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Recepción: 26 Septiembre 2022
Aprobación: 31 Enero 2023
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v23i1.313
Resumo: Trata-se de compreender a noção de intelectual clássico no pensamento de Sartre, mais especificamente a partir das conferências Plaidoyer pour les intellectuels. Veremos que o percurso de transformação do técnico do saber prático em intelectual se inicia com o desvelamento da contradição da sociedade e de seu próprio papel, na descoberta da falsidade do humanismo burguês, abstrato e excludente. Contra a ideologia que o selecionou e o educou, o intelectual coloca a necessidade de pensar a partir do concreto e das particularidades, o que não implica um relativismo subjetivista. Ao abandonar o universal abstrato, o intelectual propõe, em seu lugar, uma universalização singular, assumindo o paradoxo proposto por Kierkegaard e atualizado por Sartre. Neste sentido, aproximar as conferências de 1965 sobre o intelectual com a conferência sobre Kierkegaard, ministrada no ano seguinte, é fundamental para melhor compreendermos o papel do intelectual clássico e como, no questionamento teórico do falso humanismo da classe dominante e no questionamento prático de suas atitudes cotidianas, ele mantém a ambiguidade entre universal e singular, objetividade e subjetividade. Assim, podemos por fim compreender como o humanismo existencialista se coloca.
Palavras-chave: Sartre, Intelectual, Humanismo.
Abstract: The aim of this article is to understand the notion of classical intellectual in Sartre's thought, more specifically in the conferences Plaidoyer pour les intellectuels. We will see that the path of transformation of the technician of practical knowledge to intellectual begins with the unveiling of the contradiction of the society and of its own role, in the discovery of the falsity of the abstract and excluding bourgeois humanism. Against the ideology that have selected and educated him, the intellectual places the need to think from the concrete and the particularities, which does not imply a subjectivist relativism. By abandoning the abstract universal, the intellectual proposes, instead, a singular universalization, assuming the paradox proposed by Kierkegaard and updated by Sartre. In this sense, to approach the 1965 conferences about the intellectual to the conference about Kierkegaard, given the following year, is fundamental to better understand the role of the classical intellectual. In the theoretical questioning of the false humanism of the ruling class and in the practical questioning of its daily attitudes, he maintains the ambiguity between universal and singular, objectivity and subjectivity. Thus, we can finally understand how existentialist humanism stands.
Keywords: Sartre, Intellectual, Humanism.
Introdução
Em A náusea, o personagem principal do romance de Sartre, Roquentin, ridiculariza o humanismo de Autodidata, personagem que pretende alcançar o Saber Universal lendo todos os livros, em ordem alfabética, da biblioteca da cidade. Em um dos poucos diálogos do romance, o Autodidata afirma não concordar com o pessimismo niilista nem com o otimismo voluntário: "Acho que não temos que ir buscar tão longe o sentido de nossa vida [...]. Há uma finalidade, senhor, há uma finalidade... há os homens" (SARTRE, 2011, p. 152).
Essa afirmação faz Roquentin se lembrar de outros humanistas e apontar uma contradição entre ser humanista e estar rodeado mais de livros do que de seres humanos. Mas o Autodidata continua a defender o humanismo e relata o momento em que se assumiu como tal: prisioneiro de guerra em 1917, descobre a comunhão entre os humanos: "Antes da guerra eu estava só e não me dava conta disso [...]. Veio a guerra e me engajei sem saber por quê [...]. Não creio em Deus; sua existência é desmentida pela ciência. Mas no campo de concentração aprendi a acreditar nos homens" (SARTRE, 2011, p. 153). Esses seres humanos, que com coragem suportaram a pior das condições, fizeram o Autodidata amar a Humanidade.
Enquanto este descreve a sensação de completude que a comunhão com os outros humanos lhe trazia, a ponto de ir a um enterro de quem não conhecia, apenas para estar entre humanos, Roquentin sente raiva, intensificada com a confissão do Autodidata de ter se inscrito no partido socialista S.F.I.O.
Meus amigos são todos os homens. Quando vou para o escritório pela manhã, há diante de mim, atrás de mim, outros homens que estão indo para o trabalho. Vejo-os; se me atrevesse, lhes sorriria, penso que sou socialista, que todos eles são a finalidade de minha vida, de meus esforços, e que ainda não sabem disso. É uma festa para mim, senhor (SARTRE, 2011, p. 156).
Para si mesmo, Roquentin passa a enumerar, no diário em que relata o diálogo, os tipos diversos de humanistas: o radical (amigo de funcionários), o 'de esquerda' (que se volta para os humildes), o católico (humanismo dos anjos), o filósofo humanista (irmão mais velho que vela pelos irmãos mais novos) e conclui que: "todos eles se odeiam entre si: como indivíduos naturalmente - não como homens" (SARTRE, 2011, 157). Esses humanistas, que o Autodidata coloca em um mesmo saco sem perceber que são gatos que se engalfinham ali dentro, tem em comum o fato de odiarem aqueles jovens, aquelas mulheres. Os jovens que flertavam na mesa ao lado, diz Roquentin, agora em voz alta: "são apenas símbolos para o senhor. Não é absolutamente com eles que está se comovendo; comove-se com a Juventude do Homem, com o Amor do Homem e da Mulher, com a Voz Humana" (SARTRE, 2011, p. 161).
O personagem principal do romance denuncia a hipocrisia desses humanistas que, em nome do Universal Abstrato, não conhecem os seres humanos concretos, amando neles o que é desprezível, como o velho salafrário, que é amado porque simboliza o Homem Maduro. Sem ouvir a comédia dos jovens que adiavam a relação que ambos sabiam aceitar, o Autodidata os ama por serem A Juventude, O Amor. E é esse sentimento abstrato que provoca o surgimento da Náusea em Roquentin. Contra o humanismo idealista, este reclama: "não quero que me integrem, nem que meu belo sangue vermelho vá engordar esse animal linfático: não cometerei a tolice de me declarar 'anti-humanista'. Eu não sou humanista, eis tudo" (SARTRE, 201, p. 159). Ser anti-humanista seria ainda dar margem para que os humanistas o integrassem na natureza humana, e, portanto, fazer parte da Comunhão. É preciso ser mais radical e afirmar que não se é humanista, nada mais que isso.
Personagem principal, Roquentin costuma ser associado a Sartre, o autor do romance, como se todas suas falas e ações fossem o exemplo positivo de sua filosofia. É por isso que algumas leituras apontam, por exemplo, que Sartre pensa na arte como salvação e fuga da realidade, dado que o personagem termina o diário tendo esperança de se salvar da existência por meio da escrita de um romance. Também em relação ao tema do humanismo, é comum assumirmos que Sartre é Roquentin e, portanto, Sartre jovem seria não humanista.2
Por assumir que Sartre é inteiramente Roquentin, estranha-se que, pouco tempo depois, o filósofo se declare humanista. De Roquentin ao Autodidata, é como se Sartre passasse de não humanista a humanista. Na conferência de 1945, o próprio título anuncia essa nova reivindicação: O Existencialismo é um Humanismo. Sartre inicia a conferência apontando para o estranhamento que esse título traria aos ouvintes:
Muitos poderão se admirar com o fato de virmos aqui falar de humanismo. Procuraremos deixar claro em que sentido o entendemos. De qualquer forma, o que podemos dizer desde o princípio é que, por existencialismo, entendemos uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda verdade e toda ação humana implicam um meio e uma subjetividade humana (SARTRE, 2012, p. 16).
É na necessidade de partir da e nunca eliminar a subjetividade humana que o existencialismo se coloca como humanista, o que nos revela um outro sentido de humanismo. Se a palavra utilizada é a mesma, o sentido é distinto. Há o humanismo do Autodidata, que aqui, é assemelhado ao humanismo de Comte, que levaria ao fascismo: "O culto à humanidade culmina no humanismo fechado sobre si mesmo de Comte e, devemos dizer, no fascismo. Trata-se de um humanismo que não desejamos" (SARTRE, 2012, p. 43). E há o humanismo existencialista, que aponta para a irredutibilidade das subjetividades, e, portanto, para a responsabilidade humana por seus atos:
existe, no entanto, outro sentido para o humanismo, que significa, no fundo, o seguinte: [...] não há outro universo senão um universo humano, um universo da subjetividade humana [...]. Humanismo, porque lembramos ao homem que não há outro legislador senão ele mesmo, e que é no desamparo que ele decidirá por si mesmo (SARTRE, 2012, p. 43, 44).
Trata-se, pois, da crítica ao humanismo burguês (abstrato e idealista) e a assunção de um humanismo existencialista (universal singular), e não de uma passagem de um não-humanismo a um humanismo. Embora Turki afirme, em Jean-Paul Sartre: l'intellectuel et son ombre (2021), que " é verdade que, até 1939, Sartre exibiu um certo 'niilismo libertino' que suas primeiras obras literárias refletem implicitamente"3 (TURKI, 2021, p. 97), tentaremos mostrar neste artigo que não podemos dizer que Sartre deixa de ser "não humanista" para ser humanista, mas que há dois sentidos de humanismo, sendo um deles criticado pelo filósofo desde suas primeiras obras, e outro, aos poucos, assumido de forma mais explícita.
