Entrevistas
Entrevista com o tradutor Rogério Bettoni
Interview with translator Rogério Bettoni
Entrevista com o tradutor Rogério Bettoni
Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 11, núm. 1, pp. 149-153, 2018
Universidade Federal de Minas Gerais
Recepção: 30 Março 2018
Aprovação: 28 Abril 2018
Conheci Rogério quando ainda morava em Belo Horizonte e trabalhava na UFMG. Trata-se de alguém que não passa despercebido, seja pelo profissionalismo ou pela simpatia, que ele cultiva em igual medida. Trabalhamos juntos em um projeto de tradução de entrevistas inéditas da Elizabeth Bishop e, desde então, acompanho sua trajetória profissional. É preciso atestar logo na introdução desta entrevista que, embora eu conheça vários tradutores profissionais, poucos são tão generosos quanto Rogério em colaborar com seus colegas e, por extensão, com a própria arte da tradução. Formado em Filosofia pela UFSJ e especialista em tradução pela UFMG, trabalha como tradutor há mais de dez anos para as principais editoras brasileiras. Rogério já traduziu obras de Susan Sontag, David Graeber, István Mészáros, Nigel Warburton, Raymond Williams, Judith Butler e Slavoj Žižek, Agatha Christie, Ernest Hemingway e Lars Husum, entre outros. Em 2016, foi selecionado como tradutor residente do Programa Internacional de Tradução Literária do The Banff Centre, em Banff, Canadá, para traduzir contos de Katherine Mansfield. Em 2017, ganhou o Prêmio Literário Biblioteca Nacional na categoria Paulo Rónai de melhor tradução com o livro Jaqueta Branca, ou o mundo em um navio de guerra, de Herman Melville. Atualmente, também se dedica a coordenar a Coleção Argos, da Editora Autêntica, para publicação de estudos de gênero e queer. Sua ampla experiência profissional assim como seu conhecimento sobre programas e recursos on-line para a tradução foram generosamente compartilhados nessa entrevista. Espero que você aproveite!
1 Em quais áreas da tradução você atua? Quais as particularidades dessa(s) área(s)?
Minha principal área de atuação é a editorial – trabalho com tradução de livros, do inglês para o português, prestando serviços para editoras. Traduzo basicamente livros de não ficção na área de filosofia e humanidades, o que tem a ver com minha formação acadêmica em filosofia, e também literatura clássica e contemporânea. Também sou editor e acabo fazendo o trabalho de preparador de texto em determinados casos.
Nesse sentido, colocando minha atividade nessas três áreas – filosofia, literatura clássica e literatura contemporânea – não sei se seria possível falar de especificidades em detalhe. As dificuldades e os desafios que se apresentam podem ser de diferentes naturezas, como no estilo de escrita, na forma de pesquisa, no trato da estrutura da linguagem, na maior ou menor liberdade que temos em relação ao texto original etc., mas são aspectos característicos da atividade tradutória por si.
Há muitas camadas na tradução, que revelam outras ou se sobrepõem de acordo com fatores que vão da época em que o texto foi escrito, passam pelo contexto de produção da tradução, pelo próprio tradutor, até chegar ao leitor. A tradução editorial também é bem diferente da tradução de legendas, de contratos, de poesia, para dublagem, ou até de textos jornalísticos, tanto em termos específicos ao texto quanto em questões comerciais.
2 Em sua opinião, como os avanços tecnológicos têm impactado o trabalho do tradutor? Poderia dar exemplos?
Excelente questão. Acho que há impactos positivos e negativos. Não há como negar que a tecnologia facilitou o trabalho do tradutor e garantiu um ganho imenso em qualidade e precisão. Vamos pensar na tradução de um clássico do século XIX, por exemplo. Os recursos que temos hoje disponíveis e a facilidade de acesso à informação permitem que a gente pesquise em fontes às quais, até a década de 1990, só teríamos acesso se fôssemos até elas pessoalmente, ou se ouvíssemos algum relato, pesquisássemos em enciclopédias etc. Hoje, se preciso visualizar o desenho do piso do Museu do Louvre, saber o que restou das Muralhas de Constantinopla ou caminhar por uma rua no interior da Espanha para conseguir descrever melhor a arquitetura, basta um clique no Google Maps. Temos acesso gratuito a inúmeras ferramentas e dicionários, além de tecnologias desenvolvidas especificamente para os tradutores. Não há como mensurar o que ganhamos em qualidade nesse sentido.
Por outro lado, essa facilitação tem trazido de volta aquela velha ideia de que traduzir é muito simples, pois bastaria saber duas línguas e ter um dicionário. Passamos da máquina de escrever e dos tipos no papel aos teclados e ao cursor na tela, e agora avançamos para as traduções automáticas em que qualquer pessoa pode ser “tradutora”. Outro dia mesmo, uma amiga escritora teve um texto traduzido para o inglês por uma pessoa dita muito competente, autora de um blog em inglês, pesquisadora etc. Não foi preciso ler mais do que dois parágrafos para entender que o texto havia sido passado por uma ferramenta automática – quadrado, sem estilo, com equívocos de colocações e sinonímias, e todas as expressões idiomáticas perdidas.
