Resumo: Sob o ponto de vista da teoria crítica e de uma crítica social, e mais recentemente, a ideia do progresso parece se estabelecer em uma ambivalência: de um lado, os postulados de Amy Allen encetaram uma “Aufklärung” da concepção de progresso (ao qual eu chamo de concepção “negativa”) e os seus possíveis desdobramentos para a teoria crítica bem como para a crítica social; por outro, a concepção de progresso pode ser compreendida como uma “forma positiva” na qual se orienta junto ao escopo constitutivo de uma teoria crítica ao corporificar, por exemplo, a justiça social enquanto mediação socionormativa ao processo de emancipação. Levando em consideração as assertivas supracitadas, revisitarei, nesta pesquisa, a centralidade da concepção de progresso em Amy Allen (1) para daí interpor uma ideia “positiva”. Nesse sentido, tomarei por referência socioinstitucional e empírica a política pública do programa social ‘Mais IDH’ ao qual se constitui tanto como uma resposta ao conceito de progresso em Amy Allen quanto uma condição possível de efetivação à justiça social (entendida basicamente pelas condições mínimas de existência) (2).
Palavras-chave: Teoria Crítica, Crítica social, Progresso, Justiça social, Mais IDH.
Abstract: From the point of view of critical theory and social criticismo the idea of progress seems to be established in an ambivalence: on the one hand, the postulates of Amy Alllen started an “Aufklärung” of the conception of progress ( which I call the “negative” conception) and its possible unfolding to a critical theory as well as for social criticismo; in contrast, the conception of progress can be understood as a “positive way” in which it is guided by the constitutive scope of a critical theory by embodying, for example, the social justice as a social-normative medium to the process of emancipation. Taking into account the aforementioned assertions, I will take up, in this research, the core of the conception of progress in Amy Allen (1) in order to interpose a “positive” idea. In this sense, I will take as a social-institutional and empirical reference the public policy of the 'Mais IDH' social program (More HDI), which is constituted both as a response to the concept of progress in Amy Allen and as a possible condition for the realization of social justice (understood as the minimum conditions of existence) (2).
Keywords: Critical Theory, Social Critique, Progress, Social Justice, More HDI.
Artigos
Crítica social e política pública: rearticulando a ideia de progresso como mediação à justiça social no programa “Mais IDH”
Social critique and public policy: rearticulating the idea of progress as medium to social justice in the ‘More Hdi’ program
Recepción: 29 Septiembre 2022
Aprobación: 31 Enero 2023
Os postulados socionormativos de uma teoria crítica (BENHABIB, 1986, 455p., JAEGGI, 2013, 375p., NOBRE, 2008, 302p., NOBRE, 2004, 80p; OLIVEIRA, 2016, 271p.) estabelecem, em grandes linhas, o diagnóstico, a análise e a correção (WESCHE, 2013, p.200) enquanto sua autocompreensão substancialista da transição entre “como uma determinada realidade é” para “como deve(ria) ser”; de outro modo, na linguagem honnethiana, esse movimento teórico assume a categoria analítica da patologia social (HONNETH, 2007, 237p.). Por outro lado, esse movimento exodal paradigmático possibilita a inserção da ideia do progresso enquanto mudança social em uma determinada realidade distópica (JAEGGI, 2020, 200p.) principalmente em uma situação de sofrimento social (KLEINMAN, 1997, 404p). Nesse aspecto, o tema da mudança social parece instar uma noção de progresso na qual denote, por assim dizer, uma ideia “positiva” e que, de igual modo, esteja vinculada com a melhoria das condições mínimas de existência social (SERNA, 2014, p.407-412) cuja promoção à justiça social (PINZANI, 2012, p. 88 – 106; REGO, 2019, p. 141 – 151; ZEIFERT, 2019, p. 1 – 22) se consolida como um desafio constante em sua estrutura de pensamento e ação.
