Artigos
Recepción: 10 Agosto 2022
Aprobación: 27 Enero 2023
DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v23i1.3107
Resumo: Este artigo tem o objetivo de expor a contra doutrina dionisíaca ao otimismo a partir da discussão sobre a interpretação que o filósofo Friedrich Nietzsche faz de Sócrates no livro O nascimento da tragédia. Nossa discussão traz em perspectiva a crítica nietzschiana ao denominado socratismo estético, o qual coloca a filosofia socrática longe da sua proposta para o dionisíaco na arte. Para tanto, reconstruímos os argumentos de Nietzsche e investigamos o alcance dos mesmos, como também apresentamos as considerações de Paul de Man sobre a tensão emergente. Como conclusão, apontamos para a abrangência dos conceitos de pessimismo e otimismo dentro do escopo construído.
Palavras-chave: Nietzsche, Sócrates, Arte, Dioniso, Metafísica de artistas.
Abstract: This paper aims to expose the Dionysian contradoutrine to optimism from the discussion of the philosopher Friedrich Nietzsche's interpretation of Socrates in the book The Birth of Tragedy. Our discussion brings into perspective the Nietzschean critique of the so-called aesthetic Socratism, which places Socratic philosophy far from its proposal for the Dionysian in art. To this end, we reconstruct Nietzsche's arguments and investigate their scope, as well as present Paul de Man's considerations on the emerging tension. As a conclusion, we point to the scope of the concepts of pessimism and optimism within the constructed scope.
Keywords: Nietzsche, Socrates, Art, Dionysus, Artists, Metaphysics.
Introdução
Partiremos da hipótese que o primeiro livro publicado por Nietzsche – O nascimento da tragédia – está mais preocupado em apresentar sua própria construção filosófica do que reconstruir a história grega. Neste sentido, a interpretação da obra nietzschiana deve levar em conta que a figura de Dioniso, como princípio da sabedoria arcaica do povo grego, ocorre a partir do retrato filosófico sobre sua antítese em relação não só a Apolo, mas, principalmente, ao “Homem teórico” representado pelo otimismo socrático, aquele que:
Por não pressentir a profundeza dionisíaca da música, transforma fruição musical em retórica intelectual de palavras e sons da paixão [...]; por não saber apreender a verdadeira essência do artista, conjura diante de si, a seu gosto, o “homem artístico primitivo”, isto é, o homem que, em paixão, canta e diz versos. Ele sonha a si mesmo numa época em que a paixão basta para produzir cantos e poemas: como se o afeto tivesse sido capaz de criar algo artístico. [...] No sentido dessa crença, [...] é a expressão do laicado na arte, que dita as suas leis com o otimismo serenojovial do homem teórico (NIETZSCHE, 1992, p. 115).
A oposição que Nietzsche visa demarcar não diz respeito exclusivamente à interpretação da arte antiga. Está em jogo mostrar como podemos qualificar uma cultura genuinamente artística. Nesse panorama, temos o esquema geral da obra:
(i) A era pré-helênica (Dioniso);
(ii) A era Homérica (Apolo);
(iii) A (precoce) era lírica (Dioniso);
(iv) A ‘Reafirmação Dórica’ do apolíneo;
(v) A idade trágica (Dioniso-Apolo);
(vi) A era Socrático-Alexandrina.
Apesar da simplificação, podemos utilizar este esquema para investigar o conceito nietzschiano de Dioniso porque ele aponta bem o “fim da arte trágica” representado pelo início da era socrática e seu racionalismo otimista que resulta na morte da arte trágica.
O Dioniso e o Sócrates de Nietzsche
O pessimismo da época pré-socrática, segundo Nietzsche, reflete o caráter original do qual emerge a cultura grega trágica, fundamento filosófico dos grandes tragediógrafos Ésquilo e Sófocles. “Há, neste mundo, culpa, injustiça, contradição e sofrimento? Sim, exclama Heráclito, mas apenas para o homem limitado, que vê as coisas separadas umas das outras e não em conjunto, não para o deus contuitivo; para ele, tudo o que está em conflito converge numa harmonia, certamente invisível para o olho humano comum” (NIETZSCHE, 1999, p. 826.). Essa sabedoria, no entanto, foi esquecida pelas gerações posteriores, rejeitada pela arte, e deu lugar a uma filosofia essencialmente otimista.
