles seja feliz ou infeliz. (IRWIN, 2009, p. 421, tradução nossa).

Mesmo que a maior felicidade possa ser alcançada prejudicando outros, isso não seria moral. A maior felicidade deve ser buscada sem que sejam ultrapassados os limites da moralidade. O utilitarismo não prega uma busca desenfreada pelo maior prazer ou simplesmente pelo prazer da maioria, ele considera sempre certos princípios para que essa maior felicidade possa ser desfrutada. Diante disso os preceitos morais não podem ser desconsiderados para a felicidade utilitarista ou qualquer outra doutrina filosófica, ou seja, a felicidade tanto individual como coletiva não deve fechar os olhos para a moralidade, caso contrário não estaríamos falando de uma felicidade verdadeira, correta ou justa.

[...] pois esse padrão não é a maior felicidade do próprio agente, mas o maior total de felicidade em termos globais, e, embora seja possível duvidar que um carácter nobre seja sempre mais feliz devido à sua nobreza, não pode haver dúvida que ele torna as outras pessoas mais felizes e que o mundo em geral ganha imensamente com ele. (MILL, 2005, p. 52).

Para Mulgan a busca da felicidade para o maior número de pessoas exige um equilíbrio reflexivo, ou seja, devemos recorrer intuitivamente a quatro princípios para chegarmos à maximização do prazer e consequentemente da felicidade. Dentre eles estão: a razão para promover o bem, o princípio da prevenção de danos, o princípio da ajuda aos inocentes e o princípio de que os números efetivamente contam.

1) A razão para promover o bem – O fato de que uma ação promoverá a felicidade humana oferece-nos uma razão para executá-la. Se duas ações irão cada uma promover a felicidade humana, então temos razões para realizar qualquer uma delas que produza a maior felicidade. Se escolhermos ações exclusivamente com base na razão para promover o bem, vamos, portanto, sempre optar pela ação que maximize a felicidade.

2) O princípio da prevenção de danos – Se pudermos evitar que algo ruim aconteça, sem sacrificar nada de importância moral comparável, devemos fazê-lo.

3) O princípio da ajuda aos inocentes – Se formos capazes de prestar assistência a uma pessoa inocente em grande necessidade, com um custo insignificante para nós mesmos, então devemos fazê-lo.

4) Os números efetivamente contam – Se você escolher entre as vidas de um grupo de pessoas e as vidas de outro grupo, você deve escolher o grupo maior. (MULGAN, 2012, p. 81-82).

Desta forma esses quatro princípios seguem para o caminho da maior felicidade na visão utilitarista. A primeira delas é a mais obvia e que segue o princípio principal do utilitarismo, ou seja, se uma ação promove o bem devemos realizá-la para a promoção da felicidade, o que não está em desacordo com nenhum utilitarista. Na segunda temos presente a questão da evitação ou minimização da dor, mas não a qualquer preço, para tanto devemos estar cientes das possíveis consequências destes atos e de suas repercussões morais, as quais não devem ser deixadas de lado. Em relação a prestar ajuda aos inocentes, isso vai ao encontro da necessidade de criar um ambiente mais feliz de maneira geral. Se pudermos ajudar outras pessoas a desfrutarem de prazeres e serem felizes não há motivos para não fazer essa ação, uma vez que se vivermos em uma sociedade com muitas pessoas felizes mais fácil será para nós sermos felizes também. Por último temos a questão numérica, a qual foi defendida desde o princípio por Jeremy Bentham, o ponto é simples: escolher sempre a ação que propicie o prazer para o maior número de pessoas.

A coesão destes princípios está em sintonia com o que é definido como o princípio da maior felicidade. Isso porque visa à realização de ações que têm como objetivo o prazer e a felicidade juntamente com a mitigação ou minimização da dor. Considera também a felicidade das outras pessoas as quais podemos ajudar para promover um ambiente mais feliz e como consequência aumentar o número de pessoas felizes. Da mesma forma que podemos colaborar com a felicidade dos outros estamos sendo beneficiados por esta corrente do bem, pois se existe uma felicidade geral também somos retribuídos de alguma forma por ela.