Não se trata de "uma virada na direção do humanismo [que] será notada a partir de 1939"4 (TURKI, 2021, p. 99). Não é Sartre que significa o humanismo de um modo nas primeiras obras, e depois passa a adotar outra significação. A nosso ver, e é o que pretendemos discutir ao longo do artigo, as duas concepções de humanismo coexistem na sociedade, e o filósofo aponta para a necessidade de sairmos da concepção burguesa idealista do Autodidata e adotarmos a concepção existencialista, que acata as críticas de Roquentin e parte da concretude, ou seja, das singularidades situadas.
Assim, à questão "Sartre é humanista?", propomos que a resposta seja "Sim e não". Tal como Roquentin, Sartre é não-humanista no sentido humanista de Autodidata, que cultua a humanidade como símbolo e ignora os seres humanos reais. Mas, diferente de Roquentin, Sartre, intelectual engajado, dá um passo a mais e afirma que um outro humanismo é necessário. Se a crítica ao humanismo burguês é necessária, é necessário também estabelecer uma outra forma de humanismo, que não se perca em abstrações e símbolos, mas que parta da condição situada humana.
É exatamente essa a compreensão que um intelectual realiza em seu percurso de tornar-se intelectual. Técnico do saber prático, é uma pessoa escolhida pela classe burguesa para pensar os meios possíveis que permitirão a essa classe obter o fim projetado. Selecionado por processos com número de vagas pré-definidos, o técnico, de classe média, educado pelos valores burgueses, ingressa em sua profissão defendendo os valores que até então considera universais. No entanto, ao exercer sua profissão, dá-se conta não apenas que ela, mesmo que teoricamente possa servir a todos, de fato é acessível a apenas parte da população, mas que também sua própria pessoa representa o contrário do que inicialmente pensava. A existência de um técnico do saber prático, mesmo que fale em nome de um universal, é a prova de que há luta de classes, de que alguns são selecionados, e de que seu saber serve para alguns, e não todos.
Assim, o técnico do saber prático surge e existe por conta de um universalismo burguês. Mas, se no exercício de sua profissão, dá-se conta da contradição que habita, e se decide desvelá-la para a sociedade, o técnico se torna, então, um intelectual. O intelectual encarna a passagem do humanismo burguês ao humanismo existencialista, aquele que se afasta do falso humanismo do qual é fruto, e propõe um outro humanismo, que parte do concreto e, nas singularidades das condições, estabelece uma universalização nunca alcançada.
Compreender o que é um intelectual clássico5 e qual é sua função é também compreender as duas noções de humanismo em contraposição, e a escolha filosófica sartriana por um humanismo outro que não o abstrato burguês. Para mostrar a passagem de um humanismo a outro no caminho que o técnico do saber prático percorre para se tornar um intelectual, utilizaremos dois textos da década de 1960, ambos publicados em Situações: Plaidoyer pour les intellectuels e L'universel singulier. A escolha por abordar filosoficamente textos assumidamente de circunstâncias também implica, como pano de fundo, admitir que, se todo texto filosófico é situado, os textos de Situações explicitam a relação entre teoria e ação. Ao invés de considerá-los coadjuvantes, utilizados para dar maior ênfase ao que os textos "filosóficos" trazem, focaremos nos textos de ocasião para mostrar que teoricamente eles se sustentam, e neles melhor podemos ver a interrelação entre filosofia e práxis. Não por acaso, a teoria de Sartre sobre o que é um intelectual e qual é seu papel coincide com as atitudes do intelectual Sartre no período em que esses textos foram escritos.
Trata-se, mais especificamente, de compreender que o que está em jogo no processo pelo qual um técnico do saber prático se torna um intelectual é o abandono crítico do humanismo burguês, falsamente universal, e a assunção de um outro humanismo, que exige a situação como ponto de partida, e projeta uma nova universalização, existente como projeto e não como realidade.
I) Do falso universal ao concreto
Em 1965, Sartre amplia a noção de intelectual: não mais apenas profissionais ligados às humanidades e às artes, mas qualquer técnico do saber prático que se dá conta da contradição de seu papel. Pesquisadores da área biológicas, por exemplo, pesquisam vacinas para uma nova doença e veem que a descoberta, universal, dirigida a todos os humanos, serve inicialmente a poucos países com poder aquisitivo para adquiri-las. Se questionam essa situação, se revelam à sociedade que o universal proclamado pela burguesia é um falso universal, eis que o técnico se torna intelectual.
Nas conferências dadas no Japão, o filósofo francês afirma que a própria noção de intelectual se modifica diante das condições históricas. Primeiro, há o surgimento de um intelectual orgânico nos séculos XVII e XVIII, que, sem saber ou sem querer, acaba por formar a ideologia da burguesia que ascende ao poder. Se se colocam contra a ideologia aristocrática religiosa, eles acabam por trazer os valores de liberdade e de universalidade que a burguesia transformará em seus valores: "esse conjunto de valores e ideias - que finalmente leva a essas duas fórmulas: todo homem é burguês, todo burguês é homem - tem um nome: é o humanismo burguês"6 (SARTRE, 1972b, p. 386, 387).
Autonomia é transformada em direito à propriedade sem intermédio da Igreja; liberdade como autonomia do pensamento é transformada em liberalismo econômico e comercial; e a igualdade é transformada em todos contra a aristocracia. Ao exercer seu papel, essa primeira figura do intelectual acaba por ficar ao lado da burguesia.
É preciso esperar o estabelecimento da burguesia no poder, já no século XIX, para que apareça um outro intelectual, chamado posteriormente por Sartre de intelectual clássico. Para o fortalecimento do capitalismo são recrutados, em número pré-definido pelo poder, técnicos do saber prático. Pertencentes à classe média, esses técnicos passam por processos seletivos7 para garantir um emprego. A estruturação do campo dos possíveis não é determinada de forma subjetiva apenas, mas é a classe dominante que delimita os possíveis realmente possíveis. Assim, o adolescente de classe média se torna especialista, servidor da hegemonia.
Educado em uma ideologia burguesa, ele é humanista. Acredita que todos são iguais e que seu emprego buscará a verdade para todos os seres humanos. Mas, caso ele olhe atentamente para sua profissão e para si mesmo, verá que esse humanismo burguês é falso. Ele foi o escolhido por meio de um sistema injusto, e se torna o portador de privilégios injustificáveis. Para além disso, na própria pesquisa que realiza há alienação: se a práxis engloba três momentos - a projeção de fins, a pesquisa dos possíveis, e a realização dos meios -, a divisão do trabalho na sociedade moderna faz com que cada um desse momento seja realizado por grupos distintos. A classe trabalhadora realiza os meios, enquanto o técnico do saber prática pesquisa os possíveis dos projetos instaurados pela classe dominante. Eis que o técnico, convictamente humanista, acreditando na liberdade, igualdade e fraternidade, serve aos interesses da burguesia. "O técnico que inventa para todos é, em última análise, [...] apenas um agente de empobrecimento das classes trabalhadoras"8 (SARTRE, 1972b, p. 395).
Em nome do saber universal, o técnico do saber prático se coloca ao lado da burguesia contra a classe trabalhadora. É assim que o espírito livre de pesquisa entra em choque com uma ideologia que é particularista. Caso questione e coloque esta ideologia em questão, o técnico do saber prático se transforma em intelectual. É por isso que se costuma afirmar, segundo Sartre coloca no início da primeira conferência, que o intelectual é aquele que abusa de seu poder, é aquele epidemiologista que, por exemplo, vai aos meios de comunicação colocar-se contra as decisões do governo de seu país. Ao invés de ficar restrito ao âmbito de seu saber imediato (os estudos sobre vacinação e modos de diminuir o avanço de uma pandemia), o epidemiologista se intromete no que não lhe diz respeito (decisões governamentais).
No entanto, Sartre reformula a noção de intelectual, acrescentando que essa intromissão é sobre algo que lhe diz respeito: seu lugar na sociedade. Intelectual é, pois, aquele que "se ocupa do que lhe diz respeito (na exterioridade: princípios que orientam sua vida, e na interioridade: seu lugar vivido na sociedade) e que outros dizem que ele se ocupa do que não lhe diz respeito"9 (SARTRE, 1972b, p. 397). Se é verdade que extrapola o papel que inicialmente lhe é dado, o intelectual não é apenas uma figura negativa, mas se afirma no questionamento sobre os valores assumidos pela classe dominante e no seu papel nessa sociedade.
Em outras palavras, o técnico do saber prático se transforma em intelectual quando reflete sobre sua pesquisa e sobre si mesmo, e, nessa reflexão, vê-se como uma figura de contradição: defende o universal, mas serve ao particular; sua pesquisa se direciona igualmente a todos, mas chega a apenas uma pequena parte. O desvelamento de sua condição à sociedade é ao mesmo tempo o desvelamento da hipocrisia dos valores burgueses. Ou seja, o intelectual é o técnico do saber prático que se descobre e se quer engajado.
Não por acaso, a noção de engajamento será fundamental a partir da década de 1940, não só nos textos teóricos de Sartre, mas também em sua postura política. Intelectual clássico, o filósofo tenta desvelar aos outros a falsidade do universalismo burguês.
Ao postular que é o ato de escrever que compromete, Sartre rejeita a alternativa de uma autonomia baseada na gratuidade e envolvendo a irresponsabilidade do escritor, como reivindicava Jean Paulhan na época, e de um compromisso político que sacrifica a autonomia do escritor a seu senso de responsabilidade, segundo o modelo de militância comunista então encarnado por Aragon e Éluard [...]. A concepção de 'literatura engajada' que desenvolve permite-lhe assim reafirmar a autonomia do escritor em relação ao mundo político sem cair no paradigma da irresponsabilidade10 (SAPIRO, 2020, p. 277).