Desde o início a compreensão de Nietzsche sobre o pessimismo aparece associada a Dioniso: as dores essencialmente humanas do deus conectam o público e o drama, possibilitando a corporificação do “estado dionisíaco” do coro pelo espectador. O público da tragédia seria um espectador já dominado pelo dionisíaco e desse fato é possível emergir o efeito da tragédia. Primeiramente, Nietzsche defende que a filosofia socrática deve ser deixada de lado em prol do protagonismo da arte, pois, o papel deste tipo de filosofia é desconsiderar toda dimensão que escapa à função legisladora da razão. Também podemos definir um segundo aspecto: em uma cultura elevada, como foi a cultura grega em seu período trágico, a filosofia trabalhou para fomentar a criação artística.
Para compreendermos o que está em questão, faz-se necessário apontar para o fato de Nietzsche caracterizar Sócrates como uma figura longe do dionisíaco e do apolíneo. Ou seja, o socratismo não representa um “desequilíbrio” no relacionamento dionisíaco-apolíneo em favor do apolíneo, mas sim uma força estranha ao mundo da arte. Dirá que Sócrates é o adversário de Dioniso (NIETZSCHE, 1992, p.83). Para defender essa leitura, ele destaca o papel que a exaltação da razão cumpre desempenhar na via otimista de valoração da existência. Neste sentido, a oposição entre Dioniso e Sócrates é na verdade entre a visão de mundo pessimista inclusa na sabedoria popular e o otimismo que resulta do racionalismo pertinente ao modo de vida filosófico.
A questão passa por reconhecer o fim destinado pela natureza a tudo aquilo que vive, o perecer inscrito nas malhas da existência, cuja experimentação mostra não existir a possibilidade de atingir em vida a felicidade plena. Na contramão dessa ideia, o otimismo busca colocar o mundo pela perspectiva da elevação do sábio ante a ignorância, de modo a imaginar as condições pelas quais as feridas da existência poderiam ser curadas, por isso Nietzsche acusa o projeto filosófico de Sócrates de legitimar um otimismo teórico como se fosse um padrão ético de conduta capaz de reorganizar as aflições humanas.
Quem se der conta com clareza de como depois de Sócrates, o mistagogo da ciência, uma escola de filósofos sucede a outra, qual onda após onda, de como uma universalidade jamais pressentida da avidez de saber, no mais remoto âmbito do mundo civilizado, e enquanto efetivo dever para com todo homem altamente capacitado, conduziu a ciência ao alto-mar, de onde nunca mais, desde então, ela pôde ser inteiramente afugentada, de como através dessa universalidade uma rede conjunta de pensamentos é estendida pela primeira vez sobre o conjunto do globo terráqueo, com vistas mesmo ao estabelecimento de leis para todo um sistema solar; […] Sócrates [foi] um ponto de inflexão e um vértice da assim chamada história universal (NIETZSCHE, 1992, p. 94).
Por meio dessa inflexão, a arte passa então a ser vista como uma ferramenta no processo pedagógico do otimismo, eficaz para a formação de pessoas aptas aos ditames sociais desde que subordinada ao logos2.
O problema está na falsa sensação de resolução para a condição vulnerável das peripécias humanas. Nietzsche compreende que a tragédia ática perderia seu lugar de destaque, pois deixa de formar o paradigma do “artista trágico” enquanto uma figura heroica que, por força, sabe lidar com o sofrimento inscrito pelo destino, mas que, por fim, exalta a sua existência por meio da arte.
Ao largar o trágico na categoria do racionalmente irrelevante, forma-se uma nova visão de mundo superficial, que não foi gestada pelo confronto com o sofrimento e a morte. Neste sentido, a filosofia socrática serve de exemplo maior na medida em que retira da arte sua celebração do dionisíaco, já que, “com ela [a filosofia], o heleno havia renunciado à crença em sua própria imortalidade” (NIETZSCHE, 1992, p. 75). O termo “otimismo socrático”, portanto, direciona-se a uma promessa filosófica de felicidade por meio da racionalidade e da busca de conhecimento.
O resultado da sobreposição entre arte e razão é o nascimento de uma nova forma de arte, uma maneira de ilustrar a existência que segue o “socratismo estético”. Ou seja, os espectadores devem aprender alguma coisa por meio da arte e, para isso, requer entender o que está sendo apresentado. Neste sentido que Nietzsche afirmou ser a adição do prólogo às peças gregas signo da expulsão do dionisíaco. A arte não caberia na categoria do entendimento justamente porque ela nos leva a representar, viver, aquilo que na vida não passível de entendimento, mas apenas fruição.