Pois, por um lado, o utilitarismo prescreve que prestemos serviços sempre que fazê-lo seja conducente à felicidade geral, o que pode ocorrer muitas vezes sem que tenhamos em conta o ganho pessoal que resultaria da sua retribuição; e, por outro lado, dado que podemos inferir do egoísmo real do homem médio que esses serviços não seriam prestados adequadamente sem a expectativa de retribuição, também é conducente à felicidade geral que os homens reconheçam uma obrigação moral de os retribuir. (SIDGWICK, 2013, p. 613).

A moral utilitarista e a felicidade

Assim como outras doutrinas normativas, o utilitarismo também possui seus preceitos morais sobre a orientação da ação humana dentro da sociedade. Como uma ética teleológica, ele avalia a resultado final das ações. Premissas essas que surgem de experiências empíricas, as quais servem como fundamento para a determinação da conduta moral do ser humano na sociedade.

Os comportamentos das pessoas em uma sociedade são regidos por regras morais, porém as ações podem ser não só morais, como amorais e imorais. No utilitarismo todas as ações que apresentem como consequência o prazer ou felicidade para o maior número de pessoas são consideradas morais, sem considerar outras questões como o dever e as virtudes envolvidas na respectiva ação.

O modelo utilitarista de fundamentação da moral é um modelo teleológico, isto é, toma como ponto de partida para determinar o que é o “bom” a finalidade (télos) da vida humana. As teorias teleológicas possuem um apelo intuitivo em função de incorporar a ideia de racionalidade que corresponde à ideia de maximização de algo e, em questões morais, o que deve ser maximizado é o bem, sendo que isto está relacionado a uma ideia de ética substancial que determina que uma teoria moral só pode desenvolver-se a partir de uma concepção específica do bem, ou até, de uma hierarquia de bens. (SILVEIRA, 2011, p. 10).

O conceito de moralidade utilitarista é claro e simples de compreender. Um comportamento imoral do ponto de vista utilitarista seria aquele que gera o contrário do prazer, ou seja, implica em dor, contrapondo o comportamento moral. Já o comportamento amoral difere dos outros dois, pois não pode ser comparado com o imoral e tampouco com o moral, neste tipo de comportamento a pessoa que realiza a ação não possui o conhecimento sobre as consequências de sua ação, portanto falta-lhe conhecimento para discernir sobre os resultados de seus atos.

Essa forma de moralidade segue contra os princípios morais de outras éticas normativas, principalmente os deontológicos defendidos por Kant. No modelo deontológico as ações são consideradas morais à medida que são realizadas por dever ou de acordo com a lei. O que deixa a vontade do agente em segundo plano, assim como sua liberdade de agir sem medo de sansões legais. O dever perante as leis é o que rege a conduta do indivíduo e não necessariamente o bem para a maioria da população.

O respeito pela lei deve prevalecer sobre qualquer consideração relativa ao bem-estar ou à felicidade do agente moral ou das outras pessoas. A vontade ocupa então o lugar que o “desejo razoável” ocupava nas éticas de inspiração aristotélica. Com efeito, o desejo compreende-se por sua “finalidade” ou seu télos, enquanto a vontade é determinada por sua relação com o dever ou a lei. Não podemos definir o bem como a satisfação de nossos desejos, pois, como os objetos da faculdade de desejar são numerosos e variam segundo os indivíduos, é impossível dar uma definição clara e unívoca do bem. Além disso, a escolha de um princípio material nos obriga a permanecer no nível das motivações empíricas. (BERTEN, 2003, p. 407).

Mas o universo das teorias da moralidade não se restringe à ética utilitarista e do dever, existem também as questões morais envolvidas na ética das virtudes. Na ética das virtudes Aristóteles define virtude como aretê, fazer com excelência, ou seja, significa agir conforme o melhor e o mais perfeito, pois o homem virtuoso é aquele que age de acordo a reta razão. A virtude de Aristóteles se divide em intelectual e moral, sendo a intelectual aquela adquirida graças aos resultados da aprendizagem e da educação, e a virtude moral é o resultado do hábito que nos torna capazes de praticar atos justos, portanto ela não é gerada em nós por natureza. Sendo assim a moral relacionada às virtudes adota uma abordagem diferente tanto da ética utilitarista quanto da do dever, esses conceitos e diferenças estão presentes na Ética a Nicômaco de Aristóteles.