Desde o período pós-segunda guerra mundial, até a década de 1960, Sartre não apenas coloca em discussão o que é o engajamento do intelectual, mas também exerce essa função. Contra a liberdade abstrata e indiferente (e, portanto, contra um discurso que afirmaria a irresponsabilidade do escritor), o filósofo afirma a necessidade de assumir a responsabilidade, o que não implica, por sua vez, abrir mão da autonomia da escrita (no caso do escritor engajado ao qual Sapiro se refere) ou da ação (no caso do intelectual, tal como exposto nas conferências no Japão). O engajamento do escritor, e posteriormente, do intelectual, deve ser associado à noção de situação que já aparece em O ser e o nada como sendo o que congrega os elementos subjetivos e objetivos que cada momento histórico exige, sem que nenhum desses elementos seja totalmente determinado pelo outro, nem se desfaça no outro; e que será aos poucos ampliada para um debate que não é apenas teórico, mas também prático: "No momento da Libertação, Sartre busca dar um prolongamento político ao conceito de situação - o que lhe permitirá, a partir de 1947, reunir seus diversos textos políticos, filosóficos e estéticos sob o título de Situações"11 (FERON, 2022, p. 54).
A compreensão de que todos estamos em meio a facticidades não escolhidas, e, no entanto, somos responsáveis por elas, justamente por não sermos determinados, se explicita na década de 1940, no momento da Libertação francesa e em meio às discussões sobre o expurgo de escritores colaboracionistas, e é fortalecida pela própria figura de Sartre nas décadas de 1950 e 1960. Mesmo quando o filósofo Sartre deixa de interessar aos jovens, imbuídos da onda estruturalista, o intelectual Sartre continua a ter impacto na sua função de ser a consciência infeliz de seu tempo. "Se a influência intelectual de Jean-Paul Sartre se enfraquece nos anos 1960, seu compromisso político permanece denso"12 (SIRINELLI, 1995, p. 336).
A referência à figura de Sartre como intelectual, feita por diversos pesquisadores, nos ajuda a compreender mais concretamente a noção teórica de intelectual que aparece nas Conferências.13 Lemos, aqui, que o técnico do saber prático, no próprio exercício de sua profissão, percebe falar em nome de uma universalidade e de uma igualdade que não existem. Mais que isso: ele mesmo foi selecionado pela classe dominante para pensar os meios para a realização dos fins por esta projetados. Caso decida14 denunciar essa contradição, torna-se um intelectual.
Esconde-se deles desde a infância, por uma falsa universalidade, a realidade social que é a exploração do maior número por uma minoria: esconde-se deles, sob o nome de humanismo, a verdadeira condição dos trabalhadores e dos camponeses, e a luta de classes; por um igualitarismo mentiroso, o imperialismo, o colonialismo, e o racismo, que é a ideologia dessas práticas 15(SARTRE, 1972b, p. 393).
Em outras palavras: o intelectual é aquele que, tal como Roquentin, percebe a hipocrisia dos valores falsamente universais do humanismo burguês. Do mesmo modo que o amor do Autodidata pela Juventude servia para que ele não escutasse os dois jovens concretos que conversavam amorosamente ao lado deles, o humanismo universal burguês funciona como símbolo que tem por finalidade ocultar a condição dos trabalhadores. Em nome de um humanismo liberal, o que se tenta esconder é uma sociedade desigual e excludente: "a humanidade era composta de burgueses, brancos e homens"16 (SARTRE, 1972b, p. 389).
O intelectual será aquele que questiona a falsa universalidade do humanismo burguês, indicando a necessidade de partir das singularidades concretas. Problematizar a abstração do humanismo do qual é fruto implica, ao mesmo tempo, questionar a si mesmo, dado que não apenas foi pessoalmente escolhido anteriormente pela classe dominante, mas também seu trabalho serve aos propósitos dela. A contradição de que se dá conta não é apenas nas condições concretas da sociedade, mas também em si mesmo. É por isso que, depois de definir o intelectual na primeira das três conferências, a segunda tem início com a afirmação de que a função do intelectual é colocar a si mesmo em questão, assumindo sua concretude e deixando para trás a ilusão do universal abstrato do humanismo burguês.
A ambiguidade de seu objeto distancia o intelectual da universalidade abstrata [...]. A verdadeira pesquisa intelectual, se quiser entregar a verdade dos mitos que a obscurecem, implica uma passagem da investigação pela singularidade do investigador. Este precisa situar-se no universo social para apreender e destruir, dentro e fora dele, os limites que a ideologia prescreve ao conhecimento. É no nível da situação que a dialética da interiorização e da exteriorização pode atuar 17(SARTRE, 1972b, p. 403).
Ao compreender que está em questão no próprio questionamento sobre as finalidades de seu trabalho, o intelectual compreende, enfim, que não se trata apenas de uma problemática teórica, mas também, prática. E que sua crítica ao humanismo abstrato burguês implica pensar sua própria posição na sociedade em que vive. É por isso que a noção negativa do que é ser intelectual - aquele que se mete no que não lhe diz respeito - é transformada por Sartre em uma noção positiva: é aquele que fala sobre o que lhe diz respeito (seu lugar na sociedade, e os princípios dela). É parte da pesquisa do intelectual colocar seu modo de vida em jogo, justamente porque compreende que sua própria figura representa o humanismo universal no qual foi criado e escolhido, e o qual precisa ser combatido. Colocar-se contra a abstração do humanismo burguês é ao mesmo tempo colocar-se em um outro lugar na sociedade, assumindo um modo outro de vida. "Trata-se de tomar o indivíduo concreto tal como ele está dado numa sociedade em um momento histórico determinado"18 (FERON, 2022, p. 405).
Assumindo-se como situado, não cabe mais falar de uma pura objetividade de seu trabalho. A pesquisa empreendida pelo técnico do saber prático revela não apenas que ela serve objetivamente à classe dominante, mas também o papel orgânico deste, caso aceite a ideologia na qual foi criado. Questionar o destino de seu trabalho, o uso de quarta dose de vacina em alguns países, enquanto outros ainda não conseguiram ter duas doses completas; ou o uso da bomba atômica em guerras, é também redefinir seu papel nessa sociedade. Assumir sua situação no mundo é ao mesmo tempo questionar os aspectos dados da sociedade em que se vive e suas próprias ações. Como "totalidade sintética composta por uma contribuição do lado do mundo (o datum, o dado bruto) e, ao mesmo tempo, do lado do sujeito (a escolha de si que é nosso projeto)"19 (FERON, 2022, p. 53), a situação traz a imbricação entre objetividade e subjetividade, entre o que é dado e aquilo que é projetado. No percurso de tornar-se intelectual, o técnico do saber prático compreende ser impossível questionar os usos que a classe dominante faz de seu trabalho (os fatos) sem ao mesmo tempo questionar qual é seu papel nessa estrutura social (sua projeção de valores).
Intelectual é qualquer técnico que, no exercício mesmo de sua profissão, dá-se conta da contradição de seu trabalho. E, ao colocar essa contradição em questão, necessariamente questiona a si mesmo e suas ações no mundo. A teoria é ação. A mútua implicação entre teoria e prática se apresenta claramente no momento em que Sartre revela a insuficiência de um discurso abstrato contra o humanismo abstrato:
O pensamento do intelectual deve voltar-se constantemente para si mesmo para se apreender sempre como uma universalidade singular, ou seja, secretamente singularizada pelos preconceitos de classe inculcados desde a infância, embora acredite ter se desvencilhado dela e se reunido ao universal. Não basta (para citar apenas um exemplo) combater o racismo (como ideologia do imperialismo) com argumentos universais, extraídos de nossos conhecimentos antropológicos: esses argumentos podem convencer ao nível da universalidade; mas o racismo é uma atitude cotidiana concreta; com isso, pode-se manter com sinceridade o discurso universal do antirracismo e, nas longínquas profundezas ligadas à infância, permanecer racista e, de repente, comportar-se, sem perceber, como racista na vida cotidiana. Assim, o intelectual não terá feito nada, mesmo que demonstre o aspecto aberrante do racismo, se não voltar constantemente a si mesmo para dissolver um racismo de origem infantil por uma investigação rigorosa desse "monstro incomparável", si mesmo.20 (SARTRE, 1972b, p. 403, 404).
Fazer uma pesquisa teórica e publicar um artigo em revista acadêmica especializada combatendo o racismo é importante para trazer argumentos universais que se colocam contra uma ideologia racista vigente. No entanto, esse aspecto não basta. O intelectual, situado no mundo atual, vive em uma sociedade estruturalmente racista e recebeu uma educação permeada de preconceitos. Se seu trabalho teórico não coloca em questão suas próprias ações, nada está feito. Racista por estar inserido em uma ideologia que se coloca como universal, mas é burguesa, branca e masculina, cabe ao intelectual colocar-se teórica e praticamente contra esse humanismo abstrato. Isso significa que o que está em questão não são apenas os argumentos universais e teóricos, mas também as atitudes do intelectual. Situado em uma sociedade racista, o intelectual pode escrever artigos antirracistas e, mesmo assim, ter atitudes enraizadas que repetem o racismo estrutural.