A dialética otimista, com o chicote de seus silogismos, expulsa a música da tragédia: quer dizer, destrói a essência da tragédia, essência que cabe interpretar unicamente como manifestação e configuração de estados dionisíacos, como simbolização visível da música, como o mundo onírico de uma embriaguez dionisíaca (NIETZSCHE, 1992, p. 90).
O problema nietzschiano então aparece: o artista se torna um pensador e não um poeta musicalmente inspirado; Eurípides como primeiro poeta ‘sóbrio’, a “condenar os poetas ‘bêbados’” (NIETZSCHE, 1992, p. 83).
Uma vez que os seguidores do otimismo socrático foram encorajados a se tornar racionais, tanto no pensamento quanto na vida, a genuína criatividade artística foi condenada à morte. Para Nietzsche, a dialética não transforma a arte, mas a destrói.
O resultado do socratismo é a vitória da filosofia na luta contra a tragédia. É por uma ideia de declínio cultural que esse tema é colocado tanto para o assim chamado otimismo antigo quanto ao pessimismo moderno: assim como Sócrates não podia mais suportar conviver com as realidades selvagens da condição humana e se refugiava em uma filosofia otimista, o moderno encara o mesmo problema e se abre a um pessimismo negativo.
Embora a argumentação de O nascimento da tragédia pressuponha uma abordagem naturalizada dos fenômenos, para o autor, deve-se tal característica primeiramente ao fato de não podermos saber qual “racionalidade” estaria por trás dos fenômenos: “a nossa consciência a respeito dessa nossa significação mal se distingue da consciência que têm, quanto à batalha representada, os guerreiros pintados em uma tela” (NIETZSCHE, 1992, p. 47). Sendo que qualquer maneira pela qual tentamos criar conhecimento lógico para medir a existência, o mesmo se mostra relativo às condições naturais que a humanidade dispõe para pensar e falar a respeito do mundo.
A defesa do pessimismo filosófico em detrimento do socratismo parece aceitar essa limitação. Para Nietzsche, os gregos conheciam esse problema — fato apontado por ele na interpretação dos mitos da sabedoria popular grega3 —, mas o caráter efêmero e mambembe de tudo o que vive não aparecia como negação. Ao contrário, a apreciação pessimista da vida não se confundiu com preleções moralistas sobre a existência. De modo geral, nisso estaria o significado maior da tragédia em comparação com a filosofia otimista.
Boa parte de O nascimento da tragédia tenta descrever como ocorria essa reversão do pessimismo em força criativa, todavia, podemos destacar que um dos argumentos centrais de Nietzsche consiste em apontar para o fato de, ao confundir o “é” com o “dever ser”, o “homem teórico” ser enganado em sua própria casa, já que quer remover toda ilusão e erro, sem perceber que esse mesmo erro é fundamental e necessário. Por outro lado, o dionisíaco ilustraria o reconhecimento de nossa consciência apenas arranhar a superfície do mundo.
O caráter “misteriosófico” (NIETZSCHE, 1992, p. 70) conotado por Nietzsche seria a sua capacidade de fazer-se sentir vivendo uma conciliação, uma trégua, com o destino. O pessimismo grego, portanto, passa pelo saber-se como corpo, esse conhecimento da vida finita, mas com a sensação de pertencimento ao uno universal. Nos termos do gênero teatral tragédia, esse pessimismo foi decifrado como impulso ao orgiástico, mas também capaz de se desenvolver por meio de um método específico, com o qual se torna ferramenta para a arte. Através desse impulso revela-se que o viver tem sua própria dinâmica caótica e apenas o trabalho artístico sobre esse ponto pode construir um significado interessante para a existência — um pessimismo “além do bem e do mal” (NIETZSCHE, 1992, p. 19).
A esse tipo de pessimismo que o filósofo se refere ao reaver a origem da tragédia: se é impossível deduzir o significado metafísico real da vida, contudo é possível criar diversos significados para a mesma. Para tanto, segundo Nietzsche, duas coisas são imprescindíveis: “uma filosofia que ousa colocar, rebaixar a própria moral ao mundo da aparência e não apenas entre as ‘aparências’ ou fenômenos, mas entre os ‘enganos’, como aparência, ilusão, erro, interpretação, acomodamento, arte” e uma arte capaz de reverter “o ódio ao ‘mundo’, a maldição dos afetos, o medo à beleza e à sensualidade, um lado-de-lá inventado para difamar melhor o lado-decá, no fundo um anseio pelo nada, pelo fim, pelo repouso” (NIETZSCHE, 1992, p. 19). Esse é o projeto nietzschiano:
Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro problemático, o meu instinto, como um instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma contradoutrina e uma contra-valoração da vida, puramente artística, anticristã. Como denominá-la? Na qualidade de filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma liberdade — pois quem conheceria o verdadeiro nome do Anticristo? — com o nome de um deus grego: eu a chamei dionisíaca (NIETZSCHE, 1992, p. 20).