Sendo, pois, de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino — por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, donde ter-se formado o seu nome por uma pequena modificação da palavra (hábito). Por tudo isso, evidencia-se também que nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode formar um hábito contrário à sua natureza. (ARISTÓTELES, 2004, p. 22).

Abrangendo a moral das três principais escolas filosóficas normativas, pode-se perceber suas diferenças em relação à conceituação da moralidade. No utilitarismo a moral está diretamente relacionada com o bem que a ação proporciona. Na moral do dever prevalece a razão e o cumprimento das leis. E na moral das virtudes, ela é vista como adquirida com o hábito de praticar boas ações ao longo de nossa vida.

Não falta quem considere a moral utilitarista falha ou incompleta, e a criticam por sua objetividade, quantificação dos prazeres e consequencialismo nas ações humanas, falta de compromisso com o dever, sacrifício em prol da maioria e o empirismo para o julgamento das ações. Principalmente os kantianos criticam a moral utilitarista por ela julgar possível que algumas ações universalmente consideradas erradas possam ser consideradas plausíveis em determinadas circunstâncias, como descumprir com as promessas ou qualquer outra regra moral comum a sociedade humana.

Assim, por exemplo, devemos ver que a regra moral que nos diz que as promessas devem ser cumpridas, condensa um cálculo anonimamente feito pelas sociedades humanas, com relação aos malefícios que a falsidade e a consequente falta de confiança trazem para a vida em sociedade. E o mesmo poder-se-ia dizer de grande parte das outras regras morais comuns. (TORRES, 2013).

Mesmo que não cumprir uma promessa seja considerado pela sociedade uma atitude imoral, para o utilitarismo a questão a ser considerada são as consequências dessa ação. Portanto, se quebrar a promessa trouxer um benefício para um número maior de pessoas do que cumpri-la, então esta ação condenável será moralmente aceita, desde que não se torne uma regra. Abrindo mão da consciência individual e se sacrificando para o bem de mais pessoas. A crítica que se faz então ao utilitarismo é bem expressa por Silveira:

Do ponto de vista normativo, a principal fraqueza do modelo utilitarista está em não considerar a inviolabilidade normativa da pessoa, o que traz como consequência o princípio do sacrifício. Por este princípio, é possível que uma ação seja considerada correta se ela traz o melhor resultado para o maior número de pessoas, tanto como regra da maioria, como do ponto de vista imparcial. (SILVEIRA, 2011, p. 16-17).

O ponto crucial para rebater essa objeção ao sacrifício de um valor, como a quebra de uma promessa, é que constantemente todos fazem sacrifícios diários para o bem da sociedade. Pois, uma vez o homem sendo considerado um ser sociável, ele precisa das outras pessoas para que possa viver plenamente, e o sacrifício de suas vontades e desejos, assim como, em certas circunstâncias, a suspensão de certas regras morais em favor de um valor moral superior, pode vir a colaborar com a maior felicidade desse mesmo convívio social. Não é possível também deixar de lado os preceitos jurídicos em Bentham em relação à criação e desenvolvimento da ética utilitarista e sua busca pela equidade perante a aplicação da justiça.

Os princípios são construídos a partir da teoria da justiça como equidade, e servem para mostrar quais juízos morais podem ser tomados como corretos (juízos morais ponderados – considered judgments). Por sua vez, estes juízos morais ponderados (como os que afirmam que a tolerância religiosa é boa e a escravidão é má) servem de referência para a formulação da teoria. Nota-se que este modelo é inferencial, pois garante a correção dos juízos e princípios morais a partir de uma teoria moral que se apresenta como melhor candidata para cumprir a sua função de garantia da estabilidade (stability) social a partir da ideia de uma sociedade como um sistema equitativo de cooperação. (SILVEIRA, 2011, p. 18).

A base jurídica da equidade presente no utilitarismo completa diversos preceitos morais apontados pelos críticos do utilitarismo. Começando pelo sacrifício individual para o bem da sociedade, a equidade que visa avaliar as ações humanas considerando suas consequências e o empirismo para julgar morais ou não as consequências das ações.