Quando a teoria crítica recepciona os princípios de uma crítica imanente (STAHL, 2013, 475p.) ela o faz levando em conta também questões da ontologia social (STAHL, 2013, p. 184 – 188) já tematizadas por Honneth (HONNETH, 2001, 127p.) e apresentadas em outras pesquisas (DETEL, 2007, 191p.; IKÄHEIMO, 2011, 398p.; WESSER, 2011, 354p.). Nesse sentido, a intuição básica da ação corretiva vinculada às normas e práticas sociais (DETEL, 2007, p.52) é tratar, de fato, da essência da vida social e política das pessoas (DETEL, 2007, p.39) que compartilham determinado ambiente; portanto, não é apenas uma discussão “simplista” sobre entidades sociais existentes em um mundo objetivo; porém, em última instância, diz respeito a atitudes corretivas perante um déficit específico da(na) vida ou, de modo geral, das patologias sociais.
No prefácio de “Sozialphilosophie und Kritik” está explícita a ideia de que uma teoria crítica não é feita de um ponto fixo de estudo e pesquisa no qual não permite fluidez em sua estrutura de pensamento e ação (FORST, 2009, p.11); pelo contrário, ela se articula exatamente “por não ter um lugar” (ortlos), daí que o desdobramento da pesquisa crítica ser exatamente em postular um caleidoscópio interdisciplinar de saberes (JAEGGI, 2017, 128p.). Nesse sentido, a esfera política assume um lugar heurístico tanto para a teoria crítica quanto para uma crítica social (BOHMANN, 2019, 709p.) refletindo para a sociedade, dentre tantos temas, o progresso enquanto mediação sociopolítica na organização e aperfeiçoamento de uma determinada comunidade social (ISER, 2008, 329p.). Sob o ponto de vista do processo de “Esclarecimento” (Aufklärung) de uma teoria crítica que leve em consideração a esfera sociopolítica e socionormativa, a noção de progresso se torna, portanto, fundamental para as tratativas orientadas à emancipação (ISER, 2008, p.8) cujo desdobramento possível ensejaria numa forma de corporificação da razão, nos termos de Rahel Jaeggi, ou uma forma destranscendental de razão, nos termos habermasianos (HABERMAS, 2001, 87p.) que, por sua vez, é entendida pela inserção dos sujeitos socializados nos contextos dos mundos da vida (HABERMAS, 2001, p. 16). Daí que a recepção dessa ideia destranscendental da razão concede um reposicionamento não apenas semântico, mas socionormativo, para a ideia de progresso, pois, sob os pressupostos da teoria crítica e de uma crítica social (“onde” tal teoria crítica se aplica), seria entendida enquanto mediação possível para a melhoria das condições sociais ou para mitigar o processo de solapamento da vida social. O progresso não seria concebido, tal como postula a Amy Allen, como uma pura ideia desenvolvimentista enredada em uma paradigmática lógica econômica do mercado (HONNETH, 2014, 670p.); pelo contrário, passaria, por exemplo, a assumir uma condição de referência à emancipação que, no caso desta pesquisa, essa rearticulação da ideia do progresso se corporifica no programa social ‘Mais IDH’ no qual passa a ser entendido enquanto fundamento ontológico institucional (DETEL, 2007, p.95) assumindo, por assim dizer, um telos à emancipação (justiça social).
Os desdobramentos socionormativos de uma concepção destranscendentalizada da razão permitem para a teoria crítica e para a filosofia social (JAEGGI, 2017, 128p.) pensar a esfera “Social” (das Soziale) como categoria analítica e conceitual das relações, práticas e instituições sociais (JAEGGI, 2017, p. 11); mas, pari passu, permite, de igual modo, creditar ao esteio “Social” a existência de entidades sociais (DETEL, 2007, p.100) orientadas à práxis normativa. É nesse sentido que eu integro as políticas públicas (CHRISPINO, 2016, 256p.) como vestígios socio-ontológicos (ALBERT, 1981, 86p.; DETEL, 2007, 191p.; LOHSE, 2019, 254p.; MÜNSTER, 2020, 136p.; WESSER, 2011, 354p.) e normativos possibilitadoras da justiça social (HARRIS, 2021, 422p.; PINZANI, 2012a, p. 88 – 106; PINZANI, 2012b, p. 134 – 159). A título de referência empírica situo o programa social ‘Mais IDH’ (MARANHÃO, 2015, 113p.). Voltarei mais adiante a essa questão.