A interpretação nietzschiana da tragédia, portanto, trata de estabelecer uma contradoutrina dionisíaca tanto ao otimismo quanto ao pessimismo dos modernos — pois ambos não conseguiram superar a negação. Assim como os conceitos de Dioniso e dionisíaco, em O nascimento da tragédia, a relação entre arte e vida é discutida com dubiedade, pois o termo “arte” não apenas se refere à sua acepção mais convencional, como à escultura, à música e ao teatro, mas também em um sentido ampliado. A saber, vemos a afirmação que “o homem não é mais artista, tornou-se obra de arte” (NIETZSCHE, 1992, p. 31), como também referências ao “artista primordial do mundo” (NIETZSCHE, 1992, p. 47) e ao fato de que, sob a experiência do êxtase dionisíaco, toda a multidão dionisíaca se transforma em “obras de arte” (NIETZSCHE, 1992, §8).
Deste modo, uma vez que Nietzsche também se refere à natureza com analogias que a mostram como “artística”, nos termos dos “impulsos artísticos da natureza” (NIETZSCHE, 1992, §2), resta evidente que o filósofo não pensa em termos esotéricos. Busca em sua investigação apresentar que “o mito trágico, na medida em que pertence de algum modo à arte, também participa plenamente do intento metafísico de transfiguração inerente à arte como tal” (NIETZSCHE, 1992, p. 140), por isso identificamos em seu livro uma intenção metafísica para as transfigurações da vida pela arte — a arte como uma forma de superar o mundo cotidiano, como uma força capaz de transformar a vida humana.
Filosofia dionisíaca
Esses questionamentos compõe o tema do vínculo metafísico da teoria estética presente no primeiro livro nietzschiano. Essas questões são abordadas por Paul de Man4 ao afirmar que a tese de Nietzsche está comprometida em mostrar que todo conceito é uma metáfora. Segundo De Man, O nascimento da tragédia desmonta as pretensões à “verdade” que a filosofia possa ter tido, e o virtuosismo retórico do texto termina minando o aspecto referencial, a saber, o teor de “verdade” de suas afirmações5. Esta seria uma interpretação para as inconsistências vistas até agora sobre a intenção nietzschiana de ligar metafísica e arte, concomitante a uma recusa da metafísica e do racionalismo socrático.
Quando O nascimento da tragédia afirma que uma cultura precisa dos mitos para se manter viva, pois “o contrário disso [a decadência — cl] acontece quando um povo começa a conceber-se de um modo histórico e a demolir à sua volta os baluartes míticos: com o que se liga comumente uma decidida mundanização” (NIETZSCHE, 1992, p.137), o filósofo aponta para a determinação que deriva de “uma ruptura com a metafísica inconsciente de sua existência anterior, em todas as consequências éticas” (NIETZSCHE, 1992, p.137). Deste modo, a busca incessante pela verdade anti-mítica, socrática, é falsa porque, em última análise, é impossível6.
Neste sentido, a busca de Édipo é central para a argumentação nietzschiana em prol de uma melhor equação entre sabedoria trágica e pessimismo. “A mais dolorosa figura do palco grego, o desventurado Édipo, foi concebida por Sófocles como a criatura nobre que, apesar de sua sabedoria, está destinada ao erro e à miséria, mas que, no fim, por seus tremendos sofrimentos, exerce à sua volta um poder mágico abençoado, que continua a atuar mesmo depois de sua morte” (NIETZSCHE, 1992, p. 64). É a partir dessa concepção de trágico que o racionalismo passa a qualificar-se como um terrível antagonista, já que desloca a categoria capaz de apresentar a situação humana no mundo a partir daquilo que o filósofo entende como a dimensão fundamental da existência.
Com isso, a necessidade de razão impossibilita a tragédia de ser experimentada como uma arte que apresenta dramaticamente uma contradição: a tensão entre o ser humano submetido ao império da necessidade natural e o agente artístico transformador da natureza.