A liberdade de escolha em razão da utilidade talvez possa ser o princípio moral mais patente de toda a doutrina utilitarista. Essa liberdade faz com que o ser humano sinta-se livre para buscar as melhores ações possíveis aptas a levar a maioria dos homens à felicidade.

1. Uma acção particular é certa se estiver de acordo com as regras morais correctas; é errada se transgredir alguma das regras morais correctas.

2. Uma regra moral é correcta em virtude de a sua aceitação promover o fim último - a felicidade geral. (MILL, 2005, p. 20).

Portanto, a felicidade geral é que norteia a moral utilitarista, a qual implica em promover o prazer para a comunidade como um todo. Caso as ações não tragam o prazer, e promovam a dor, elas estarão erradas e serão consideradas imorais. O principal ponto da moralidade no utilitarismo é compreender a utilidade das ações humanas para se chegar à felicidade geral.

A moralidade das ações depende das consequências que elas tendem a produzir, é a doutrina das pessoas racionais entre todas as escolas; o bem ou o mal dessas consequências é medido unicamente através do prazer ou dor, é o que é peculiar a toda a doutrina da escola utilitarista. (MILL, 1969, p. 111, tradução nossa).

Porém, existem divergências sobre essa moralidade dentro da própria escola utilitarista. Isso pode ser observado na relação entre Bentham e Mill. Para Bentham a moralidade está restrita exclusivamente ao prazer e a dor, enquanto para Mill a moralidade é muito mais do que isso. Para ele existem outras coisas ou valores que importam na vida humana, tanto que ele reconhece em seus estudos os princípios secundários além dos primários estabelecidos pelo utilitarismo clássico. Isso tende a destacar ainda mais a importância do trabalho desenvolvido por Mill para o utilitarismo e para a humanidade, assim como já foi visto em capítulos anteriores e está sendo reforçado agora.

Bentham espera que a pessoa moralmente iluminada atribua valor somente ao prazer e à dor e para a maximização universal do prazer. Mill sugere que isso não é tudo o que importa vida humana, e que a moral deve reconhecer outros elementos de valor. (IRWIN, 2009, p. 410, tradução nossa).

Desta forma John Stuart Mill ressalta que as ações humanas devem ser analisadas de três formas diferentes, e como o utilitarismo tem o objetivo de analisar as ações humanas isso se torna crucial para o entendimento de sua teoria da moralidade. Dentre os três aspectos a serem considerados - o moral, o estético e o simpático - o que mais nos interessa é o primeiro deles. Pois o aspecto moral é o que está presente em nossa capacidade de analisar as consequências de nossas ações, tendo em vista que tal aspecto pertence à razão e à consciência do ser humano. Desta forma, com a devida análise podemos avaliar uma ação como certa ou errada, boa ou má, conforme seja prazerosa ou dolorosa, isso dentro das reais expectativas que podemos observar para cada ação mediante o discernimento de nossa razão.

Toda ação humana tem três aspectos: seu aspecto moral, ou do certo e errado; seu aspecto estético, ou da beleza; seu aspecto simpático, ou da amabilidade. O primeiro aborda a nossa razão e consciência; o segundo nossa imaginação; o terceiro o nosso sentimento humano. De acordo com o primeiro, aprovamos ou desaprovamos; De acordo com o segundo, admiramos ou desprezamos; de acordo com o terceiro, nós adoramos, sentimos piedade ou não gostamos. A moralidade de uma ação depende de suas consequências previsíveis; a beleza e a amabilidade, ou o inverso, dependem das qualidades que são evidenciadas. Assim, uma mentira está errada, porque seu efeito é enganar, e porque tende a destruir a confiança do homem no homem; também é mal, porque é covarde - porque procede não ousarmos enfrentar as consequências de dizer a verdade - ou, na melhor das hipóteses, é evidenciada a falta desse poder para compelir os nossos fins por meios diretos, o que é concebido como pertencente a cada pessoa que não é deficiente em energia ou compreensão. (MILL, 1969, p. 112, tradução nossa).