Retomando o pressuposto dialético subjacente a uma teoria crítica (VOIROL, 2012, p.81 – 99) e tendo em vista a categoria da “negação”, Amy Allen, por sua vez, assume a noção de progresso como um problema: partindo do criticismo decolonial (ALLEN, 2016, p. 25 – 34), e tendo consigo a dimensão socionormativa de progresso, ela apresenta dois argumentos principais: a ideia de progresso como um desenvolvimento histórico e a concepção de se alcançar um mundo social menos opressivo (ALLEN, 2016, p. 226). Em seguida, quero explicitar brevemente esses argumentos e, perante o exercício de uma crítica imanente, creditar um sentido “positivo” para o progresso em contraposição ao conceito “negativo” da Amy Allen.
1.1 Amy Allen concebeu em “The End of Progress” (ALLEN, 2016, 280p.) que existe uma dependência tanto de Habermas quanto de Honneth no tocante a uma progressiva compreensão sob a forma “desenvolvimentista” da história como um caminho para fundamentar a normatividade. Daí que, segundo a filósofa estadunidense, o projeto de fundamentação normativa da teoria crítica ainda estaria enredado sob uma visão estruturalmente “colonialista” e ela reforça essa concepção ao afirmar no subtítulo do livro em questão o tema da decolonização dos fundamentos normativos da teoria crítica. Amy Allen sugere uma leitura na qual a ideia do progresso como um “fato” está inserida em um ancoramento colonial de poder. Nesse caso, Allen dedica um capítulo para estabelecer uma crítica política e epistemológica à ideia de progresso enquanto “fato” (ALLEN, 2016, p. 16) tomando como métrica, sob o ponto de vista político, o impasse na teoria crítica na concepção do progresso como um imperativo moral-político enquanto um "fato" histórico; e, sob o ponto de vista epistemológico, se a ideia/efetivação de um progresso histórico não presume conhecimento do que conta como o ponto final ou objetivo desse desenvolvimento histórico; mas, como isso poderia ser conhecido sem ter acesso a alguns pontos de vista teonômico ou de um Absoluto. Em ambos os casos, para Allen, esse tema recairia em uma particularidade: evitar uma forma de fundacionalismo e, portanto, uma certa compreensão metafísica subjacente já que o maior representante ainda vivo do círculo frankfurtiano atribui às sociedades atuais, em seus contextos plurais e em suas urdiduras autocompreensivas, um escopo pós-metafísico (HABERMAS, 1990, 271p.; HABERMAS, 2012, 334p.).
Sob a centralidade argumentativa, existem dois postulados básicos na crítica de Amy Allen: o primeiro, o reconstrutivismo neo-hegeliano atribuído à Honneth e Habermas que tem por base o argumento de uma fundamentação normativa a partir da ideia de progresso e aprendizado sociocultural; e o segundo, a estratégia construtivista neokantiana cuja fundamentação parte da ideia de razão prática. Amy Allen estaria convencida de que a noção de progresso oriundo da modernidade – técnico-científico e político-moral – se faz presente na concepção de história kantiana e hegeliano-marxiana permitindo, dessa forma, pensar que a ideia de progresso se confundiria com a de desenvolvimento enquanto aprendizado cumulativo de cunho político-moral de versão kantiana. É nesse sentido que ganha força a afirmação “o progresso é entendido como um processo de expansão da racionalização social pela qual as relações existentes de poder e dominação e outras deformações patológicas da razão são progressivamente superadas” (ALLEN, 2016, p. 88).