A arte grega e, em especial, a tragédia grega sustaram, acima de tudo, a aniquilação do mito: era preciso aniquilá-las também com ele, para que, liberto do solo nativo, se pudesse viver sem freios na vastidão do pensamento, do costume e da ação. Ainda agora aquele impulso metafísico procura criar para si uma forma, conquanto enfraquecida, de transfiguração em um socratismo da ciência que compele a viver [...], que se perdeu pouco a pouco em um pandemônio de mitos e superstições recolhidos em toda a parte: em cujo meio, não obstante, sentou o heleno, com um coração insatisfeito, até que soube [...] mascarar essa febre com a serenojovialidade grega e com a leviandade grega (NIETZSCHE, 1992, p.137).
Segundo Nietzsche, o verdadeiro amante da verdade deve ser aquele que reconhece que ela não pode ser acessada por nossa compreensão, por isso, o renascimento da tragédia pode ser entendido de duas maneiras: 1. como a conclusão do projeto epistêmico que a filosofia pré-socrática inicia. Assim como a tragédia é uma arte musical, a filosofia deveria também se guiar por esse espírito; 2. precisamos de arte para suportar e afirmar a existência. Tal como ocorreu no confronto grego com a sabedoria de Sileno, quando a arte se desenvolveu como uma resposta afirmativa ao pessimismo, faz-se necessária uma renovação da filosofia pela arte.
Em relação a essa investida nietzschiana sobre os problemas modernos que originam o pessimismo negativo, Paul de Man pretende vincular Nietzsche ao projeto de “desconstrução” com uma conclusão marcadamente cética: o filósofo estaria comprometido com a tese de nenhuma pretensão à verdade subsistir a uma leitura acurada da realidade, de modo a concluir que a linguagem é sempre dissimulada e a verdade é inacessível7. Neste sentido, ao denunciar as reivindicações de verdade que marcam uma concepção teórica, Nietzsche estaria utilizando da linguagem em uma narrativa que é, por natureza, incompatível com aquilo que se pretende denunciar e o modo como podemos construir a denúncia, ou seja, criticar a validade de toda teoria através de outra construção teórica.
Na obra de Nietzsche, forma e conteúdo, bem como sentido figurado e sentido literal são sempre conflituosos e, no limite, intercambiáveis. Entretanto, se Nietzsche manipula o seu próprio discurso, como é possível construir uma crítica à estratégia do otimismo socrático com argumentos teóricos quando ele parece estar envolvido na argumentação contra o poder da argumentação? De Man investiga este paradoxo e o traduz em suas próprias palavras ao situar o caso de Nietzsche na terminologia da desconstrução da linguagem. Em Alegorias da leitura, por exemplo, o comentarista explora as tensões que surgem na linguagem figurativa em Nietzsche, propondo que, como as teses de O nascimento da tragédia estão presas a uma função metalinguística, sua linguagem é figurativa e depende de uma reflexão prévia junto a uma tomada de posição sobre oposições filosóficas clássicas, tais como a negação das diferenças entre essência e acidente, aparência e realidade (DE MAN, 1979).
De Man nega a capacidade de uma filosofia controlar ou dominar um discurso através da metáfora, por isso as concepções genéricas do estudo filológico das divindades e dos mitos gregos são atormentadas pelas estratégias retóricas que Nietzsche emprega. Em razão disso, de Man afirma que a intenção principal do texto é mostrar a deficiência do logocentrismo, pois acusado de ser acampado inicialmente pela filosofia platônica e socrática. Portanto, “o tom utilizado por Nietzsche em seus escritos apresentaria conceitos difusos que, em um primeiro olhar, mostrar-se-iam contraditórios ao leitor” (DE MAN, 1979, p.88)8.
De todo modo, o paradoxo continua: qualquer argumento conceitual, abstrato, contra o logocentrismo seria autodestrutivo, uma vez que adota os mesmos valores do “logos” que ele deveria combater. Por outro lado, podemos seguir a argumentação de Paul de Man e interpretar que a proposta não está implicada em uma contradição direta, mas determinada pelo “uso de métodos epistemologicamente rigorosos como único meio possível para refletir sobre as limitações desses métodos” (DE MAN, 1979, p.86). Em outras palavras, ao invés de argumentar diretamente contra os valores logocêntricos, Nietzsche tenta minar o otimismo do racionalismo socrático de forma indireta, por isso a aparente “contradição de método” (DE MAN, 1979, p.86) ao usar o discurso racional não passaria de um dispositivo argumentativo/retórico.