Isso é apenas um exemplo para ilustrar a conversa, é claro. Não há como evitar essa difusão, nem queremos. Não vivemos sem máquinas, nem queremos. Mas é importante e urgente instruir. As ferramentas de auxílio à tradução, entre elas os softwares de memória, prestam um grande serviço a nós, mas não deveriam ser usados “a torto e a direito”. Um texto que não seja técnico (como manuais, contratos etc.) traduzido por um software de memória sem a devida revisão e o cuidado com a arte da palavra soa tão quadrado e pré-fabricado quanto um texto simples passado por um tradutor automático. Estamos perdendo um pouco a riqueza vocabular, estreitando as possibilidades de nos comunicarmos mais efetivamente com palavras que temos no nosso idioma e que vão se tornando esquecidas. E num país em que aproximadamente 70% dos livros publicados todo ano são traduções, os cursos de formação têm uma responsabilidade fundamental nisso tudo.
Já me estendendo um pouco, os cursos de formação, universitários ou não, precisam promover um pouco mais essa visão de que a escrita requer mais do que a técnica de ordenar sujeito e predicado. A própria produção acadêmica tem corroborado isso de certo modo – temos visto artigos de análise de tradução que desconsideram o contexto de produção textual, ou traduções anotadas que abundam de notas de rodapé para explicar que certas palavras foram mantidas no original porque “não havia tradução”, quando uma busca menos preguiçosa traria exatamente a correspondência ideal. Estamos formando tradutores preguiçosos e sem estilística.
Vilém Flusser tem um texto ótimo chamado Por que as máquinas de escrever estalam?, que cito na tradução de Raquel Abi-Sâmara: “Todos percebem que estamos desintegrando em pedaços [Bits] a desprezível estrutura íntegra das coisas. Mas não veem que podemos transcodificá-la de acordo com a vontade do coração. As pessoas deveriam de uma vez por todas aprender a contar.”
3 Que tipo de conhecimento ou habilidade você classificaria como fundamental para o tradutor do novo milênio? Quais seriam os possíveis impactos disso na qualidade das traduções produzidas?
Escrever bem em sua língua materna, e depois entender muito bem a língua estrangeira da qual se traduz. Essa é a habilidade mais fundamental, e falamos dela desde que começamos a pensar a tradução. O tradutor não precisa necessariamente saber escrever ou falar na outra língua, mas precisa entender sua estrutura, suas nuances. Para além disso, acho que toquei de leve no assunto na resposta anterior. É fundamental saber pesquisar, e não procurar no Google. A pesquisa exige comparação, análise, leitura contextual. Também acho necessário estar muito bem assentado na contemporaneidade, acompanhando o que há de novo nas tecnologias, atualizando os próprios métodos, questionando o próprio fazer. É também importante ser muito aberto a críticas – e por “crítica” viso algo de fundamento, de estrutura, de estilo, dito por quem de se debruça sobre um texto e percebe nos detalhes o que pode haver de equivocado, o que pode ser melhorado.
4 Qual a sua experiência com o mercado editorial no Brasil? As editoras demonstram interesse em relação aos recursos disponíveis para o tradutor?
Eu comecei a traduzir profissionalmente para o mercado editorial. Com o tempo, fui me inserindo aos poucos em outras funções até me tornar também editor, então conheço um pouco do mercado. Atuo também como editor e preparador, mas minha experiência principal é com tradução. Não sei se entendi muito bem a pergunta, ou no que consistiria esse interesse. Mas pela minha experiência com diferentes editoras de diferentes portes, posso dizer que poucas sabem como seus tradutores trabalham, que tipo de ferramentas usam etc. Algumas fornecem um “manual”, com diretrizes sobre seus padrões, às vezes, com indicações de links de consulta, mas não passa disso. Não sei se cabe às editoras avaliarem quais ferramentas seus tradutores usam, mas isso também depende da relação que aquela editora quer construir com seus prestadores de serviço. Como editor, sinto que é muito frutífero promover uma libertação dos egos individuais e o entendimento de que a tradução não é feita apenas pelo tradutor, embora ele tenha a palavra final. Quando chega até mim uma tradução algo problemática, muitas vezes por inexperiência, não há por que simplesmente dispensar o prestador de serviço. Eu procuro, ao contrário, fortalecer as habilidades dele, promover o diálogo – é assim que o editor também aprende e se fortalece. Muitas dificuldades minhas eu só fui entender quando as vi expostas no texto de outra pessoa. Tradutor não para de aprender nunca.
5 Você poderia falar um pouco sobre a sua experiência com programas de tradução ou outros recursos como, por exemplo, glossários?