Por isso, para Sartre, é preciso não dissociar o pensamento da ação. Ser um intelectual é dar-se conta da necessidade de repensar o trabalho realizado, assim como as atitudes da pessoa em seu mundo. O desvelamento da contradição existente no humanismo burguês não deve ocorrer apenas com argumentos universais, mas deve modificar o próprio modo de vida daquele que faz o desvelamento. Questionar a abstração da universalidade posta é ao mesmo tempo questionar-se como vivendo em uma sociedade que nos educa nesta ideologia.
Do mesmo modo, nascida em uma sociedade estruturalmente machista, uma técnica do saber prático que descobre a contradição entre o que acredita e o que realiza em seu trabalho, contribuindo concretamente para a pauperização da classe operária em nome de temas universais e abstratos, não pode se contentar com apenas escrever artigos que argumentem contra o machismo. Descobrir que o trabalho realizado serve a fins excludentes escolhidos pela classe dominante é também descobrir que é com essa ideologia que foi formada. Combater o falso humanismo, ou o humanismo liberal, não está desvinculado do combate ao machismo que existe em si mesma, nas entranhas, desde sua infância. Ao mesmo tempo teórico e prático, seu trabalho deve desvelar a todos, e a si mesma, as armadilhas insistentes da ideologia universal abstrata, e combatê-las em nome de uma outra postura assumida no mundo, e da projeção de outros fins que não os da classe dominante. "Contra o humanismo burguês, a tomada de consciência do intelectual lhe mostra ao mesmo tempo sua singularidade e que é a partir dela que o homem se dá como meta distante de um empreendimento prático cotidiano"21 (SARTRE, 1972b, p. 405).
Saímos, assim, daquele humanismo universal abstrato tal como defendido pelo Autodidata em A náusea e chegamos à necessidade de partir das singularidades e das concretudes. Contra a ideologia que fala de igualdade para todos para melhor conseguir hierarquizar quem tem direitos, é preciso reconhecer que todo pensamento se faz concreta, subjetiva e intersubjetivamente. É, pois, das particularidades que se deve partir, e não de um universal que imporia, de antemão, os valores a serem obedecidos. Em outras palavras, seria preciso, tal como Roquentin, desconfiar dos discursos abstratos da classe dominante e compreender que ele é feito com o objetivo de ignorar as situações concretas de desigualdade e as particularidades existentes.
Mas esse processo de compreensão da contradição social e pessoal, de crítica ao falso humanismo, levaria o intelectual ao outro oposto, a um relativismo indiferente? Chegaríamos, no pensamento de Sartre sobre o que é um intelectual, a uma defesa das singularidades isoladas e indiferentes a qualquer forma de coletividade ou universalidade? Pensamos que não. Porque, se o primeiro movimento que o intelectual percorre é o de sair de um universal abstrato e afirmar a necessidade de partir do concreto, o segundo movimento necessário é o de construir, a partir das singularidades, um outro universal - um universal que se difere do universal humanista burguês por ser constantemente construído, não sendo dado de antemão, nem alcançado e fixado
II) O paradoxo do humanismo existencialista
Para compreender melhor esse outro humanismo proposto, chamado no título do artigo de humanismo existencialista, por ser crítico ao universal abstrato e por substitui-lo pelo universal concreto/singular/particular, podemos recorrer a uma outra conferência dada por Sartre no ano seguinte às conferências sobre o intelectual: L'universel singulier, apresentada em um Colóquio na UNESCO em 1966 sobre "Kierkegaard vivant".
A questão apresentada por Sartre é como abordar um filósofo morto, ainda mais um filósofo que afirmava, quando vivo, a irredutibilidade da subjetividade ao saber. Compreendê-lo, em 1966, não seria dar razão a Hegel e dizer que o vivido se resume ao sabido? Afinal, tudo que foi escrito pelo filósofo dinamarquês já era conhecido, e não haveria mais nenhum novo posicionamento dele. Ao colocar essa questão, o próprio Sartre responde que não: a partir do momento em que o pesquisador filósofo atual se dá conta de que sua pergunta sobre Kierkegaard é, ao mesmo tempo, uma pergunta sobres si mesmo, a conferência se torna uma atualização da discussão anterior.
Ao interrogar Kierkegaard como objeto, nos deparamos com suas afirmações sobre a irredutibilidade do vivido frente ao saber, sobre a impossibilidade de fazer a subjetividade desaparecer em meio a um processo absoluto. Assim, a partir de um tema distinto, Sartre retoma o mesmo problema apresentado nas conferências sobre o papel do intelectual: questionar um objeto, pesquisá-lo, deve ser, ao mesmo tempo, questionar a nós mesmos e os valores que queremos projetar na sociedade. Isso vale para o médico que descobre um medicamento, e isso vale para um filósofo que discute noções de um filósofo já morto. Quando questionamos um filósofo-objeto, ainda mais se é um filósofo que afirma a irredutibilidade do vivido ao saber, não podemos bem questioná-lo se não colocarmos em questão nosso próprio saber atual: seria ele um saber absoluto e eterno, que explicaria de uma vez por todas o pensamento e a vida de Kierkegaard? Se for assim, o próprio conteúdo de sua filosofia se destruiria e nossa pesquisa mostraria a inutilidade de continuar a pesquisá-lo.
Em direção contrária, a conferência de Sartre aponta para a manutenção da questão proposta por Kierkegaard, justamente porque não se pode ignorar que ela provoca o questionamento de nosso próprio saber sobre ele. "É verdade que a morte se apresenta primeiro como uma queda do sujeito no objetivo absoluto. Mas Kierkegaard, em seus escritos - hoje inertes ou vivos em nossa vida - propõe o uso oposto das palavras"22 (SARTRE, 1972a, p. 164). Questionar Kierkegaard a partir da crença inicial em um saber universal abstrato é deparar-se com um pensamento que inverte o uso das palavras, e, ao fazer isso, põe em xeque a nossa ilusão de um saber absoluto. Assim, o paradoxo proposto por Kierkegaard reaparece na contemporaneidade sartriana23 na interrogação que se interroga a si mesma: "O questionador é questionado em seu ser pelo questionado"24 (SARTRE, 1972a, p. 167).
Ao nos colocarmos em questão no questionamento sobre um filósofo morto, operamos o mesmo movimento do técnico do saber prático que se transforma em intelectual: realizamos uma crítica ao humanismo burguês e seus valores abstratos, que servem para melhor marcar a opressão, e afirmamos a singularidade e concretude de todo saber. Mas se é assim, não voltaríamos ao problema anteriormente indicado? Ser contra a abstração de um saber universal não seria cair no relativismo e na impossibilidade de qualquer saber? Ainda é possível falar em absoluto e universal, se nos colocamos na contramão de uma ideologia que se pretende abstrata, universal e absoluta?
Questionar Kierkegaard é ao mesmo tempo questionar nosso saber, é dizer que o paradoxo proposto por Kierkegaard continua vivo. Em outras palavras, é trazer a noção de universal singular como uma proposta ambígua para pensar a substituição de um universal abstrato por uma universalidade que se constrói concreta e incessantemente. Se Kierkegaard - e Sartre, ao atualizar seu pensamento - afirma a irredutibilidade da subjetividade e a necessidade de pensar o humano em situação, como ainda falar em absoluto?
O filósofo dinamarquês, ao não dissolver o pensador no saber objetivo por ele pensado, propõe uma nova concepção do pensamento: situado, é preciso pensar em termos de um começo condicionado, e não não-humano, tal como teria sido proposto pelo arquirrival Hegel25. O pensador encontra-se situado e Kierkegaard sabe disso: ele vê o cristianismo da comunidade dinamarquesa com os olhos que essa mesma comunidade lhe deu. Seu saber objetivo sobre o cristianismo não está dissociado de seu vivido subjetivo de pertencer a uma comunidade específica, o que, por sua vez, não significa que nenhum saber é possível.
Enquanto o pensamento de sobrevoo afirma que o entendimento apreende uma essência objetiva que em nada é influenciado pela pessoa do pesquisador, o relativismo idealista faz o objeto desaparecer, reduzindo-o a mero efeito de aspetos subjetivos. Em ambos, o que desaparece é a ambiguidade que manteria o saber como vivido, e não morto. "Kierkegaard rejeita ambas as soluções. O paradoxo, para ele, é que descobrimos o absoluto no relativo"26 (SARTRE, 1972a, p. 171). Seguindo o pensamento vivo de Kierkegaard, Sartre o interroga objetivamente para renovar o paradoxo de um absoluto relativo, e de um universal singular. Do mesmo modo que o saber não se faz fora de um vivido, esse vivido também traz consigo um saber, que não tem mais a pretensão de ser fixo e eterno, mas que se constrói assumindo sua concretude. Kierkegaard, formado pelas tradições culturais de uma certa comunidade, pode pensar essas circunstâncias históricas que o produziu, e nesse pensamento modificado, fazer renascer um outro absoluto e universal. "Se a objetividade deve ser conhecimento incondicionado, não há objetividade real"27 (SARTRE, 1972a, p. 171). Manter a existência do saber é assumi-lo como existente, ou seja, como vivido, e, portanto, como fruto de uma subjetividade situada em circunstâncias históricas específicas28.
