Artigos

O drama da existência: a ontologia de Sartre

The drama of existence: Sartre's ontology

Marcelo Prates 1
Universidade Estadual do Centro-Oeste, Brasil

O drama da existência: a ontologia de Sartre

Griot: Revista de Filosofia, vol. 23, núm. 1, pp. 307-327, 2023

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Recepción: 11 Agosto 2022

Aprobación: 27 Enero 2023

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar os princípios da ontologia de Sartre. Partindo da discussão acerca do fundamento e da separação entre ser e nada, e ser e fenômeno, procuramos ressaltar a unidade sintética de tais princípios a partir da finitude e do indivíduo. Este movimento permite compreender o caráter prático desta filosofia e a forma própria da ontologia de Sartre, a saber, como uma antropologia existencial.

Palavras-chave: Ontologia, Metafísica, Antropologia existencial, Psicanálise Existencial, Finitude.

Abstract: This article aims to analyze the principles of Sartre's ontology. Starting from the discussion about the foundation and the separation between being and nothingness, and being and phenomenon, we try to emphasize the synthetic unity of such principles from the finitude and the individual. This movement allows us to understand the practical character of this philosophy and the proper form of Sartre's ontology, namely as an existential anthropology.

Keywords: Ontology, Metaphysics, Existential Anthropology, Existential Psychoanalysis, Finitude.

A ontologia fenomenológica de Sartre é envolvida em um debate constante acerca dos seus princípios. Devido ao caráter regressivo da Introdução da obra, serão frequentes as acusações, sobretudo a partir das de Merleau-Ponty, sobre as consequências ou mesmo prejuízos que tal tratamento trouxe em geral a sua ontologia. À esteira disso seguem as acusações, como a de Haar, de uma ingenuidade2 frente aos postulados da tradição moderna, ou mesmo a tentativa de situação de sua ontologia dentro da história da Metafísica, como faz o trabalho de Bornheim. Por outro lado, essa circularidade entre questões ontológicas, fenomenológicas, e que por vezes se deparavam às metafísicas, Prado Junior (2006, p. 35) as via como movimentos necessários para atingir uma plena ontologia. Ora, é justamente no meio desse processo de construção de sua filosofia que é preciso ressaltar a originalidade e distinção desta ontologia. É preciso, assim, observar não apenas a condição que faz de Sartre “um fenomenólogo original” (Coorebyter, 2003, p. 21), ou diametralmente oposto à Husserl (Mészáros, 2012, p. 146), mas a natureza do princípio segundo ao qual ela se constrói. É ali que encontramos a exigência e grandeza da ontologia de Sartre, aquela que reclamava a finitude do finito (BORNHEIM, 2003, p. 193), mas que, a despeito de todos os esforços, não a teria alcançado.

Embora, segundo Bornheim, isso não diminuísse a grandeza de tal filosofia, mas justamente a enfatizasse ao mostrar que o impasse é a Metafisica (Idem, p. 206), essa paixão (Idem, p. 217) inserida no coração da própria finitude. Todavia, é por pensar sempre o ideal em-si-para-si como tessitura do próprio fundamento que se ficava demarcada a impossibilidade de tal descida total à finitude, embora essa filosofia apregoasse a total transposição do fundamento ao outro que não o ser, isto é, o sacrifício do fundamento e a guinada do homem à tal dignidade:

A morde de Deus, a destituição do fundamento, devolve ao homem à motivação primeira da Metafísica, ao pleno entendimento do que seja superar a separação. Sartre leva a Metafísica ao seu termo no sentido de que seu pensamento se concentra, metafisicamente, na impossibilidade de vencer a separação. Atingindo o absurdo, a Metafísica como que volta à sua origem, à contradição que impulsiona o seu desenvolvimento. E em meio à desolação, brota a pergunta: que sentido atribuir à finitude do finito? Qual é a medida do homem? (Ibid. – negrito meu)

É nessa ambiguidade, de não superação do niilismo metafísico, que essa tomada da finitude do finito mostra ainda que seu salto último não teria sido realizado a despeito de todos os esforços de Sartre. É nela, ainda, que essa filosofia transita entre a metafisica e sua história, entre a superação da crise e o salto para além dela, essa exigência pós-metafisica (MÜLLER, 2006, p. 27). E por mais que ele não a alcance, como aponta Bornheim, o fato de colocar a questão nesses termos ao menos permite a visualização de tal horizonte. Não por menos é o que enfatizam as interpretações que apontam o caráter eminentemente prático desta ontologia, como as de Jeanson (1947, p. 146) e Mészáros (2012, p. 147), relegando o caráter metafísico a um momento de seu pensamento e, por isso, procurando considerar a totalidade da obra de Sartre, sobretudo Mészáros, ante a qual tais problemas se apequenam e nos possibilitam essa outra imagem na qual o humano é elevado à dignidade do fundamento, dando a esta ontologia um caráter eminentemente prático.

Nossa hipótese é que encontramos no próprio tratamento do princípio de sua ontologia as condições para visualizar tanto esse ultrapassamento da metafísica, ainda que haja protestos sobre tal tese, quanto a justificação de seu caráter eminentemente prático. Ou seja, é na própria finitude que encontramos a chave de compreensão para tal problema. É preciso, assim, dar um outro agenciamento ao problema da separação ontológica entre ser e nada, não o negando, ou mesmo aceitando tal ambiguidade frente à tensão ontológica constituinte, mas também colocando a ordem das razões de acordo com a originalidade que tal princípio denota, nos alocando, assim, à real postulação do finito na filosofia de Sartre. Trata-se da outra margem do abismo, pois se o finito agora não é mais compreendido pelo infinito, mas tomado nele mesmo enquanto “inversão do sentido do fundamento” (BORNHEIM, 2003, p. 206), não é à Metafísica (e dela para a moral) que nos guiamos, mas a uma antropologia existencial (e, portanto, dela para a ética; e também à clínica). Assim, é à psicanálise existencial enquanto análise do sentido ético da existência que devemos desembarcar e não à restituição do fundamento onto-teo-lógico. Cremos que tal hipótese pode ser corroborada com o desenvolvimento posterior da obra de Sartre sobretudo no que diz respeito à elaboração da psicanálise existencial: é somente explicitando uma vida que encontramos a expressão própria do ser; aquele que nos cabe de fato, a existência fáctica, e ao nosso que criamos, este que nos pertence por nosso próprio direito. No entanto, nosso objetivo neste trabalho é mais limitado e se circunscreve na análise do princípio e da finitude, apenas apontando tal horizonte que se abre a partir dessa senda.

Assim, o fio condutor para tal percurso é a explicitação das condições pelas quais o ser pode ser tratado segundo sua condição sintética. Pois mesmo sendo uma ontologia fenomenológica, ao cindir ser e fenômeno e determinar as condições transfenomenais do fenômeno, parte pela regressão analítica operada na Introdução de O ser e o nada, a ontologia de Sartre seria acusada constantemente da perda do concreto, seu maior mote filosófico. Porém, é justamente pela condição sintética, e que cremos ser expressada na individualidade que aponta o Ser, que esta ontologia deve ser perscrutada. Embora Sartre ao iniciar a primeira parte da obra assinale o ser-no-mundo como essa totalidade sintética, é da própria definição do ser que devemos partir para tal investigação: “O ser, com efeito, onde quer que seja, de onde quer que venha, e sob qualquer modo que seja considerado, quer seja ele o em-si ou o para-si ou o ideal impossível do em-si-para-si, na sua contingência primeira, é uma aventura individual3” (SARTRE, 2007a, p. 644, negrito meu). Ora, acreditamos encontrar nessa ênfase o caminho para a chave de leitura indicada. Por isso, será preciso perscrutar sobre a relação entre o total e o individual e o que implica para o Ser sua tessitura individual. Isso porque ao iniciar a primeira parte de O ser e o nada é à totalidade homem-no-mundo que Sartre reporta para se colocar novamente ao concreto. Todavia, essa reviravolta não impede que as marcas se apaguem.

A obra O ser e o nada começa com a postulação de um ser do fenômeno que não se reduz ao fenômeno, mas é sua condição. Toda análise conduz ali para a consideração do sentido desse ser, sendo este estabelecido segundo os seguintes modos possíveis: o para-si, o em-si, e o em-si-para-si. Mas ao partir do indivíduo, do homem concreto como totalidade homem-no-mundo (Idem, p. 37), a consciência aparece não mais como condição do próprio fenômeno, mas um momento da análise regressiva que iniciava do indivíduo concreto até sua condição ontológica. Ora, justamente por ser uma ontologia que é fenomenológica não era possível apreender o em-si puro e o para-si puro, mas estes apenas estes enquanto modos frente à primazia da realidade concreta do indivíduo, isto é, como duas regiões ontológicas antagônicas subsumidas pelo indivíduo e, a partir disso, seria possível determinar a inteligibilidade dessa aventura existencial. O marco importante desse processo é que ele delimitava a consciência como um momento do concreto e não ela o concreto total. O concreto total segundo a obra deveria ser a ipseidade4, a totalidade homem-no-mundo, a relação necessária entre consciência e mundo, transcendência e facticidade. No entanto, embora ela aluda ao concreto total isso não significa que este seja o concreto da totalidade, isto é, a totalidade ontológica.