Amy Allen centraliza a sua crítica às tentativas honnethianas elencadas tanto no “Direito de Liberdade” (HONNETH, 2015, 646p.) quanto na “Normatividade da vida ética” (HONNETH, 2014, p.817 – 826); porém, mais especificamente nesse segundo texto, Amy Allen, ao criticar a leitura honnethiana sobre a relação entre normatividade e progresso histórico, se reporta ao que ela chamou de “paradoxo da normatividade kantiana” (ALLEN, 2016, p. 109) cujo entendimento é concebido pela ideia de que a normatividade moral está necessariamente vinculada à liberdade autônoma. Nesse sentido, a validade de princípios já está pressuposta na base da autodeterminação prática e o grande limite (ou perigo, nos termos de Amy Allen) é o convencionalismo (ALLEN, 2018, p.110). De maneira distinta, essa crítica não é endereçada apenas a Honneth, mas também à Habermas e à Forst, pois Amy Allen observa que, no caso de Habermas, por exemplo, ele busca evitar esse paradoxo ao estabelecer o princípio fundado na pragmática da comunicação e não no (neo)construtivismo (ALLEN, 2016, p.110). Nesse caso, para Allen, “a trindade neoconstrutivista” faz uma tanto uma releitura kantiana na forma de uma “destranscendentalização moderada” (ALLEN, 2018, p.86) quanto hegeliana (ALLEN, 2016, p. 80 – 121).
Sob o horizonte socionormativo da teoria crítica e da crítica social, os desdobramentos sociais da crítica de Amy Allen exigem respostas. Eu não tenho a intenção nesta pesquisa em apresentar uma cabal resolubilidade, porém busco escrutinar de que maneira a crítica à ideia de progresso de Allen pode ser relido em um contexto como o nosso eivado por uma economia capitalista precarizada (AZMANOVA, 2020, 223p.). Um ponto de partida possível é o diagnóstico e a análise do anátema ao pobre (CORTINA, 2020, 225p.; PINZANI, 2011, p. 83 – 101) em um contextualizado mundo da vida social enquanto fundamento destranscendental de pesquisa, nos termos habermasianos, no qual incide, neste caso, no programa social ‘Mais IDH’.
Vivemos em um cenário epocal em que as metas e métricas (MULLER, 2018, 185p.) assumem um protagonismo nas estratégias da(na) vida prática. Há uma sensação de que a inexorabilidade de ambas imprime um caráter performativo (na)para a esfera social e política fazendo com que, por exemplo, sob a égide do planejamento organizativo (CHRISPINO, 2016, p. 155 – 208), toda e qualquer ação de uma política pública esteja lastreada pelas duas categorias supracitadas. O saber filosófico, por sua vez, não está imune – e nem deveria estar – a essas novas configurações na vida social. Daí o caráter especulativo e normativo da filosofia social (CHRISTMAN, 2018, 282p.; DETEL, 2007, 191p.) em se dedicar às mudanças vigentes nas múltiplas realidades da vida prática e é nesse sentido que a assertiva “o que nós devemos fazer” (“was wir tun sollen”) (JAEGGI, 2017, p.8) assume um protagonismo teórico e prático de uma teoria crítica (BENSON, 2021, 294p.; JAY, 2008, 454p.). Daí que, em um contexto de uma abrangente teoria crítica, mudar permite com que se retome a ideia de progresso enquanto categoria analítica elevando a um escrutínio socionormativo em uma determinada sociedade. Aliás, Rahel Jaeggi assume a ideia do progresso enquanto ideal normativo que visa estabelecer uma comunidade social (ALLEN, 2016, p. 225 – 251). A despeito da diferenciação entre “progresso histórico” e “progresso na história”, creio que a estratégia “neohegeliana” de Jaeggi se aproxime do escopo empírico e social desta pesquisa: o programa social ‘Mais IDH’ que, em seu âmago, estabelece uma autocompreensão socionormativa que visa equilibrar as comunidades assistidas pelo referido programa das distorções há décadas vividas por elas. Equilíbrio aqui assume um sentido de efetivação da justiça social (PINZANI, 2012a, p. 88 – 106; REGO, 2019, p. 141 – 151), isto é, a busca pela melhoria das condições mínimas de existência social.