O paradoxo reivindica um saber vivido, existido singularmente. É por isso que, tanto na conferência sobre Kierkegaard quanto na conferência sobre o papel do intelectual, Sartre afirma que aquele que pesquisa um objeto coloca sua própria vida em questão.
A revolução é que o homem histórico, por sua ancoragem, faz dessa universalidade uma situação particular e da necessidade comum, uma contingência irredutível. Em outras palavras, longe da atitude particular ser, como em Hegel, uma encarnação dialética do momento universal, a ancoragem da pessoa faz desse universal uma singularidade irredutível29 (SARTRE, 1972a, p. 173).
O universal é singularizado na historicidade na qual se coloca. É em um certo tempo e espaço que ele se apresenta, retomado ou criticado por pessoas distintas. E é nessa condicionalidade que devemos recuperar uma outra noção de universalidade. Pensar em termos de um universal abstrato é ao mesmo tempo afirmar a inexistência desse universal, do mesmo modo que exigir a incondicionalidade do saber nos levaria a anular o próprio saber. É recuperando a historicidade do saber e do universal que conseguimos, no lugar de um humanismo liberal burguês, inventar um outro humanismo, baseado na ambiguidade do universal singular, e da objetividade vivida subjetivamente.
O intelectual, seguindo o anunciado por Kierkegaard, é aquele que reconstrói, na concretude, uma outra perspectiva de universalização. Na descoberta de que o universal existe na singularidade, "o homem, singularidade irremediável, é o ser pelo qual o universal vem ao mundo"30 (SARTRE, 1972a, p. 175). Nem um universal abstrato que existe por si mesmo, nem uma singularidade indiferente a qualquer forma de saber e universalidade. Um outro universal é construído nesse processo, e a diferença consiste justamente no fato de que a subjetividade é admitida como componente necessário de todo saber, de que é da facticidade e singularidade que toda perspectiva universal se projeta. No lugar de um universal dado de antemão, e que, portanto, não se refere aos seres humanos concretos e particulares; chegamos a uma universalidade que é construída pelas particularidades nas situações históricas nas quais se encontram - uma universalidade, portanto, que parte de seres humanos existentes e nunca se instaura como fixa e imutável.
Nos atos particulares, projetamos um ultrapassar do dado em direção a um sentido totalizador destotalizado. Parte-se do que é contingente, e nessa contingência ocorre uma "encarnação singular da totalização em curso que a envolve e a produz"31 (SARTRE, 1972a, p. 178). No processo de encarnação, ou de interiorização do exterior32, percebe-se que o universal só existe como singularidade, a qual, por sua vez, na exteriorização dessa interiorização, projeta um sentido de uma totalidade. "O sentido é o universal singular"33 (SARTRE, 1972a, p. 178). Na recusa de um universal abstrato, reconhece-se que o ponto de partida é a concretude. E esse reconhecimento é, ao mesmo tempo, o lançamento de outro sentido de universalidade, que aparece agora como fruto de uma construção contínua, concreta e intersubjetiva, de forma a permanecer como horizonte, sem que, no entanto, chegue a um estado imutável e absoluto. Ou, melhor dizendo, esse absoluto reconstruído é um absoluto relativo. Nem totalmente absoluto, nem totalmente relativo: é um absoluto relativo, que se mantém na tensão entre os dois termos. Todas as existências são "ao mesmo tempo singulares e universais, absolutas e relativas, totalizações e destotalizações"34 (SALZMANN, 2000, p. 246).
A obra de Kierkegaard é ele mesmo como universal. Mas, por outro lado, o conteúdo dessa universalidade permanece sua própria contingência escolhida e superada pela escolha que ele fez dela. Em suma, há uma dupla face: por seu sentido, ela eleva a contingência à universalidade concreta35 (SARTRE, 1972a, p. 179, 180).
Do mesmo modo que Kierkegaard criticava o pensamento de sobrevoo abstrato, que suprimia a subjetividade; e, ao mesmo tempo, o relativismo idealista, que suprimia a objetividade; Sartre mostra dois modos equivocados de pesquisar o filósofo dinamarquês: ou considerando-o em sua universalidade abstrata, apenas como expressão de estruturas gerais; ou considerando-o com ceticismo analítico, apenas como uma tradução de acasos singulares. As duas leituras contemporâneas sobre Kierkegaard desconsideram que é pela ambiguidade que se chega à compreensão de uma pessoa. Atualizando o que diz Kierkegaard sobre o saber para o próprio fazer histórico-filosófico, Sartre mantém a necessidade de considerar que o objetivo é sempre vivido singularmente, e que o subjetivo sempre se projeta objetivamente. Esses dois movimentos não podem ser isolados e separados, embora constituam dois movimentos, e é na compreensão dessa ambiguidade que se encontra a permanência e vida do pensamento de um filósofo que já morreu. No momento mesmo em que reconhecemos a concretude do universal, reconstruímos, nesse reconhecimento concreto e singular, uma universalidade distinta, ancorada no real e projetada rumo a uma totalização que nunca será dada como totalizada. "Kierkegaard mostrou que o universal se torna singular na História, na medida em que o singular ali se estabelece como universal. Sob essa nova forma de historialidade, redescobrimos o paradoxo que aqui assume o aspecto insuperável de uma ambiguidade"36 (SARTRE, 1972a, p. 181, 182).
Com isso, podemos compreender melhor o movimento realizado pelo técnico do saber prático ao tornar-se intelectual: se o primeiro passo é a crítica ao humanismo burguês e sua pretensão universal abstrata, de fato excludente de boa parte dos humanos, o segundo passo é o de instaurar, no questionamento de seu próprio papel na sociedade, um universal singular, uma projeção concreta e particular de uma totalidade nunca alcançada. Em outras palavras, temos aqui o deslocamento do humanismo burguês para um humanismo existencialista, que se ampara na ambiguidade e no paradoxo para manter os dois elementos constitutivos de toda existência: o universal e o singular, o objetivo e o subjetivo, a facticidade e a liberdade. Sem reduzir uma a mero efeito da outra, esse humanismo outro afirma a coexistência das duas partes: se o universal é sempre expressão de pessoas situadas historicamente, e, portanto, não pode se colocar para além delas; os atos dessas singularidades constroem uma universalização que existe como processo. O ponto de partida é invertido, mas não só isso: o que antes se colocava como existente no início (o universal abstrato), agora surge no fim como perspectiva projetada, mas não existente (a universalização). "Sartre considera que a História é e será sempre uma totalidade destotalizada, cujo sentido não tem outra origem senão o entrelaçamento perpétuo do universal e do singular, a ancoragem dos homens na História concreta"37 (SALZMANN, 2000, p. 249). É no firmamento das condições dadas que uma totalidade se coloca por meio de uma construção conjunta, concreta e contínua. Somos universalidade porque somos historicidade. Sem reduzir o concreto a mero exemplo do universal abstrato presente no final e/ou no começo da história, é na práxis que a condição humana comum aparece.
Esse é o caminho percorrido pelo intelectual clássico, tal como se apresenta nas conferências de 1965. Diferente do intelectual orgânico -, que se coloca ao lado do falso universal, o verdadeiro intelectual, ao questionar a ideologia burguesa e o seu papel no mundo, reconhece que "o universal humano está a se fazer"38 (SARTRE, 1972b, p. 410). Trata-se, pois, de elaborar um trabalho concreto sobre outros universais singulares, atendo-se ao acontecimento, e, nessa práxis, colaborar com o processo de totalização de novos valores. O desvelamento operado é sempre uma ação, e é por isso que o técnico do saber prático, ao se tornar um intelectual e questionar o falso universalismo burguês e seu próprio trabalho, torna-se engajado. O intelectual não se liberta de suas contradições apenas pelo estudo da ideologia que o formou, mas também, e principalmente, pela mudança em seu modo de vida: "esse agente histórico, inteiramente condicionado pelas circunstâncias, é precisamente o oposto de uma consciência de sobrevoo"39 (SARTRE, 1972b, p. 413).
Ao compreender que é necessário sair do universal abstrato e partir do concreto, o intelectual se dá conta que seu trabalho teórico exige um outro papel na sociedade em que vive: "essa particularização absurda também os leva a almejar a universalidade: não a da burguesia [...], mas uma universalidade concreta de origem negativa"40 (SARTRE, 1972b, p. 414). A princípio negativa, colocando-se contra a universalidade burguesa, essa nova universalidade afirma-se como concreta e singular, mais como universalização do que como universal dado.
É desse modo que, se podemos afirmar que o intelectual clássico sartriano se aproxima de Roquentin na ácida crítica ao humanismo burguês de Autodidata, não chega a se identificar com ele. A esse primeiro movimento negativo de questionamento, é preciso acrescentar um movimento positivo de reconstrução contínua de uma nova universalização, que não se apresentará mais como dada e abstrata, mas que se reconhecerá como procedimento incessante, concreto e realizado por singularidades situadas. No desvelamento de seu particularismo de classe, o intelectual compreende a tarefa de construir uma outra universalidade como "ultrapassamento de sua particularidade rumo à universalização do particular a partir desse particular-aqui"41 (SARTRE, 1972b, p. 419). O universal se torna, no humanismo existencialista, "um movimento de uma singularidade em direção à universalização"42 (SARTRE, 1972b, p. 420). Não mais algo dado desde o início para dar uma falsa sensação de igualdade formal à desigualdade concreta, mas algo a ser construído na compreensão das contradições pessoais e na tomada de posição diante dessas contradições. Não por acaso, o intelectual, assumindo ser um pequeno-burguês escolhido por um processo que contraria o discurso, coloca-se agora contra a classe dominante e se aproxima da classe trabalhadora. Sem esquecer os privilégios injustificados que o tornaram um técnico do saber prático, o intelectual compreenderá que o questionamento teórico do discurso humanista burguês o leva a necessariamente se colocar ao lado de outra classe. Encontramos aqui o papel que o intelectual Sartre tentará exercer nos anos após a segunda guerra mundial - o que, sem entrar no mérito do acerto ou do erro de suas posições, nos leva a melhor compreender o que se coloca teoricamente na noção de intelectual.