Nesse momento da sua filosofia a totalidade é pensada por Sartre ainda como unidade entre em-si-para-si que se apresenta também ela como individual, embora seja constantemente tratada como uma síntese impossível, restando a tensão ontológica entre os termos. Por isso que sobre as primeiras obras “não há dúvida alguma de que a busca do indivíduo é preocupação central” (MÉSZÁROS, 2012, p. 100) mas, “não há sinal algum de que o total seja confundido com o individual5”. Isso porque mesmo que o fenômeno apareça como um todo e a negação seja a determinação do isto como objeto determinado sobre um fundo, que é o todo do ser (tout l’être) (SARTRE, 2007a, p. 216), trata-se ainda da totalidade no âmbito fenomênico. Nesse âmbito, a multiplicidade é uma determinação da negação e não há múltiplos seres, nem um ser total em sentido ontológico, dado o impossível em-si-para-si. Ou seja, o âmbito concreto por sua totalidade caberia apenas ao âmbito fenomênico, mas ao ontológico não caberia uma totalidade geral nem totalidades isoladas, dada a impossibilidade de síntese entre o para-si e o em-si. Nesse caso a totalidade aparece apenas como um valor, como uma indicação ou pré-compreensão do em-si-para-si que jamais se efetua. Visto por este viés, a ontologia aponta a real relação entre os termos no seu antagonismo, cujo fenômeno aparece como uma tensão entre consciência e mundo, mas sem comunicação e envolvimento, embora, de fato, isto é, fenomenicamente, essas regiões sejam sintéticas. No entanto, se o fenômeno é o resultado da relação entre ser e nada, ou ainda, o fenômeno é o em-si nadificado, é preciso lembrar que ele afere não aos princípios gerais, mas à finitude da relação:

O para-si não tem outra realidade senão a de ser nadificação do ser. Sua única qualificação lhe advém do fato de que ela é nadificação do em-si individual e singular e não de um ser em geral. O para-si não é o nada em geral, mas uma privação singular; constitui-se em privação deste ser (Idem, p. 666 – negrito meu)

Desta forma, embora haja essa dissimetria entre totalidade ontológica e fenomênica, entre tensão ontológica e ser-no-mundo, elas não são duas totalidades substanciais que procuram comunicação posterior. Daí a necessidade em tomar o indivíduo não como um momento da totalidade, ou apenas a dimensão concreta e fáctica, pois a realidade do para-si (e do Ser) é sua individualidade condicionada pelo fenômeno singular que lhe compete, o que poderíamos traduzir, de imediato, que seu ser implica sua finitude. Isso mostra que inicialmente a finitude aparece não apenas como uma condição fáctica, uma região limitada do ser, mas como uma determinação ontológica da sua singularidade.

Por isso, se Sartre em A transcendência do ego (1994, p. 48) determinava que “a individualidade da consciência provém evidentemente da natureza da consciência”, então, posteriormente, na medida em que o Ser subsume a consciência, ela passa a ser um momento da forma dessa realidade ontológica, ou seja, como sua privação singular, denotando a totalidade ao fenômeno e não somente à consciência. Ora, ali em A transcendência do ego a consciência é considerada absoluta, pois não foi estabelecida de forma ontológica uma investigação do ser do transcendente, fazendo da autonomia e espontaneidade as condições de sua absolutização. Mas, quando o ser todo passa a ser compreendido não como ausência de fundamento, mas como privação singular, sendo essa relação entre identidade e distância como reflexividade (SARTRE, 2007a, p. 117) e redobramento (SARTRE, 1990, p. 19), o nada, como buraco no ser, passa a demarcar a qualidade própria da consciência como sua singularização fáctica, isto é, privação deste ser.

Todavia, na introdução de O ser e o nada se opera novamente tal distinção ao postular a dupla condição transfenomenal e a impossibilidade de relação no Ser, donde se seguirá sua contingência absoluta. Sartre elabora isso quando pensa a natureza do em-si para depois radicalizá-la como ato ontológico até, por fim, relegar à metafísica a origem de tal processo. Questão esta que não poderá ser desdobrada nos quadros da ontologia devido a forma com que o ser se apresenta na sua contingência. As condições são inflexíveis: ou o ser é criado, e nesse sentido recair-se-ia na tese da analogia segundo a qual o ser criado deve ser dependente deste que o criou, de modo que retira seu ser de seu criador sendo eles, portanto, o mesmo ser, ou mesmo sendo criado ele conseguiria resguardar sobre si mesmo este ser, ou seja, adquiriria uma completa autonomia de modo a não deixar transparecer as marcas da criação sendo, portanto, seu próprio e mesmo ser. É por isso que o que radicaliza a tese da contingência como ausência de fundamento, ou seja, de relação, é que em ambos os casos o ser aparece como uma totalidade isolada, pois mesmo mantendo relação interna o ser do criador com o ser da criatura é o mesmo e, caso seja retomado numa autonomia absoluta, ele se fecha numa mesma totalidade cuja demarcação denota seu ser como absoluto, isto é, como seu mesmo ser. Em todo caso a identidade leva à ideia de que o ser só pode ser incriado, pois mesmo que fosse criado, por retomar o ser sempre de forma absoluta, ou seja, sempre como o mesmo, ele não se diferencia nem se distancia como outro.

Em outras palavras, o ser é sem relação, seja para consigo, seja para com Outro: plenitude e positividade absoluta. Assim sendo, “um existente fenomênico, enquanto existente, jamais pode ser derivado de outro existente. É o que chamamos a contingência do ser-em-si” (SARTRE, 2007a, p. 40). Decorrerá desse estar pleno de si mesmo a condição da sua opacidade, seguindo-se disso seu isolamento absoluto, isto é, ele não mantém relação alguma como o que ele não é (Idem, p. 32), pois não há comunicação entre positividades absolutas. Daí as críticas de Merleau-Ponty de que ao determinar o puro ser e o puro nada Sartre estaria tornando esses elementos positivos, donde se seguia sua incomunicabilidade e disso a impossibilidade de ascensão seja dialética, acrescentamos, seja do fundamento. Pela sua positividade seriam eles dois seres exteriores e isolados cuja totalidade seria apenas negativa (a hipótese do em-si-para-si) – voltaremos a isso. Em todo caso, assim é demarcada a contingência no sentido de não haver relação possível ao ser. Entretanto, isso não deveria ser tomado segundo a fórmula do ser geral, mas justamente da sua individualidade devido a sua condição de singularidade, isto é, enquanto privação singular deste ser.

Nossa justificativa sobre tal tomada é que o Ser individual nunca é uma totalidade fechada porque se o fosse teria de se encerrar no mutismo absoluto, onde a própria ideia de concretude da existência seria relegada ao absurdo, pois o indivíduo não ­versaria sobre si. Por isso ele não poderá ser afirmado como imanência absoluta, o que leva Sartre a pensar mesmo essa imanência como uma relação a si (Idem, p. 31), ainda que numa distância mínima. Essa distância será associada à forma mesma da consciência que revela este objeto enquanto não sendo ele, fazendo que a tese fenomenológica implique a ontológica. Diante disso, essa mesma consciência só pode ser ela individual enquanto surge como privação singular deste ser (Idem, p. 666). Nesse sentido, a contingência é resguardada numa dimensão de ser, o em-si, e a distância singularizadora em outra, o para-si. Ora, a partir disso o Ser realmente não poderá mais ser compreendido como em-si-para-si enquanto totalidade, mas como tensão, como tentativa de ser seu fundamento, ou melhor, como quase-totalidade. Não sendo totalidade, a relação agora será possível porque a totalidade não se concretiza enquanto totalidade. A consciência aparece como essa distância mínima no bojo da imanência, ela aparece como em-si nadificado na medida em que configura de forma ontológica a ideia de fenômeno como consciência de alguma coisa. Mas isso não afere ao em-si-para-si como síntese, senão ao próprio fenômeno na medida em que o em-si nadificado aparece na forma individual como privação singular deste ser. Por isso que o fenômeno é essa relação na imanência na medida em que não é possível essa adequação plena, para a qual o resultado seria justamente um mutismo ontológico, isto é, a impossibilidade do campo fenomenológico.

Desta forma, esse surgimento do nada no ser, de esboço de transcendência no seio da imanência, e o que Sartre chama de ato ontológico, não pode ser distinto da fenomenização que ocorre sobre o ser, ainda que ela não sintetize na forma do fundamento metafísico (o em-si-para-si), isto é, permaneça como fenômeno (nada de ser). Em outras palavras, se o fenômeno não atinge a dignidade da causa de si não é apenas porque o ser, sendo sem relação, é independente do fenômeno e o total impossível como em-si-para-si, mas porque o Ser é resguardado em sua finitude e singularidade. É ali que ele fundamenta a si enquanto nada de fundamento e dá o direito de ser em sua própria facticidade. Por isso, como observa Bornheim (2003, p. 319) “o ser não é fundamento ôntico do real, e sim fundamento ontológico. E se o ser é nada, então o ser é nada de fundamento. O ser não é causa do real. O ser é fundamento apenas porque resguarda a finitude do processo real na sua condição de finitude”. Deste modo, se o fenômeno requer sua dignidade ontológica é apenas na condição de que o Ser seja finitude. Por ser fundamento ontológico o ser finito não é apenas a matéria concreta do fenômeno, sua facticidade, mas a condição de finitude do ser enquanto privação singular deste ser. Assim, para que a finitude seja a condição da singularização fáctica é preciso que a transcendência também seja envolvida pela finitude. Sem tomarmos a finitude como condição sintética permaneceremos na separação radical cuja crise anuncia o niilismo metafisico ou o fundamento que se dá apenas como aparência sem alcançar legitimidade própria, separando o fato de seu direito. Seria fazer da liberdade um esforço vão e indiferente para ela mesma, cujo concreto aferiria apenas ao absurdo ou o impossível.