Nietzsche questionaria o otimismo teórico da filosofia socrática beneficiando-se de um conflito que surge entre a teoria explícita do texto e sua prática retórica. Neste contexto, a tese de que a verdade se faz presente apenas aos espectadores na arte dionisíaca pode ser lida como uma alusão a este conflito, enquanto pela parte teórica a proposta nietzschiana tenta transmitir uma experiência, que é exclusivamente corporal, através do discurso (logos) que ele supostamente rejeita. Deste modo, esse conflito entre teoria e prática “deixa um resíduo de sentido que pode, por sua vez, ser traduzido em uma declaração sobre os limites da autoridade textual” (DE MAN, 1979, p.99) .
Embora a interpretação de Paul de Man confira coerência ao texto, essa leitura parte do destaque de Nietzsche ao papel da arte na superação da dicotomia entre Apolo e Dioniso, minimizando a importância do tratamento explícito do problema do pessimismo em O nascimento da tragédia9. Nietzsche pensa em três estratégias, apresentadas no parágrafo 18 da obra, de libertação dos seres humanos por meio de intervenções artísticas, fato que sugere ser a questão mais fundamental da obra o problema da afirmação da existência. Quando cotejamos essa tese com a leitura “desconstrutivista” de acordo com de Man10, somos instigados a entender que definir o trabalho teórico do primeiro livro nietzschiano dentro de um programa “desconstrutivo” pressupõe uma reflexão sobre a natureza da linguagem que, embora possa ser sugerido em outros textos do autor, não está claro em O nascimento da tragédia.
Para reverter esse problema, de Man defende ser plausível que Nietzsche estivesse encampando teses sobre a linguagem independentemente de ele estar ciente disso ou não (DE MAN, 1979, p.88). Ou seja, a teoria sobre a tragédia ática acompanha intimamente a tese de que toda linguagem é figurada e, portanto, incapaz de afirmar quaisquer verdades literais. De todo modo, ainda que o ensaio Verdade e mentiras no sentido extra-moral — redigido por Nietzsche em 1873, apenas um ano após a publicação de O nascimento da tragédia — defenda em geral a tese sobre o sentido figurativo da linguagem, não encontramos na primeira obra afirmações explícitas que sustentem essa visão sobre a natureza da linguagem11.
No texto “Sobre verdade e mentira...”, aparece ao leitor a ideia de que a estrutura paradigmática da linguagem é a retórica, pois ela não ganha sentido a partir de qualquer referencial próprio, e a questão, então, passa ao largo de um realismo “representacional” sobre a natureza da experiência consciente. O mundo descrito por nossa linguagem não seria o mundo real em si, mas simplesmente uma percepção da “cópia interna” desse mundo, cuja forma foi gerada por processos corporais, sejam eles de acordo com a própria estrutura que a língua utiliza, seja de esquemas neurais do cérebro. Esse realismo indireto afirma que a nossa experiência consciente não é precisamente referente ao mundo real em si, mas de uma representação interna. Portanto, a concepção de linguagem que Nietzsche oferece no ensaio de 1873 afirma que “nossa realidade” não passa de realidade virtual, isto é, a réplica do mundo pela linguagem cuja literalidade só existe quando os valores verdadeiros das frases fossem determinados por objetos extralinguísticos12.
Paul de Man não deixa claro o motivo dessa posição sobre a linguagem poder ser aplicada a O nascimento da tragédia, entretanto, qualquer afirmação sobre se a primeira obra de Nietzsche realmente defender que toda linguagem é figurativa é dificultada por faltas de evidências textuais. Segundo Dalla Vecchia, Nietzsche só reconhece e nomeia a existência de uma espécie de perspectivismo linguístico em O nascimento da tragédia no período da maturidade, especificamente quando publica seu prefácio tardio na Tentativa de autocrítica. “Esse pormenor é de grande relevância tanto pelo que os termos utilizados indicam quanto pelo momento em que e sobre o qual eles são escritos”, todavia, “Nietzsche praticamente não emprega (tampouco de modo direto e significativo) as variações de ‘perspectivismo’ no período da juventude. Isso, contudo, não o impede de no período da maturidade empregar uma analogia de clara tonalidade perspectivista para justamente nomear a ‘tarefa’ (Aufgabe) da qual sua principal obra no primeiro período” (DALLA VECCHIA, 2012, pp. 126 -127).