2.1 Sob o enfoque da teoria crítica e da crítica social, é preciso ter o cuidado de não ufanar uma gestão pública por causa de uma política implementada no decurso dessa gestão. O meu interesse aqui é explicitar o tônus socionormativo do ‘Mais IDH’ (MARANHÃO, 2015) no qual faz uso da noção de progresso enquanto mediação constitutiva ao exercício da justiça social.
O programa social ‘Mais IDH’ visa
priorização do desenvolvimento das regiões e das populações mais necessitadas do Maranhão, constituindo-se também em inovadora tecnologia social. Pensado como um movimento que se amplia e aprofunda, agregando mais e mais setores do poder público e da sociedade civil na direção de ações territoriais planejadas, teve seu arranque com a escolha dos 30 municípios maranhenses com os mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano Municipal – IDHM, segundo os dados do Censo 2010. Foco das atenções concentradas de nove Secretarias de Estado e duas autarquias, a partir da definição de uma metodologia para coleta e sistematização das informações disponíveis, as ações do Plano se expandiram para os executivos municipais ao tempo em que possibilitavam o primeiro produto de um longo processo, consubstanciado agora neste Diagnóstico Preliminar. Este documento tem por objetivo sistematizar um conjunto de informações socioeconômicas e ambientais capazes de refletir a situação inicial existente nos 30 municípios selecionados [...] (MARANHÃO, 2015, p. 4).
Nas ações desenvolvidas pelo ‘Mais IDH’ há uma métrica analítica socionormativa: o menor IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano por município) associado ao mote “o que devemos fazer?” para solucionar os problemas sociais presentes nas cidades com os piores índices de desenvolvimento humano por município. A questão aqui não é recepcionar a lógica do desenvolvimentismo, mas, assumindo as métricas socionormativas do IDH2 e do IDHM, estabelecer melhores condições para aquelas cidades que, de certo modo, podem ser entendidas como formas de vida sociais (JAEGGI, 2014, 451p.) e que necessitam dos bens mais fundamentais para sua sociabilidade (SCANLON, 1975, p. 655 – 669). Não sem motivo que Pablo Acosta (ACOSTA, 2022) escreveu recentemente sobre a acurada atenção que devemos ter com as políticas públicas, pois elas auxiliam à superação das disparidades históricas. Aliás, o momento pandêmico da covid-19 acentuou severamente a situação da vulnerabilidade social e da pobreza (WORLD BANK, 2022, 142p.). Sob o ponto de vista socionormativo de uma teoria crítica e da crítica social, esse cenário exige respostas. Nesta segunda parte da pesquisa, a questão basilar é reposicionar a ideia de progresso estabelecendo uma orientação emancipadora. É exatamente nesse ponto que emerge a concepção de que o programa social ‘Mais IDH’ busca promover a justiça social tomando como métrica normativa a ideia de progresso.
Ao levar em conta o IDHM assim como as esferas da educação, saúde e renda, trabalho, ambiente, o programa ‘Mais IDH’ busca promover a justiça social entendida como as condições mínimas para a existência social. Van Parijs (PARIJS, 2017, 384p.) apresentou a incondicionalidade da renda mínima enquanto critério para garantir a existência social. A ideia parece desse “mínimo existencial” é aceita até em parte da teoria liberal econômica (HAYEK, 1985, p. 59) o que suscita a questão dos direitos sociais como elementos integrantes e garantidores da justiça social; mas, por outro lado, Van Parijs admite que esse tema ganha maior densidade quando nos chega o problema do “como fazer”, isto é, fica a pergunta: é possível articular um quadro institucional capaz de efetivar tal empreendimento? Essa questão nos reporta à ontologia social que não é o nosso tema aqui. De todo modo, permanece o desafio de se pensar a renda como mediação socionormativa.