Ora, quando Sartre efetua a compreensão “dos processos individuais que deram origem a este mundo como totalidade concreta e singular” (SARTRE, 2007a, p. 667), estudos estes que ele chama de metafísicos, ele chega a um impasse. Entramos aqui, pelo terreno da metafísica, na orla do problema da individuação. Levando a cabo a ontologia sartriana os objetos do mundo ganham o contorno de objetos por pressuporem a consciência, de modo que o para-si não se relaciona a um ou vários transcendentes, mas é o fenômeno mesmo que aparece como transcendência na imanência. Por isso, se se buscasse um princípio de individuação este não poderia ser transcendente ao mundo, do ser ao fenômeno. Nesse caso, não convém perguntar como o mundo comporta istos individuais, ou como do uno procede o múltiplo, pois eles são resultados da atividade nadificadora do para-si, isto é, é como o para-si se dá como mundo, com todos os seus istos individualizados e múltiplos na unidade de uma singularidade existencial que é o indivíduo. Por isso, a solução tradicional que comporta as estruturas de matéria e forma não cabem aqui porque ao afirmar que o ser é incriado se estabelece uma condição na qual não faz mais sentido falar que o ser é individualizado, pois ser indivíduo é sua condição de ser enquanto ser. Embora explicite isso em outro contexto, no caso, a filosofia de Merleau-Ponty, é muito válido o esclarecimento de Barbaras acerca deste tema:

Não se trata de partir do indivíduo constituído ao termo de uma individuação da qual seria preciso buscar os princípios, mas de apreender o indivíduo a partir de sua individuação e como individuação. Ele afirma a ideia de que a individuação não designa uma fase incompreensível que precede o indivíduo, e cuja explicitação necessita de um recurso a um princípio, mas é um momento positivo e último. (1991, p. 213)

Por certo, esse terreno da Metafísica é ambíguo em Sartre, o que demarca já de antemão uma insuficiência de resposta a estas questões. Sartre não desenvolve esta metafísica por ele apregoada nas Conclusões de O ser e o nada, e quando se depara com questões de ordem genética elas ficam insolúveis do ponto de vista dessa metafísica, recebendo respostas pelo próprio plano da fenomenologia, isto é, como fato positivo, cuja resposta só pode ser “é assim”. Por isso, aqui o indivíduo não é concebido mediante sua origem. Ele aparece como uma positividade última da qual não se pode ir além, como buscam as análises tangentes ao princípio de individuação ou genéticas da metafísica (PRADO JUNIOR, 2006, p. 33). Por isso, para esta ontologia não faz sentido tomar o Ser e seus modos como princípios separados. Sartre sempre os trata como “princípios regionais”, como regiões sintéticas do Ser (SARTRE, 2007a, p. 29, 32). Ora, mas se a diferença entre eles, sua natureza é tal que permite ao para-si, e somente ele, voltar-se à questão sobre a sua própria origem (Idem, p. 667), a ontologia não pode responder sobre a origem de tal ocorrência, uma vez que se trata de “explicar um acontecimento, não em descrever as estruturas de um ser” (Idem, 668). E se sem ser consciência o Ser não poderia aspirar a ser “causa de si” (Ibid.), nada destitui essa consciência de sua condição de síntese, pois mesmo que o ser seja independente do fenômeno, ele só nos pertence de direito na sua condição sintética, de modo que ou o ser é causa sui, ou se perde na noite da opacidade. Por isso que hipoteticamente “a consciência como nadificação do ser aparece como um momento (stade) de uma progressão rumo à imanência da causalidade, isto é, rumo ao ser causa de si” (Ibid.). Entraríamos, aqui, no terreno da metafísica, para a qual a única saída são hipóteses de que “tudo se passa como se o em-si, no projeto de fundar a si mesmo, conferisse a si a modificação de para-si” (Idem, p. 669). Ao final, Sartre permanece em suspenso ante essa hipótese e a conclusão de O ser e o nada encaminha ao limite da ontologia pela fenomenologia, cujo tipo de relação entre em-si e para-si, como dualidade seccionada ou um ser desintegrado, permanece indiferente à ontologia. Assim, a fenomenologia ali é como a impossibilidade da metafísica. Podemos ir do fenômeno ao ser do fenômeno, mas não ao acontecimento do ser, a origem do para-si no em-si, cujo resultado ou processo é a nadificação do ser como fenômeno. Logo, somos levados a tomar o fenômeno como processo do ser, mas sem uma origem metafísica, donde se segue a impossibilidade da totalidade ontológica nesses termos.

Por conseguinte, ou permanecemos na impossibilidade do discurso metafisico e vivemos essa impossibilidade, que é a tese de Bornheim, mas com isso destituímos a finitude do finito, ou assumimos a síntese, levando a cabo o ser na sua condição própria individual e singular, isto é, tomamos o ser na sua finitude e as suas regiões como momentos sintéticos de um processo singular, que é, na ordem das razões, aquela que Sartre parece aferir ao determinar o ser como uma aventura individual. Com isso passaríamos a apreender o Ser na sua radical finitude e por isso ele só poderia ser tomado como positividade dada. Em todo caso, o indivíduo não é um ser total, uma realidade fechada cuja impossibilidade da origem impossibilita a compreensão mesma dessa totalidade. Com efeito, o ser é uma aventura individual e a individualidade aqui é mais marcada pelo numericamente uno no sentido de uma singularidade com que se faz enquanto tal do que com a imagem do indivíduo dado como totalidade, mas separado de suas condições de direito. Por isso, o ser é tomado enquanto dado, sem genética, mas não é em absoluto dado, pois sendo quase-totalidade, seu ser fendido exigirá que, enquanto dado, ele é um fazer-se a si mesmo enquanto relação imanente a si: na sua finitude o ser é intotalizado, inacabado – totalidade destotalizada.

A singularidade como aventura, como processo de totalização e destotalização afere ao indivíduo a finitude do ser por este mesmo processo. Por isso a finitude é a tomada do ser como processo de transcendência na imanência, cujo processo não é total ou totalizado, mas de constante rombo, corrosão, este verme do nada no coração do ser. Ademais, é a aventura que é individual e não o indivíduo (um particular isolado no/do todo, o que não cabe na imagem que estamos tentando apresentar) que vive uma aventura. Nesse caso a aventura não é um evento que se passa com o ser, mas o ser mesmo e, por isso, a condição própria de sua inteligibilidade enquanto indivíduo: o ser é sua aventura individual. Assim, aventura e ato ontológico coincidem não no sentido de que há um processo que individualizou o ser, mas que ele mesmo é esse processo enquanto individualidade na imanência de si a si. Deste modo, o indivíduo não afere a uma totalidade isolada, mas ao ser como processo e este enquanto sua finitude. Portanto, é preciso buscar a inteligibilidade do Ser não no processo de origem do indivíduo, mas o indivíduo como processo, enquanto fenda na imanência ou privação singular, isto é, como aventura. Com isso, as condições transfenomenais do fenômeno aludem não a uma separação entre princípios genéricos, distintos, e cuja tensão teria o fenômeno como resultado, mas ao fenômeno como processo de singularização (transcendência) na imanência do ser, cujas condições não são separadas deste aparecer, devido a exigência da finitude que ele requer. O individual como singular restitui ao fenômeno a imagem da finitude do finito.

Por conta disso que mesmo não sendo um estudo genético há uma dificuldade inicial que se deve à natureza dos modos de ser que são associados sempre como princípios isolados ou separados. Como já afirmado, a filosofia de Sartre parte do concreto e toda a digressão ontológica o coloca como ser cujo estatuto se revela como indivíduo. Ora, dada a impossibilidade de se apreender o ser puro e o nada puro, observou-se que a fenomenologia possibilita a apreensão do seu sentido ontológico, sendo este em-si e para-si. O problema que surge é o de como se proporciona a inteligibilidade depois de chegado a tão fundo na análise. Veja-se que ao se tomar os princípios segundo não mais a condição de origem, mas de processo, nos é possibilitada uma mudança na ordem das razões. Pois, se depois da análise regressiva que buscava explicitar esses elementos primeiros era preciso dar conta de realizar a progressão, agora, uma vez que o ser-todo não é mais o resultado de um processo, mas é ele mesmo esse processo, então a regressão deve dar conta não apenas de revelar princípios, mas o movimento mesmo que a eles cabem, isto é, mostrar a confluência entre princípios e processo, ou o próprio processo como princípio. Ou seja, é preciso integrar a forma dos princípios ao movimento do conteúdo que é a existência. É por não se observar esse movimento que Merleau-Ponty acusará a filosofia de Sartre de ser uma filosofia de sobrevoo. Pois a analítica dos princípios traria, segundo ele, uma diferença radical do em-si como plena positividade e do nada como plena negatividade, o que colocaria os termos, ainda que em tensão, em uma estática, da qual não se procederia um movimento dialético progressivo. Em outras palavras, o mundo e o sujeito seriam destituídos de sua profundidade pelo privilégio do puro ser e do puro nada no cerne do mesmo Ser, dificultando a sua inteligibilidade, uma vez que o desprende de seu conteúdo concreto, mas o qual é requerido pelo processo.

A partir do momento em que me concebo como negatividade e o mundo como positividade, não há mais interação, caminho eu próprio diante de um mundo maciço; entre ele e mim não há encontro nem fricção, porquanto ele é o Ser e eu nada sou [...] é a mesma coisa não ser nada e habitar um mundo; entre o saber de si e o saber do mundo não há mais debate de prioridade, ainda que ideal; [...] Num sentido, o pensamento do negativo nos traz o que procurávamos, finaliza nossa pesquisa, coloca a filosofia em ponto morto[...] O pensamento do negativo puro ou do positivo puro é, pois, um pensamento de sobrevoo, que opera sobre a essência ou a pura negação da essência, sobre termos cuja significação já foi fixada e que mantém em sua posse (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 59, 63, 70 e 74).

Assim, se tomamos os modos de ser como princípios absolutos da realidade, o ser do concreto revela o concreto como absurdo, como indiferença6, único discurso que resta entre positividades incomunicáveis, um discurso raso de um fenômeno obsoleto. A tomada isolada da contingência absoluta já denotava seu peso radical ao colocar os termos num mutismo existencial que impedia a compreensão do ser como processo, aventura. Já se observou, também, que ao ser compreendido entre dois polos positivos exteriores a comunicação realmente seria impossível e que mesmo sendo contingente o ser deveria resguardar em si uma distância mínima como condição de relação sobre si, o que possibilitaria o próprio fenômeno de ser.