No caminho de tornar-se intelectual há o desvelamento da condição privilegiada da qual se partiu, e de como o próprio trabalho teórico favorece o alcance dos fins projetados pela classe dominante. Na compreensão da contradição do sistema e de si próprio como defensor de uma universalidade que exclui boa parte da humanidade, o intelectual passa a afirmar outros valores, calcados na concretude e nas condições reais de possibilidades às pessoas, o que é o mesmo que aproximar-se da classe trabalhadora. A crítica negativa ao universal abstrato é ao mesmo tempo a afirmação de um universal singular. "A imbricação carnal entre o absoluto de cada vida individual e o relativo de cada situação histórica particular parece-nos revelar um dos aspectos mais enriquecedores e exigentes do pensamento de Sartre"43 (SALZMANN, 2000, p. 242).
Não se trata, pois, do abandono de toda perspectiva humanista. É por isso que à pergunta sobre o filósofo ser ou não humanista, devemos responder que "sim" e "não". Sartre não é humanista no sentido do Autodidata, do humanismo burguês que forja um falso universal abstrato para melhor oprimir pessoas de outras classes sociais. Mas Sartre é humanista no sentido existencialista, ao afirmar a necessidade de iniciar por uma singularidade concreta e, a partir de suas ações situadas em um tempo e espaço específicos, reconstruir novos valores e a projeção de uma universalidade outra. Um universal singular, que se reconhece como histórico e particular.
Conclusão
A noção de intelectual clássico implica, pois, na passagem de um falso humanismo a um humanismo existencialista, na compreensão de que é preciso colocar-se pessoalmente em questão no desvelamento das contradições da sociedade ideologicamente formada pela classe dominante. Colocando seu papel em questão, o intelectual reconstruirá uma outra universalidade, agora reconhecidamente concreta e particular.
essa interiorização do exterior, que se dá pelo próprio movimento pelo qual exteriorizo minha interioridade - é precisamente o que chamamos de ser-no-mundo ou universo singular. Isso ainda pode ser expresso de outra forma: parte de uma totalização em andamento, sou o produto dessa totalização e, assim, eu a expresso inteiramente; mas só posso expressá-la tornando-me totalizador44 (SARTRE, 1972b, p. 440, 441).
Na interiorização da totalização em curso, exteriorizo uma outra totalização. Minhas ações, interações com os outros e projeções de novos valores contribuem para a continuidade ou mudança do sentido da totalização em curso. Por isso, se não se decide sozinho o sentido final de uma ação, é verdade também que essa particularidade situada não deixa inalterado o rumo do universal concreto. Justamente por ser concreto, este universal se faz e se desfaz nas ações singular e intersubjetivamente lançadas.
E por ser uma construção incessante, concreta e singular, o intelectual não pode realizá-la apenas de forma teórica. Questionar a ideologia racista presente no universal abstrato é questionar as atitudes cotidianas que mantém com os outros, e reconhecer, de forma a eliminar, a educação racista na qual foi criado. É por isso que não podemos finalizar o artigo sem ao menos indicar a passagem da noção teórica sobre o papel do intelectual a Sartre como intelectual.
Se não se trata de colocar como foco a figura pessoal de Sartre, também não podemos ignorá-la quando se trata de compreender a função teórica e prática do intelectual. É a esse aspecto, aliás, que boa parte dos pesquisadores se voltam ao falar do que é intelectual para Sartre. Mais do que discutir teoricamente a noção, como feito neste artigo, a maioria se volta para as ações que a pessoa Sartre realizou diante das situações com as quais se defrontava. Sapiro, na análise sobre o expurgo francês no momento da Resistência, aponta para uma figura que, ao mesmo tempo em que colocou a discussão sobre o papel do escritor em um novo patamar, juntando o que até então se colocava como oposto45, refletiu uma discussão de seu tempo, e uma discussão muito localizada no tempo e espaço: uma França tendo que lidar com escritores colaboradores. Então, se inova, sua resposta ao mesmo tempo enfatiza o que seu tempo exigia: a ênfase na responsabilidade dos escritores.
No artigo intitulado 'O fim da guerra', publicado no primeiro número de Les Temps Modernes, em outubro de 1945, Sartre descreve a experiência da Segunda Guerra Mundial como uma experiência existencial que possibilitou a geração de homens de quarenta anos - essa geração pacifista do período entre guerras, que acreditava na paz eterna (...) - apreender a plena medida de sua responsabilidade46 (SAPIRO, 2020, pp. 261, 262).
Nesse período, as palavras de Sartre adquirem importância prática, para além da moda existencialista teórica que se firmava. É o que a Revista Les Temps Modernes torna ainda mais visível: mesmo que a notoriedade do filósofo não tenha se iniciado na revista, foi ela que permitiu "encarnar um tipo de intelectual e inseminar ideias"47 (SIRINELLI, 1995, p. 218). Concordando com Sapiro, Sirinelli aponta para o tom comum de muitas contribuições intelectuais sobre o dever do engajamento do intelectual, tendo, no entanto, Sartre sendo destacado desse meio: "Nesse contexto, a 'Apresentação' do primeiro número de Les Temps Modernes em outubro de 1945 [...] foi, na época, apenas uma contribuição entre outras para o debate. E, no entanto, foi este texto que a posteridade reteve"48 (SIRINELLI, 1995, p. 229).
É, pois, em meados da década de 1940, no momento seguinte ao da Resistência, que a figura de Sartre como intelectual surge, pressionado pelas circunstâncias de seu tempo e respondendo a elas colocando-se em questão. Mesmo quando o existencialismo deixa de ser a corrente teórica mais debatida em meio acadêmico, quando o existencialismo é sobrepujado pelo estruturalismo na década de 1960, as falas e ações de Sartre intelectual continuam a impactar, principalmente no que se refere às questões anticolonialistas.
No momento em que a tensão da guerra fria começa a diminuir, os franceses se voltam para as lutas anticolonialistas. Sartre, em ruptura com o PCF e a URSS após a invasão da Hungria, passa a dar espaço na Revista Les Temps Modernes a textos sobre a Argélia, de modo a se tornar uma das principais referências da imprensa francesa sobre o assunto.
Até meados da década de 1950, as linhas de clivagem entre os intelectuais franceses coincidem aproximadamente com os espaços geopolíticos da guerra fria vigente na época entre o bloco norte-americano e o bloco soviético. A partir de 1954-1955, esboça-se uma virada com a morte de Stálin, o fim da Guerra da Coreia e a nova centralidade adquirida pela questão colonial (DOSSE, 2021, pp. 371, 372).
Não apenas em seus textos de circunstâncias, mas também nas viagens que realiza e nos manifestos que assina, Sartre se colocava ao lado dos argelinos na luta pela independência da Argélia. Embora não tenha sido o escritor o manifesto dos 17149, o impacto de sua posição foi sentido fisicamente nas ameaças que se fizeram à sua vida e nos atentados a seu apartamento.
Mesmo que o existencialismo tenha sido ofuscado na década de 1960 pelo estruturalismo, o intelectual Sartre continuou a ter um papel fundamental. A Guerra da Argélia "foi, de certa forma, o encontro de uma grande causa com uma grande personalidade"50 (SIRINELLI, 1995, p. 327). Mas há que se notar que, se se coloca ao lado dos argelinos, Sartre não tem a pretensão de substitui-los nessa luta. Nem indiferente ao outro, nem roubando o fim que é projeto por outro, o filósofo reconhece que luta enquanto um francês que não quer ser de um país que coloniza e tortura colonizados. Do mesmo modo, ao se aproximar da classe operária, Sartre não renuncia à sua facticidade burguesa: ele se coloca como um burguês contra a burguesia.
Como vimos, o intelectual clássico, em sua filosofia, é aquele que, de dentro da classe média, foi selecionado pela classe dominante a fim de pesquisar os meios para se alcançar os fins projetados por ela. Como pertencente à classe média, colocar-se em questão não é suficiente para que ele passe a pertencer à classe operária. Se se faz necessária no movimento de crítica ao universalismo abstrato opressor e na construção de uma universalidade concreta, a aproximação não implica uma indistinção. O intelectual aproxima-se da classe operária sendo um intelectual, assim como o francês apoia os argelinos sendo um francês. Assim, trata-se de um colocar-se junto numa luta em comum, mas não de pretender que nessa luta conjunta, as diferenças sejam totalmente anuladas, ao menos não enquanto a situação que as fez reais ainda existirem. A consciência infeliz, ao partir do concreto e assumir a contradição de seu papel, permite ao intelectual clássico colocar-se contra a burguesia, mas também impede o esquecimento de que esse mesmo intelectual é um burguês. Se o intelectual clássico não é um intelectual orgânico, que assume sua classe, ainda assim continua um intelectual, ou seja, burguês.