A pobreza não é “apenas uma questão monetária” (ACOSTA, 2022) e por isso mesmo a renda em (por) si não garante a efetividade de um plano de justiça social. Daí o fato determinante da política pública do “Mais IDH’ em assumir o diagnóstico como primeiro momento de compreensão social de um determinado município. Nesse sentido, a etapa procedimental diagnóstica retoma o primeiro postulado de uma teoria crítica (WESCHE, 2013. p. 193 – 220). E não apenas essa etapa; mais adiante, tanto a análise e a correção determinam, por assim dizer, a triádica composição socionormativa de uma teoria crítica. Esses dois últimos elementos do espírito de uma teoria crítica são mediados pela identificação dos problemas sociais; como é, a título de exemplificação, a troca das escolas de taipa para alvenaria que é um dos desdobramentos do ‘Mais IDH’ nos municípios com os piores índices de IDHM. Parece uma ação simples; mas, não é. Muito diferente disso, não se trata apenas de uma permuta de materiais da construção civil; ao contrário, essa efetivação da justiça social ocorre exatamente para as pessoas que mais necessitam e que se encontram em um estado de vulnerabilidade social e pobreza crônica. Daí as condições mínimas para que um processo de ensino-aprendizagem possa ser efetivado passam a existir. Nesse sentido, a ideia do progresso compreendida como possibilidade de emancipação é exequível. Ela não está, portanto, vinculada à lógica do desenvolvimento socio-histórico circunscrito a uma determinada região; ao contrário, o progresso atinge uma ressignificação semântico-normativa, isto é, passa a ser entendido pelo enfrentamento da extrema pobreza no Estado do Maranhão. O perigo aqui é flertar com as disposições e arranjos político-partidários adjacentes ao ‘Mais IDH’; entretanto, esse não é o nosso intento aqui.
O combate à pobreza, advindo de políticas públicas endereçadas à emancipação, ocorre de forma multifacetada e essa ação depende, sobretudo, daquele específico contexto (Sitz im Leben). Foi o que ocorreu, certa vez, em Fernando Falcão, um dos municípios de pior IDHM do Brasil (0,443): o auxílio com o que diz respeito aos investimentos públicos associado com a assistência à agricultura familiar, por exemplo, são iniciativas que garantem o exercício da justiça social e, por assim dizer, ainda que de forma lânguida, o progresso naquela comunidade social.
Assim, a crítica à ideia de progresso em Amy Allen torna-se exequível na medida em que não se trata da lógica desenvolvimentista de transição sócio-histórica; mas, ao contrário, o progresso, entendido nesta pesquisa, é condição possível para a melhoria das condições mínimas de um povo. Daí que a justiça social não fica situada no plano da ideação, mas, ela se desterritorializa exercendo a tarefa destranscendentalizadora, como Habermas prefere chamar (HABERMAS, 2001, 87p.). Nesse sentido, emerge no mundo da vida (personalidade, cultura e sociedade) uma práxis transformadora (Thompson, 2015, 361p.) copartícipe da efetivação da justiça social mediante as instituições sociais presentes nos arranjos políticos das/nas políticas públicas (MORAN, 2016, 983p.) como ocorre, por exemplo, no programa social ‘Mais IDH’; entretanto, o desafio pela plenificação da justiça social permanece!
ACOSTA, Pablo. Quatro lições sobre a pobreza no Brasil. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/pablo-acosta/2022/09/quatro-licoes-sobre-a-pobreza-no-brasil.shtml>. Acesso 21 set. 2022.
ALBERT, Karl. Das gemeinsame Sein: Studien zur Philosophie des Sozialen. Sankt Augustin: Verlag Hans Richarz, 1981.