Ora, é nessa distância, nessa impossibilidade do total, que o indivíduo é tomado enquanto tensão essencial, mas não como tensão de uma dualidade absoluta. Tomado na forma dualista tensional, ser e nada impossibilitam qualquer movimento, qualquer processo. Não que aqui o processo seja uma guinada ao fundamento ou um percurso teleológico. Significa, antes, que o ser se faz finitude. Por isso, ao tomar o puro ser e o puro nada perderíamos a própria dimensão da finitude e o movimento mesmo que a requereu. Daí a falsa imagem de uma angústia paralisante e invencível, vazia e indiferente ante o absurdo da grande massa contingente de mundo que se ergue frente ao indivíduo, mas para a qual ele permanece ontologicamente distante. Por isso que essa separação paralisa a filosofia. Filosofia que para o Sartre da Crítica da razão dialética não mais existirá. Ali é exigido que a filosofia esteja em movimento, que ela interiorize o movimento do próprio mundo que a engendra e nele descubra sua profundidade. Por se reclamar a finitude, essa profundidade que Merleau-Ponty requer (Idem, p. 73), tal movimento não terá mais nada de metafísico; tratar-se-á, antes, de uma descida ao concreto. Nele,

a transcendência mostrar-se-á, progressivamente, como descida para o interior da finitude, ou como me permito dizer, como rescendência. O movimento da transcendência é um movimento do homem sobre si mesmo. É a exploração do peso positivo de sua finitude; A transcendência não será a grandeza do homem porque conduz para além de sua própria condição finita, mas porque volta o homem sobre si mesmo, em busca das dimensões radicais de sua própria e positiva condição de ser finito. (STEIN, 1976, p. 25 – negrito meu)

É próximo a esse problema7 que Donizetti da Silva realizará uma crítica do método em Sartre. Para Donizetti há prejuízos que a regressão analítica traz, o que induz à necessidade de uma variação metodológica a fim de resgatar o concreto dos prejuízos que o dissimularam. Por isso ele vê as constantes variações de método na filosofia de Sartre como fator positivo, de modo que a investigação de Donizetti (2010, p.278 e 279) busca um aporte metodológico que tome a estrutura de O ser e o nada, e, portanto, dê conta da dicotomia entre ser e nada, mas que mesmo assim permita falar em História sem renegar de forma absoluta a obra anterior. É por isso que ele parte da noção de situação e propõe o seu alargamento na Crítica.

Apesar disso, é preciso observar, tal como Bornheim, que não se trata só de uma insuficiência de método, mas da possibilidade proporcionada pelos princípios em ascender de imediato ao concreto absoluto. De fato, a complicação maior como o mostra Merleau-Ponty é que a regressão chega a elementos cuja relação não se desenvolve dialeticamente. Logo, a dificuldade maior é em como empreender um estudo sintético a partir da forma dos elementos que a analítica revelou, qual seja, uma incomensurabilidade dos princípios (e que tomamos como modos ou dimensões do Ser): “e do monismo passamos à experiência da separação radical” (BORNHEIM, 2003, p. 163). A separação radical como expressão da crise platônica da participação coloca no cerne do ser a invalidação do processo dialético. Tudo se passa como se Sartre já estivesse de posse do concreto, o fato do homem-no-mundo e sua ontologia conduzisse a elementos que o destituíssem, isto é, a elementos cuja síntese se mostra absurda ou o concreto como absurdo.

Ora, e aqui retomamos nossa hipótese, mas não se trata de partir depois de conhecido esses princípios, como se deixássemos de partir do meio para retornar e partir de um grau zero da experiência; como se, doravante, partíssemos da origem. Não se deve esperar que os princípios revelem a experiência concreta como que por sua reversão e a restituam por este mesmo movimento. O concreto é a singularidade da experiência, por isso é preciso voltar à mesma experiência à luz desses modos. Eles não conduzem a uma perda do mundo porque o mundo mesmo ainda é o fato, e o indivíduo ainda é o Ser como ipseidade. É preciso compreender, então, como que esses modos (e não princípios isolados, pois seria dar ao nada a mesma positividade do ser) do Ser não tornam o concreto ininteligível por eles. Em outras palavras, os modos podem ser condição para a inteligibilidade, mas não por serem origem e sim por abrir uma explicitação que exige que a totalidade dessa inteligibilidade seja reclamada pela finitude mesma, isto é, não ao ser e ao nada em geral, mas como privação singular (finitude do finito ou fenômeno) deste ser (finitude). Trata-se de tomar o ser e o nada enquanto unidade de singularização, mas a partir da própria singularização. Assim, voltamos à ordem das razões na qual a finitude é tomada como Ser. Pois se se trata de uma privação (negação enquanto singularização) deste ser, tal unidade só pode ser entendida enquanto processo aberto. É a saída para manter a totalidade aberta e em movimento, e que chega a algum lugar, ou seja, que faz o movimento realizar, mas cuja realização não funda senão a si mesmo por tal processo. Se tal processo é livre, é justamente porque esse fundar realiza concomitantemente a sua própria condição de realização.

Por isso que parte daquela ininteligibilidade se dava ao fato de que, devido à ênfase de alguns momentos das obras de Sartre, se compreenda o indivíduo como consciência e não como ipseidade, tomando ser e nada como princípios gerais, sendo que eles só podem ser levados a esse patamar por uma tomada de seus extremos, risco sempre recorrente e mesmo assumido por Sartre em alguns textos e entrevistas posteriores, mas cuja tessitura não se encontra na realidade como fenômeno. Marcas tão profundas que mesmo em O ser e o nada viriam a assombrar a ideia de ipseidade fazendo, por conseguinte, que se mantivesse a tese da filosofia de sobrevoo. Isso se percebe em análises como a da consciência em A transcendência do ego onde ela é compreendida na sua instantaneidade, embora se subsuma sua unidade temporal, mas sem desenvolvê-la, e que só posteriormente, em O ser e o nada, tal transcendência virá a ser compreendida enquanto temporalidade.

Outra forma seria a tomada em A náusea onde a experiência de Roquentin revelaria a ele a existência como pura contingência, donde se seguia os esforços malogrados em tentar justificá-la, tal como o apelo à arte. A descoberta da contingência enquanto desvelamento da liberdade, mas de uma liberdade que se assemelha à morte, a uma existência nula que perde seu engajamento no mundo porque este mesmo se destituiu, demarca bem essa perda do concreto não pela análise regressiva e dos princípios abstratos, mas porque a existência mesma se destitui da sua concretude pelo princípio absoluto que ela revelou sendo ela mesma taxada absolutamente por este princípio. Ora, quando Bornheim (Idem, p. 16) diz que “Roquentin encarna o método” ele está certo em perceber que método e indivíduo não são elementos exteriores. Tomado dessa forma, O ser e nada, mesmo em suas análises fenomenológicas das condições existenciais, se privaria do concreto por deixar de se reportar a um mesmo indivíduo concreto e datado, enfim, real, ao se deter nas condições críticas de forma abstrata, isto é, separando a condição do condicionado.

É por isso que essa relação entre indivíduo e método é sempre fonte de ambiguidade, vindo a proporcionar uma diversidade de interpretações. Bornheim vê que essa experiência de Roquentin lhe revela, progressivamente, a clareza de uma verdade última. Assim, mantém uma unidade. Moutinho, (1995, p. 61), por sua vez, critica Bornheim negado a possibilidade de assimilar nem a náusea ao método, nem Roquentin ao método. Isso porque uma vez desvelada a contingência ela alude que a unidade do mundo, do sujeito, lhe são ilusórias, e aquilo que Roquentin chama de aventura, isto é, uma unidade, seja do mundo, seja do sujeito, e entre ambos, só pode ser algo forjado retrospectivamente, mas que de fato não existe. Por isso, para Moutinho não haveria progressão da experiência, pois fazer da experiência uma progressão por uma retrospectiva seria torná-la ainda assim uma aventura forjada, dando uma unidade àquilo que é acidental, contingente, heterogêneo, por ser atravessado pelo nada. É preciso, portanto, “respeitar a contingência desse ‘acidente’, ou mesmo da série de ‘acidentes’, que são as experiências de Roquentin” (Ibid.). Isso restitui a experiência como fato à equivocidade dos princípios, anulando a mesma por seu acordo tácito com eles. Isto é, dado que os princípios são incomensuráveis, logo, toda existência em sua distensão também o deve ser, confinando a realidade ao instante e a sua unidade à ilusão retrospectiva. São essas formas de análise que levam posteriormente à dificuldade de possibilidade da História, pois já perdem a unidade da existência de antemão. É interessante notar que a ideia de unidade é compreendida como subsumida à de aventura, ilusão que assegurará que a totalidade não pertença ao indivíduo. Restará, então, que a aventura nasça como uma unidade narrativa:

é a narração que converte um acontecimento banal em aventura, como converteu em aventura o passado para Roquentin; a narração confere uma organicidade, um ‘rigor’ aos acontecimentos que a simples sucessão quotidiana desconhece [...] noutras palavras, a narração introduz o finalismo na ordem dos acontecimentos: o fim está presente desde o começo, ‘invisível’; é mesmo ele quem torna o começo, começo [...] A consequência é a intromissão da necessidade no curso dos acontecimentos, conferindo-lhes aquela organicidade e rigor (Idem, p.51).

Nesse sentido, a narrativa aparece como uma atitude reflexiva. Ela toma as vivências irrefletidas da consciência e lhes confere uma unidade que não é imanente a elas, uma relação que elas mesmas desconhecem. A abordagem reflexiva efetuada em A transcendência do Ego mostrava que a reflexão altera o irrefletido e que o Ego surgia não como um constituinte da consciência, mas como uma unidade sintética oriunda do ato reflexivo, isto é, como não pertencente à consciência, mas como resíduo do seu ato reflexivo. O eu aparece como síntese psíquica, mas com uma unidade que não era a da consciência8. Em A náusea o próprio eu é destituído de sentido, ao mesmo passo que o mundo e o passado (Idem, p.50), pois tudo se fragmenta em instantes e objetos opacos e sem nenhuma relação necessária. A narração como atitude retrospectiva criaria ilusoriamente uma organicidade entre sujeito e mundo dando-lhes uma unidade temporal de uma existência que, na verdade, é “sem tempo” (Idem, p.58). Assim, qualquer unidade que o indivíduo pudesse denotar seria algo alheio à sua constituição transcendental. Nesse sentido, A transcendência do Ego e A náusea são obras que encerram não apenas a consciência ao instante, mas destituem o indivíduo da sua ipseidade. Nelas mundo e sujeito não se comunicam porque tudo é sobrevoo. Por isso que ao associar ali método e indivíduo nos deparamos com os mesmos problemas levantados pela incomunicabilidade quando se toma os modos do ser como princípios, de modo que o método fica impedido e o indivíduo abandonado a sua ininteligibilidade. Por isso que Bornheim tem razão em assumir a unidade entre método e indivíduo, embora o tenha denotado por Roquentin, ou seja, por aquele que leva às últimas consequências a absurdidade da existência na medida em que afoga a ipseidade pela incomunicabilidade de um de seus polos, a contingência pura. Todavia, isso parece ter sido mais uma decisão metodológica de Bornheim uma vez que seu objetivo era ir além:

Devemos voltar à novela a fim de compreender que, através da descrição da experiência da náusea, Sartre não se restringe a um plano psicológico ou de mera explicitação de vivências; muito pelo contrário, trata-se de uma experiência ontológica, cujas consequências não se reduzem se quer à existência humana e, muito menos, a uma vida particular (BORNHEIM, 2003, p. 20).