Aqui encontramos um limite ao papel do intelectual, apontado em uma entrevista em 1970 e vivido em sua própria vida. O intelectual clássico, na compreensão da contradição de seu papel, assume uma outra função e se coloca contra o falso humanismo que o produziu, aproximando-se, nesse movimento, da classe operária na construção de um universal concreto. Mas ao colocar-se em questão, compreende também que sua luta deveria levar ao fim do intelectual. Afinal, é a partir da ideologia universal burguesa abstrata que a figura do intelectual surge. Colocar-se contra ela, propor um universal concreto e singular em seu lugar, é ao mesmo tempo projetar uma sociedade que não mais produza intelectuais clássicos. Na apresentação à parte "Os Intelectuais" de Situações VIII, Sartre afirma que a noção mesma de intelectual se modifica diante das circunstâncias históricas. E que a figura do intelectual clássico, conforme aparece nas conferências dadas no Japão em 1965, estava sendo negada por Maio de 1968, momento que fez surgir no horizonte uma nova figura do intelectual, o revolucionário: "Compreendi hoje que não se poderia parar no estágio da consciência infeliz (idealismo, ineficiência), mas que era preciso enfrentar seu próprio problema ou, se preferir, negar o momento intelectual na tentativa de encontrar um novo status popular"51 (SARTRE, 1972b, p. 374).
O que vemos nesta entrevista é uma compreensão, na última década de sua vida, de que a figura que encarnou a partir de meados dos anos 1940 encontrava-se em vias de desaparecer. O intelectual clássico, que continua a escrever O idiota da família enquanto ocorre Maio de 68, é questionado pelos próprios acontecimentos. Agora parece ser preciso um passo a mais, que não é apenas o de denunciar a contradição da sociedade burguesa e aproximar-se da classe operária, mas o de aniquilar a si mesmo enquanto intelectual. Um novo papel que Sartre diz não ser ele mesmo capaz de realizar.
Já no começo da década de 1960, com as mortes de Camus, Merleau-Ponty, Wrigth e Fanon, Sartre começa a repensar a figura que representou. No curto período de apenas 3 anos entre as conferências no Japão e Maio de 68, vê o papel do intelectual modificar-se. O intelectual clássico, ao menos, parece não fazer muito mais sentido, parece ser pouco diante do passo a mais que é necessário realizar. "Podemos pensar também que a morte de Fanon significa para Sartre o fim de uma época de sua vida - talvez simplesmente o fim da figura do compromisso que ele encarnava desde 1945 [...]. Para Sartre, o momento é de recapitulação"52 (CORMANN, 2021, pp. 286, 287).
Sem uma resposta definitiva à questão, Sartre lamenta o fim do intelectual clássico, e parece ter esperança no surgimento de um novo tipo de intelectual, mais próximo da dissolução de sua existência.
Cabe a nós, atualizando a questão sartriana, do mesmo modo que ele atualizou o universal singular de Kierkegaard para pensar questões de seu tempo, discutir sobre a existência e a função de intelectuais no mundo atual, no qual as redes sociais não mais garantem o reconhecimento do técnico do saber prático53, e em que o desvelamento das contradições se diluem em meio ao bombardeio incessante de informações. Como tornar efetiva a denúncia do machismo e do racismo que permanece sob a ideologia abstrata universal da classe dominante? Como dialogar sem hierarquia com outras classes sociais?
Permanecemos em uma sociedade que discursa um humanismo abstrato e burguês, mas que parece ter conseguido apagar o peso das palavras e das ações do intelectual. Como então, fazer reviver essa figura? Ou como efetuar o passo não realizado por Sartre, e passarmos do intelectual clássico ao intelectual revolucionário?
São questões que Sartre nos deixa. Em sua teoria, vimos a importância do papel do intelectual clássico na compreensão de ser fruto de um falso humanismo, que, em nome de um universal abstrato, oprime, por exemplo, mulheres e negros. Esse intelectual, teórica e praticamente, anuncia a necessidade de construir um outro universal, que se reconhece como construção concreta e singular. Mas não só sua teoria nos devolve as questões feitas por ele - também sua prática nos traz a renovação de possibilidades e limites de um intelectual clássico. Reclamar Sartre vivo passa, necessariamente, por atualizarmos suas questões, e por nos posicionarmos, na teoria e no modo de vida, sobre as contradições de que somos frutos e que devemos eliminar.
Referências
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COOREBYTER, Vincent de. Sartre avant la phénoménologie. Bruxelas: Ousia, 2005.
CORMANN, Gregory. Sartre. Une anthropologie politique. Bruxelas: Peter Lang, 2021.
DOSSE, François. A saga dos intelectuais franceses 1944-1989. Volume 1. São Paulo: Estação Liberdade, 2021.
FERON, Alexandre. Le moment marxiste de la phénoménologie française. Cham: Springer, 2022.
SAPIRO, Gisèle. Des mots qui tuent - la responsabilité de l'intellectuel en temps de crise (1944-1945). Paris: Éditions du Seuil, 2020.
SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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SARTRE, Jean-Paul. Questões de Método. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
SALZMANN, Yvan. Sartre et l'authenticité - vers une éthique de la bienveillance réciproque. Genebra: Labor et Fides, 2000.
SIRINELLI, Jean-François. Deux intellectuels dans le siècle, Sartre et Aron. Paris: Fayard, 1995.
TURKI, Mohamed. Jean-Paul Sartre - l'intellectuel et son sombre. Paris: L'Harmattan, 2021.
Notas
2 Se é verdade que os temas discutidos por Roquentin são escolhidos pelo autor, não podemos dizer que tudo que é dito pelo personagem é exemplo positivo da teoria do filósofo. COOREBYTER (2005) aponta para a existência da autoironia nos escritos de Sartre, e para a insistência nos heróis anti-heróis.
3 No original: "il est vrai que, jusqu'à 1939, Sartre affichait un certain 'nihilisme libertin' que ses premières oeuvres littéraires reflètent implicitement".
4 No original: "un tournant dans le sens de l'humanisme [qui] va se faire remarquer à partir de 1939".
5 Sartre apresenta, nas 03 conferências no Japão, dois tipos de intelectual: o orgânico, e o que nomeará depois de clássico. Embora descreva o intelectual clássico nas conferências, Sartre não chega a nomeá-lo desse modo. É em uma entrevista dada em 1970, quando mostra o surgimento de um novo tipo de intelectual (o revolucionário), e na apresentação da parte "Os intelectuais" de Situações VIII, que retrospectivamente "o intelectual" das conferências passa a ser chamado de "intelectual clássico".
6 No original: "cet ensemble des valeurs et d'idées - qui aboutit finalement à ces deux formules: tout homme est bourgeois, tout bourgeois est homme - porte un nom: c'est l'humanisme bourgeois".
7 As universidades estabelecem o número de vagas para cada curso, assim como o número de bolsas. E para acesso ao trabalho, novos processos seletivos são realizados. Os possíveis são sempre delimitados de antemão a depender da classe social em que nascemos.
8 No original: "Le technicien qui invente pour tous n'est finalement [...] qu'un agent de paupérisation pour les classes travailleuses".
9 No original: "s'occupe de ce qui le regarde (en extériorité: principes qui guident sa vie, et intériorité: sa place vécue dans la société) et dont les autres disent qu'il s'occupe de ce qui ne le regarde pas".
10 No original: "En posant que c'est l'acte d'écrire qui engage, Sartre récuse l'alternative d'une autonomie fondée sur la gratuité et impliquant l'irresponsabilité de l'écrivain, telle que la revendique alors Jean Paulhan, et d'un engagement politique qui sacrifie l'autonomie de l'écrivain à son sens des responsabilités, selon le modèle du militantisme communiste incarné alors par Aragon et Éluard [...]. La conception de la 'littérature engagée' qu'il développe lui permet ainsi de réaffirmer l'autonomie de l'écrivain à l'égard du monde politique sans tomber dans le paradigme de l'irresponsabilité".
11 No original: "Au moment de la Libération, Sartre cherche à donner un prolongement politique au concept de situation - ce qui lui permettra, à partir de 1947, de rassembler ses divers textes politiques, philosophiques et esthétiques sous le titre de Situations".
12 No original: "Si le rayonnement intellectuel de Jean-Paul Sartre s'affaiblit dans les années 1960, son engagement politique reste dense".
13 Como abordaremos a seguir, não é um acaso a passagem da teoria à ação. A noção teórica sobre o que é um intelectual exige que este se coloque pessoalmente em questão, o que implica modificar as ações cotidianas.
14 Sartre dirá que não se trata de um decisionismo isolado, que tanto a classe trabalhadora quanto a classe dominante podem criar situações que pressionem e levem o intelectual a se engajar. Cf. SARTRE. Plaidoyer pour les intellectuels.
15 No original: "On leur masque dès l'enfance par une fausse universalité la réalité sociale qui est l'exploitation du plus grand nombre par une minorité: on leur cache sous le nom d'humanisme la véritable condition des ouvriers et des paysans et la lutte des classes; par un égalitarisme menteur l'impérialisme, le colonialisme, le racisme qui est l'idéologie de ces pratiques".