ALLEN, Amy. The End of Progress: Decolonizing the Normative Foundations of Critical Theory. New York: Columbia University Press, 2016.
ALLEN, Amy, JAEGGI, Rahel, REDECKER, Eva von. Progress, Normativity,and the Dynamics of Social Change: An Exchange between Rahel Jaeggi and Amy Allen. Graduate Faculty Philosophy Journal, v. 37, n. 2, 2016, p. 225 – 251.
AZMANOVA, Albena. Capitalism on edge: how fighting precarity can achieve radical change without crisis or utopia. New York: Columbia University Press, 2020.
BENHABIB, Seyla. Critique, Norm, and Utopia: A Study of the Foundations of Critical Theory. New York: Columbia Press, 1986.
BENSON, Daniel (org.). Domination and Emancipation: Remaking Critique. New York: Rowman & Littlefield, 2021.
BOHMANN, Ulf, SÖRENSEN, Paul. Kritische Theorie der Politik. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2019.
CHRISPINO, Alvaro. Introdução ao estudo das políticas públicas: uma visão interdisciplinar e contextualizada. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016.
CHRISTMAN, Jon. Social and Political Philosophy: a Contemporary Introduction. 2.ed. New York: Taylor & Francis, 2018.
CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. Tradução de Daniel Fabre. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.
DETEL, Von Wolfgang. Philosophie des Sozialen. Stuttgart: Reclam, 2007.
FORST, Rainer et.al. Sozialphilosophie und Kritik. 1.ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2009.
HABERMAS, Jürgen. Nachmetaphysisches Denken II: Aufsätze und Repliken. 1 ed. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2012.
HABERMAS, Jürgen. Kommunikatives Handeln und detranszendentalisierte Vernunft. Stuttgart: Reclam, 2001.
HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
HARRIS, Othello. Social Justice: Critical Readings in Relevant Theory and Contemporary Life Issues. San Diego: Cognella Academic Publishing, 2021.
HONNETH, Axel, HERZOG, Lisa (org.). Der Wert des Marktes: Ein ökonomisch-philosophischer Diskurs vom 18. Jahrhundert bis zur Gegenwart. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2014.
HONNETH, Axel. O direito da liberdade. Tradução Saulo Krieger. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
HONNETH, Axel. The normativity of ethical life. Philosophy and Social Criticism, New York, v. 40, p. 817 – 826, 2014.
HONNETH, Axel. Pathologien der Vernunft: Geschichte und Gegenwart der Kritischen Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2007.
HONNETH, Axel. Leiden an Unbestimmtheit: Eine Reaktualisierung der Hegelschen Rechtsphilosophie. Stuttgart: Reclam, 2001.
IKÄHEIMO, Heikki, LAITINEN, Arto. Recognition and Social Ontology. Leiden: Brill, 2011.
ISER, Mattias. Empörung und Fortschritt: Grundlagen einer Kritischen Theorie der Gesellschaft. Frankfurt: Campus Verlag, 2008.
JAEGGI, Rahel. Fortschritt und Regression. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2020. JAEGGI, Rahel, CELIKATES, Robin. Sozialphilosophie: Eine Einführung. München: C.H.Beck, 2017.
JAEGGI, Rahel. Kritik von Lebensformen. 2.ed. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2014.
JAEGGI, Rahel, WESCHE, Tilo (org.). Was ist Kritik? 3.ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2013.
JAY, Martin. A imaginação dialética: história da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923 – 1950. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
KLEIMAN, Arthur et.al.(org.). Social Suffering. London: University of California Press, 1997.
LOHSE, Simon. Die Eigenständigkeit des Sozialen: Zur ontologischen Kritik des Individualismus. Tübingen: Mohr Siebeck, 2019.
LOTTA, Gabriela (org.). Teoria e análises sobre implantação de políticas públicas no Brasil. Brasília: Enap, 2019.
MARANHÃO (Estado). Secretaria de Estado do Planejamento e Orçamento (SEPLAN). Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e Cartográficos. Plano de Ação “Mais IDH”. São Luís, MA, 2015.