Seu problema estaria, então, em não explicitar o teor do próprio indivíduo e confiná-lo à separação radical dos princípios. Isso se deve a essa extrapolação da existência singular uma vez que para ele está em jogo a crise da Metafísica e seu destino, confinando a impossibilidade da existência à impossibilidade mesma da Metafísica. Assim, Bornheim acerta em associar método e indivíduo, mas peca ao ver o indivíduo como um momento de um processo que o ultrapassa e o anula, destituindo o próprio ser da sua finitude, algo tão reclamado pelo próprio Bornheim.

Ora, desde A transcendência do Ego (1994, p. 59) Sartre faz a distinção entre unidade transcendente e unidade imanente da consciência. A narração como atitude reflexiva elabora apenas uma unidade transcendente. Para que ela pudesse apreender o vivido puro destituído daquilo que não lhe cabe de fato, mas lhe é sintetizado pela reflexão, era preciso uma reflexão de segundo grau a qual Sartre chama de reflexão pura. O comentário de Souza explicita bem o teor dela na obra:

A reflexão pura desprenderia as vivências de repulsão do estado psíquico do ódio para descreve-las de maneira adequada, isto é, elas seriam tratadas individualmente, isoladas das estruturas transcendentes [...] a reflexão pura é uma descrição adequada do irrefletido, na medida em que isola o vivido atual de tudo que não é vivido atualmente e que surge através das sínteses temporais (2009 p. 32).

No entanto, isso mostra que a reflexão se encerra ainda no instante. Embora em A transcendência do ego Sartre saliente a unidade imanente da consciência ele não a tematiza, e a reflexão pura aparece destituída desse âmbito. A unidade transcendente não descreve adequadamente o vivido puro. Em O ser e o nada isso é superposto pela teoria da temporalidade que deverá dar conta da unidade ek-stática da consciência. Assim, a reflexão pura já não captaria a consciência em sua instantaneidade, mas em sua totalidade enquanto historicidade: “a reflexão apreende a temporalidade na medida em que ela se revela como modo de ser único e incomparável de uma ipseidade, isto é, como historicidade” (SARTRE, 2007a, p. 193). Isso é possível porque ali em O ser e o nada a consciência é compreendida como ser-no-mundo, isto é, envolvida por sua facticidade, ao mesmo passo em que se determina por sua estrutura temporal. O importante neste momento é como o para-si é destituído da instantaneidade da consciência e lhe é assegurado uma unidade que não é a narrativa, ou seja, não um todo orgânico que o condiciona – sentido este de permanecer uma totalidade destotalizada, mas que lhe garante uma unidade incomparável. O problema se torna o da inteligibilidade dessa aventura enquanto historicidade na medida em que ela subentende ainda os princípios ontológicos e que, como observado, conduziriam a uma perda dessa própria concretude da existência.

Ora, se não há dialética dos princípios mantendo-se a separação radical, o que denotaria as ideias da existência como paixão inútil, fracasso, angústia, etc., é certo que a existência, lato sensu, devido sua condição de historicidade, não se mede unicamente por elas, de modo que a noção mesma de historicidade pressupõe que a aventura compreenda sua facticidade, seja como passado, como corpo e como mundo. Em outras palavras, não se trata de recair nos princípios gerais e abstratos, mas na condição concreta com que eles são subsumidos: liberdade e facticidade como condição singularizada e, portanto, historicizada, da privação singular deste ser. Estas dimensões permitem sair do problema da incomensurabilidade dos princípios pois não confinam o homem enquanto ipseidade ao absurdo, mas, antes, denotam as condições que encerram uma aventura. Essas dimensões se consolidam e se aprofundam mediante a dialética e a psicanálise que de forma alguma a contradizem, mas, justamente, ratificam tal forma.

Assim, se a existência é processo, é preciso compreender a unidade imanente desse processo pela temporalidade e historicidade. Por elas a unidade da consciência não será mais a do eu que se tornara um eco para Roquentin, nem a unidade do instante presente já despedaçado pela dissolução do eu e do mundo com um instante passado qualquer. Essa unidade não é a narrativa reflexiva, mas é uma condição ontológica da consciência pela sua tessitura temporal; a tese de Sartre será a de que consciência presente não é uma relação ao instante não presente, mas sim que ela é seu passado.

Sartre, em sua autocrítica (Idem, p. 144), revela que uma vez que se parte do presente como um instante e o passado como um instante que era atual se estabelece a impossibilidade de relação entre eles. Isso significa que se a relação for possível não o será de maneira exterior, ao contrário, ela deverá ser imanente. Por outras palavras, se se quer que o passado do para-si não seja perdido (passado que já não seria seu) é preciso que o para-si seja esse passado. Por isso Sartre vai eleger o passado como um modo de ser originário (Idem, p. 146). Da mesma forma que a consciência é uma unidade e essa unidade é garantida por sua intencionalidade constante, assim como a nadificação deve ser algo constante caso contrário a consciência deixaria de ser consciência, então o presente surge originariamente como tendo um passado. Essa relação ambígua de ter um passado indicará o paradoxo que encerra o tempo: o para-si é seu passado, o para-si não é o seu passado.

Os esforços de Sartre para a dissolução desse paradoxo são direcionados à ideia de que o presente é determinado pela negatividade do para-si. Imbuído pela negatividade do para-si, o presente não é instante, mas se faz presente, por isso ele é compreendido como fuga, negação, de modo que a negatividade é esse próprio presente; em outras palavras, o instante não é. Disso se seguirá que a inteligibilidade do presente não vem dele mesmo, mas do futuro postulado como novo mundo, nova condição9 e do passado como fato superado. Não sendo nada, o presente é compreendido pela facticidade e pela transcendência, pelo passado e pelo futuro; seu sentido não vem dele mesmo senão da relação que a negatividade traça entre suas duas estruturas. Portanto, embora a negação seja o próprio presente e haja uma primazia do presente10 com relação a estas duas ek-stases (Idem, p. 177), e o sentido do para-si venha do futuro, há um deslizamento do futuro para o passado enquanto tal sentido, porque a negatividade impede a identidade da consciência; o que levará a inferir que ser para o para-si que não é significa ser por detrás (par-derrière) (Idem, p. 153).

Assim, as bases da teoria da temporalidade de Sartre estendem o sentido do próprio fluxo da consciência e deste sobre o ser do para-si, de modo que o para-si é seu passado na medida em que não pode não ser aquilo que foi, mas ao mesmo tempo não pode sê-lo sob a forma da identidade absoluta. Vemos assim, que é a dimensão existencial, facticidade e transcendência, no bojo da imanência11 que permite a formulação de uma noção de identidade diferente da opaca e contingente do em-si, porque reenvia essa mesma identidade imbuída da clivagem negativa ou para-si. Além do mais, a significação desse passado é medida pelo futuro que o sobrepõe como sentido do projeto porvir ao qual a consciência remete enquanto intencionalidade, mantendo esse passado in sursis, essa suposta identidade distante, e por isso mesmo fora, mas ainda assim no horizonte do sentido. Assim, há um fato do passado e há uma significação do passado: a transcendência é o sentido da facticidade, mas não é possível ser senão desta facticidade, situada e concreta. Ser por detrás é remeter a esta instância de ser que o para-si transcende. Por isso que enquanto ipseidade o para-si terá de ser seu passado, mas não na forma de identidade. Isso irá caracterizar tal relação enquanto fuga, cujo respaldo ontológico é a transcendência e a ek-stase do futuro. Esta modalidade ambígua de relação e identidade Sartre a caracterizará como era (étais). Ela denota a condição de que no desenrolar do para-si não há uma forma de viver o presente precisamente porque este não é. Por isso não se vive o passado absoluto, nem se vive o presente absoluto, mas este infestado por este passado não como condicionante, mas como facticidade irrevogável12, tal como ressalta Frajoliet (2005, p. 72): “Esta analogia equívoca do ipse presente com seu passado não é outra que sua relação à facticidade”. Em todo caso o que prevalece nessa relação é ainda a heterogeneidade entre as ek-stases (SARTRE, 2007a, p. 154), porque a identidade não é, por fim, estabelecida, mas fica por detrás, como minha facticidade. No entanto, a inteligibilidade deles é dada pela própria relação totalizante do tempo. Portanto, não é seu passado como sua identidade, mas era seu passado como facticidade:

“O ser presente, é, portanto, o fundamento de seu próprio passado; e é este carácter de fundamento que o “era” manifesta. Mas não se deve entender que o presente fundamente o passado à maneira da indiferença e sem ser profundamente modificado por ele: “era” significa que o ser presente tem de ser em seu ser o fundamento de seu passado sendo ele próprio esse passado” (Idem, p. 149)

Portanto, a consciência aparece como uma negação, mas, sobretudo, como uma negação qualificada, singularizada, pelo passado que ela ultrapassa e o futuro ao qual tende pela fenda sempre aberta da totalidade por sua própria motivação e criação. É singularizada, incomparada, porque se trata deste presente marcado por este passado e este futuro13, na medida em que mesmo na heterogeneidade das ek-stases na totalidade aberta que é na temporalidade não há indiferença, mas uma modificação profunda, sendo que esta profundidade é a facticidade não apenas enquanto condição ôntica que o real exige ser, mas enquanto não é distinta da singularidade da sua transcendência como seu modo de assumir e escapar. O que nos leva a dizer que mesmo na heterogeneidade há unidade e mesmo na unidade há diferença: a relação real entre facticidade e transcendência é a singularidade que é o indivíduo. Essa ideia não impede que se compreenda sempre o presente como o nada nadificante, mas sim este como privação singular qualificada por ser temporalizada. O “este ser” interpela justamente essa condição real e concreta para além da abstração, o que leva a denotar que o presente como puro nada, cuja manifestação fenomênica mais determinante é a angústia, se mostra infestado pela concretude, pela facticidade e que, como observado, refere-se não à contingência absoluta, mas ao modo singular e concreto ao qual o indivíduo é remetido enquanto tal.