Contudo dificilmente conseguimos avaliar o primeiro aspecto isoladamente dos outros dois, pois temos nossas preferências e experiências, e elas acabam por fazer parte da equação da análise das ações, queiramos ou não isso. Quanto ao segundo aspecto, temos tendência a dar preferência ao que admiramos e achamos belo, o que já pode estar ligado ao terceiro, relacionando isso ao sentimento. Na verdade cada um dos três aspectos é complementar ao outro, não há como separá-los nem trabalhá-los de maneira isolada, pois todos eles estão presentes no cerne do ser humano, e como humanos somos suscetíveis a nossos sentimentos juntamente com nossa racionalidade e experiências.

Para Jeremy Bentham o mais importante era o primeiro aspecto da ação humana, portanto ele deixou de lado os outros dois, pois para ele questões sentimentais não estavam associadas às questões morais. Mas para John Stuart Mill isso era diferente, Mill compreendia o contexto geral e complexo do ser humano, e sabia que os três aspectos estavam presentes e deveriam fazer parte da moralidade humana. Sendo assim ele não as desprezou em seus estudos, ao contrário, usou isso para tornar o utilitarismo mais humano, sem se deixar levar apenas pelo seu sentimentalismo.

O sentimentalismo consiste em definir os dois últimos dos três, acima do primeiro; o erro dos moralistas em geral, e de Bentham, é desprezar os dois últimos completamente. Este é o caso que ocorreu com Bentham: ele escreveu e sentiu como se o padrão moral não só devesse ser primordial (o que deveria), mas como se ele estivesse sozinho; como se devesse ser o único mestre de todas as nossas ações, e mesmo de todos os nossos sentimentos; como para admirar ou gostar, ou desprezar ou não gostar de uma pessoa por qualquer ação que não faça um bem e nem prejudique, ou que não faça um bem ou um dano proporcional ao sentimento presente, eram uma injustiça e um preconceito. (MILL, 1969, p. 113, tradução nossa).

Contudo essa forma de análise bentamita, que eleva a razão acima de todos os demais aspectos da condição humana, teve um papel importante sobre a legislação. Com a análise racional de Bentham foi possível aplicar os conceitos utilitaristas às leis, e como consequência disso expô-las a uma provação moral, comprovando sua eficácia através da análise utilitarista de Bentham. Desta forma, porém, se estaria moralizando as leis com base em julgamentos e análises incompletas ou irreais, tendo em vista o número infindável de possibilidades que podem ser geradas em virtude desse fato.

Podemos estar inclinados a aceitar o argumento de Mill se pensarmos sobre a real influência do utilitarismo sobre a legislação - o tipo de influência pela qual Mill elogia Bentham. Se, por exemplo, aplicarmos um teste utilitarista às leis, podemos acreditar em algumas suposições morais amplamente compartilhadas sobre o que promove os interesses das pessoas, e podemos mostrar que uma determinada lei os promove ou não. Mas se nos for pedido para avaliar a utilidade de uma ação política simplesmente por suas consequências em relação ao prazer e dor, podemos ficar confusos. Como podemos saber quais serão essas consequências? E por que devemos nos guiar pelos nossos juízos hedônicos ao invés de nossos outros julgamentos morais? (IRWIN, 2009, p. 412, tradução nossa).

O fato das consequências das ações muitas vezes tomarem um viés desconhecido é algo com que todos temos que conviver, afinal como é possível se avaliar e analisar uma infinidade de possibilidades e seus desencadeamentos dependendo das diferentes situações que se apresentem? Portanto o utilitarismo se preocupa com a análise das consequências que estão ao nosso alcance ou que possam vir a ser evidenciadas em situações normais. Como já foi comentado anteriormente, não adianta discutir sobre ações e fatos que não estão ao nosso alcance.

Mill não estaria contente mesmo com uma base intuitiva do utilitarismo. Deve haver um primeiro princípio na moralidade, ele pensa, e não pode ser auto-evidente, pois isso implicaria em alguma faculdade moral inata que nós não temos. Mas isso não quer dizer que o utilitarismo pode ser dedutivamente provado. De acordo com o utilitarismo milliano, o único fim bom ou último é a felicidade, e finalidades finais não podem ser provadas. (CRISP, 1997, p. 70, tradução nossa).

Mesmo que o intuicionismo esteja presente no utilitarismo não podemos deixar de lado os princípios morais existentes na sociedade. Esses princípios morais servem como um guia para o julgamento das ações humanas, que por sua vez se são considerados corretos e bons, tendem ao caminho do prazer e consequentemente da felicidade. Pois o objetivo último e final de todas as ações humanas visa à felicidade como um todo.