Sempre torci o nariz para programas de tradução, ou mais especificamente para memórias de tradução – um preconceito fortalecido pelos textos que eu lia sabendo terem sido traduzidos com o uso de memórias de tradução. Eles me pareciam textos quadrados, truncados, sempre com a mesma estrutura e ordenação de frases, sem muitas variações – sem “música”. Em textos literários, via o estilo do autor desaparecer. Em textos de não ficção, a sensação era de que faltavam conjunções, interação entre uma frase e outra. Há quem diga o contrário, mas, para quem conhece o funcionamento, não é difícil ler um texto e saber se ele foi traduzido com o auxílio da máquina.
Quando comecei a pesquisar em detalhe o funcionamento dos programas, comecei a entender que não eram eles o problema, mas os usuários. O tradutor, ao se deparar com o tempo que pode ganhar usando uma ferramenta que agrega várias funções dispersas, corre o risco de dar menos importância à estruturação do texto como um todo, uma vez que quando traduzimos sem a ferramenta, já vamos nós mesmos cuidando dessa estruturação, apagando, mexendo, alterando. Nas ferramentas de memória, a repetição de estruturas já dadas pelo programa pode ser um problema em vez de uma solução. Elas podem ser muito úteis para manter a linearidade de terminologia, lugares históricos, topônimos etc., mas podem truncar um texto. Se o tradutor não tiver esse cuidado com o texto, de vê-lo como um palimpsesto, o resultado pode não ser muito bom.
Mas digo isso também a partir da minha experiência. Tenho usado algumas ferramentas de memória para auxiliar nessa linearidade, especialmente em textos de filosofia, pois o programa pode me apontar rapidamente uma solução que dei para determinado termo ou estrutura num texto que traduzi anos antes. Isso é um grande avanço.
Agências de tradução, tradutores empresariais, que trabalham com contratos, com manuais, com textos cuja estrutura não é tão variável, beneficiaram-se em ampla medida dos softwares de memória de tradução. E também dos glossários, é claro. Eu uso poucos glossários prontos, e, quando os uso, é mais como um ponto de partida para conferência, ou para começar minha busca. São também indispensáveis, mas com cautela. Não dá para traduzir a palavra “actual”, por exemplo, tendo como base um glossário de filosofia que traga como correspondência direta a tradução “efetivo”. Ou “attachment” por “ligação”. O texto pode acabar fazendo sentido, mas quando traduzimos conceitos ou categorias, há uma ampla variedade de sentidos que precisa ser levada em conta contextualmente. Esses dois termos, por exemplo, podem assumir diferentes sentidos a depender do que trata o texto de filosofia em mãos ou de seu autor.
6 Como você vê os programas/ferramentas online livres e gratuitos disponíveis hoje para os tradutores? São eficientes? Se a resposta for não, o que falta a esses programas?
Há muitas opções, algumas boas, outras ruins, mas nenhuma excelente. Falando da língua inglesa, por exemplo, temos bons dicionários, bons corpora para consulta de frequências e estrutura. Mas ferramentas bilíngues gratuitas, não temos. Não entendo de programação, nem da parte técnica, então, digo isso pela minha experiência mesmo. Ferramentas como Linguee, por exemplo, têm um grande potencial, mas seus resultados são extraídos quase sempre das mesmas fontes – sites que disponibilizam conteúdos bilíngues. Em longo prazo, vejo um ciclo se criando, em que soluções equivocadas são reutilizadas e vão corroborando a si próprias, muitas vezes se distanciando da realidade – cria-se quase uma realidade paralela, em que os textos definem uma situação da realidade, mas não conseguimos entender como começou aquela definição. É muito comum vermos isso em textos do governo, de administração, de economia.
A máquina aprende muito fácil. Recentemente, por exemplo, uma ONG para a qual eu traduzo regularmente enviou um pedido ao Google para que a empresa alterasse o algoritmo do Google Translate, que passou a exibir resultados ofensivos e pejorativos para termos que teriam de ser naturalmente traduzidos como neutros, como “gay” e “lesbian” traduzidos por “viado”, “bicha”, “sapatão”.
Desde que se vislumbrou a possibilidade de uma máquina tradutora, discute-se a possibilidade de traduções automáticas. Hoje um turista pode apontar o telefone para uma placa ou um cardápio e ver instantaneamente sobre a imagem a tradução das palavras. É possível conversar na recepção de um hotel usando um aplicativo no celular, que reconhece o texto na fala de uma língua e a reproduz em outra língua. As fronteiras são cada vez mais transpostas, e isso é maravilhoso. Não sei o que falta às ferramentas de tradução porque, para mim, elas nunca deixarão de ser o que são: ferramentas. Talvez falte senso estético, ou melhor, pessoalidade.
Ligação alternative
https://periodicos.ufmg.br/index.php/textolivre/article/view/16786 (html)