Logo, a relação singular na heterogeneidade entre passado e presente é a marca da singularidade, pois resguarda a transcendência na imanência neste ser, fazendo do presente não pura negação, mas privação singular deste ser enquanto singularidade que ele a requer. Ora, como o para-si é sua finitude, o indivíduo é a expressão dessa finitude, da mesma forma que o Ser não é o ser em geral e nem a nadificação o Nada em geral, mas uma negação deste ser, então essa determinação enquanto marcada por esta finitude só pode aparecer qualificada, isto é, singularizada. Por isso é quebrada essa separação radical, pois não se trata de dois polos gerais, do ser e do nada, mas de uma situação específica, determinada, qualificada. Assim, o ser só pode aparecer como qualificado14, como maneira de ser: “este” presente é fuga (futuro) “deste” passado. Por isso, a profundidade do presente vem pela nova significação futura e essa novidade de mundo aprofunda o presente por um lado, ao mesmo tempo em que é ultrapassamento do dado fáctico por sua modificação, isto é, segundo a modalidade própria revelada pela singularidade histórica por aquele que a revela, isto é, como uma qualidade ou modo singular enquanto fazer-se. A relação temporal entre essa três ek-stases define a singularidade pela invenção que ela interpela.

Deste modo, se o passado “é a totalidade sempre crescente do em-si que somos” (Idem, p 150), essa totalidade não deve ser considerada uma justaposição de instantes, nem um crescimento da contingência, nem da identidade, mas da profundidade, posteriormente demarcada por Sartre como profundidade do vivido (SARTRE, 2002, p. 110); ou melhor, da especificidade desta qualidade, que não é outra que a singularização histórica do universal. E por mais que se passe do passado remoto para o passado mais-que-perfeito, essa heterogeneidade não demarca uma anulação deste passado, mas uma opacidade própria da vivência que é subsumida na totalidade do processo como singularização.

É nesse sentido que caberá ao estudo psicanalítico revelar a aventura do sujeito enquanto sua singularidade. O sujeito concreto é uma unificação, uma totalização aberta à singularidade do empreendimento, pois ainda que haja essa heterogeneidade entre passado e presente, eles não são completamente incomensuráveis, pois uma vez que o presente é presente deste passado e o passado é passado deste presente, sua medida é sua singularidade porque ela é uma invenção desse ultrapassamento pela própria vida do indivíduo. Mas esta historicidade, esta singularidade, ou seja, a finitude concreta, escaparia à ontologia, pois a ontologia não visa “um existente singular, mas as estruturas ontológicas de tal existente, não alguma coisa individual, mas a individualidade, não alguma coisa de concreto, mas o caráter do concreto” (SEEL, 1995, p. 100). Da mesma forma, não se poderia tratar apenas de uma descrição empírica, como uma forma de psicologia empírica, ainda que esta revele diferentes desejos, comportamentos. Entretanto, a historicidade não se resume apenas ao caráter empírico, ela não é apenas o passado do para-si. Ela engloba a totalidade do sujeito (SARTRE, 2007a, p. 614) e não apenas seu passado. Por isso ela alude àquilo que Sartre chama de escolha original: “A psicanálise existencial trata de determinar a escolha original [...] ela conglomera em uma síntese pré-lógica a totalidade do existente, e, como tal, é o centro de referências de uma infinidade de significações polivalentes” (Idem, p. 615).

Frente a isso, tem-se, por um lado, essa totalidade temporalizada em toda sua polivalência, de outro, essa irredutibilidade que a escolha original traz como àquilo que sintetiza tal totalidade e a singulariza por sua abertura. Não que ela venha a ser um ato secundário, pelo contrário, aqui escolher é totalizar e destotalizar. A escolha original é, então, essa incomparabilidade do indivíduo enquanto engloba e expressa a sua temporalidade inteira em sua ipseidade. A escolha envolve a transcendência e a facticidade, o fato de existir (ser um) e o direito de existir (ser tal). Por isso, seja pelo ser (inautenticidade), seja pelo nada (autenticidade), seja por ênfase ao passado, ao futuro, ao presente, o sujeito é compreendido por Sartre como uma singularização e uma unidade que se condensa na sua liberdade enquanto esta não é apenas negatividade, mas a sua razão de ser “tal”, na sua pessoa, na manifestação finita dessa liberdade. É essa razão, essa singularidade que os princípios não podem explicitar, é sobre essa infinidade de “homens possíveis” que os princípios silenciam, ou seja, justamente ali onde o concreto requer que seja explicitada a sua concretude. Certamente Sartre transita entre essa exigência ontológica e a determinação concreta e empírica. Em vários momentos elas parecem se distanciar na obra, levando sempre a separação dos terrenos ontológico e empírico, como observamos no comentário de Seel:

Assim, a teoria presente em O ser e o nada pode certamente apreender o caráter concreto enquanto momento abstrato da estrutura do sujeito, mas ela não pode penetrar até o concreto nele mesmo, até as determinações individuais e históricas dos indivíduos e dos grupos. É porque o estudo das determinações concretas de cada indivíduo é confiado a uma disciplina empírica, a “psicanálise existencial”, da qual O ser e o nada se contenta em indicar as fundações teóricas gerais (SEEL, 1995, p. 54).

Porém, segundo o mote já da primeira parte da obra, o concreto total exige essas duas faces não como momentos distintos, mas como guinada do próprio ser a sua finitude. De fato, a análise ontológica de Sartre expressa o homem como possível tal como o nada como único possível do ser, mas silencia ali sobre a forma concreta, relegando-a à facticidade, isto é, à própria contingência singularizada. Mas a contingência mesmo que denotando a facticidade, não dá conta, ela mesma, de explicitar por si esses homens possíveis, isto é, eles não cabem aos próprios princípios. Por isso, ao denotar o homem tomando os modos de ser como princípios, estar-se-ia tratando analiticamente regiões do ser cujo estatuto próprio não é analítico, mas sintético. Ora, tanto na introdução de O ser e o nada como no Cahiers Sartre define o Ser, na sua imanência, como um princípio sintético porque reenvia a uma “alteridade perpétua com relação a si” (SARTRE, 1983, p. 158), de modo que essa alteridade denota uma forma de dramaticidade mesma desse ser. O nada passa a ser o drama do ser porque a existência como causa sui é necessidade de superar a contingência, mas seu desdobramento é fáctico e, portanto, reenvia aos termos que não cabem de antemão a esses princípios enquanto tomados analiticamente. De fato, falar em termos analíticos que o nada tem como princípio a contingência, isto é, a exterioridade de indiferença, remete a um abstracionismo lógico que não é o da existência cujo ser é a síntese mesma dessa trama ontológica; em outras palavras, se a existência precede a essência, levado ao termo ontológico, não pode haver dedução do drama pelos princípios, mas é o drama que é a opulência própria do ser e o nada, e não o contrário. Por isso, dirá Sartre, “a causa de si não é uma necessidade lógica: ela é, se existe, existência dramática” (SARTRE, 1983, p. 158). Se a existência é drama e aprofundamento é porque o Ser é um princípio sintético, ou melhor, é por ser de tal natureza que a consciência não é apenas o seu nada. Assim, não é do fenômeno ao ser, do ser ao nada que esta ontologia deságua. Os modos, como regiões sintéticas de um ser que é uma aventura individual, aferem à singularidade enquanto escolha original. Isto é, elas entregam o homem diante de si mesmo, vendo não mais o nada que ele se faz (tendo sido), mas a sua singularidade inventada: “se o sentido do desejo é, em última análise, o projeto de ser Deus, o desejo jamais é constituído por tal sentido, mas, ao contrário, representa sempre uma invenção particular de seus fins” (SARTRE, 2007a, p. 612 – negrito meu). Em suma, “O homem é Drama” (SARTRE, 2007b, p. 137).

Nesse momento de sua reflexão, Sartre, ao colocar a possibilidade da psicanálise existencial, intensifica a asserção de que a escolha original não é um particular de uma essência cuja determinação é o desejo, mas uma determinação singular do indivíduo. Assim, se se pode comparar os homens por, em última instância, seu projeto de querer ser deus, esse desejo fundamental apenas revela o fim último, mas não o modo, o porquê cada projeto se dá de tal forma, pois “o para-si jamais busca fins fundamentais abstratos e universais” (SARTRE, 2007a, p. 595). Se aos homens o sentido profundo da escolha é universal, ele, todavia, “necessita de uma concretude particular” (Ibid.) para se manifestar. O que levará a inferir que a escolha original é a liberdade e essa escolha pressupõe a nadificação, a negação, mas em si a liberdade é mais do que negatividade, pois ela se expressa finitamente, portanto, para além do nada abstrato, como invenção de uma vida, uma aventura individual. Por isso mesmo,

Não há primeiro um desejo de ser e depois milhares de sentimentos particulares, mas sim que o desejo de ser só existe e se manifesta no e pelo ciúme, pela avareza, pelo amor à arte, pela covardia, pela coragem, as milhares expressões contingentes e empíricas que fazem com que a realidade-humana jamais nos apareça a não ser manifestada por tal homem em particular, por uma pessoa singular (Idem, p. 611).

Sartre concebe, assim, uma primazia do indivíduo com relação ao universal. Aqui a totalidade do fenômeno associa-se ao seu ser. Por isso, não há nem totalidade, nem universal, mas somente estes singularizados. O humano é uma condição posta pelas singularidades concretas e só se torna universal pelo próprio homem concreto, de modo que sua possível imposição não é senão um fato de escolha do próprio homem caído na má-fé. Assim, a realidade-humana, o homem em geral, sua verdade, é estabelecido pela ontologia, pois

pertence a uma realidade-humana em geral o fato de podermos submeter um homem qualquer a esta investigação, eis o que pode ser estabelecido por uma ontologia. Mas, em si mesmo, a investigação, bem como seus resultados, estão, por princípio, totalmente fora das possiblidades de uma ontologia” (Idem, p. 614).