Considerações finais

O prazer não pode ser visto como algo isolado para a busca da felicidade, ele é complementado pelas experiências, emoções e moralidade das pessoas. Mesmo que Mill tenha feito o possível para defender e refinar o utilitarismo, seus críticos sempre estavam a espreita para questionar seus escritos, principalmente em questões relacionadas ao sacrifício para a felicidade da maioria, ou ao fato de considerarem que ele se desviou do utilitarismo e criou uma nova filosofia, entre outros pontos. Mas Mill sempre tinha uma saída para tais questionamentos e não ficou acomodado ou preso a dogmatismos como fez Bentham. Talvez os críticos estivessem presos a outros preceitos ou não compreendiam as reais intenções de Mill e sua forma de ver o mundo.

Mill atribuiu a felicidade um caráter que vai muito além da perspectiva animalesca da busca pelo prazer. Ele percebeu que o prazer pode sim levar à felicidade, desde que o ambiente ao seu redor esteja em harmonia, que as pessoas que o cercam também estejam de certa forma, felizes e que a moralidade seja seguida e mantida. A felicidade não é algo determinado, a qual podemos dizer “a partir desse momento atingi a felicidade”, ela é algo que deve ser construída e alicerçada em coisas que vão além dos simples prazeres, claro que eles também fazem parte dela, mas o que a complementa são as pessoas e seu estado de espírito.

A felicidade não é algo em que devamos ficar pensando o tempo todo, ela simplesmente acontece quando seguimos nossos princípios, gozamos de nossos prazeres e compartilhamos do convívio de outras pessoas. O indivíduo sozinho dificilmente consegue ser feliz, pois nós como seres sociáveis temos uma relação de interdependência um com o outro. A ética utilitarista não ficará nos dizendo o que fazer a todo instante, ela serve mais como um guia para que possamos analisar as consequências de situações cruciais em nossas vidas, onde eventuais dilemas morais possam estar presentes. Sendo assim não se prenda a paradigmas, leis ou regras, viva a sua vida e aproveite os prazeres que ela lhe proporciona, aproveite o convívio com as pessoas amadas, não se apegue a bens materiais. E sempre que um dilema moral surgir em sua vida pare e analise as consequências de seus atos, assim como prega o utilitarismo, diante disso você poderá saber se está ou não no caminho certo, o caminho da maior felicidade.

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: M. Claret, 2004.

BERTEN, André. Deontologismo. In: CANTO-SPERBER, Monique. Dicionário de ética e filosofia moral. São Leopoldo: Unisinos, 2003.

CRISP, Roger. Routledge philosophy guidebook to Mill on utilitarianism. London and New York: Routledge, 1997.

IRWIN, Terrence. The Development of Ethics. A Historical and Critical Study. Volume III: From Kant to Rawls. New York: Oxford University Press Inc., 2009.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2009, BA12 – BA13.

MILL, John Stuart. Essays on Ethics, Religion and Society. Vol. 10. Toronto: Universidade de Toronto, 1969.

MILL, John Stuart. A Liberdade; Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

MILL, John Stuart. Utilitarismo. Porto: Porto Editora, 2005.

MULGAN, Tim. Utilitarismo. Petrópolis: Vozes, 2012.

SIDGWICK, Henry. Os Métodos da Ética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013.

SILVEIRA, Denis Coitinho. Uma Crítica ao Utilitarismo: O Problema do Fundacionalismo e do Princípio do Sacrifício. In: PIZZI, Jovino; GHIGGI, Gomercindo (Org.). Pensamento-crítico III: utilitarismo e responsabilidade. Pelotas, RS: UFPel, 2011.

TORRES, João Carlos Brum. Sobre o Utilitarismo como teoria filosófica da moralidade. Revista UCS, Ano 1, Número 6, 2013. Disponível em: https://www.ucs.br/site/revista-ucs/revista-ucs-6a-edicao/academia/. Acessado em 20 de setembro de 2022.

Material suplementario
Notas
Notas de autor
1 Doutorando(a) em Filosofia na Universidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul – RS, Brasil. Bolsista PROSUC/CAPES Modalidade II
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