16 No original: "l'humanité était faite de bourgeois, blancs et masculins".
17 No original: "L'ambiguïté de son objet éloigne l'intellectuel de l'universalité abstraite [...]. La veritable recherche intellectuelle, si elle veut délivrer la vérité des mythes qui l'obscurcissent, implique un passage de l'enquête par la singularité de l'enquêteur. Celui-ci a besoin de se situer dans l'univers social pour saisir et détruire en lui et hors de lui les limites que l'idéologie prescrit au savoir. C'est au niveau de la situation que la dialectique de l'intériorisation et de l'extériorisation peut agit".
18 No original: "Il s'agit de prendre l'individu concret tel qu'il est donné dans une société à un moment historique déterminé".
19 No original: "totalité synthétique composée à la fois d'un apport du côté du monde (le datum, le donné brut) et du côté du sujet (le choix de soi-même qu'est notre projet)".
20 No original: "La pensée de l'intellectuel doit se retourner sans cesse sur elle-même pour se saisir toujours comme universalité singulière, c'est-à-dire singularisée secrètement par les préjugés de classe inculqués dès l'enfance alors même qu'elle croit s'en être débarrassée et avoir rejoint l'universel. Il ne suffit pas (pour ne citer qu'un exemple) de combattre le racisme (comme idéologie de l'impérialisme) par des arguments universels, tirés de nos connaissances anthropologiques: ces arguments peuvent convaincre au niveau de l'universalité; mais le racisme est une attitude concrète de tous les jours; en conséquence de quoi, on peut tenir sincèrement le discours universel de l'antiracisme et, dans les lointaines profondeurs qui sont liées à l'enfance, demeurer raciste, et, du coup, se comporter sans le voir en raciste dans la vie quotidienne. Ainsi l'intellectuel n'aura rien fait, même s'il démontre l'aspect aberrant du racisme, s'il ne revient pas sans cesse sur lui-même pour dissoudre un racisme d'origine enfantine par une enquête rigoureuse sur 'ce monstre incomparable', soi".
21 No original: "Contre l'humanisme bourgeois, la prise de conscience de l'intellectuel lui montre à la fois sa singularité et que c'est à partir d'elle que l'homme se donne comme le but lointain d'une entreprise pratique de tous les jours".
22 No original: "Il est vrai que la mort se présente d'abord comme une chute du sujet dans l'objectif absolut. Mais Kierkegaard, dans ses écrits - aujourd'hui inertes ou vivants de notre vie -, propose l'usage inverse des mots".
23 O argumento de Sartre sobre Kierkegaard também poderia ser utilizado para falar de um "Sartre vivant". Na medida em que retomamos suas questões dos anos 1965 e 1966, por nos colocarmos diante de um filósofo que afirma a existência e a impossibilidade de determinar as subjetividades, também devemos colocar em questão nosso saber sobre nós mesmos. Mais que isso: devemos questionar nossa postura no mundo atual.
24 No original: "Le questionneur est mis en question dans son être par le questionné".
25 Em Questões de Método, Sartre afirma que "Kiekergaard é inseparável de Hegel e essa negação obstinada de qualquer sistema só pode ter origem em um campo cultural inteiramente comandado pelo hegelianismo" (SARTRE, 2002, p. 24).
26 No original: "Kierkegaard repousse l'une et l'autre solution. Le paradoxe, pour lui, c'est qu'on découvre l'absolu dans le relatif".
27 No original: "Si l'objectivité doit être savoir inconditionné, il n'y a pas d'objectivité réelle".
28 Feron retomará essa ambiguidade ao analisar a relação entre existencialismo e marxismo na filosofia de Sartre: "il s'agit à chaque fois de dépasser l'objectivisme du militant et le subjectivisme de l'aventurier vers une nouvelle figure de la subjectivité qui répondrait à l'exigence d'une morale concrète et historique" (FERON, 2022, p. 313). Ora, o que está em questão, em ambos os temas, é a relação entre subjetividade e objetividade, universal e singular, absoluto e relativo. Se é necessário sair do objetivismo alheio às subjetividades, também é necessário sair do subjetivismo idealista, indiferente às objetividades. Criticar o pensamento de sobrevoo da ideologia burguesa não significa, para Kierkegaard e para Sartre, assumir um relativismo subjetivista, mas a assunção do paradoxo.
29 No original: "La révolution c'est que l'homme historique, par son ancrage, fait de cette universalité une situation particulière et de la nécessité commune une contingence irréductible. Autrement dit, loin que l'attitude particulière soit, comme chez Hegel, une incarnation dialectique du moment universel, l'ancrage de la personne fait de cet universel une singularité irréductible".
30 No original: "l'homme, irrémédiable singularité, est l'être par qui l'universel vient au monde".
31 No original: "incarnation singulière de la totalisation en cours qui l'enveloppe et la produit".
32 Noção que é retomada aqui, e trabalhada anteriormente em Questões de Método: "seria necessário mostrar a necessidade conjugada da 'interiorização do exterior' com a 'exteriorização do interior'. Com efeito, a práxis é uma passagem do objetivo para o objetivo pela interiorização; o projeto como superação subjetiva da objetividade em direção à objetividade" (SARTRE, 2002, p. 80).
33 No original: "Le sens, c'est l'universel singulier".
34 No original: "à la fois singuliers et universels, absolus et relatifs, totalisations et détotalisations"
35 No original: "L'oeuvre de Kierkegaard, c'est lui-même en tant qu'universel. Mais d'autre part le contenu de cette universalité reste sa contingence même élue et dépassée par le choix qu'il a fait d'elle. Bref, elle est à double face: par son sens elle élève la contingence à l'universalité concrète".
36 No original: "Kierkegaard a montré que l'universel entre singulier dans l'Histoire, dans la mesure où le singulier s'y institue comme universel. Sous cette nouvelle forme de l'historialité, nous retrouvons le paradoxe qui prend ici l'aspect indépassable d'une ambiguïté".
37 No original: "Sartre considère que l'Histoire est et restera toujours une totalité détotalisée, dont le sens n'a d'autre origine que l'entrelacs perpétuel de l'universel et du singulier, que l'ancrage des hommes dans l'Histoire concrète".
38 No original: "l'universel humain est à faire".
39 No original: "cet agent historique, entièrement conditionné par les circonstances, est précisément le contraire d'une conscience de survol".
40 No original: "cette particularisation absurde les amène eux aussi à viser l'universalité: non point celle de la bourgeoisie [...] mais une universalité concrète d'origine négative".
41 No original: "dépassement de leur particularité vers l'universalisation du particulier à partir de ce particulier-là".
42 No original: "un mouvement d'une singularité vers l'universalisation".
43 No original: "L'imbrication charnelle entre l'absolu de chaque vie individuelle et le relatif de chaque situation historique particulière nous semble révéler l'un des aspects les plus enrichissants et les plus exigeants de la pensée de Sartre".
44 No original: "cette intériorisation de l'extérieur qui se fait par le mouvement même par quoi j'extériorise mon intériorité - c'est précisément ce que nous appelons l'être-dans-le-monde ou l'univers singulier. Cela peut encore s'exprimer autrement: partie d'une totalisation en cours, je suis le produit de cette totalisation, et, par là, je l'exprime entièrement; mais je ne peux l'exprimer qu'en me faisant totalisateur".
45 A uma leitura da arte pela arte, que identificava a liberdade do escritor como irresponsabilidade; e a uma leitura da arte submetida a um partido, que identificava a responsabilidade com a falta de liberdade; Sartre teria mostrado a intersecção entre liberdade e responsabilidade da escrita.
46 No original: "Dans l'article intitulé 'La fin de la guerre', paru dans le premier numéro des Temps modernes, en octobre 1945, Sartre décrit l'expérience de la Seconde Guerre mondiale comme une expérience existentielle qui a permis à la génération des hommes de quarante ans, cette génération pacificiste de l'entre-deux-guerres, qui avait cru la paix éternelle, après la fin de la Grande Guerre, de prendre la pleine mesure de sa responsabilité".
47 No original: "incarner un type d'intellectuel et d'inséminer des idées".
48 No original: "Dans ce contexte, la 'Présentation' du premier numéro des Temps Modernes en octobre 1945 [...] n'a été sur le moment qu'une contribution parmi d'autres au débat. Et pourtant c'est bien ce texte que la postérité a retenu".
49 DOSSE (2021) e SIRINELLI (1995) relatam 03 manifestos sobre a Guerra da Argélia assinado por intelectuais. Um defendia o General de Gaulle e a França, outro colocava-se a favor da independência argelina, mas contra a violência realizada pelos argelinos (carta assinada pela maior parte dos intelectuais) e o manifesto dos 171 que, além de se colocar ao lado dos argelinos, apoiava todo tipo de resistência.
50 No original: "fut, en quelque sorte, la rencontre d'une grande cause avec une grande personnalité".
51 No original: "J'ai compris aujourd'hui qu'il ne pouvait s'arrêter au stade de la conscience malheureuse (idéalisme, inefficacité) mais qu'il devait s'attaquer à son propre problème ou, si l'on préfère, nier le moment intellectuel pour tenter de trouver un nouveau statut populaire".
52 No original: "On peut aussi penser que la mort de Fanon signifie pour Sartre la fin d'une époque de sa vie - peut-être tout simplement la fin de la figure de l'engagement qu'il incarnait depuis 1945 [...]. Pour Sartre, le moment est à la récapitulation".
53 O discurso de um técnico do saber prático, nas redes sociais, tem tanto valor quanto o discurso de alguém que não detém o saber técnico.
Notas de autor