Portanto, a aventura engloba sua possiblidade geral de se dar sempre no humano (pois o homem não pode não ser livre) e a psicanálise revela a imagem desse humano em sua livre invenção singular. Por um lado, a ontologia revela a estrutura geral do humano como escolha de ser, por outro, esta mesma estrutura, por si mesma, é muda. É preciso compreender uma vida singular para poder determinar a escolha original e por ela os termos em que se diz o próprio homem. Por isso, se o indivíduo é sua finitude, não é a ontologia que a pode expressar em sua total inteligibilidade, do contrário, ao tratá-la como limite geral do humano estar-se-ia perdendo aquilo mesmo que Sartre procura demonstrar: o limite concreto do homem por sua liberdade. Nesse caso, a psicanálise existencial já não poderia ser uma “disciplina auxiliar”, mas àquela a qual culmina a ontologia como condição de explicitação do sentido ético da existência finita.

Assim sendo, essa qualidade subjacente à escolha original como drama existencial e pessoal não é objeto da ontologia, pois ela escapa a esta condição singular. Isso, no entanto, não é relegar tudo o que a ontologia revelou. Por assim dizer, elas, ontologia e psicanálise, são os dois lados de uma mesma moeda: se o ser é uma aventura individual então essa aventura só pode ser uma vida. A ontologia culmina numa clínica15 e numa ética. Por isso, “nós diremos, de boa vontade, que a metafísica é uma teoria gratuita, uma teoria pela teoria, entretanto, uma ontologia, tal como na definição de Sartre, é uma teoria oriunda de uma descrição psicológica concreta, e orientada rumo à prática” (JEANSON, 1947, p. 146), ou, em termos mais ontológicos, como enfatiza Frajoliet, a metafísica seria uma “ontologia impura” (FRAJOIET, 2005, p. 84). Por isso, no limite da ontologia deveríamos nos voltar não a uma metafísica, mas à psicanálise existencial, pois só esta corrobora a explicitação da finitude do finito na medida em que o indivíduo é indivíduo concreto e os modos subsumem senão que a livre escolha que o homem faz de si mesmo. Essa volta ao concreto direciona ao indivíduo e não aos modos que, na sua extrapolação, torna impura essa ontologia, pois traí aquilo mesmo que ela procura explicitar. Assim, a escolha do indivíduo é elevada à dignidade de fundamento, sem necessariamente se comprazer à forma do fundamento metafísico. Nesse sentido, a marca da finitude, da singularidade é a escolha que o indivíduo faz de si mesmo, pois como observa Mouillie (2000, p. 122 – negrito meu):

cada um se define pela verdade vivente que ele desvela (VE, 105). Por suas escolhas, cada um interioriza sua finitude (108-109) para re-exterioriza-la em seus empreendimentos(110). A finitude não é, portanto, um abstrato genérico, mas um traço de individuação. Ela é minha “possessividade” (mienneté) fáctica, este gosto de si (fadeur nauséeuse, EN, 387) que corresponde a um certo gosto do ser, pluralizada “nos gostos e nas cores” cuja individuação se torna iridescente. Cada ser-no-mundo designa um empreendimento singular que é ao mesmo tempo tradução (ver EN, 660, 661, 667) como uma forma de se fazer ser (664), e expressão, enquanto “escolha de ser” (663).

Isso nos recoloca toda a problemática metodológica de Sartre, pois, assim sendo, a psicanálise não seria apenas um instrumento de cura que faz o homem conhecer o que já compreende. Ela passa a ser decisiva no estudo do homem, uma vez que a realidade-humana embora possua uma verdade humana como sua condição geral, só é expressa pela “infinidade de homens possíveis” (SARTRE, 2007a, p. 609) na concretude destes homens possíveis – só aqui temos a ética na História. Por conta disso, dessa multiplicidade que expressa a unidade, “o método que serviu a um sujeito, por essa razão, não poderá ser empregado em outro sujeito ou no mesmo sujeito em uma época posterior” (Idem, p. 619). Devido a isto, método e indivíduo adquirem uma unidade necessária de modo que investigar o ser como aventura individual não é senão investigar a aventura existencial de um indivíduo; reafirmamos: “é necessário consultar a história de cada um para fazer uma ideia singular de cada para-si singular” (Idem, p. 525). E o mais importante é que a psicanálise existencial não se deterá “nas classificações de “projeto autêntico” e “projeto inautêntico” como Heidegger pretende estabelecer” (Idem, p.610). A escolha original presume a quididade que uma vida expressa no mundo subsumindo na sua liberdade diversos graus de liberdade e alienação. Pois, mesmo uma mudança radical nessa escolha original, de modo que o para-si por conversão ou decisão, ou perda, mudasse de escolha, jamais significaria que ele seja outro, pois “o para-si não pode conferir uma nova existência a si mesmo” (Idem, p. 525). Ele é esse outro radical pela singularidade que engendra sua finitude. Por isso, ele nunca é o mesmo no sentido metafísico, pois sendo processo singular ou singularização, o mesmo para-si é atravessado pela diversidade, pela diferença que compreende a sua vida em sua escolha original, de modo que sua totalização é sempre singularização, ele se faz outro sendo o mesmo, isto é, se singulariza. É essa diferença e riqueza que nenhuma ontologia consegue dar conta por não se situar no terreno de uma aventura individual. Assim, o indivíduo é o limite concreto do ser e a sua singularidade a medida da sua finitude – o Ser é uma aventura individual, seu drama.

Portanto, o lugar da ontologia, a verdade por ela desvelada pelos modos na separação ontológica, o ser e o nada, são compreendidos como sentidos distintos de um ser sintético, o indivíduo, cuja totalidade é abertura enquanto singularização. Assim, elas assentam tal processo enquanto compreendem o sentido para-si da existência e o sentido em-si da existência. E uma vez que não existe esses modos em sua pureza, isto é, como princípios gerais e, portanto, separados do indivíduo ou este deduzido por eles, esses sentidos são penetrados no drama existencial enquanto uma liberdade em situação, seu projeto e sua facticidade, sua contingência e sua transcendência. A unidade singularizada, pois só assim o pode ser mediante sua temporalidade e historicidade, compreende a aventura individual do Ser. É dela que partimos, pois o sentido do mundo e da liberdade é a relação sintética de uma liberdade no mundo. A questão do como da finitude reenvia à questão de quem. Que não aponta a alguma forma de subjetividade fechada e identitária, mas a uma qualidade fundamental, um gosto do ser (SARTRE, 1983, p. 544). Deste modo, a circularidade que Prado Junior (2006, p. 35) apontava e que conduzia à plena ontologia fenomenológica, necessita ainda de outros círculos, o da psicanálise existencial e o da História. Elas correspondem, assim, aos quadros de uma antropologia existencial, onde o como da finitude, “ser um” (MOUILLIE, 2000, p. 62)) alude ao quem, “ser tal” (MOUILLIE, 2000, p. 62). A finitude exige os homens reais.

A psicanálise existencial acaba, por fim, sendo a porta de saída da velha ontologia ruma a uma nova, a uma nova elucidação da finitude, em termos, talvez, já estranhos para a antiga morada metafísica: nos encontramos na inversão do fundamento, mas também na sua transposição. É por isso que Mészáros apela a uma estrutura circular entre ontologia, ética e psicanálise existencial. Esta ontologia é, assim, não apenas o fundamento da psicanálise existencial e da ética, mas também fundamentada por elas (MÉSZÁROS, 2012, p. 147). Seguindo sua linha, também concluímos que a filosofia de Sartre é, assim, uma antropologia existencial. Se o sentido do ser é o humano é porque dele partimos para chegarmos tão somente a nós mesmos, ainda que este ponto seja, sempre, apenas uma estalagem, pausa para uma nova abertura. Esse processo singularizante da liberdade é o drama da existência.

Referências

BARBARAS, Renauld (1991). De l’être du phénomène: sur l’ontologie de Merleau-Ponty. France: Jérôme Millon.

BORNHEIM, Gérd Alberto (2003) Sartre: Metafísica e Existencialismo. 3ª ed. São Paulo: Editora Perspectivas.

COOREBYTER, Vincent de (2003). Introduction. In SARTRE, J-P. La transcendence de l’ego e autres textes. Paris : J. Vrin.

FRAJOLIET, Alain (2005). Ipseité et temporalité. In BARBARAS, R. Sartre - Désir et liberté. France: Presses Universitaires de France.

HAAR, Michel (1999). La philosophie française entre phénoménologie et metaphysique. Paris: PUF.

HUSSON, Laurent (2001). De la contingece à la situation : dimensions et configurations de la facticité dans L’Être et le Néant. In MOUILLIE, J-M. Sartre et la phénoménologie. Paris : ENS Éditions.

JEANSON, Francis (1947). Le Problème Moral et La Pensée de Sartre. France : Myrte.

MERLEAU-PONTY, Maurice (2003). O Visível e o Invisível. Tradução de José Artur Gianotti e Armando Mora d’Oliveira. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva.

MÉSZÁROS, István (2012). A obra de Sartre: busca da liberdade e desafio da história. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo.

MOUILLIE, Jean-Marc (2000). Sartre – conscience, ego et psyché. Paris: Presses Universitaires de France.

MOUTINHO, Luiz Damon Santos (1995) Sartre: psicologia e fenomenologia. Brasiliense.

MÜLLER, Marcos Lutz (2006). Sartre e a crise do fundamento. In Dois Pontos: Sartre, Curitiba, UFPR, v. 3, n. 2.

PRADO JUNIOR, Bento (2006). O circuito da ipseidade e seu lugar em O ser e o nada. In Dois Pontos: Sartre, Curitiba, UFPR, v. 3, n. 2.

SARTRE, Jean-Paul (1972). Sartre par Sartre. In Situations IX, mélanges. Paris: Gallimard, 1972.

SARTRE, Jean-Paul (1983). Cahiers por une morale. France: Gallimard.

SARTRE, Jean-Paul (1987) O Existencialismo é um Humanismo. Tradução de Rita Correia Guedes. 3ª ed. São Paulo - SP: Nova Cultural. (Coleção os Pensadores).

SARTRE, Jean-Paul (1990). Verdade e existência. Tradução de Marcos Bagno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

SARTRE, Jean-Paul (1994). A transcendência do ego. Seguido de Consciência de si e conhecimento de si. Tradução de Pedro M. S. Alves. Lisboa: Edições Colibri.

SARTRE, Jean-Paul (2002) Crítica da Razão Dialética – Tomo I: Teoria dos conjuntos práticos, precedido por Questão de método. Tradução: Guilherme João de Freitas Teixeira. Rio de Janeiro: DP&A.