Esse conflito nos leva às teses schopenhauerianas do texto inaugural de Nietzsche, uma vez que ele incorpora uma crítica sobre a representação através do reconhecimento da música como “linguagem imediata da vontade” (NIETZSCHE, 1992, p. 101). O escopo desta afirmação remete à discussão sobre o endosso ou desconfiança em relação à metafísica na primeira obra de Nietzsche, pois o compromisso metafísico nietzschiano seria um argumento contra suas próprias críticas a Sócrates. Segundo de Man, podemos compreender este problema como um lance retórico do filósofo que pretende afirmar aquilo que critica. Ou seja, “dada a organização retórica do Nascimento, o ditame de Schopenhauer só poderia ser ‘verdadeiramente contestado’ ao minar a autoridade do narrador a partir da dinâmica do texto” (DE MAN, 1979, p.96-7).
Isso significa que a autoridade do narrador não provém do processo de desvalorização por uma refutação lógica, ao contrário, sucede da iniciativa em mostrar ao leitor as contradições que devem seguir-se da tentativa de sustentar a tese. Por este ângulo, Nietzsche se posicionaria contra o otimismo socrático não por meio de afirmações abertas, como argumentos estruturados, mas recorre a afirmações metalinguísticas sobre a natureza ilusória da linguagem, “assim como uma pragmática retórica que põe em questão essas afirmações” (DE MAN, 1979, p.98) 13.
Considerações finais
Em suma, O Sócrates de O nascimento da tragédia é um representante da razão e da lógica, cuja tradição filosófica desconectou a vida da arte, por isso, para Nietzsche, Sócrates e sua tradição filosófica são mortas e inúteis. Por outro lado, Nietzsche vê Dioniso como uma figura viva e criativa, na qual a arte e a vida são mais afirmados mesmo em detrimento da lógica. A figura de Dioniso, portanto, aparece como um meio de criticar Sócrates e a sua tradição filosófica ocidental. De Man argumenta que Nietzsche vê a tradição filosófica ocidental como uma forma de opressão e que Dioniso é um simbolo para liberdade, vida e vitalidade.
Quando retiramos de O nascimento da tragédia qualquer pretensão de detectar como a “verdadeira face da realidade” pode ser por nós acessada, resta claro que Dioniso não é um símbolo da verdade transcendental da natureza, tampouco se confunde com o pessimismo romântico. O uso da divindade como um experimento artístico capaz de suprimir de fato a individualidade em prol de uma consciência universal, na qual ocorre uma transformação do individual em uma autoconsideração cósmica, permite defendermos que a interpretação formulada por Paul de Man é válida porque rejeita toda a noção de que a principal afirmação nietzschiana sobre Dioniso seria exemplificada pela tese metafísica de inspiração schopenhaueriana. Assim, o uso conceitual das divindades gregas para Nietzsche se contrapor à caricatura socrática de sua primeira obra, portanto, ocorre muito mais como uma espécie de auto referência, pois estão diretamente dependentes da “contradoutrina dionisíaca” que Nietzsche busca construir.
A crítica ao otimismo racionalista remete à conceituação do pessimismo trágico dos gregos em contraponto ao pessimismo moderno por meio da investigação das experiências estéticas identificadas na convenção grega da oposição entre as divindades Apolo e Dioniso. Apesar de seus problemas, a tese nietzschiana dirige-se menos à filosofia socrática do que à sua crítica contra a herança cultural otimista, cujo espírito modela a negatividade também o pessimismo da modernidade. Portanto, Nietzsche recorre a várias técnicas argumentativas, metáforas e metonímias, e concebe a seu gosto as divindades da religião grega de modo a poder descrever os aspectos do mundo helênico que entendeu, naquele momento, possuir utilidades para reverter o problema do pessimismo em sua época.
Referências
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SILK, M.S. / STERN, J.P., Nietzsche on Tragedy. Cambridge, Cambridge University Press, 1981.
Notas
2 . O diálogo platônico foi, por assim dizer, “o bote em que a velha poesia naufragante se salvou com todos os seus filhos: apinhados em um espaço estreito e medrosamente submissos ao timoneiro Sócrates, conduziam para dentro de um novo mundo que jamais se saciou de contemplar a fantástica imagem daquele cortejo” (NIETZSCHE, 1992, p. 88).