MORAN, Michael et.al. (org.). The Oxford Handbook of Public Policy. Oxford: University Press, 2006.
MULLER, Jerry. Z. The Tyranny of Metrics. Princeton: Princeton University Press, 2018.
MÜNSTER, Harald. Jenseits von Markt und Staat: Differenztheoretische Grundlegung einer Philosophie des Sozialen. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2020.
NOBRE, Marcos (org.). Curso Livre de Teoria Crítica. Campinas: Papirus, 2008.
NOBRE, Marcos. A Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
OLIVEIRA, Nythamar. Tractatus Politico-Theologicus: Teoria Crítica, Libertação e Justiça. Porto Alegre: Editora Fi, 2016.
PARIJS, Philippe Van, VANDERBORGHT, Yannick. BASIC INCOME: A Radical Proposal for a Free Society and a Sane Economy. Cambridge: Harvard University Press, 2017.
PINZANI, Alessandro. Teoria crítica e justiça social. Civitas, Porto Alegre, v.12, n.1, p. 88 – 106, 2012a.
PINZANI, Alessandro. Justiça Social e Carências. In: PINZANI, Alessandro, TONETTO, Milene (org.). Critical Theory and Social Justice. Florianópolis: Nefiponline, 2012b. p. 134 – 159.
PINZANI, Alessandro. De objeto de políticas a sujeitos da política: dar voz aos pobres. Revista ethic@, Florianópolis, v. 10, n. 3, p. 83 - 101, 2011.
REGO, Sergio Tavares, PALACIOS, Marisa. Justiça social como um imperativo ético. Revista Saúde Debate, Rio de Janeiro, n.7, v. 43, p. 141 – 151, 2019.
SERNA, Aura. La existencia social: entre subjetividad y condiciones objetivas - Incidencia en la discusión teórica sobre el desarrollo. Revista de Políticas Públicas, São Luís (MA), número especial, p. 407 – 412, 2014.
SCANLON, T. M. Preference and Urgency. The Journal of Philosophy, Princeton, v. 72, n. 19, p. 655 – 669, 1975.
STAHL, Titus. Immanente Kritik: Elemente einer Theorie sozialer Praktiken. Frankfurt am Main: Campus Verlag, 2013.
THOMPSON, Michael J. (org). Constructing Marxist Ethics: Critique, Normativity, Praxis. Leiden: Koninklijke Brill, 2015.
VOIROL, Olivier. Teoria Crítica e pesquisa social: da dialética à reconstrução. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 93, p. 81 – 99, 2012.
VON HAYEK, F. Direito, Legislação e Liberdade. São Paulo: Visão, 1985. v. III.
WESCHE, Tilo. Reflexion, Therapie, Darstellung: Formen der Kritik. In: JAEGGI, Rahel, WESCHE, Tilo (org.) Was ist Kritik? 3.ed. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 2013. p. 193 – 220.
WESSER, Ulrich. Heterenomien des Sozialen: Sozialontologie zwischen Sozial-philosophie und Soziologie. 1. ed. Wiesbaden: Springer Fachmedien, 2011.
WORLD BANK GROUP. Brazil Poverty and Equity Assessment: Looking ahead of two crises. Washington: World Bank Publications, 2022.
ZEIFERT, Anna Paula Bagetti. PENSAR AS POLÍTICAS PÚBLICAS A PARTIR DO ENFOQUE DAS CAPACIDADES: JUSTIÇA SOCIAL E RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS. Revista Direitos Sociais e Políticas Públicas (UNIFAFIBE), v. 7, n.1, p. 1 – 22, 2019.
2 Human Development Index (HDI). Disponível em: https://hdr.undp.org/data-center/human-development-index#/indicies/HDI. Acesso 26 set. 2022.
Professor(a) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Luís – MA, Brasil. Professor (a) do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), São Luís – MA, Brasil.