SARTRE, Jean-Paul (2005). Diário de uma guerra estranha. Tradução de Aulyde Soares Rodrigues e Guilherme João de Freitas Teixeira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

SARTRE, Jean-Paul (2006). A Náusea. Tradução de Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova fronteira.

SARTRE, Jean-Paul (2007a). L’être et le néant – Essai d’ontologie phénoménologuique. France: Gallimard.

SARTRE, Jean-Paul (2007b). Mallarmé – la lucidité et sa face d’ombre. Paris: Gallimard.

SEEL, Gérard (1995) . La dialectique de Sartre – raison dialectique. Laussane: L’Age d’Homme.

SILVA, Franklin Leopoldo e (2004). Ética e Literatura em Sartre – Ensaios Introdutórios. São Paulo: UNESP.

SILVA, Luciano Donizetti da (2010). A filosofia de Sartre entre a liberdade e a história. São Carlos – SP: Claraluz.

SIMONT, Juliette (1998). Jean-Paul Sartre : un demi-siècle de liberté. Paris, Bruxelles : De Boeck & Larcier s.a. (imprimé en Belgique) (le point philosophique – Collection dirigée par Daniel Giovannangeli).

SOUZA, Luiz Henrique Alves (2009). O estatuto da reflexão em Sartre. São Carlos: UFSCAR (Tese de doutorado).

STEIN, Ernildo (1976). Melancolia: Ensaios sobre a finitude no pensamento ocidental. Editora Movimento.

Notas

2 “A razão da ingenuidade satriana deve-se a sua tomada não crítica dos termos da metafísica [...] Sartre retoma, repetindo ingenuamente, pois não pensa a essência da metafísica, os principais axiomas das filosofias pós-cartesianas: a presença transparente e autossuficiente do sujeito a si mesmo; a evidencia desta presença a si (o cogito) como fundamento último do ser do saber; a autoafeição pela qual o sujeito é assegurado da certeza de si; o dualismo do eu e do não-eu; e, por fim, um humanismo ou antropomorfismo, graças ao qual o sujeito humano elevado a absoluto é fonte única de todo sentido” (HAAR, 1999, p. 56 e 55).

3 Observe-se como essa ênfase nos possibilita alterar a ordem das razões, uma vez que seja qual for o modo de ser, ele deve ser sempre pensado a partir do indivíduo e não o contrário. O mesmo se daria com a condição de ser-no-mundo e depois com a noção de situação, pois o sujeito é a situação (SARTRE, 2007a, p. 593), embora cara um viva apenas a sua (Idem, p. 595). Essa irredutibilidade do indivíduo (sua aventura) o coloca como maior expressão sintética do ser enquanto finitude.

4 A ipseidade aparece como “relação do para-si com o possível que ele é” (Idem, p. 139). Como livre relação a si que se projeta para a coincidência consigo mesmo, só se alcança esta coincidência pelo mundo. Direcionado ao mundo, buscando pelo mundo sua unidade, o para-si se faz “circuito de ipseidade enquanto relação ao possível que ele é, sendo o mundo “a totalidade de ser na medida em que é atravessada pelo circuito de ipseidade”. Assim, não há ipseidade sem mundo, nem mundo sem ipseidade (Idem, p. 141), e ela representa a livre relação que a consciência tem com o mundo enquanto este mesmo mundo.

5 Partindo da autocrítica de Sartre na Crítica que aponta a confusão do individual com o total nas suas primeiras obras, Mészáros (2012, p.95) aponta que, apesar dessa revisão de seu próprio pensamento, Sartre não teria associado a totalidade ao indivíduo nas suas primeiras obras. A tese de Mészáros é que Sartre começaria pelo individual, mas depois estabeleceria o total pelas relações (no plural) humanas com o mundo (Idem, p. 108), bem como a própria totalidade teria ao menos três problemas, a saber, seria dualisticamente fraturada, negativamente determinada, e não seria estruturada (Idem, p. 120). É por isso que indicamos que seria mais ao tomar a totalidade da obra de Sartre que ele sobressalta seu caráter eminentemente prático, embora veja, ainda assim, a própria ontologia como prática.

6 A exemplo disso serve a conclusão de equivalência das ações humanas, tal como exposto na Conclusão de O ser e o nada. Ela denota em si todo aquele quietismo de que o existencialismo é acusado e que Sartre rejeitará na conferência O existencialismo é um humanismo; pois “este ser puro, condição para toda fenomenalização, permanece por princípio, incapaz de diferenciação, “par-delà le devenir”” (MOUILLIE, 2000, p. 115).

7 Pois, seguindo as críticas de Merleau-Ponty, o método ficaria estático, uma vez que “o progresso da investigação não modifica a ideia de nada, pois é ao mesmo nada que sempre se referiu. Há apenas um espectador, Sartre, que assiste ao progresso sem ser arrastado com ele; isso significa que o movimento é ilusório, pois o negativo puro continua inacessível, tendo o ser apenas como vizinho inalterado e que não o altera”. (SILVA, 2010, p. 208)

8 Como bem explicita Souza (2009, p 107), “Se a consciência é temporal, a reflexão impura apreende não a temporalidade do para-si em seu caráter ek-stático, mas como uma sucessão de objetos psíquicos”.

9 “O futuro originário é a possibilidade desta presença que tenho-de-ser, para-além do real, a um Em-si para além do Em-si real. Meu futuro carrega, como co-presença futura, o esboço de um mundo futuro” (SARTRE, 2007a, p. 250).

10 Sartre mesmo reconhecia sua ignorância sobre o tempo em A náusea, sentia-se como um “garoto”: “Em A náusea afirmo que o passado não é e, pouco antes, tento reduzir a memória a uma ficção verdadeira. Nos meus cursos exagerei a parte da reconstrução na recordação, porque a reconstrução se opera no presente. Essa incompreensão combinava muito bem com a minha falta de solidariedade para comigo mesmo, me fazia julgar insolentemente meu passado morto, do alto do meu presente” (SARTRE, 2005, p. 449). Embora haja ainda em O ser e o nada uma primazia do presente com relação às demais ek-stases, por certo, a heterogeneidade entre eles não anula o ser do passado, mas, justamente, o requerem como sua condição de possibilidade e de inteligibilidade.

11 Por isso, como comenta Husson (2001, p. 137) “podemos falar da contingência do em-si, mas não da sua facticidade” que nada mais é que a “dimensão evanescente do em-si nadificado”, isto é, como “o que permanece do em-si no para-si”. Daí que, mesmo na Crítica, Sartre ainda compreenderá que “o projeto como transcendência não é senão a exteriorização da imanência” (SARTRE, 2002, p. 199).

12 Entenda-se: o caráter inelutável da facticidade não pode ser assimilado ao determinismo natural, porque a facticidade não determina propriamente o indivíduo de forma direta, mas institui os limites da situação em que a liberdade será exercida a partir de fatos que transcendem o sujeito. Trata-se de construir o problema histórico noutro terreno, embora a facticidade seja inseparável da consideração da história e da significação histórica da existência. Não há qualquer fato que não seja assimilado como significação. Em outras palavras: “O problema jamais está nos fatos: é o homem que se torna problema histórico a partir dos fatos.” (SILVA, 2004, p. 32).

13 Frajoliet (2005, p. 75) mesmo ressalta a distinção entre o futuro e este futuro. O primeiro como dimensão necessária da ipseidade, e o segundo dimensionado ante a contingência que, como colocado, se revela ao para-si como facticidade, portanto, finitude. Mas para que o este adquira todo seu peso, será preciso calcar a contingência na finitude e esta na História. Até porque, embora Frajoliet esteja pensando mais na dimensão fenomenológica, o futuro não se realiza. O que se realiza é um para-si designado pelo futuro e que se constitui em ligação com este Futuro. Abstração essa vencida quando revelada a historicidade concreta de cada indivíduo.

14 Essa qualificação poderia ser considerada uma forma de má-fé uma vez que representa uma forma objetivada da consciência se apreender. Entretanto, é importante frisar que ela demarca mais a dimensão finita da facticidade, a forma da ipseidade, do que uma qualidade da consciência. Assim, sua relevância se dá enquanto forma da facticidade e da finitude requerida pela ipseidade, e não como uma objetivação da consciência. Embora, assim como de outras formas, a consciência possa também se alienar sobre seu passado, isso não supõe que ele seja causa de alienação imediata. Sobre isso é muito válida a seguinte consideração dos Diários (2005, p. 484 e 485): “Não se deve tentar explicitar o Nada com a finitude, pois a finitude, tomada isoladamente, parece mais um caráter externo ao indivíduo considerado. Se, pelo contrário, como parece às vezes nos filósofos cristãos, considerarmos a finitude como uma característica íntima da realidade-humana, então é preciso que se resolva, ao contrário do habitual, fundá-la no Nada. Um ser que é seu próprio nada é, por isso mesmo, finito. Embora possa parecer estranho o fato de o em-si, uma vez anulado, se degradar em individualidade finita, a resposta é simples: uma consciência que tivesse a mesma extensão da totalidade infinita do em-si não poderia existir por princípio. A negação condensa. Precisamente por não ser o em-si, nem dimensão, nem resistência, nem força etc., o para-si é um indivíduo.” (negrito meu).

15 Todavia, advertimos, assim como a postulação do “inconsciente” como “finitude interiorizada” (M, p. 89) não tem nada a ver com o inconsciente do analistas (SIMONT, 1998, p 185), também esta clínica não poderia ser a clínica institucionalizada, visto que o método não é fechado, mas se modula à vida particular: “é necessário consultar a história de cada um para fazer uma ideia singular de cada para-si singular” (SARTRE, 2007a, p. 525); bem como estaria pendente das próprias relações históricas que podem variar e implicar grandes mudanças sobre como apreender essa história singular. Por isso, reitera-se a nossa proposta inicial: é abertura de um horizonte, não sua institucionalização, até porque, embora tal psicanálise ainda não tenha “encontrado seu Freud [...] o importante para nós é que ela seja possível” (Idem, p. 620).

Notas de autor

1 Doutor(a) em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba – PR, Brasil. Professor(a) colaborador(a) na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), Guarapuava –PR, Brasil.
HTML generado a partir de XML-JATS4R por