3 Para uma análise desse tema. Cf. SILK, M.S. / STERN, J.P., Nietzsche on Tragedy. Cambridge, Cambridge University Press, 1981.
4 DE MAN, Paul. Allegories of Reading. New Haven: Yale University Press, 1979.
5 Argumentação apresnetada no capítulo 9, Anthropomorphism and Trope in the Lyric. Cf. De Man, Paul. 1979.
6 Aos olhos de Nietzsche, as questões éticas são precisas porque ocorre justamente o contrário, o caminhar do conhecimento revela a inevitabilidade do sofrimento e, em casos extremos, o próprio conhecimento pode ser em si mesmo uma causa de sofrimento.
7 Cf. DE MAN, 1979. No capítulo 3, intitulado "Nietzsche as Rhetorician of the Will to Power", De Man analisa a escrita de Nietzsche como uma forma de retórica que busca persuadir o leitor a aceitar sua visão do mundo e sua concepção de "vontade de poder". Ele argumenta que a escrita de Nietzsche é marcada por uma ambiguidade estrutural e metafórica que desafiam uma leitura literal e objetiva, e que sua obra é melhor compreendida como uma série de estratégias retóricas e tropos literários que resistem a uma interpretação única e transparente.
8 Conforme cunhado por Derrida, “logocentrismo” é um termo usado na crítica filosófica ao pensamento ocidental por este sempre ter privilegiado o logos em detrimento da sensibilidade. Trata-se de um conjunto de compromissos de valor que os pensadores ao longo da história da filosofia ocidental têm tipicamente, e geralmente de forma acrítica, adotado; por exemplo, o privilégio da verdade sobre a ilusão ou da ciência sobre a arte.
9 Se incluirmos outros textos de Nietzsche, a análise de De Man ganha completude, pois seu ponto é que Nietzsche questiona a distinção tradicional entre essência e acidente, aparência e realidade, sugerindo que essa distinção é uma ilusão criada pela linguagem e pela sociedade para estabelecer e manter o poder, pois a verdade seroa uma construção subjetiva e dependente de contexto.
10 Pela qual afirma que Nietzsche estaria disposto a evidenciar que as afirmações em textos filosóficos nunca são realmente capazes de representar o que dizem representar e, por isso, qualquer pretensão de possuir a verdade leva inevitavelmente a uma contradição por si própria. “Pela própria escolha de seu tema literário, O nascimento da tragédia parece preocupado, por sua própria vontade, com o que é ou deveria ser um texto”. De Man, 1979, p.87.
11 Em “Verdade e mentira no sentido extra-moral” encontramos a resposta à pergunta “O que é verdade?”: “ Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas, e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas” (NIETZSCHE, 1983, §1)
12 “A possibilidade de (re)ver as perspectivas sob diferentes óticas é precisamente o que permite a Nietzsche em O nascimento da Tragédia empreender uma crítica radical da ciência pela arte e dessa pela vida, o que, nos termos que propomos, constitui seu ‘experimento perspectivista’”. (Dalla Vecchia. 2012, p.124).
13 Embora ele não faça menção ao fragmento de 1867 sobre Schopenhauer (Zu Schopenhauer), de Man oferece mais um argumento que questiona o endosso de Nietzsche à metafísica da Vontade. Em diversos momentos dos escritos preparatórios para O nascimento da tragédia, Nietzsche já havia ultrapassado as pretensões metafísicas de qualquer teoria e, por isso, a dinâmica do texto está comprometida em usar a filosofia para negar a filosofia. Deste modo, não faz sentido falar da Vontade como realidade em si mesma, pois qualquer coisa concebida pelo ser humano teria de ser uma representação fenomenal. “A inteligência se justifica em um mundo de objetivos. Mas se é verdade que nossos objetivos são apenas uma espécie de ruminação de experiências em que o agente real permanece oculto, então não temos o direito de transferir sistemas de ação proposital para a natureza das coisas. Isso significa que não há necessidade de imaginar a inteligência como capaz de representação. A inteligência só pode existir em um mundo de consciência. No reino da natureza e da necessidade, todas as hipóteses teleológicas são absurdas. Necessidade significa que só pode haver uma possibilidade. Por que, então, temos que assumir a presença de um intelecto no reino das coisas? — E se a Vontade não pode ser concebida sem implicar sua representação, a ‘Vontade’ também não é uma expressão adequada para o núcleo da natureza.” Nietzsche apud De Man, 1979, p.100.
Notas de autor